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MARCELO TADEU PAJOLA

ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FENMENO JURDICO: UM ESTUDO SOBRE O PENSAMENTO JUSFILOSFICO DE PONTES DE MIRANDA.

Piracicaba, SP 2008

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MARCELO TADEU PAJOLA

ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FENMENO JURDICO: UM ESTUDO SOBRE O PENSAMENTO JUSFILOSFICO DE PONTES DE MIRANDA.

Orientador: Prof. Dr. EVERALDO TADEU QUILICI GONZALEZ

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao (Mestrado em Direito) da Universidade Metodista de Piracicaba UNIMEP, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito, sob orientao do Professor Doutor Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez. Ncleo: Estudos de Filosofia e Histria das Idias Jurdicas.

Piracicaba, SP 2008

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Dados para catalogao: PAJOLA, M. T. Aspectos fundamentais do fenmeno jurdico: um estudo sobre o pensamento jusfilosfico de Pontes de Miranda. Universidade Metodista de Piracicaba, 2008. Dissertao (Ps-Graduao, Curso de Mestrado em Direito). Orientador: Professor Doutor Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez. 1. Pontes de Miranda; 2. Fundamentos do fenmeno jurdico ; 3. Positivismo e neopositivismo; 4. Filosofia brasileira.

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ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FENMENO JURDICO: UM ESTUDO SOBRE O PENSAMENTO JUSFILOSFICO DE PONTES DE MIRANDA

Autor: Marcelo Tadeu Pajola Orientador: Prof. Dr. Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez

B A N C A

E X A M I N A D O R A

29/02//2008

___________________________________________ Prof. Dr. Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez (Orientador - Presidente)

___________________________________________ Prof. Dr. Victor Hugo Tejerina Velzquez (Membro)

___________________________________________ Prof. Dr. Alessandro Jacomini (Membro Convidado)

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DEDICATRIA

minha me: urea Nachbar Pajola, que me deu o dom da vida e me nutriu com amor infinito; que me educou e edificou em meu ser as trs colunas que sustentam minha existncia: a tica e a moral, o amor a Deus e ao prximo, e a humildade;

Ao meu pai: Santino Pajola, exemplo de dignidade a ser seguido, que me ensinou que o homem deve ser honesto e justo consigo e com o prximo, devendo sempre pautar seus atos movido pela boa-f;

minha esposa: Silvana Regina Rossini Pajola, que me fez descobrir o significado da palavra amor; que me faz acordar todos os dias com a certeza de que tenho uma virtuosa companheira na mais absoluta plenitude; que est ao meu lado para qualquer tipo de situao e que me deu duas filhas maravilhosas;

s minhas filhas: Isabella e Chiara, que vieram ao mundo para transbordar a vida de nossas famlias de felicidade e demonstraram compreenso e pacincia nos momentos de ausncia familiar durante o tempo em que me dediquei ao Curso de Mestrado;

DEDICO ESTE TRABALHO.

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AGRADECIMENTOS A Deus, trino e trino, onipotente, onisciente e onipresente, em quem busco refgio para as minhas dificuldades e com quem compartilho minhas felicidades; meu eterno refgio e cmplice. Ao Professor Doutor Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez, pelo estmulo, pela generosidade em compartilhar seu vasto conhecimento com seus discpulos, e principalmente pela orientao durante o desenvolvimento da presente dissertao de concluso de curso. Ao Professor Doutor Victor Hugo Tejerina Velazquez, pelo exemplo de vida e pelo primoroso trabalho realizado enquanto Coordenador do Curso de Mestrado em Direito da UNIMEP. Ao Professor Doutor Alessandro Jacomini, pelo pronto valhacouto, pelo incentivo ao exerccio da pesquisa e pelo aceite em participar de minha banca de defesa pblica de dissertao de Mestrado. minha sogra, Antonieta Aparecida Bellan Rossini, pelo apoio incondicional e pela assistncia na educao de minhas filhas. Ao Professor Doutor Silvio Carlos Bray, pela imprescindvel contribuio finalizao deste trabalho. Ao Mestre Srgio Dagnone Jnior, amigo e irmo despretensioso, que me apresentou ao Direito e sempre me incentivou aos estudos jurdicos. Ao amigo Dr. Luiz Carlos Cerri, pelo apoio e incentivo recebidos no dia-a-dia do exerccio do Direito forense. Ao Mestre Renato Toller Bray, amigo e filsofo do Direito, pela sua grandiosa contribuio na realizao desta pesquisa. Ao Mestre Ricardo Bittar Hajel Filho, novo amigo e exemplo de que a erudio tarefa rdua. Juza de Direito, Dra. Cntia Andraus Carretta, pela tica e imparcialidade no exerccio da magistratura, e pelo respeito dignidade da pessoa humana. Aos juzes de Direito Sidnei Antonio Cerminaro e Cludio Luis Pavo, pelo auxlio incondicional e por serem exemplos de que o estudo do Direito perene. Aos professores e funcionrios da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, pelos anos de convivncia, em especial a Sueli Catarina Verdichio Quilles e Dulce Helena dos Santos, secretrias do Programa de Ps-Graduao da UNIMEP, pelo carinho e dedicao no atendimento ao alunado. A todos aqueles que de alguma forma contriburam para o meu sucesso na consecuo deste trabalho e que, por motivo de falha de memria, no foram contemplados nestes agradecimentos. Como Pontes de Miranda, acredito na predio de Epicuro, de que a amizade o nico caminho para a felicidade.

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RESUMO

Genericamente, o presente trabalho se prope a resgatar o estudo sobre um pensador nacional de grande importncia para a Filosofia do Direito no Brasil, pouco pesquisado, muito incompreendido e qui mal interpretado, como resposta ao colonialismo cultural jurdico que assola a Academia Jurdica Brasileira, no s nos tempos atuais, como tambm em seus primrdios. Especificamente, o trabalho tem por objetivo demonstrar que alm dos aspectos do fenmeno jurdico explicitamente analisados por Pontes de Miranda no tomo III de sua obra Sistema de Cincia Positiva do Direito (mecnico, biolgico, sociolgico, ideolgico e tcnico), outros aspectos tambm por ele foram abordados de forma implcita nos tomos I, II e IV da referida obra (psicolgico, poltico e gnosiolgico), os quais so reputados igualmente importantes para a compreenso do fenmeno jurdico, ou seja, para o estudo cientfico do Direito. Finalizando, procuramos identificar a corrente metodolgica adotada, seguida e influenciadora de Pontes de Miranda. Palavras-chaves: Pontes de Miranda; Fundamentos do fenmeno jurdico; Positivismo e neopositivismo; Filosofia brasileira.

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ABSTRACT

Generically, the present work if considers to rescue the study on a national thinker of great importance for the Law Philosophy in Brazil, little searched, very misunderstood and perhaps badly interpreted, as reply to the legal cultural colonialism that devastates the Brazilian Legal Academy, not only in the current times, as well as in its origin. Specifically, the work has for objective to demonstrate that beyond the aspects of the legal phenomenon explicit analyzed by Pontes de Miranda in tome III of its workmanship System of Positive Science of the Right (mechanic, biological, sociological, ideological and technician), other aspects for it had also been boarded of implicit form in tome I, II and IV of the related work (psychological, politician and gnosiological), which we repute equally important for the understanding of the legal phenomenon, that is, for the scientific study of the Right. Finishing, we look for to identify the methodological chain adopted, followed and influential of Pontes de Miranda. Keywords: Pontes de Miranda; Foundations of the juridical phenomenon; Positivism and neopositivism; Brazilian philosophy.

