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CADERNOS DE ESTUDOS SOCIAIS - Recife, v. 25, n o . 1, p. 135-148, jan./jun., 2011 135 A civilização das crianças pela escola (Brasil, século XX): questões teóricas e conceituais Cynthia G. Veiga Nas últimas décadas é evidente a ocor- rência de significativas alterações nas rela- ções de poder entre adultos, jovens e crianças. As mudanças no equilíbrio de poder entre as gerações traduziram-se no movimento de deslocamento de um tratamento humano ca- racterizado por práticas autoritárias dos adul- tos em relação aos jovens e às crianças para pràticas mais democráticas e informatizadas (Wouters, 2008), inclusive como padrão de- sejável de comportamento civilizado. No texto A civilização dos pais, Norbert Elias (1998) apresenta-nos importante discus- são a respeito das alterações nas relações entre pais e filhos. Aqui específicamente, inci- tada pelas questões apresentadas por Elias e pensando com este sociólogo, me proponho a discutir no campo das relações geracionais as mudanças nas relações entre alunos e pro- fessores como integrante sdo processo civili- zador. Ou seja, tal questão será problematizada no âmbito do processo escolarizador (Veiga, 2009). Minha hipótese é de que a escola, num lento processo histórico desempenhou papel fundamental no processo de redefinição das relações entre as gerações e de suas práticas de sociabilidade. Ou ainda, as mudanças ocor- ridas nas relações familiares não são autô- nomas em relação ao restante da sociedade. Considerando-se então que as distin- ções geracionais são produzidas no proces- so civilizador, parte-se da premissa de que a civilização das crianças ocorre durante a civilização dos adultos, em suas relações de interdependência caracterizadas por de- sigualdades nas oportunidades de poder. A CIVILIZAÇÃO A CIVILIZAÇÃO A CIVILIZAÇÃO A CIVILIZAÇÃO A CIVILIZAÇÃO DAS CRIANÇAS AS CRIANÇAS AS CRIANÇAS AS CRIANÇAS AS CRIANÇAS PEL PEL PEL PEL PELA ESCOL A ESCOL A ESCOL A ESCOL A ESCOLA (BR (BR (BR (BR (BRASIL, SÉCULO XX): ASIL, SÉCULO XX): ASIL, SÉCULO XX): ASIL, SÉCULO XX): ASIL, SÉCULO XX): QUESTÕES TEÓRICAS QUESTÕES TEÓRICAS QUESTÕES TEÓRICAS QUESTÕES TEÓRICAS QUESTÕES TEÓRICAS E CONCEITU E CONCEITU E CONCEITU E CONCEITU E CONCEITUAIS AIS AIS AIS AIS Cynthia Greive V Cynthia Greive V Cynthia Greive V Cynthia Greive V Cynthia Greive Veiga* eiga* eiga* eiga* eiga* * Professora de História da Educação da Faculdade de Educação da UFMG.

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Nas últimas décadas é evidente a ocor-rência de significativas alterações nas rela-ções de poder entre adultos, jovens e crianças.As mudanças no equilíbrio de poder entre asgerações traduziram-se no movimento dedeslocamento de um tratamento humano ca-racterizado por práticas autoritárias dos adul-tos em relação aos jovens e às crianças parapràticas mais democráticas e informatizadas(Wouters, 2008), inclusive como padrão de-sejável de comportamento civilizado.

No texto A civilização dos pais, NorbertElias (1998) apresenta-nos importante discus-são a respeito das alterações nas relaçõesentre pais e filhos. Aqui específicamente, inci-tada pelas questões apresentadas por Elias epensando com este sociólogo, me proponhoa discutir no campo das relações geracionais

as mudanças nas relações entre alunos e pro-fessores como integrante sdo processo civili-zador. Ou seja, tal questão será problematizadano âmbito do processo escolarizador (Veiga,2009). Minha hipótese é de que a escola, numlento processo histórico desempenhou papelfundamental no processo de redefinição dasrelações entre as gerações e de suas práticasde sociabilidade. Ou ainda, as mudanças ocor-ridas nas relações familiares não são autô-nomas em relação ao restante da sociedade.

Considerando-se então que as distin-ções geracionais são produzidas no proces-so civilizador, parte-se da premissa de quea civilização das crianças ocorre durante acivilização dos adultos, em suas relaçõesde interdependência caracterizadas por de-sigualdades nas oportunidades de poder.

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* Professora de História da Educação da Faculdade deEducação da UFMG.

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Entretanto, conforme observado por Elias,as mudanças nas relações entre as ge-rações têm sido conduzidas a uma direçãomuito específica – o reconhecimento darelativa autonomia da criança.

Trazendo a questão para a escola pre-tende-se demonstrar que a civilização dosalunos também se faz no movimento da ci-vilização dos professores,1 guardadas as di-ferenças da natureza das interdependênciasentre as gerações constituídas na família ena escola. Deste modo, serão problemati-zadas as modificações pedagógicas rumo àfacilitação de uma maior autonomia do alu-no, ou melhor, das crianças da escola pri-mária, no Brasil em início do século XX. Paraisso, serão enfocados os seguintes aspec-tos: a disciplina escolar; a feminização domagistério; os conteúdos escolares e méto-dos de ensino; o espaço e o tempo escolar.

