Feminicídio

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O presente artigo trata de um tema abordado em aula, quando falamos sobre o princípio da intervenção mínima que pode/deve operar em duas vertentes: primeiro orientar o legislador na seleção dos bens jurídicos mais importantes e necessários ao convívio em sociedade. E por outro lado funcionar como termômetro para o legislador retirar a proteção do Direito Penal em condutas que podem muito bem serem protegidas por outros ramos do direito. No caso do feminicídio ele operou selecionando uma nova conduta para criminalização, uma vez que o legislador entendeu que essa era a maneira correta para uma melhor proteção da mulher vítima de violência. O Feminicídio Alice Bianchini, Fernanda Marinela e Pedro Paulo de Medeiros. O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça-feira (3), o Projeto de Lei do Senado 8.305/2014, que inclui o feminicídio como homicídio qualificado, classificando-o, ainda, como hediondo. O feminicídio constitui a manifestação mais extremada da violência machista, fruto das relações desiguais de poder entre os gêneros. Ao longo da História, nos mais distintos contextos socioculturais, mulheres e meninas são assassinadas pelo tão só fato de serem mulheres. O fenômeno forma parte de um contínuo de violência de gênero expressada em estupros, torturas, mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual dentro e fora da família. Vários países, principalmente na América Latina, criminalizaram o feminicídio, trazendo, em sua descrição típica, requisitos específicos que se diferenciam de um local para outro. Essa tendência para a criminalização também chegou ao Brasil. O projeto de lei que criminaliza o feminicídio no País considera que há razões de gênero, quando o crime envolve: violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A criminalização do feminicídio tem provocado um intenso debate entre os estudiosos das questões de gênero (sociólogos, psicólogos, juristas etc.). Alguns justificam a necessidade de criminalização da conduta, já outros entendem que ela já se

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Direito Penal - Um pequeno esboço do crime de feminicídio aprovado pelo congresso brasileiro

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O presente artigo trata de um tema abordado em aula, quando falamos sobre o princípio da intervenção mínima que pode/deve operar em duas vertentes: primeiro orientar o legislador na seleção dos bens jurídicos mais importantes e necessários ao convívio em sociedade. E por outro lado funcionar como termômetro para o legislador retirar a proteção do Direito Penal em condutas que podem muito bem serem protegidas por outros ramos do direito. No caso do feminicídio ele operou selecionando uma nova conduta para criminalização, uma vez que o legislador entendeu que essa era a maneira correta para uma melhor proteção da mulher vítima de violência.

O Feminicídio

Alice Bianchini, Fernanda Marinela e Pedro Paulo de Medeiros.

O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, nesta terça-feira (3), o Projeto de Lei do Senado 8.305/2014, que inclui o feminicídio como homicídio qualificado, classificando-o, ainda, como hediondo. O feminicídio constitui a manifestação mais extremada da violência machista, fruto das relações desiguais de poder entre os gêneros.

Ao longo da História, nos mais distintos contextos socioculturais, mulheres e meninas são assassinadas pelo tão só fato de serem mulheres. O fenômeno forma parte de um contínuo de violência de gênero expressada em estupros, torturas, mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual dentro e fora da família.

Vários países, principalmente na América Latina, criminalizaram o feminicídio, trazendo, em sua descrição típica, requisitos específicos que se diferenciam de um local para outro. Essa tendência para a criminalização também chegou ao Brasil. O projeto de lei que criminaliza o feminicídio no País considera que há razões de gênero, quando o crime envolve: violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

A criminalização do feminicídio tem provocado um intenso debate entre os estudiosos das questões de gênero (sociólogos, psicólogos, juristas etc.). Alguns justificam a necessidade de criminalização da conduta, já outros entendem que ela já se encontra contemplada nos tipos penais existentes na legislação brasileira (homicídio qualificado, sequestro, vilipêndio de cadáver etc.).

Independentemente da posição por se criminalizar ou não o feminicídio, há consenso em relação à gravidade do problema e à necessidade de explicitá-lo, de torná-lo visível, para que seja conhecido e compreendido e, a partir daí, seja intensificada a sua prevenção. Isso, contudo, pede sensibilidade e mobilização social. A tarefa é por demais complexa para o Judiciário, que terá uma margem muito limitada de ação, já que a sua atuação é condicionada à existência do fato, ou seja, do crime. Não se pode esquecer que, quando o Judiciário é chamado a atuar, o bem jurídico já foi lesado. Às medidas preventivas, portanto, é que devemos dedicar a maior parte de nossa atenção.

No contexto da violência contra a mulher é que se insere a análise acerca da conveniência da criminalização do feminicídio. Tal discussão é fundamental no campo político, social e jurídico. Ainda que não haja acordo sobre a criminalização do feminicídio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das suas características: a morte das mulheres pelo fato

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de serem mulheres é produto das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão, que se manifestam generalizadamente em contextos de violência sexista contra as mulheres. Trata-se de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida de mulheres, com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais.

Os simpatizantes da criminalização gênero-específica alegam que não são suficientes os tipos penais neutros, pois o fenômeno da violência contra a mulher permanece oculto onde subsistem pautas culturais patriarcais, machistas ou religiosas muito enraizadas e que favorecem a impunidade, deixando as vítimas em situação de desproteção. Não se propõe punir mais, mas fazê-lo de acordo com a gravidade do fato.

Não se trata de dar um tratamento vantajoso para as mulheres à custa dos homens, senão de se conceder uma tutela reforçada a um grupo da população cuja vida, integridade física e moral, dignidade, bens e liberdade encontram-se expostas a uma ameaça específica e especialmente intensa, evitando violarmos o princípio da proteção deficiente.

Tal previsão é compatível com a Constituição Federal, tal como ocorre com a Lei Maria da Penha, que protege exclusivamente as mulheres. Tanto que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu essa restrição como constitucional, pois a mulher se encontra em condição de hipossuficiência em alguns aspectos, principalmente naqueles ligados à compleição física.

Sendo assim, em homenagem ao Princípio da Isonomia, de moldura constitucional, os desiguais devem ser tratados desigualmente, na medida de sua desigualdade. Não se desconhece que várias correntes reputam que se dar proteção maior à vida da mulher seria uma forma de discriminação. Não obstante, reconhece-se que as estatísticas demonstram estarem as mulheres em situação de vitimização e pouca proteção concreta, legitimando, assim, a proteção diferenciada.

Finalmente, vale registrar que criminalizar conduta é sempre a última saída em matéria de Política Criminal e de conscientização social. Medidas de cunho social (escolas, hospitais, trabalho, dignidade etc.) são muito mais eficazes para o fim de conscientizar a população quanto ao seu dever de respeito aos bens jurídicos.

Se essas medidas, após adotadas, se mostram ineficazes, então é legitimado o uso de leis para impor essa conduta esperada à população. Primeiro, com direito administrativo, depois civil e, finalmente, penal. As estatísticas relacionadas à violência contra as mulheres no Brasil mostram que o direito penal está sendo chamado a agir.

Alice Bianchini - Comissão da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB, Portal Atualidades do Direito.

Fernanda Marinela - Presidente da Comissão da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB.

Pedro Paulo de Medeiros - Presidente da Comissão de Direito Penal do Conselho Federal da OAB