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[...] cedo cheguei convico de que as civilizaes mais dependem do Direito do que dos outros processos sociais de adaptao. o Direito que as estrutura, sem as peiar e sem as empurrar para abismos. Se tanto quis e quero contribuir para o Direito foi e porque me convenci de que a nossa civilizao somente se pode conservar, se mantermos a tradio jurdica, alterando-a quando estivermos persuadidos de que preciso que se altere.(Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda )

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SUMRIO INTRODUO.............................................................................................. 13 1 O CIENTISTA DO DIREITO: BREVES CONSIDERAES SOBRE A FORMAO INTELECTUAL DE PONTES DE MIRANDA..........................21 1.2 Na Velha Repblica (1889 a 1930): momento histrico em que Pontes de Miranda escreveu a obra Sistema de Cincia Positiva do Direito... 23 2 OS ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FENMENO JURDICO: ANALISE DO TOMO III DA OBRA SISTEMA DE CINCIA POSITIVA DO DIREITO..... 32 2.1 Sobre o aspecto mecnico................................................................... 32 2.2 Sobre o aspecto biolgico................................................................... 41 2.3 Sobre o aspecto sociolgico............................................................... 47 2.4 Sobre o aspecto ideolgico................................................................. 54 2.5 Sobre o aspecto tcnico....................................................................... 60 3 OUTROS ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FENMENO JURDICO...... 69 3.1 Sobre o aspecto psicolgico............................................................... 69 3.2 Sobre o aspecto poltico.......................................................................75 3.3 Sobre o aspecto gnosiolgico............................................................. 78 3.4 Outros aspectos implcitos na obra de Pontes de Miranda.............. 81 4 PONTES DE MIRANDA: POSITIVISTA OU NEOPOSITIVISTA?............... 83 4.1 Positivismo e o neopositivismo: breve quadro comparativo........... 83 4.2 Pontes de Miranda: autodeclarao e crtica...................................... 88 5 CONSIDERAES FINAIS.......................................................................... 94 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................. 102 ANEXOS........................................................................................................ 106 Anexo 1 Curriculum Vitae de Pontes de Miranda Anexo 2 Relao de obras de Pontes de Miranda

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INTRODUO

A idia de produzir a presente dissertao surgiu da necessidade de se promover um estudo acerca do pensamento jusfilosfico de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, pensador nacional de grande importncia para a Filosofia do Direito no Brasil; o filsofo em questo foi pouco pesquisado e muitas vezes incompreendido (qui mal interpretado), devendo-se considerar que ele fornece soluo para diversas dvidas que permeiam o Direito brasileiro, podendo tal pensador ser interpretado como resposta ao colonialismo cultural jurdico que assola a academia jurdica brasileira, desde seus primrdios at os tempos atuais. Alm disso, este trabalho tem objetiva demonstrar, alm dos aspectos dos fenmenos jurdicos explicitamente analisados pelo autor em questo (mecnico, biolgico, sociolgico, ideolgico e tcnico), no tomo III de sua obra Sistema de Cincia Positiva do Direito, outros aspectos por ele abordados nos tomos I, II e IV da referida obra (psicolgico, poltico e gnosiolgico), os quais se considera igualmente importantes para a compreenso do fenmeno jurdico, ou seja, para o estudo cientfico do Direito. O incentivo para levar a efeito tal empreitada tambm surge do privilgio que o autor da presente dissertao de concluso do Curso de Mestrado em Direito teve de conhecer, quando do Curso de Bacharelado em Cincias Jurdicas, o Professor Doutor Artur Dibeux, que propiciou a introduo aos pensamentos do autor objeto de estudo; Diubex foi to contagiante em sua exposio que as anotaes sobre sua primeira aula na disciplina Introduo ao Direito, ministrada em trs de agosto de 1991 e que abordou o tema Processos de Adaptao Social: Teoria de Pontes de Miranda esto guardadas com apreo at hoje para o autor da presente

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dissertao; isso porque os dois semestres em que aquela disciplina foi ministrada gerou um profundo interesse pelo tema, sendo esta dissertao a materializao do que se conseguiu apreender do vasto e portentoso conhecimento jurdico-filosfico de Pontes de Miranda. Aps consultar aproximadamente 1.618 livros e despender dez anos de observaes e pesquisas, Pontes de Miranda publicou pela primeira vez, em 1922, os dois volumes de sua obra Sistema de Cincia Positiva do Direito, pela Editora Borsoi, em comemorao ao Centenrio da Independncia do Brasil, sendo que, no ano seguinte, esta primeira edio j estava totalmente esgotada; a segunda edio da mesma obra s ocorreu cinqenta anos depois, pela mesma editora, mas em quatro volumes, tendo em vista as comemoraes do Sesquicentenrio da referida Independncia. A pedido do autor o texto foi mantido de forma fiel ao inicial, mas Pontes de Miranda, atendendo a solicitao de seus inmeros amigos e admiradores, acrescentou um ltimo captulo intitulado De 1922 a 1972. Para o desenvolvimento da presente dissertao foi utilizada a segunda edio, reeditada em 2005 pela Editora Bookseller. Ainda a respeito dessa importante obra, convm destacar que ela representa a sntese do pensamento de Pontes de Miranda sobre o fenmeno jurdico, j que foi por meio dela que o autor desenvolveu sua viso a respeito da Cincia do Direito, fato que, por si s, justifica a escolha de tal filsofo como objeto de estudo da presente pesquisa, embora outras obras do mesmo autor tenham fornecido importantes subsdios, sendo que nelas Pontes de Miranda trata especificamente dos temas Psicologia, Poltica, bem como Teoria do Conhecimento, respectivamente nos livros Margem do Direito, Introduo Poltica Cientfica e O Problema Fundamental do Conhecimento.

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Uma vez exposta a delimitao na produo cientfica de Pontes de Miranda, que se faz absolutamente necessria em funo da magnitude da produo cientfica do autor objeto de pesquisa, materializada em 144 volumes e impossvel de ser abordada com toda profundidade numa simples dissertao de mestrado, deve-se ressaltar que a presente pesquisa configura-se importante para o universo acadmico, haja vista que em seu desenvolvimento foi possvel notar o desprezo que existe pelos juristas nacionais, em detrimento, sobretudo, dos europeus. Nesta fase inicial deste trabalho ainda cabe destacar que, em janeiro de 1984, no Campus da Universidade Estadual de Maring, estado do Paran, foi realizado o II Encontro Nacional de Filosofia do Direito, em homenagem ao Centenrio de Hans Kelsen. Desse importante evento resultou a publicao da obra Estudos de Filosofia do Direito: Uma Viso Integral da Obra de Hans Kelsen, coordenada por Luiz Regis Prado e Munir Karam, produo cientfica que permitiu a perpetuao das conferncias l apresentadas, bem como das provocaes feitas aos expositores. Dentre elas, chama ateno a conferncia proferida por Djacir Menezes, sob o tema Kelsen e Pontes de Miranda e maior destaque ainda evocou o debate proposto por Miguel Reale, logo aps a apresentao a referida conferncia, por no concordar com o enaltecer destinado a autores estrangeiros em detrimento dos pensadores ptrios. Para tanto, Miguel Reale demonstrou que Pontes de Miranda tinha muito mais cabedal cientfico-jurdico para trabalhar com as propostas do interdisciplinar Crculo de Viena do que Hans Kelsen, razo pela qual este jurista acabou afastando-se de tal Crculo para fundar, com a colaborao de Schreier e Kaufmann, a Escola Jurdica de Viena. Desse episdio possvel notar a importncia do estudo acadmico das obras de Pontes de Miranda, j que no decorrer desta dissertao o leitor poder observar tratar-se de um erro manter os

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autores nacionais no ostracismo, privilegiando-se autores estrangeiros. Destaque-se aqui que, enfaticamente, o esteio intelectual de Pontes de Miranda permitiu-lhe enfrentar com tranqilidade os desafios do fisicalismo filosfico de Rudolf Carnap, pertencente ao Crculo de Viena, recusado por Hans Kelsen em funo de sua formao kantiana. Diante do pouco at aqui exposto, observa-se que so desnecessrias maiores delongas para justificar a investigao proposta neste trabalho e que, em termos de atualidade, acredita-se que o pensamento jusfilosfico de Pontes de Miranda ainda se faz presente na Filosofia do Direito contempornea. Entretanto, dando continuidade a este mote introdutrio, enfatiza-se a Teoria da Autopoise de Niklas Luhmann, elaborada a partir dos estudos realizados pelos pesquisadores chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, bilogos que se empenharam na construo de uma concepo biolgica de vida, dedicados a explicar o fenmeno da fora vital; desenvolveram, portanto, a teoria retro citada visando dar soluo s pesquisas. Isso, por si s, prova de que a Cincia Jurdica no est hodiernamente imune s contribuies das cincias naturais, sobretudo num mundo caracterizado pela ps-modernidade, onde se exige o desenvolvimento da Cincia do Bio-Direito. No que diz respeito metodologia de Pontes de Miranda, h que se destacar que ela sofreu significativo rigor por parte do autor, principalmente quando da concepo de sua obra Sistema de Cincia Positiva do Direito, a qual ainda se mantm atual, ou seja, como proposta plenamente vlida e atual para se combater o extremo normativismo jurdico que se alastrou pelas naes nas quais o Direito foi engendrado e em muito influenciado pelo sistema jurdico romano-germnico. Para se ter uma idia, Pontes e Miranda deixa claro no prefcio de sua obra qual sua