Ressalta-se que as mudanças na rotinaescolar ocorreram em meio a muitas tensões,mesmo porque as relações geracionais envol-vem as múltiplas identidades dos sujeitos emsuas origens, e, portanto relações de classe,de gênero e de origem étnico-racial. Outraquestão é destacar a interdependência entrefamílias, professores, alunos e membros doEstado no processo escolarizador da infância.

Questões teórico-conceituais:

a civilização das crianças

Norbert Elias (1998) chama a atençãopara as rápidas mudanças ocorridas nas re-lações entre pais e filhos ao longo do séculoXX. Ao comentar a tese de Phillipe Áries2 so-bre o “descobrimento da infância”, realça ocaráter de longa duração e de continuidadedesse processo de “descobrimento”. Mesmoporque os filhos são sempre indivíduos a se-rem descobertos pelos pais e vice-versa; alémdo mais, apesar do grande avanço das ciên-cias, os conhecimentos a respeito da infânciaainda são adquiridos de modo fragmentadonos campos das ciências biológicas e no cam-po das ciências sociais. Portanto, ainda hámuito a conhecer sobre as crianças.

O autor destaca a permanência da poucahabilidade dos adultos na difícil tarefa de soci-

alizar as crianças em sociedades complexasque exigem altos níveis de autocontrole eprevisão. Acresce-se que, para Elias, os co-nhecimentos acumulados no que se refereao trato com a infância são insuficientespara analisarmos as mudanças recentesnas relações entre adultos e crianças. Noseu entendimento, tais alterações se devema uma percepção de algo muito específicoe inovador,

Talvez pudéssemos denominar como anecessidade que tem as crianças de viversua própria vida, uma maneira de viver queem muitos sentidos é distinta do modo devida dos adultos, não obstante sua inter-dependência com eles. Descobrir as cri-

anças significa em última instancia

dar-se conta de sua relativa autonomia.

Em outras palavras, deve-se descobrirque as crianças não são simplesmenteadultos pequenos. Se vão fazendo adul-tos individualmente ao largo de um pro-cesso civilizador social que varia deacordo com o estado de desenvolvimen-to dos respectivos modelos sociais de ci-vilização. A reflexão mais profunda acercadas necessidades características das cri-anças é, no fundo, o reconhecimento aseu direito de ser compreendido e apre-ciado em seu caráter próprio. Este tam-bém é um direito humano. (ELIAS, 1998,p. 410, grifos meus).

Podemos lembrar aqui, por exemplo, aDeclaração de Genebra. Em 1924, uma as-sociação europeia criada no contexto do pós-guerra, a União Internacional de Socorro àsCrianças, promulgou os direitos da criança.A Declaração de Genebra, formulada em cin-co artigos, estabelecia um programa de pro-teção à infância. Entre eles, ressalto:

“(...) IV – A criança deve ser educada demaneira a poder ganhar a sua vida edeve ser protegida contra toda a explo-ração.” (ANTIPOFF, 1992, p. 119).

Contudo, há de se destacar as peculiari-dades deste grupo humano dado o seu graude dependência dos adultos para a sua so-brevivência individual e social. Mas a percep-ção da criança como dotada de característicaspróprias e autonomia relativa, sem dúvida, é

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um diferencial em relação a outros temposhistóricos em que a relação entre pais e filhosse caracterizava predominantemente comorelação de dominação e subserviência haven-do poder incondicional dos adultos sobre ascrianças. Elias observa que

como relação de dominação caracteri-zada por uma distribuição das oportuni-dades entre pais e filho, decididamentedesigual, as condutas que exigiam dosimplicados eram relativamente simplese claras. (ELIAS, 1998, p. 412).

Ou seja, como parte das normas sociais,a atitude dos pais de mandar e ordenar, e dosfilhos de obedecer, foi, durante muito tempo,foi considerada correta e desejável. Desde finsdo século XIX, observam-se mudanças nopoder absoluto dos pais e, no século XX, osfilhos passam a participar mais das decisõesfamiliares.

Para o desenvolvimento da dinâmica his-tórica das modificações nas relações entreadultos e crianças, Elias utiliza o processode civilização como modelo de análise. Ouseja, tais mudanças integram as exigênciasde crescente autocontrole dos indivíduos de-mandado no curso da civilização. Tomandocomo parâmetro a vivência dos indivíduosem longa duração histórica num ambienterotineiro de prática da violência como modode relacionamento e resolução dos conflitoshumanos, o desenrolar das ações civili-zadoras se expressa, por exemplo, na dimi-nuição dos infanticídios e posteriormente, nasua condenação; na ampliação das manifes-tações de afetividade e de espontaneidadenas condutas; na maior separação entre adul-tos e crianças quanto a comportamentos euso de espaços físicos; na ampliação dos sen-timentos de pudor e vergonha.

Desse modo, a civilização das crianças éa sua educação para autorregulação. Com-preende um processo longo de civilização in-dividual tendo em vista a constituição dassociedades industriais e os níveis de interde-pendência entre seus componentes. Eliasobserva que a convivência entre as pessoasnas sociedades urbano-industriais, tendo emvista a situação de crescente interdependên-

cia humana, demanda preparo das criançaspara exercerem a função de pessoa adulta, oque incide em alta dose de contenção das pul-sões e afetos. Este processo de educação sedesenvolve na combinação entre a existênciade um equipamento biológico que permite oautocontrole, e a dinâmica da sociedade de queé parte, pois os modelos de autocontrole sãoconstruídos nas relações entre as pessoas. Oprocesso de transformação civilizadora de cadaum é, pois muito complexo devido às exigên-cias sociais da sociedade industrial.