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pretenso ao escrever o Sistema de Cincia Positiva do Direito, ou seja, demonstrar que h um Direito passvel de ser investigado pelos rigorosos e inflexveis mtodos cientficos. Assim, o autor adota o mtodo cientfico experimental-indutivo e o segue risca dentro de sua lgica, impondo a interpretao dos dados coletados objetivamente, com total desprezo s opinies preconcebidas e a qualquer princpio a priori. Portanto, insta expor que se trata de um pensador brasileiro que no

desprezou a interdisciplinaridade para construir sua Teoria Cientfica sobre o Direito, possuindo uma viso rica do fenmeno jurdico. Nesse sentido, Pontes de Miranda expe que:No direito, se queremos estud-lo scientificamente, como ramo positivo do conhecimento, quase todas as sciencias so convocadas pelo scientista. A extrema complexidade dos phenomenos implica a diversidade do saber [...]. Nas portas das escolas de direito devia estar escrito: aqui no entrar quem no fr socilogo. E o socilogo supe o mathematico, o phisico, o bilogo. flor de cultura.1 (grifo do autor).

Ao observar o universo pelos diversos mtodos das cincias, sobretudo das cincias naturais, naturalisticamente, portanto, Pontes de Miranda notou que tanto no mundo orgnico como no inorgnico h manifestaes de fenmenos jurdicos. Nesse contexto est presente uma srie de aspectos, a saber: o aspecto mecnico, o biolgico, o sociolgico, o ideolgico e o tcnico. Numa primeira instncia, tais aspectos foram identificados de plano no Tomo III da obra Sistema de Cincia Positiva do Direito. Contudo, na medida em que a pesquisa foi amadurecendo, em ltima instncia foi possvel identificar outros aspectos implcitos no conjunto da referida obra, a saber: o

Apud MACHADO NETO, Antonio Luiz. Histria das idias jurdicas no Brasil. So Paulo: Grijalbo, 1969. p.186-187.

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aspecto psicolgico, o poltico e o gnosiolgico, aspectos estes que se relacionam com o fenmeno jurdico e que podem igualmente ser considerados fundamentais. Tal posicionamento leva a entender que, para a explicao dos fenmenos jurdicos, o jurista deve emprestar o saber derivado de quase todas as cincias, sem distino, pois sem a interdisciplinaridade o pensador se torna incompleto, tendo em vista que os fenmenos sociais so extremamente complexos, o que confere a Pontes de Miranda uma viso sistmico-organicista e uma concepo finalista-culturalista acerca do Direito. Quanto metodologia utilizada nesta dissertao, entendeu-se como melhor opo a adoo do mtodo hermenutico, cuja origem etimolgica da palavra acreditase estar em Hermes, o deus que buscava trazer luz as coisas ocultas. Assim se comporta o hermeneuta, buscando resolver as contradies e obscuridades de um texto. Contudo, um conceito mais profundado do assunto pode ser encontrado em Antonio Carlos Leite Brando, quando o autor explica que:Ermeneia significava, originalmente, a expresso de um pensamento e evolui para "hermenutica" - ou ars interpretandi, desenvolvida pelos gramticos de Alexandria - entendida como a explicao e interpretao desse pensamento. Em So Toms de Aquino ele aparece para estabelecer a verdade ou falsidade de uma orao enunciativa. J em Spinoza ele se dirige no para captar a verdade de uma frase ou de um texto, atribuio reservada lgica, mas captura do seu sentido, uma vez que h frases e textos, como a poesia e o objeto artstico, que so impossveis de serem demonstradas, mas que tm um sentido. Tanto na filologia clssica, na exegese da Bblia ou na Histria da Arte, o que importa restituir e salvar o sentido. Ora, o que se assiste nesse salto em direo ao sentido uma nova amplitude conferida ao procedimento hermenutico aplicando-o no ao discurso descritivo da natureza (sujeito ao critrio da verdade ou da falsidade), mas interpretao das Sagradas Escrituras e aos discursos expressivos da Arte, das cincias do esprito e das cincias humanas. Nesses discursos, o que est em jogo a existncia e o salvamento do sentido.2 (grifo do autor)

BRANDO, Antonio Carlos Leite. Introduo hermenutica da arte e da arquitetura. Disponvel em: . Acesso em: 5 dez. 2007.

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Dessa forma, entende-se que o mtodo hermenutico preocupa-se com a compreenso do mundo, buscando desmistificar conceitos a priori. Ressalte-se que, entre os constitucionalistas, atualmente muito se tem aplicado o mtodo hermenutico nos casos de conflitos entre normas e princpios constitucionais. No fim das contas, o que se visa a razoabilidade ou proporcionalidade. Na filosofia habermasiana, por exemplo, a hermenutica ocupa uma funo crtica e denuncia as falhas do realismo jurdico, do juspositivismo e do jusnaturalismo, o que leva a compreender que o mtodo hermenutico ocupa a funo compreensiva dos fenmenos que circundam o mundo. Para compreender o pensamento de Pontes de Miranda foi aplicada a arte da interpretao. Em determinados momentos apresentou-se a necessidade de olhar para o fenmeno jurdico segundo os olhos do autor e, objetivamente, buscar compreender a linguagem do autor. Por outro lado, isto , subjetivamente, buscou-se conhecer sua vida interior e exterior e amparando-se em Marlia Andrade dos Santos foi possvel detectar que:Apenas por meio dos escritos de algum se pode conhecer seu vocabulrio, bem como seu carter e suas circunstncias. O vocabulrio e a histria da poca de um autor funcionam como a totalidade a partir da qual seus escritos devem ser compreendidos como algo particular e vice-versa.3

Portanto, a hermenutica metodolgica preocupa-se com o caminho trilhado pelo intrprete, ou melhor, com o processo de interpretao utilizado. A contribuio desse mtodo revela-se importante, pois o ser trazido luz e, assim, o pesquisador preocupa-se com o que pensa e sente a respeito do objeto investigado.

SANTOS. Marlia Andrade dos. A legalidade do aborto de anencfalos sob o prisma da hermenutica. Disponvel em: . Acesso em: 5 dez. 2007.

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A autora retro citada enriquece o assunto ao expor que:Suas impresses so imprescindveis para que se possa buscar a interpretao. No que respeita participao do intrprete na interpretao realizada pelo mtodo da Hermenutica Filosfica, interessante colacionar a explicao feita pelo professor Luiz Rohden, que clarifica a interao entre o objeto e seu intrprete: [] h um sujeito que joga e jogado; no observa apenas, mas tambm afetado pelo processo de conhecer que envolve sentido e significado. Assevera, ainda, que a Hermenutica, enquanto filosofia, no se prende aos trilhos da interpretao casual linear nem mera anlise de textos ou proposies. Nela, tica e linguagem caminham de mos dadas, uma vez que o modo de interpretar implica discernir suas implicaes (pessoais e sociais). Arraigada na finitude humana, a hermenutica filosfica no se separa desta sua condio. Da por que a historicidade e a linguagem assumem os papis de protagonistas do pensar filosfico pautado por uma medida de racionalidade apropriada ao modo de ser humano.4

Desde j importante alertar ao leitor que a presente pesquisa no se props a uma anlise da evoluo do Direito nacional pelo mtodo histrico, nos moldes traados por Savigny, mas teve a inteno de demonstrar que Pontes de Miranda descobriu fatores empricos, presentes no fenmeno jurdico e prprios do seu tempo. Em outras palavras, foi empreendido um mergulho epistemolgico na obra Sistema de Cincia Positiva do Direito para dela extrair, a partir de sua anlise objetiva e pela hermenutica, as colunas basilares de sustentao do pensamento jurdico-filosfico do autor. As colunas que se apresentam como constantes na estrutura do fenmeno jurdico, detalhadas nas consideraes finais deste trabalho, revelam que o pensamento jurdico-filosfico de Pontes de Miranda no est vinculado a nenhum momento de relevncia histrica, mas apenas e to somente ao mister da cincia: o de descrever e explicar os fenmenos jurdicos de maneira emprica.

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SANTOS. Marlia Andrade dos. op. cit.

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Feitas essas consideraes introdutrias, cumpre neste momento esclarecer que esta pesquisa foi desenvolvida em quatro captulos distintos, mas intimamente interligados. Num primeiro momento ser feita uma abordagem a respeito de Pontes de Miranda enquanto cientista do Direito, de sua formao intelectual e da Velha Repblica, ou seja, um resgate histrico sobre o perodo compreendido entre a Proclamao da Repblica (1889) e o advento do Estado Novo (1930), perodo que abrange desde o nascimento de Pontes de Miranda at a publicao de seu livro Sistema de Cincia Positiva do Direito; o leitor notar que no houve um aprofundamento de um historiador, mas que se procurou trazer lume os fatos marcantes desse perodo, os quais certamente influenciaram o autor aqui pesquisado. No segundo captulo sero analisados os aspectos do fenmeno jurdico identificados de pelo autor no Tomo III da obra retro citada, isto , os aspectos mecnico, biolgico, sociolgico, ideolgico e tcnico. J, no terceiro captulo, leva-se ao conhecimento do leitor os aspectos por identificados como implcitos nos conjunto da obra, a saber: o psicolgico, o poltico e o gnosiolgico. No quarto captulo e ltimo captulo buscou-se identificar a corrente metodolgica adotada, seguida e influenciadora de Pontes de Miranda. Para encerrar o presente trabalho, ser apresentado nas consideraes finais o que foi possvel apreender acerca do autor, o que se desconhecia e o que foi acrescentado pelo estudo da sua obra, como contribuio para o universo acadmico no resgate deste importante cone do pensamento jurdico nacional e mundial.

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Posta a necessria introduo do rduo trabalho aqui desenvolvido, insta agora convidar o leitor a conhecer um pouco daquilo que se aprendeu a respeito do pensamento jurdico filosfico de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.

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1 O CIENTISTA DO DIREITO: BREVES CONSIDERAES SOBRE A FORMAO INTELECTUAL DE PONTES DE MIRANDA

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda nasceu em 23 de abril de 1892, na cidade Macei, estado do Alagoas; desde muito jovem se interessou pelo estudo da cincia dos nmeros, influenciado pelo pai, Manoel Pontes de Miranda, bem como pelo av paterno, Joaquim Pontes de Miranda, ambos destacados professores de Matemtica. Fato interessante que o apreo por essa rea das Cincias Exatas foi adquirido na infncia e perdurou por toda a vida de Pontes de Miranda, o que levou o matemtico Godel em certa ocasio a lhe dirigir a seguinte pergunta: Por que voc perde tempo com a lei?5 A partir dos 13 anos de idade, Pontes de Miranda tinha por hbito, depois das aulas no colgio, refugiar-se num convento de frades franciscanos, localizado na vila Engenho do Mutage, nos arredores de Macei; as visitas eram to freqentes que os religiosos no tardaram em providenciar um leito para o adolescente passar a noite. Foi nesse profcuo convvio com os capuchos (ou capuchinhos) que o autor objeto de estudo aprendeu os idiomas latim, alemo e grego; tambm foi no mesmo convento que ele foi iniciado ao estudo da Filosofia, tendo como parmetro aquela adotada pelos monges, ou seja, a nominalista6. Tal corrente da Filosofia havia influenciado, em tempos remotos, a formao jurdico-poltica na Inglaterra (Universidade de Oxford), em Portugal (Universidade de Lisboa), na ustria, bem como em muitos outros pases, que souberam oportunamente absorver as repercusses da teoria e da prtica da bondade de So Francisco de Assis.7

ALVES, Vilson Rodrigues. Pontes de Miranda. Revista Isto . Disponvel em: . Acesso em: 5 dez. 2007. 6 FREYRE, Gilberto. A propsito de frades. Disponvel em: . Acesso em: 5 dez. 207. 7 Tribunal Regional do Trabalho da 19 Regio. O Patrono. Disponvel em: . Acesso em: 5 dez. 2007.

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Ainda muito jovem, aos quatorze anos de idade, Pontes de Miranda matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife, por meio da qual iniciou os primeiros contatos com o pensamento de Augusto Comte e com as idias disseminadas pela Escola do Recife. Em 1911 ele j estava graduado e no ano seguinte foi publicada sua primeira obra, intitulada Margem do Direito, que pode ser enquadrada como um ensaio no rea da Psicologia Jurdica. Desde ento, foi um ciclo ininterrupto de publicaes, cessando apenas com o falecimento do autor, em 22 de dezembro de 1979. De todas as suas obras, as de maior destaque foram Sistema de Cincia Positiva do Direito (1922) e Tratado de Direito Privado, sendo fato curioso esta ltima consumiu quinze anos de trabalho (1955 a 1970), mas o resultado final explica tanto tempo despendido, j que reconhecidamente a obra mais extensa escrita por um nico autor, composta de trinta mil pginas, distribudas em sessenta volumes. Porm, o perodo que mais interessa ao presente trabalho aquele compreendido entre 1912 e 1937, principalmente em funo de, nesse espao de tempo, terem sido publicadas as obras Margem do Direito (1912) e, em especial, o Sistema de Cincia Positiva do Direito (1922) e O Problema Fundamental do Conhecimento (1937). Apesar do destaque dado s obras retro citadas, preciso ressaltar que Pontes de Miranda produziu uma vasta bibliografia, mas fugiria ao escopo deste trabalho apresent-la aqui de forma mais detalhada, motivo pelo qual se optou pela sua incluso, bem como do currculo do autor, em forma suplementar, o que pode ser consultado respectivamente nos anexos 1 e 2 ao final desta dissertao.

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1.2 Na Velha Repblica (1889 a 1930): momento histrico em que Pontes de Miranda escreveu a obra Sistema de Cincia Positiva do Direito

Para iniciar este tpico, nada mais eficaz do que amparar-se nos conhecimentos de Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez, para quem todo pensador, por mais imparcial que pretenda ser, incapaz de se desvencilhar do momento histrico a qual pertence. Ao mesmo tempo em que faz histria, feito por ela.8; este pensamento levou pretenso de dissertar sobre o contexto histrico em que vivia Pontes de Miranda. Na poca histrica em que foi proclamada a independncia do Brasil, especificamente na segunda dcada do Sculo XIX, duas correntes polticas disputavam o poder no mbito do Estado brasileiro. A primeira delas era o liberalismo, inspirado no movimento poltico-filosfico vigente na Europa desde o Sculo XVIII, e que, como plataforma do Partido Liberal, aqui se apresentava como proposta de superao da ordem colonial. J, a segunda corrente diz respeito ao conservadorismo, adotada, obviamente, pelo Partido Conservador, formado por polticos que se mantinham leais ao imperador e que advinham de setores oligrquicos de diversas regies do Brasil. Vale registrar que o liberalismo no Brasil do Sculo XIX convivia confortavelmente com o instituto da escravido e com o poder imperial, de natureza monrquica e patrimonialista, o que representa uma contradio. Antonio Carlos Wolkmer contribui para o assunto quando afirma que:Ao conferir as bases ideolgicas para a transposio do status colonial, o liberalismo no s se tornou componente indispensvel na vida cultural brasileira durante o Imprio, como tambm na projeo das bases essenciais de organizao do Estado e de integrao da8

GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quilici. A filosofia do direito na idade antiga. Rio Claro, SP: Obra Prima, 2005a. p.16.