Elias (1998) faz uma abordagem interes-sante como parâmetro para avaliar tal comple-xidade, que é a aproximação / distanciamentoentre o jogo infantil e a atividade adulta. Quan-to mais simples uma sociedade, mais próxi-mas estão tais ações uma da outra; por suavez, nas sociedades urbano-industriais, foi ne-cessária a criação de um espaço especializa-do para preparar a criança para a vida adulta –a escola. Assim também outros espaços inter-ferem na civilização das crianças. Elias afirma,

Somente a aprendizagem da leitura, daescrita e da aritmética já demanda umaalta medida de regulação das pulsões eafetos; em sua forma mais elementartoma ao menos dois ou três anos da in-fância e, em geral, requer uma ocupa-ção parcial em alguma instituição fora dafamília, sendo comum a escola. Estamosdiante de um sintoma de uma desfuncio-nalização parcial dos pais. (ELIAS, 1998,p. 436).

O que se observa em sociedades com-plexas que exigem alto nível de autocontroleé que as alterações nas relações entre pais efilhos não se limitam ao espaço doméstico-familiar, mas também às esferas de governo,uma vez que as mudanças geracionais sãovivenciadas por toda a sociedade. No últimoséculo, ocorreu uma distribuição social na ta-refa de educação das gerações, e muitas ins-tituições foram sendo criadas para este fimregulamentando, inclusive, os procedimentosde garantia de direitos. Muitos dos problemasantes considerados como de resolução noâmbito restrito da família, foram denomina-dos como problemas sociais a serem resolvi-

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dos por políticas publicas – a assistência àcriança desvalida, a regulamentação do tra-balho infantil, as leis de proteção à infância, aeducação escolar são alguns exemplos.3

Outro fator importante na discussão so-bre as modificações nas relações familiaresque podem contribuir para refletirmos as re-lações entre professores e alunos diz respeitoà produção de um imaginário de família ideal.Elias observa que o movimento de mudançanas relações de dominação entre adultos ecrianças acarreta tensões não somente parao meio familiar, mas também para toda a so-ciedade, e se torna um problema social. Con-tudo, a percepção deste tema enquantosintoma de mudanças nas relações sociaisprecisa ser debatida e melhor encaminhada,mas muitas das vezes é desviada por repre-sentações idealizadas de família, impedindoa discussão em torno das questões concretassocialmente vivenciadas. Os problemas dasfamílias não são exclusivamente problemasprivados, também fazem parte do curso dacivilização.

Para a discussão sobre a escola, temosque as mudanças nas relações de domina-ção entre professores e alunos, nem sempresão refletidas como integrantes de alteraçõesnas relações geracionais e que precisam serdebatidas enquanto tal. Muitas das vezes oproblema é meramente atribuído à “má cria-ção” das crianças ou ao relaxamento do pro-fessor. Também, na maioria das vezes, ocorreuma reificação da questão, e o problema pas-sa a ser “a escola”. Assim, as soluções sãoreformas curriculares, etc. Todos esses pro-cedimentos são também utilizados com basena idealização de um modelo de professor, ede escola onde o debate acerca das mu-danças nas relações de interdependênciaentre professores e alunos. Portanto, a alte-ração nas expectativas de suas condutas sãotemas pouco discutidos.

Pode-se verificar, na história da educação,que muita das vezes, o que se problematizaé a conformação da escola, a organização docurrículo, as políticas educacionais e quasenada sobre as relações entre os seus sujei-tos. Desse modo, as criticas ao funcionamento

da escola em geral são feitas tendo em vistaora um modelo idealizado de escola, ora afunção controladora da escola, ora determi-nada política de Estado. Numa outra perspec-tiva, pretende-se aqui refletir sobre a direçãodo processo escolarizador na civilização dascrianças, ressaltando os acontecimentos re-lacionados à consideração de sua autonomiae manifestação de distinções geracionaiscomo dinâmica relacional.

A suavização das relações

entre professores e alunos:

a disciplina escolar

O processo civilizador, como insistente-mente afirmado por Norbert Elias, não foialgo planejado, embora sejam constituintesdeste processo inúmeras interações deações planejadas. A direção do processo ci-vilizador foi tomada rumo à economia dosdesejos e, portanto, do autocrontole. Dessemodo, a civilização das crianças diz respei-to à educação de suas pulsões. Esta cons-tatação se fez cada vez mais presente como desenvolvimento urbano e industrial e aampliação das relações de interdependên-cia. Quanto mais complexa uma sociedademais exigem-se comportamentos guiadospela autocoerção.

A difusão da escola primária a partir doséculo XIX é sintoma das novas demandassociaisconsernente à preparação das cri-anças do povo para a vida adulta. Este foium momento em que se fez necessária adivulgação dos saberes elementares e dahomogeneização de condutas no intuito deracionalizar comportamentos. A institucio-nalização da escola tornou mais sistemati-zadas as relações de coerção entre adultose crianças, mesmo porque realizadas forado núcleo familiar. Desde então o professore a professora se fixam como novos perso-nagens na história da infância popular.