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sociedade nacional. Entretanto, o projeto liberal que se imps expressaria a vitria dos conservadores sobre os radicais, estando dissociado de prticas democrticas e excluindo grande parte das aspiraes dos setores rurais e urbanos populares, e movia-se convivendo e ajustando-se com procedimentos burocrticocentralizadores inerentes dominao patrimonial. Trata-se da complexa e ambgua conciliao entre patrimonialismo e liberalismo, resultando numa estratgia liberal-conservadora que, de um lado, permitiria o favor, o clientelismo e a cooptao; de outro, introduziria uma cultura jurdico-institucional marcadamente formalista, retrica e ornamental.9

O arcabouo jurdico construdo durante o Imprio, tanto no aspecto legislativo quanto no aspecto institucional, surgiu de uma composio possvel entre essas duas ordens polticas predominantes; em outras palavras, o resultado foi a construo de uma estrutura e de uma ordem jurdica legalista-formal, que fundamentou o perfil de nossa cultura jurdica: o bacharelismo. Assim, aps a Independncia e a criao dos dois primeiros cursos jurdicos no Brasil, o Estado e o Direito representavam os dois lados de uma mesma moeda, ou seja, uma ordem econmica conservadora, que exclua o povo brasileiro de qualquer participao na construo da vida poltica e jurdica nacional. Uma consulta em Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez permite entender que:O Estado Imperial, fundado nessa ordem econmica contraditria, de perfil conservador-liberal, consolidou-se tambm em decorrncia da cultura jurdica nacional que propiciou a criao de dois cursos jurdicos e que formou uma nova categoria de agentes: os bacharis. Formados para desempenhar funes burocrticas e polticas junto aos aparelhos de um Estado oligrquico, patrimonialista e conservador, foram personagens fundamentais para a consolidao e manuteno do Estado monarquista brasileiro. Da dizer-se que, durante o Imprio brasileiro, advieram no apenas duas Faculdades de Direito, mas, sobretudo, a construo de um arcabouo jurdico composto por uma Constituio, vrios cdigos e inmeras leis, que at ento inexistiam no pas.10

WOLKMER, Antnio Carlos. Histria do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.79. GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quilici; et. al. O culturalismo da escola do Recife. Anais. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006. p.201-202.10

9

25

Portanto, conclui-se que, no aspecto cultural, o bacharelismo representou um verdadeiro sustentculo oligrquica ordem imperial brasileira, pois a implantao em 1827 das duas Faculdades de Direito no Brasil, uma em So Paulo e outra em Olinda (depois transferida para o Recife), preparou toda uma gerao de bacharis com a misso e responsabilidade de gerenciar a vida poltico-jurdica e burocrtica do Estado brasileiro. Vale destacar que as vindouras geraes de juristas representaram o contedo e a essncia da vida poltico-cultural do Imprio. O projeto de construo de um Estado nacional, com suporte no bacharelismo, teve como objetivo atender, por um lado, s prioridades econmicas, ideolgicas e polticas de uma ordem oligrquica e, por outro, reproduzir um modelo econmico fundado em idias e ideais jurdico-polticos de um pesudo-liberalismo. O autor retro citado explica que:Foi graas a esse novo ator, o bacharel em Direito, que se iniciou todo um processo de construo de um arcabouo jurdico e legislativo, a comear pela elaborao de uma Constituio Imperial, de forte conotao liberal, e uma srie de Cdigos e Leis que edificaram a ordem jurdica e poltica monrquica parlamentar.11

De toda a legislao que se produziu nesse perodo, a mais maquiavlica talvez seja a Lei de Terras, de 1850, posto que impedia inmeras formas de acesso e ocupao das terras por parte da maioria da populao e, assim, mantinha intocvel a estrutura agrria oligrquica e latifundiria no Brasil. Todavia, por volta da metade do Sculo XIX, a Escola do Recife tornou-se o cenrio de um acontecimento cultural, jurdico e poltico de considervel originalidade, e que viria a influenciar toda uma gerao de juristas: o culturalismo jurdico.

11

GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quilici; et. al. op. cit. p.202.

26

O mesmo autor ainda leciona que:Esse movimento culturalista, inaugurado por Tobias Barreto e enriquecido pela contribuio de toda uma gerao de juristas, como Slvio Romero, Vitoriano Palhares, Martins Junior, Artur Orlando e Clovis Bevilacqua, entre outros, representou um marco significativo para a histria do Direito brasileiro, por constituir-se num primeiro movimento genuinamente nacional, de criao de novas concepes do pensamento jurdico-filosfico, ao mesmo tempo em que combatia idias e instituies retrgradas e conservadoras, como a escravido e a monarquia, desencadeando lutas em defesa de direitos individuais, de liberdades pblicas e da causa abolicionista e republicana.12

Aparentando ser a salvao para to discrepante desnvel social, a Proclamao da Repblica, na prtica, conseguiu acabar com a esperana dos excludos, pois o povo foi mantido fora do processo de deciso poltica, j que mulheres e analfabetos ficaram impossibilitados de votar; Paulo Srgio Pinheiro explica que, muito embora o nmero de eleitores em relao ao Imprio tenha aumentado em cerca de quatrocentos por cento, tal incremento mostrou-se insubsistente em relao populao como um todo.13 Em 1920, foi um realizado um censo no qual apurou-se que o ndice de analfabetismo atingia 75,5% da populao brasileira, o que permite apreender facilmente que houve a participao de apenas e to somente 1,8% da populao brasileira nas eleies de 1922; para agravar a situao, o voto opcional e aberto, portanto no secreto, denota a evidente manipulao dos eleitores pelos poderosos e influentes de qualquer localidade.14 As vantagens prometidas como forma de se fomentar e de se justificar a opo pela transmutao da forma de governo de Monarquia para Repblica no foram cumpridas e cedo manifestou-se o desapontamento da populao, pois o poder no foi

GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quilici; et. al. op. cit. p.202. Apud LIMONGI, Dante Braz. O projeto poltico de Pontes de Miranda. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.15. 14 LIMONGI, Dante Braz. op. cit. p.15.13

12

27

distribudo entre a sociedade como um todo, mas permaneceu exclusivamente nas mos dos ruralistas, dos comerciantes e de seus aliados polticos; tambm obtiveram projeo scio-poltica os cafeicultores e sua clientela, fortificando o coronelismo. possvel afirmar que a Constituio de 1891 assegurou maior autonomia aos municpios, propiciando a instalao no Brasil do que se passou chamar de poltica do caf-com-leite, caracterizada pela sucesso presidencial de forma alternativa entre polticos dos estados de So Paulo e Minas Gerais; para tanto, basta recordar que, dentre onze eleies presidenciais realizada poca, nove candidatos eleitos eram provenientes de um desses estados. Entende-se, assim, que a democracia foi importada por uma aristocracia rural e semi-feudal, que tratou de acomod-la tanto quanto possvel aos seus direitos e privilgios.15 Para Pontes de Miranda, a Proclamao da Repblica no passou de uma parada de fora, onde se alterava o protagonista do, mas no o elenco.16 De acordo com Charle A. Hale17, no perodo que antecedeu e sucedeu a Proclamao da Repblica, o pensamento de Auguste Comte ganhou a simpatia dos militares; logo aps a referida Proclamao, em 15 de novembro de 1889, segundo Dante Braz Limongi:[...] seguiu-se a disputa entre positivistas e liberais, explicitando, no palco da poltica nacional, suas maiores divergncias: autoritarismo versus constitucionalismo; governo condutor do processo de desenvolvimento contrapondo-se ao laisse faire liberal.18

Os positivistas interpretavam as propostas dos liberais na condio de teorias abstratas e frmulas jurdicas que nada mais haviam feito do que provocar

15 16

HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1976. p.19. Apud LIMONGI, Dante Braz. op. cit. p.16. 17 LIMONGI, Dante Braz. op. cit. p.16. 18 Ibidem. p.16-17.

28

revolues e desordens; tal posicionamento tinha uma ideologia, que era justificar a opo deles por um governo forte e de coalizo, com o objetivo de incorporar o proletariado sociedade moderna.19 Enquanto os positivistas seguidores de Comte advogavam pelo

prolongamento do governo provisrio a fim de que fosse instalada uma ditadura republicana vitalcia, apoiada pelo povo e assistida por tecnocratas, visando colocar a sociedade em ordem e rumar para o progresso econmico, a eles se opunham os liberais, que contavam com o apoio de Rui Barbosa na defesa de um curto perodo experimental da ditadura para, logo a seguir, convocar a Assemblia Nacional Constituinte. Venceram os liberais, no tendo os positivistas a oportunidade de se fazerem representados na Constituio de 1891, que acabou adotando como modelo (por influencia dos liberais), o padro dos Estados Unidos da Amrica. Assim, de acordo com o autor retro citado:As trs primeiras dcadas do sculo XX foram marcadas pela crescente crise do Estado liberal, incapacitado para atender s novas demandas nascidas do crescimento e do desenvolvimento do pas, do processo de urbanizao e da industrializao nascente.20

Em 1903, eclodiu no Rio de Janeiro a primeira greve geral do pas, sendo que, em 1906 e 1907, greves gerais foram deflagradas em So Paulo, tendo esta ltima alcanado o direito jornada diria de trabalho de oito horas. Nesse perodo, o movimento operrio era conduzido pelos anarquistas, que trouxeram da Europa o movimento anarco-sindical, que vislumbrava associaes e sindicatos de

trabalhadores como entidades com potencial para fomentar as lutas sociais. J,

19 20

LIMONGI, Dante Braz. op. cit. p.17. Ibidem, p.18-19.

29

os comunistas s vieram a se fazer representados no Brasil em 1922, com a fundao do seu partido. Ainda na viso de Dante Braz Limongi:A classe trabalhadora urbana, que crescia em dimenso e expresso, em meio mistura de imigrao, emigrao e industrializao incipiente, seria cortejada por vrios movimentos e pensamentos em disputa no pas. De uma parte a Igreja Catlica buscou, sem alcanar maior xito, conquist-la. Tambm o socialismo no obteve resultados, incapaz de constituir, no Brasil, um movimento de massas. Quanto ao anarcosindicalismo, predominante durante algum tempo, teve durao passageira, porque era um movimento com origem estrangeira e muito perseguido pelo Estado.21

Como j informado, o governo, incapaz de gerir a crise social, usava de seu aparato militar para reprimir os movimentos operrios, at que um nmero considervel de intelectuais passaram a reclamar uma nova postura do Estado. Os liberais defendiam a tese de que os problemas da nao se resumiam falta de observncia das normas constitucionais e legais. Contudo, para Wanderley Guilherme dos Santos:Nada havia de errado com a Constituio, nem com a doutrina, e apenas os homens deviam ser responsabilizados pelo que faziam [...]. Essa idia constituiria a espinha dorsal da agenda dos polticos liberais at 1930: eleies honestas, afastamento dos polticos corruptos, liberdade para que o mercado poltico pudesse operar como devia. No deveria surpreender a ningum, entretanto, encontrar muitos dos que aderiram a este tipo de liberalismo pedindo ao Estado que sustentasse os preos do caf, ou ao Governo que apoiasse a economia aucareira.22

Boris Fausto23 identifica dois descontentamentos manifestados aps o trmino da Primeira Guerra Mundial, e que iriam repercutir negativamente para o Brasil: do

21 22

LIMONGI, Dante Braz. op. cit. p.23. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo poltico. So Paulo: Duas Cidades, 1978. p.91. 23 Apud LIMONGI, Dante Braz. op. cit. p.26.

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exrcito, que fez eclodir o movimento conhecido como Tenentismo; e da classe mdia, que no conseguia se fazer representar junto ao poder constitudo. Dante Braz Limongi explica que:Nessa fase, a crena de Pontes de Miranda no potencial da cincia faz com que ele enaltea os homens de cincia e queira reservarlhes a posio de liderana, seno de proeminncia, na sociedade. A se faz presente a tese da poltica cientfica, positivista, de corte marcadamente autoritrio, com indisfarvel tendncia para a tecnocracia. Essa inclinao, no democrtica, partia de uma premissa que depois se demonstrou falsa, a da neutralidade cientfica. Seus defensores acreditavam no apenas que a cincia fosse neutra, como, principalmente, que a cincia - e os cientistas estariam aptos a oferecer humanidade o melhor caminho.24

Em 1922, ano da primeira publicao da obra Sistema de Cincia Positiva do Direito, de Pontes de Miranda, trs acontecimentos de repercusso nacional e at internacional ocorreram no Brasil, a saber: a) a Semana de Arte Moderna em So Paulo, em busca de uma identidade cultural nacional; b) a fundao do Partido Comunista brasileiro pelos antigos lderes anarquistas; e c) a Revolta dos Tenentes no Forte de Copacabana, do estado do Rio de Janeiro, que reivindicavam renovao nacional e justia social. O dogma da poltica cientfica era a matriz positivista que dava suportes s supracitadas idias, comuns naquela poca, mas Pontes de Miranda no abraou todo o iderio positivista em voga, pois discordava da centralizao e da proposta de Comte, segundo a qual os Estados no poderiam contar com mais de trs milhes de habitantes, bem como do repdio democracia, que para ele havia se tornado inexorvel.

24

LIMONGI, Dante Braz. op. cit., p. 59.

31

Pontes de Miranda tambm critica os excessos do Poder Legislativo, cujos membros acreditam ser oniscientes, onividentes e onipresentes, mas conclama que tal mister (a produo de leis) no pode caber a um rgo no tcnico, sob pena de suas decises, divorciadas da pesquisa cientfica, constiturem uma outra forma de arbitrariedade: o despotismo das assemblias; tal proposta coaduna-se com o Princpio da Diminuio do Quantum Desptico proposto pelo autor.25 Ressalte-se que a economia dos anos vinte foi marcada por um perodo de estabilidade que se estendeu at 1929, ocasio em que ocorreu a queda das aes na Bolsa de Valores de Nova Iorque (tambm conhecida como crash de 1929) e fez desencadear uma crise scio-econmica mundial sem precedentes. Por fim, insta expor que no Brasil, a partir de 1930, os positivistas finalmente chegam ao poder com a Era Vargas, ocasio em que se implementou o Estado Novo, propiciando o entrelaamento do fascismo europeu com o autoritarismo positivista. Eis, assim, uma breve apresentao do contexto histrico no qual o autor objeto de estudo do presente trabalho estava inserido.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e evoluo do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p.119.

25

32

2 OS ASPECTOS FUNDAMENTAIS DO FENMENO JURDICO: ANLISE DO TOMO III DA OBRA SISTEMA DE CINCIA POSITIVA DO DIREITO

No captulo anterior foi significativamente explicitado que a obra Sistema de Cincia Positiva do Direito, de 1922, juntamente com o compndio Tratado de Direito Privado, foram as publicaes de maior destaque de Pontes de Miranda, mas neste captulo o Tomo III daquela primeira obra que serve de subsdio para entender, segundo o autor, os aspectos mecnico, biolgico, sociolgico, ideolgico e tcnico do fenmeno jurdico, o que ser feito a seguir.

2.1 Sobre o aspecto mecnico

Pontes de Miranda, ao abordar o aspecto mecnico do fato social envolvendo o Direito, traz tona questes interessantes como, por exemplo, a histria da humanidade e a conciliao das foras essenciais. Outros assuntos relevantes so igualmente tratados com afinco, a saber: a) quantitatividade e fisiologia; b) transformaes sociais; c) quantitatividade e qualidade; c) homem e vida social; d) algo de invarivel no Direito; e) adaptao social e medidas jurdicas; f) vida social do homem e dos outros animais; g) relatividade do Direito; h) igualizao; e) atividade conservadora e atividade revolucionria; e f) elemento moral no Direito. Para o autor em questo, a histria da humanidade resume-se na composio de duas foras essenciais e eternas, quais sejam: o indivduo e o organismo total.26 Para ele, o Direito que integra o reino das alternativas capazes de promover tal

26

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de cincia positiva do direito. Campinas, SP: Bookseller, 2005b. p.81.

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composio. Do mesmo modo, o Direito promove a demonstrao da naturalidade do fato jurdico e do fenmeno observvel pela cincia, ressaltando o autor a existncia de uma variabilidade de frmulas para a resoluo dos conflitos existentes nas relaes jurdicas. Pontes de Miranda ainda observa que, dentre os infinitos meios existentes para se harmonizar os interesses individual e coletivo, os menos perfeitos so proporcionalmente eqivalentes aos mais instveis, ao passo que a meta abstratamente almejada procura solues cada vez mais perfeitas e estveis; isso porque a estabilidade depende da perfeio e esta do equilbrio, forma fsica da justia. Logo, no podem ter o Direito e a evoluo social outro desgnio, outra finalidade, seno a crescente realizao do justo, forma social do equilbrio.27 (grifo do autor). Da a preocupao do autor com a crescente realizao do justo, uma vez que esta a finalidade ltima do Direito, mesmo porque o conceito de justia para ele, nessa dimenso, revela-se como sendo uma forma social do equilbrio. Para tanto, Pontes de Miranda empresta conceitos da mecnica e da fsica para tentar explicar a conciliao das foras essenciais, exemplificando a questo da seguinte forma:Imaginemos dois sistemas cujas resultantes gerais respectivas se encontrem em sentido oposto e uma delas exceda outra. O Direito intervm para estabelecer o equilbrio, isto , a equivalncia das duas resultantes gerais, uma em sentido positivo e a outra em sentido negativo.28

Portanto, eis a inegvel importncia do Direito no estabelecimento do equilbrio entre as foras do indivduo e as foras do organismo social; Pontes de

27 28

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.81. Ibidem. p.82.