A popularização da escola também tornoumais visíveis os problemas já percebidos emexperiências escolares passadas no que dizrespeito às dificuldades que permeiam o pro-cesso de transmissão do conhecimento e detrato com grupos de crianças de diferentes

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origens. O século XIX foi um tempo de inten-sas produções científicas no intuito de des-vendar a criança. Embora cada nação tenhadesenvolvido sua experiência específicaquanto à escolarização da infância, há de sedestacar algumas aproximações; as críticasaos castigos físicos é uma delas.

Em estudo recente, problematizei o pro-cesso de pacificação na escola durante oséculo XIX e início do XX demonstrando adinâmica tensa do processo de implantaçãode novos hábitos na constituição das relaçõesentre professores e alunos.4 Isso pode serconstatado na legislação do ensino, nas cor-respondências entre pais, professores e ins-petores de ensino e até nos jornais locais.No caso brasileiro, a longa duração da vio-lência física como prática social na organi-zação da sociedade, tendo em vista asrelações escravistas, foi fator de acirramen-to das tensões. Outros fatores, sem dúvida,foramdos no que diz respeito às condiçõesde trabalho de professor, tais como a ausên-cia de métodos adequados e o desconheci-mento do processo de desenvolvimentocognitivo das crianças.

Nas primeiras décadas republicanas ob-serva-se maior investimento na discussãoem torno da disciplina escolar, no intuito deimpedir, definitivamente, castigos físicos etambém situações de constrangimento. Nalegislação de Minas Gerais de 03/08/1892,artigo 84 da lei 41 registra-se:

Não serão aplicados aos alunos penasdegradantes, nem castigos físicos. A dis-ciplina escolar deve repousar essencial-mente na afeição do professor pelosalunos, possuindo-se aquele de senti-mentos paternais para com estes, demodo a corrigi-los pelos meios brandos epela persuasão amistosa.

Durante a realização do Primeiro Con-gresso de Instrução Primária do Estado deMinas Gerais, em maio de 1927, entre asteses discutidas, destaca-se a de número 11,relatada pelo Dr. Alexandre Drummond:“Qual a origem e a significação da indisci-plina na escola e quais os meios de tratá-la?” As conclusões foram as seguintes:

1º - A autoridade moral do mestre é o prin-cipal fundamento da disciplina na escola.

2º - A autoridade, o mestre deverá al-cançá-la inspirando aos discípulos inten-sa simpatia e procurando tornar o ensinointeressante.

3º - O interesse é o melhor estimulanteda atividade escolar.5

O apelo à simpatia e afetividade sugerenecessidades de mudanças nas relaçõesgeracionais e de constituição de novas sensi-bilidades no trato entre professores e alunos.Elias ao se referir à relação pais e filhos co-menta sobre a renúncia, cada vez mais am-pliada, ao emprego da violência física comoforma de repressão aos filhos, e afirma:

Em parte, esta renúncia é forçada medi-ante legislação estatal; em parte, auto-im-posta graças a crescente sensibilidadecontra o emprego da violência física notrato entre os homens. Porém justamen-te, revela a complexidade da mudançacivilizatória de nossos dias. Um relaxa-mento das barreiras de respeito no tratoentre pais e filhos, ou seja, uma informa-lização, juntamente com o fortalecimentoda proibição contra o uso da violência fí-sica nas relações intrafamiliares. Isto sereflete não somente no trato entre adul-tos e crianças no seio da família, tambémé valido para o trato de adultos e crian-ças em geral, particularmente para os pro-fessores e as crianças na escola. (ELIAS,1998, p. 443).

Uma pergunta importante a ser feita é: qualo nível de percepção dos educadores quantoà importância da suavização dos costumespara o favorecimento da autonomia dos alu-nos? Este pensamento esteve presente nasconcepções da escola nova ou escola ativaem difusão no Brasil, principalmente a partirda década de 1920. Maria dos Reis Campos(1932) em obra escrita quando do seu retornode estudos realizados nos Estados Unidos,assim afirma:

A questão de disciplina prende-se estrei-tamente a de autogoverno. Consiste esteem ser o governo da escola, ou da clas-se, confiado aos alunos (...) Para que acriança chegue a liberdade de adulto é

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necessário que se vá a pouco e poucolibertando da tutela das primeiras idades,de modo que, quando for inteiramentelivre, saiba utilizar-se dessa liberdade.E é isso que a escola moderna procuraconseguir, através do regime de autogo-verno. (CAMPOS, 1932, p. 138).

Há de se ressaltar, ainda, a interferênciacrescente do Estado no trato das relaçõesentre adultos e crianças. Além da normali-zação da organização pedagógica nas es-colas, observam-se medidas de proteção àinfância desde fins do século XIX. Destacoa decretação do Código de Menores, em1927, no Brasil. Neste código houve a regu-lamentação da assistência à criança des-valida e da punição aplicada às “criançasinfratoras”. Redigido no âmbito de propa-gação das ideias eugenistas, portanto, nacentralização da herança genética como de-finidora do comportamento social, são defi-nidas regras rígidas para a educação dessascrianças, tendo em vista suas “heranças”.