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Miranda chegou a demonstrar esta relao de foras por meio de sistemas matemticos e fsicos, acreditando que a subordinao do indivduo ao organismo social nada mais que o traado da nica evoluo empenhada pelo homem nas circunstncias atuantes (contatos psicolgicos e produo de alimentos) dentro de limitado espao de ao (as aes so desenvolvidas em relao a um dado territrio). Para tratar da existncia da famlia, o autor retro citado ampara-se em pontos e linhas da geometria, demonstrando sua inclinao s orientaes empriocriticistas e entendendo que:Para a existncia da famlia, em vez das foras individuais ab, cd, ef, etc. (abstratas, pois que delas falo como falaria de pontos e linhas, na geometria), ser preciso outro sistema de foras, cuja resultante seja igual daquelas (perfeio do grupo familiar, to difcil como o gs perfeito, o tringulo absoluto etc.), ou, se desigual, corrigida pelo Direito e outros meios sociais de emenda dos defeitos de adaptao do homem vida social. Assim, h diminuio de egosmo individual em todos os ncleos da famlia, porque o indivduo instrumento da fora positiva e da negativa, o que lhe divide a atividade. A ptria exige a mesma diviso da energia e o decrescimento do egosmo famlia, - como a humanidade implica, no extino, mas o equilbrio entre as foras do organismo total e as do ncleo imediatamente inferior, que so as ptrias. Apenas com famlias e naes so formas intermdias, a verdadeira composio de energias para serem equilibradas efetua-se entre os indivduos e o ltimo conjunto a que se atingiu.29

A aplicao da Geometria no campo da mecnica social representa o grau mximo de abstrao, de apriorismo e de generalidade, isto , mera expresso simblica das relaes fsicas e sociais concretas. Com isso Pontes de Miranda quer demonstrar que a explicao dos fenmenos jurdicos pode ser realizada por intermdio de esquemas e smbolos emprestados de uma linguagem matemtica, repleta de teoremas, acreditando que:

29

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.84.

35

com palavras que se descrevem os fatos, mas em todos os verbos, como em todos os adjetivos, h algo de j percebido e de determinado que no basta descrio de certos fenmenos que se operam de maneira diferente da elaborao filolgica ou discursiva. Seria absurdo negar ao cientista a faculdade, se no o direito ou mesmo o dever de procurar outros meios mais eficazes, menos incompletos, talvez ainda mais determinados ou menos determinados, de expresso, como o sinal algbrico, a figura geomtrica, as composies mecnicogeomtricas, as analogias fsico-qumicas, biolgicas, econmicas, psicolgicas etc.30

Logo, Pontes de Miranda no considera o emprego de smbolos como algo ilegtimo para a representao do fenmeno jurdico, pois, conforme as suas palavras no se conclua da que seja ilegtimo ou sequer dispensvel o uso de tal expediente.31 Nessa dimenso, o Direito passa a ser indispensvel para o processo mecnico vital, considerando-se que o sistema de organizao humana possui uma forma interior de convivncia externada pelo fenmeno jurdico; ainda que todos os homens procedam num tipo de comportamento autmato, nenhum desses esto imunes ao coletivismo integral, alm do que as transformaes provam que necessria a vida em comunidade, posto que o homo sapiens necessita da interveno coletiva. Convm aqui registrar um importante pensamento de Bertrand Russel, quando afirma que no futuro tudo se reduzir ao estudo da fsica, mas no se pode ter certeza no presente trabalho de que Pontes de Miranda tenha sido influenciado por aquele autor; entretanto, pode-se assegurar certamente de que seu nome no foi esquecido, tendo em vista as vrias referncias a Bertrand Russel encontradas na obra Sistema de Cincia Positiva do Direito como, por exemplo, a questo de que:

30 31

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.87. Ibidem. p.91.

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A concepo da unidade da cincia no incompatvel com a viso de pluralidade, de mosaico, de fragmentrio, que nos d a realidade. Certamente, aos pedaos que temos que estudar o mundo, porque a experincia que no-lo mostra esfacelado com ela mesma.32

Dando a necessria continuidade ao assunto e, no que tange condio existencial humana, convm reproduzir o valioso posicionamento de Pontes de Miranda, a saber:Na prpria defesa imediata da vida, mudam as necessidades do homem; o que lhe era imprescindvel no passado, de sua menos importncia que a vida moderna provoca no organismo humano, pois que a civilizao cria molstias, porm eram maiores os perigos de outra natureza que a cada momento eliminavam o homem primitivo. Em dois sculos h quase completa diferena de ndice demogrfico no que concerne colocao estatstica da causa mortis; E dir-se- o mesmo quanto duas ou trs zonas do mesmo pas, diversas quer em clima e circunstncias materiais, que em grau de civilizao. Ora, h uma poro de regras jurdicas que antes eram precisas substituem-se outras, que nem se quer, s vezes, poderiam ser suspeitadas, e, sensivelmente, muitas que necessrias e latentes, quase evidenciadas nos fatos, no so percebidas pelos legisladores ou por outros quaisquer fatores da elaborao legislativa. Os mdicos dos sculos passados desconheciam a origem de certos males, como os de hoje ignoram a de outros que os de amanh tero por elemento de simples e corriqueira prtica.33

A partir de uma anlise antropolgica, Pontes de Miranda aborda a questo da mutabilidade constante do fenmeno jurdico; tambm de fcil absoro a analogia que faz entres os mdicos e os juristas, pois se aqueles desconhecem os futuros males (vrus, bactrias, protozorios causadores de doenas desconhecidas pela cincia), os juristas tambm desconhecem qual ser a norma do futuro. Assim, percebe-se que, em sua essncia, essa questo puramente cronolgica, pois o tempo vinculado s transformaes no mundo jurdico, haja vista que a norma perde a sua fora vinculante diante das transformaes sociais; alm32 33

disso,

nesse

mesmo

esquema

de

comparao,

a

cincia

mdica

Apud PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.33. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.93.

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constantemente enfrenta o desafio de identificar mtodos no combate aos microorganismos, tendo em vista a capacidade de mutao dos vrus, a exemplo dos retro vrus. Seguindo sua anlise antropolgica, Pontes de Miranda recorre

freqentemente idia de que nunca se pode esquecer o lado social do homem e, quanto cincia, afirma o autor que ela possui um fundamento social: um contnuo e outro heterogneo; porm, no que diz respeito ao Direito, Pontes de Miranda alerta para no se esquecer de que ele forma e que, tambm, abrange toda a matria social. Para o autor:No ele somente a diferena entre as duas correntes, positiva e negativa, da organizao social. Se alguma coisa o pode representar, geometricamente, o conjunto de foras vivas e opostas, mais o que de mister para o equilbrio; no h confundir o Direito e a funo do Direito: o simples fato de coexistirem os dois elementos essenciais (indivduo e organismo total, egosmo e altrusmo), tem por ntimo processo o sistema jurdico.34

Observa-se aqui que o autor toca novamente na questo do binmio indivduo e organismo social; aparentemente esse o elemento invarivel do seu pensamento e freqentemente aparece no seu discurso; no entanto, introjeta nova questo quando trata da funo do Direito e, mais adiante, quando se refere ao termo sistema jurdico. A partir dessa anlise, entende-se que o Direito possui, na viso do autor, um ofcio funcionalista no mbito de um sistema jurdico interno, mas quanto imutabilidade no Direito, Pontes de Miranda assim professa:A questo de saber se h algo de imutvel no Direito pertence metafsica e no cincia positiva do Direito; como no pertence histria natural conhecer o que invarivel no homem e sim o que

34

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.94.