Também as regulamentações de insti-tuições de assistência a menores revelamo nível de percepção das diferenças gera-cionais. Entre elas, a questão do trabalhoinfantil, naquele período largamente defen-dido como medida de prevenção do crimee da vadiagem quando adultos. Contudo,buscava-se sua regulamentação no intuitode combater a exploração. A formação eminstituições de crianças desvalidas se feztradicionalmente, na direção da formaçãopara o trabalho e de produção de sua au-tonomia. Quanto à disciplina, tanto intimida-ções quanto castigos físicos eram proibidos,seguindo, portanto, a perspectiva da autor-regulação.

Nos Regimentos internos dos estabele-cimentos de assistência a menores, do Es-tado de Minas Gerais, de 1929, registram-secomo penalidades em ordem de rigor: másnotas; retirar da aula; privação de recreio;proibição de correspondência e visita; deten-ção na sala da inspetora; isolamento, per-mitindo a saída somente para assistir àsaulas. Quanto às recompensas: boas notas;inclusão no quadro de honra; elogios em

particular ou em público; prêmios em livros,brinquedos ou outros objetos.

A feminização do magistério

A presença das mulheres na escolariza-ção das crianças foi um fator característicono processo civilizador do ocidente. Defen-dida, entre outros, pelos positivistas, como“educadora natural”, ao longo do século XIXobservamos o crescimento efetivo de suacentralidade na educação das crianças, sejados seus filhos, seja como professoras. Oengenheiro positivista Aarão Reis, já em1875, em uma série de artigos sobre a ins-trução no Brasil, publicados no jornal Globo,assim afirmava,

O mestre dever ser o tipo de moralidade,do amor ao estudo, da amizade; deve detratar seus discípulos como filhos, tomarinteresse pelo aproveitamento deles e in-cutir-lhes no coração as virtudes cívicas edomésticas e no espírito os estímulos dopatriotismo, da abnegação e da generosi-dade. Em uma palavra; o mestre deve deser – mulher. Enquanto não se entregaras mulheres o ensino primário, será impro-ficua qualquer reforma desse ramo de es-tudos. E qual o meio de chamar a mulherpara essa nova carreira, a mais própriaquiçá para sua natureza e sentimentos? –Elevando o nível do sacerdócio escolar,enobrecendo-o. (REIS, 1975, p. 16).

Podemos afirmar que o século XIX foi umtempo de difusão e defesa de novas funçõesfemininas incluindo restrição a liberdades usu-fruídas nos séculos anteriores. O processo decivilização das mulheres implicou a sua re-clusão no lar e na dedicação às tarefas do-mésticas em detrimento da vida pública(Veiga, 2004). As mulheres passam a ser va-lorizadas quanto a sua natureza mais dócilou pelo menos sem as reações violentas cos-tumeiras dos homens, num contexto em quea suavidade no trato com as pessoas faz-sefundamental para o curso do processo decivilização.

Essas novas demandas para a mulhertambém estão relacionadas às descobertascientíficas, como a difusão da medicina higi-enista e da pedologia, bem como a maior

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responsabilização das mulheres quanto aoscuidados com as crianças. Isso acabou porcriar muitas tensões nas relações entre ho-mens e mulheres, dado o alto grau de dife-rencial de poder atribuído aos homens. Taltensão alimenta a idealização das relaçõesfamiliares centrada nas representações deboa esposa, boa dona de casa e boa mãe.Isto é ainda mais agravado nos meios popu-lares, quando as mulheres necessitam sairde casa para o trabalho gerando, consequen-temente, condições precárias no que diz res-peito aos cuidados com os filhos.

No caso da escolarização no Brasil hou-ve desde o início do século XIX, incentivosnão somente para a criação de escolas pu-blicas elementares para as meninas mas tam-bém para que a direção dessa escola fosseassumida por mulheres. A primeira lei impe-rial da instrução, Lei de 15 de outubro de 1827,decreta que haverá escolas de meninas nascidades e vilas mais populosas (artigo 11) eque as mestras vencerão os mesmos orde-nados e gratificações concedidas aos mes-tres (artigo 13). A maioria das províncias segueeste movimento, sendo, por vezes, ressaltadoo rechaço dos pais à ida das suas filhas paraa escola. De qualquer modo, desde meadosdo século XIX, foi crescente o número demulheres professoras, e na primeira décadarepublicana é maioria. Em Minas Gerais, naEscola Normal da Capital, fundada por JoãoPinheiro,em 1907, somente era permitida amatrícula de mulheres.

Um artigo de fins do século XIX, da re-vista A Mãi de Família, editada pelo médicoCarlos Costa, na coluna A educação da mu-lher, assinado por Feliz Ferreira, este afirma,

Resta-nos ainda tratar de uma profissãofeminina já muito desenvolvida entre nós,e para a qual se exige a maior soma pos-sível de prendas e virtudes, queremosfalar do magistério. A professora é há umtempo mãe, dona de casa e instrutora;tríplice missão do maior alcance moral,cujo desempenho é a pedra de toque detodas as virtudes domésticas. À grandezae elevação de pensamento, à distinção eelegância de maneiras, deve aquela que

se destina ao magistério, juntar a artede bem mandar e dirigir, de impor obe-diência, atrair simpatias, infundir afeiçãoem suas discípulas. (COSTA, 1882, nº.23, p.103).

A presença das mulheres nas escolascomo professoras primárias revelam um pro-cesso civilizador que também idealiza a fun-ção do professor, pela própria característicatensa que é o ato de educar crianças tendoem vista as várias habilidades requeridas.O que se vê é a profusão de expectativasquanto à sua missão de civilizar. O professorNoraldino Lima em discurso, como paraninfona Escola Normal Nossa Senhora das Doresda cidade de São João del Rei, Minas Ge-rais, em dezembro de 1932, proclamava emrelação à importância do amor no trato comas crianças,

(...) Assim no lar, assim na escola. Nolar, a irradiação do amor se faz atravésde um coração de mãe; na escola, ope-ra-se através de um coração de mestra(...) Tenhamos boas professoras, a co-meçar da escola primária, e teremos emequação todos os valores da grandezacomum. (LIMA, 1934, pp. 69-70).

Conteúdos escolares

e métodos de ensino

No tocante aos saberes escolares e mo-dos de ensino e aprendizagem no processocivilizador das crianças, podemos destacarduas importantes participações da escola noperíodo estudado – o aparecimento de dis-ciplinas com conteúdo de apelo estético ede educação física; o desenvolvimento demétodos de ensino que levassem em consi-deração o processo cognitivo da criança e aeducação das sensibilidades.

Desde fins do século XVIII, Rosseau(1712-1778) já indicava para a necessidadede repensar a educação das crianças na di-reção de propiciar sua autonomia. Condenoua memorização, o ensino de história, do la-tim, das fábulas, da leitura, os livros. Nessecaso afirma: “A leitura é o flagelo das crian-ças e quase a única ocupação que sabemdar-lhes. Somente aos doze anos Emilio sa-berá o que seja um livro”. (ROSSEAU, 1992,

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p. 109). O foco da proposta pedagógica doautor foi a educação dos sentidos, o que seráexplorado posteriormente por Pestalozzi(1746-1827) e Froebel (1782-1852). Tais au-tores formarão a base da discussão pela re-novação pedagógica (denominada escolanova ou escola ativa) de fins do século XIX einício do XX.

A título de crítica aos excessos de racio-nalidade desenvolvidos pelos iluministas, omovimento do romantismo da qual Schiller(1752-1805) foi um dos expoentes, anunci-ava a importância do equilíbrio entre razãoe sensibilidade, pelo cultivo da emoção. Emsua obra A educação estética do homem,publicada em 1795, Schiller ressalta na edu-cação estética a conciliação entre o inte-lecto e a vontade por meio da arte. Paraele, a base para a formação ética está naeducação das emoções e no estímulo dasensibilidade estética.

Desde fins do século XIX, as reformasescolares tiveram a preocupação com a am-pliação dos conteúdos e introdução de novasdisciplinas escolares, bem como a indicaçãodo método intuitivo para o aperfeiçoamentodo processo de ensino e aprendizagem. Ométodo intuitivo se opunha à memorização ese fundamentava no uso dos sentidos para oacesso ao conhecimento. Nesta perspectiva,a relação com os saberes ocorre do meio con-creto ao abstrato, da exploração das coisasàs palavras. Inicialmente, sua aplicação tor-nou-se conhecida pelo método de “lições decoisas”. Esta nova concepção para o ato doconhecer, sem dúvida surgiu no momento demudanças nas relações entre adultos e cri-ança, pois pressupõe o conhecimento daspeculiaridades do desenvolvimento cognitivoda criança como também uma relação me-nos autoritária do professor para com seusalunos que demanda respeito pelo processode aprendizagem infantil, rompendo com asimposições.

Uma obra representativa deste método foiPrimeiras Lições de Coisas, de NormanCalkins, (1822-1895) publicada em 1861,tendo sido traduzida para o português porRui Barbosa em 1886. De acordo com Vera

Valdemarin (1998), Calkins sugere atividadespara serem desenvolvidas também no meiodoméstico, estimulando a criança a explorare descobrir as diferenças e semelhanças dascoisas pelos sentidos. O autor indica tambémalgumas atividades motoras: brincadeiras,dobraduras e recortes de papel.

Além de dispor sobre a educação física emoral, o manual inclui conteúdos a seremministrados no ensino elementar, distribuídosde acordo com os sentidos e com a forma decada um produzir conhecimento. O objetivo éestimular as percepções sensoriais pela ati-vidade do aluno na descoberta das coisas epara a formação do hábito de pensar. O pri-meiro passo seria realizar uma aproximaçãocom as características das coisas pelos sen-tidos; em seguida, nomear; o terceiro passo,aprender a ler, escrever, compor e contar; fi-nalmente, conhecer as regras.

Em Minas Gerais, encontramos a propa-ganda do método em publicações de fins doséculo XIX. Por exemplo, na Revista do En-sino, de 13/9/1886, temos a reprodução daConferência Ensino de coisas, proferida peloprofessor Henri Gorceix, para os alunos daescola normal de Ouro Preto, onde ele res-salta a importância de as crianças tomaremparte ativa no processo da instrução, tornadoas aulas interessantes, quase que um re-creio. Em outra publicação de 1895, o autor,A. Pereira chama a atenção para o fato deque o método,

(...) exige muita paciência e perseverançada parte do mestre: é mais trabalhoso doque dar a criança uma carta, manda-laestudar e depois tomar a lição, mas o de-senvolvimento que por ele adquire o es-pírito da criança compensa sobre modoao educador que bem compreende a suamissão. (PEREIRA , 1895, p. 18).

No inicio do século XX, a aplicação dométodo intuitivo pelas lições de coisas, co-meça a ser criticado devido ao modo mecâ-nico como era utilizado pelos professores, oque já tinha sido objeto de discussão em 1882por Rui Barbosa, referindo-se à importânciade se utilizar as lições não como disciplina,mas como método do conhecer. Assim, nas

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primeiras décadas do século XX, vimos o re-dimensionamento da proposta do método in-tuitivo como uma proposta de escola, por meioda conhecida “escola nova” ou “escola ativa”.No caso, a ênfase é na exploração dos senti-dos num movimento de dentro para fora, pos-sível pela mobilização permanente dointeresse e da atividade dos alunos.

Quanto às disciplinas escolares, nas pri-meiras reformas educacionais de Minas Ge-rais no início do século XX, nos deparamoscom novos conteúdos, tais quais: instruçãomoral e civica, ginástica, canto, desenho,higiene. No conjunto destes novos saberessão destacadas preocupações quanto à for-mação ética. Em tese defendida por épocado Primeiro Congresso de instrução Primá-

ria do Estado de Minas, temos a seguinteafirmação:

A educação estética, quando bem orien-tada, pode contribuir vantajosamentepara a educação ética. Daí, a vantagemdo cultivo das belas artes. O canto coralnas escolas, segundo está verificado, éde salutar efeito. Outros auxiliares mui-to úteis são: os exercícios de movimen-tos rítmicos, os trabalhos de modelagem,o desenho, etc. (REVISTA DO ENSINO,1927, nº. 22, p. 494).

A defesa da educação física ou ginásticase fez na direção dos cuidados com o corpo.No programa oficial, vemos combinadas asatividades de brinquedos, ginástica e exer-cícios militares.

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Por outro lado, pode nos causar estranha-mento a presença de evoluções militares paracrianças – o que também nos dá pistas paraproblematizarmos sobre a especificidade dasdistinções de gênero e geracionais produzi-das na época e a expectativa sobre as condi-ções dos meninos como pequenos militarese defensores da Pátria. Outra questão seriamesmo a permanência da tradição da asso-ciação entre exercício físico e treinamentomilitar, mas principalmente o pouco progressode estudos sobre uma educação física espe-cifica para crianças.

Em relação ao ensino da música, o con-teúdo do programa era o mesmo para asquatro séries: Solfejo; Hinos ou outras mu-sicas de coro (Decreto1947, 30/09/1906). Aintrodução de saberes do campo das artestinha como objetivo estimular o gosto e osenso estético. Na dinâmica da relação pro-fessor aluno isso implicou no redimensiona-mento das formas de trato entre adultos ecrianças, com possibilidades de desenvolvi-mento de atitudes mais afetivas.

Espaço e tempo escolares

A arquitetura escolar no Brasil desde finsdo século XIX, com a fundação dos gruposescolares, apresentou consideráveis pro-gressos. Os prédios escolares, desde então,foram planejados levando-se em conside-ração as demandas higiênicas e as necessi-dades das crianças, com a previsão de locaisespecíficos para atividades como ginástica,biblioteca e museu, além do pátio escolar parao recreio. Assim, observam-se novas concep-ções de uso do espaço e do tempo escolar.

Ao longo das primeiras décadas do sé-culo XX, e principalmente com a expansãodas concepções da escola nova, cada vezmais a escola deixa de ser pensada comoum mero conjunto de sala de aula. Além dosespaços já conhecidos, acrescentam-se re-feitórios e auditório para apresentação deteatros, corais, danças, exibição de filmes,

festividades cívicas entre outros eventos. Aspróprias salas de aula passaram por modifi-cações em sua concepção, seja com a in-trodução de mobiliário desenhado a partir docorpo da criança, seja com alterações naprópria disposição do mobiliário, ou com aintrodução de novos materiais pedagógicose nova dimensão estética. É o caso da fi-xação de cartazes, mapas e murais nas pa-redes da sala ou da criação de cantinhos deatividades, minibibliotecas e pequenos mu-seus com coleções de amostras várias.

As modificações nos tempos escolarestambém é uma temática em sintonia com asnovas preocupações em relação ao desem-penho escolar, com atenção ao tempo da in-fância. Na história da educação podemosperceber que numa longa duração histórica,a prevalência da memorização e a ocorrên-cia de violência física na relação entre pro-fessor e aluno, faziam com que tempo escolarfosse um verdadeiro martírio, sem contar otempo longo de aprendizagem. Com os no-vos conhecimentos da biologia e da psico-logia, muitos educadores problematizam aquestão da “fadiga escolar”. Podemos identi-ficar duas proposições distintas na organi-zação do tempo na escola.

Inicialmente, houve um esforço para ra-cionalizar a disposição dos conteúdos comdeterminada duração de tempo de aula pormeio da conhecida elaboração da grade dehorário. Surge a preocupação com o plane-jamento das atividades fixando-se o tempode duração específico de cada uma delas.Introduz-se, portanto, um novo padrão deorganização do tempo incluindo disciplinasque visam o descanso ou a passagem deum conteúdo a outro. Vejamos o horário es-tabelecido na legislação que regulamentao funcionamento do grupo escolar em Mi-nas Gerais; curioso observar a presença deoutros hábitos como o almoço em torno das9 horas, o jantar às 17 horas e aula aossábados.

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Para esta época, acrescenta-se, ainda, aintrodução do recreio e regulamentação dasférias escolares. Presente na grade horáriacomo “Exercícios Físicos”. A intenção é pos-sibilitar um tempo para “brincar em liberdadeno pátio”, ainda que acrescido de evoluçõesmilitares, para meninos, ou ginástica para asmeninas. Em artigo na Revista do Ensino, oDr. Souza Bandeira observa que o tempo derecreio é um direito do aluno. A necessidadede repouso é uma recomendação da higienee da pedagogia. Afirma, ainda, que

a importância que o professor liga ao re-creio e o modo de aproveitá-lo concor-rem para dissipar a prevenção de quena escola não há alegria. (REVISTA DOENSINO, 1887, nº. 13, p. 4).

Contudo, Lourenço Filho (1930), basea-do nos estudos de diferentes autores da épo-ca, apresenta críticas às grades horárias, ouo que ele define como “horário mosaico”. Noseu entendimento, este tipo de horário mais

se assemelha a uma compreensão do tra-balho escolar como o trabalho de uma fá-brica, e a percepção da conduta da criançanuma postura passiva. Assim, propõe umamaior flexibilidade na organização do horá-rio, a correlação entre diferentes conteúdos,a alternância dos horários a cada semana.Mas o seu principal enfoque é de que a du-ração do desenvolvimento dos conteúdosdepende do interesse despertado na crian-ça. Assim, o horário organizado por minutosem grade deve ser substituído por um planode trabalho flexível que permita a aplicaçãodos mais variados exercícios e acompanheo interesse manifestado pelos alunos.

Considerações finais

A liberdade da criança, na vida escolarassim compreendida, o respeito por suaindividualidade nascente, o ensaio dasformas sociais da atividade, leva a es-cola nova a pregar, necessariamente, aautonomia dos escolares. Ao invés da

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autoridade externa, de coação ou repre-ensão, o que se pretende é ir criandopouco a pouco, uma autoridade interna,– auto, nomos, a lei ou regra, de si pró-prio. Só assim formaremos homens deiniciativa e capazes de se governarem asi mesmos. (LOURENÇO FILHO, 1930,p. 216).

Em fins do século XIX e inicio do séculoXX, observamos um apelo significativo porparte de médicos e educadores para a ne-cessidade de mudanças no processo de en-sino e aprendizagem. O diferencial doconjunto de estudos realizados na época re-fere-se à ênfase na mudança da concepçãoda infância como tempo geracional que apre-senta peculiaridades quanto ao atendimentodas necessidades das crianças. A civilizaçãodas crianças constitui o conjunto de novosmodos para a sua educação na direção deseu autocontrole e autonomia e, como bemobservado por Norbert Elias, seria esse as-pecto o principal fator do “descobrimento dainfância”, realizado no âmbito do processocivilizador.

Mas estas mudanças se fizeram conjun-tamente com a civilização dos adultos peloaumento do autocontrole e diminuição daviolência como modo de resolução de pro-blemas e conflitos. Portanto, a ampliação daescolarização das crianças, desde o séculoXIX, também implicou em alterações nasrelações entre professores e alunos, sejapela suavização do trato, seja pelas mu-danças na rotina pedagógica. Neste caso, omovimento pedagógico conhecido como es-cola nova ou escola ativa é a principal de-

monstração das profundas modificações naconcepção de infância no sentido de res-peitar e valorizar sua relativa autonomia.

Entretanto, no caso brasileiro, apesar dacirculação de novas ideias e da disseminaçãode novos espaços escolares para a forma-ção de professores, as mudanças pedagógi-cas se fizeram de modo localizado, atingindoa um número restrito de crianças. De acordocom dados de 1937, num total de 29.406 es-colas, apenas 1.689 eram grupos escolares;1.079, escolas reunidas e 26.638, escolas iso-ladas (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 46). Por-tanto a maioria das crianças que frequentavaa escola tinha disponível esse tipo de escolacaracterizada por diferentes séries numamesma classe sob a direção de um único pro-fessor, em condições precárias de trabalho.

Associa-se a estes dados o crescimentodo trabalho infantil, tendo em vista o pro-cesso de industrialização e o crescimento ur-bano, ou seja, por um longo período asrelações entre adulto e criança serão tam-bém de patrão e trabalhador, permeada porexploração de trabalho, ou mesmo caracte-rizadas por tratos pouco civilizados. Exata-mente por estes fatores, podemos afirmarque se instala uma nova tensão na discussãosobre as relações entre adultos e crianças,em que a questão da violência e a atençãoà autonomia das crianças são temas cadavez mais colocados em pauta. Durante oséculo XX, houve mais chances de respeitoàs necessidades das crianças. Entre outrasmedidas, citamos a promulgação do Esta-tuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069,de 13 de julho de 1990).

1 “A civilização dos professores” é objeto de pesquisa emandamento, Veiga (2007).2 L’enfant et la vie familiale sous l’ancien regime. Édition duSeuil, Paris, 1973.3 Norbert Elias refere-se às políticas do Estado de bem-es-tar. Podemos acrescentar, por exemplo, políticas de assis-tência à infância desvanstituilida, à gravidez precoce, aocombate às drogas: criação de programas culturais etc.

4 Elaboração de hábitos civilizados na constituição das re-lações entre professores e alunos (1835-1927). RevistaBrasileira de História da Educação, n. 21.5 Revista do Ensino. Belo Horizonte, agosto e setembro de1927, n. 22, ano III.

Notas

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