38

variou e o que no variou durante lapso de tempo que abrange as pocas que nos ministram espcimes suscetveis de indagaes.35

Sob essa tica, a cincia positiva do Direito no deve se ocupar da investigao da imutabilidade do Direito; tratando-a como objeto de anlises metafsicas, Pontes de Miranda se afina com o esprito cientfico de Augusto Comte; acrescente-se aqui que, para esse importante autor brasileiro, nem tudo muda, nem tampouco existe elemento invarivel, contentando-se com uma postura bem mais cmoda: o relativismo. Isso pode ser observado quando Pontes de Miranda explica que:O que a cincia nos mostra a apario de instituies e o desaparecimento de outras, a inverso dos seus fins, as modificaes acidentais e essenciais, a contradio do prprio conceito jurdico em duas fases diferentes da evoluo humana; mas isto no prova que tudo mude, nem tampouco que haja elemento invarivel, que seja para o cientista algo de irredutvel e essencial. A postura mais cmoda a do relativismo: para ns, que conhecemos o homem e o vemos igual a si mesmo, e o animal igual aos animais, o que podemos afirmar so a constante animal e a constante humana, a que devem corresponder Direito Animal e Direito Humano.36

Por outro lado, o mesmo autor admite algo de invarivel no Direito quando professa que:Se existe algo de invarivel no homem, h-o tambm no Direito; porm, como existe algo de comum e invarivel entre os homens e os outros animais, h de haver no Direito partcula independente das variaes humanas. Percebeu-o o prprio Tomas de Aquino, na diferena, que lhe aprouve frisar entre a lei natural, a divina e a humana.37

Pontes de Miranda tambm aponta outra questo interessante, pois numa sociedade perfeita no h necessidade de lei imposta, nem mesmo de imposio

35 36

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.95. Ibidem. p.95. 37 Ibidem. p.96.

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coercitiva da norma jurdica; tampouco preciso a criao dos rgos legislativo e judicirio, o que no faz dele em absoluto um anarquista, mas de que o Direito anterior ao Estado e deste no depende. latente a originalidade do esforo de Pontes de Miranda na construo de uma filosofia cientfica com a vitalidade de construir um pensamento novo, isto , pessoal, denominando toda a extenso do conhecimento possvel de sua poca. Salta aos olhos de quem v sua opo pelo modelo lgico-matemtico. Sobre o assunto, Silvio de Macedo coloca que:[...] sua opo pelos modelos lgico-matemtico e naturalstico, constituem a cincia em seu maior nvel de rigor e possvel iseno, a possvel neutralidade cientfica, adverte sempre que a filosofia no pode restringir sua base numa nica cincia, sendo sua funo compreensiva e no extensiva [...] o pensar de Pontes de Miranda j contempla diversas reas da realidade e discerne numa viso pluralista, apesar de reconhecer maior perfeio metodolgica dos modelos lgico-matemtico e naturalista.38

Por outro lado, este mesmo autor aponta que Pontes de Miranda possui o rigor e a sistematicidade dos modelos matemticos e naturalsticos, numa busca incessante de alocar tais saberes s cincias sociais como, por exemplo, a matricizao do espao social. Tambm assevera que o jurista alagoano empresta o paradigma do neopositivismo, pois na poca da publicao da obra Sistema de Cincia Positiva do Direito, o autor buscou um sistema de maior rigor e objetividade.39 Todavia, comentrio diverso foi empregado por Miguel Reale quando, em nota de rodap, ensina que:Infenso a todo teleologismo, Pontes de Miranda declara que a jurisprudncia cincia do ser, segundo dois critrios inamovveis: oMACEDO, Slvio de. Histria do pensamento jurdico. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 1997. p.133. 39 Ibidem. p.134.38

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do determinismo e o da unidade da cincia. Felizmente, sua admirvel obra dogmtico-jurdica bem pouco se subordina a tais pressupostos, em que pese o emprego de uma terminologia inspirada na linguagem da fsica.40

O mesmo autor ainda entende que os objetos sobre os quais recaem o pensamento cientfico dependem de demonstraes das conseqncias. Tais objetos pertencem lgica e Matemtica. Ambas so cincias ideais ou de objetos ideados, e o que caracteriza os objetos ideais o fato de serem sem serem no espao e no tempo.41 Arrematando o assunto, Miguel Reale identifica que:Existem autores que se colocam numa atitude naturalstica, sustentando que o fato jurdico um fato da mesma natureza e estrutura dos chamados fatos fsico-naturais. No Brasil ningum leva to longe esta doutrina como um pensador de grande mrito, Pontes de Miranda, cuja obra fundamental Sistema de Cincia Positiva do Direito, publicada em 1922, representa uma vigorosa expresso do naturalismo jurdico. Essa atitude, no entanto, ao paradoxo de apresentar o Direito como fenmeno no peculiar ao homem, mas comum ao mundo orgnico e at mesmo aos slidos inorgnicos e ao mundo das figuras bidimensionais, por significar apenas um sistema de relaes e de conciliao ou composio de foras.42

preciso compreender que a inteno de Pontes de Miranda foi a de sempre buscar a objetividade da Cincia do Direito, j que viveu num perodo de expanso das cincias naturais, sendo que o fenmeno da sociabilidade, condio do fator jurdico, origina-se no aspecto fsico, enfim, nos processos de reunio da matria inorgnica. Tambm no se deve perder de vista que se est novamente diante de uma viso mecanicista, que transporta o receptor para alm dos horizontes do elemento

40 41

REALE, Miguel. Filosofia do direito. So Paulo: Saraiva, 1978. p.182. Ibidem. p.183. 42 Ibidem. p.182.

41

vivo. o que Djacir Menezes trata como tropismo imanente do esprito matematizante.43

2.2 Sobre o aspecto biolgico

Quanto ao aspecto em referncia, Pontes de Miranda atribui duas temticas significativamente interessantes. A primeira versa sobre o Direito em relao ao processo fisiolgico, ao passo que a segunda trata da moral, do Direito e da seleo natural. Estreita a relao do Direito com o processo fisiolgico, posto que existe um conjunto de fatores interativos; o fenmeno complexo, j que exige envolvimento e penetrao entre os indivduos em todos os sentidos. O mais importante nesse processo fisiolgico e social a obteno de uma unidade funcional, sendo que tal unidade proporciona o necessrio equilbrio. H que se entender que,

evidentemente, num espao onde eclodem aes tambm surgem efeitos colaterais, ou seja, simplesmente reaes. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda exemplifica a questo da seguinte forma:Se o indivduo ameaa a ordem social, formam-se movimentos envolventes que neutralizam os efeitos. lei arbitrria responde o organismo social com vrios meios de lhe dificultar, abrandar ou obstar a execuo dos dispositivos. Os desequilbrios so corrigidos, para que a vida persista. A natureza me, como se diz no romance Nixchen da senhora Hans von Kahlenberg: cura e cicatriza eternamente.44

43 44

MENEZES, Djacir. Tratado de filosofia do direito. So Paulo: Atlas, 1980. p.245. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.132.

42

Se essa perspectiva de unidade funcional for utilizada como ponte de partida, verificar-se- que as interaes so muito complexas; com efeito, nota-se que os povos tateiam e ensaiam, adotando um comportamento costumeiro e de criao de regras jurdicas.45 Porm, torna-se interessante compreender que o Direito sempre um fenmeno de adaptao, ou melhor se expressando, o Direito sempre adaptativo; isso significa dizer que as regras jurdicas emanam do ambiente de onde so construdas, no processo interativo e visando o equilbrio do corpo social. Ainda de acordo com o autor retro citado e objeto de estudo do presente trabalho:Retoma-se aqui o caminho que antes se deixou, para, adiante, o desprezar por outro. O fenmeno quase se ajusta ao observado nos infusrios pelo biologista Jennings; mas seria suscetvel, igualmente, da interpretao de Loeb e da de Rabaud. Quer realizado mecanicamente, quer com a conscincia, que algo de previso, sempre adaptativo o Direito, e a diferena entre as fases por que passou e entre as categorias de fontes no diversa da que existe entre os seres vivos. O movimento a vida; e as rvores, pela renncia a ele, empregam-se na inconscincia, - o costumeiro a forma vegetal do Direito. Quando o ser se afervora, se desloca e avana, os obstculos crescem, os riscos multiplicam-se, e medida que se esvai o torpor, a ao se torna a regra: surge a inteligncia, a inveno, o acerto consciente. O impulso interior no continua somente a energia da vida, mas a da civilizao, a da cincia, a das altas criaes da intelectualidade. As fontes jurdicas tm correspondentes em todos esses estados: a lei a forma, no animal, mas humana, superior, do Direito. Todavia, como procedimento de intensidade e de eficincia para os atos inteligentes, de maneira que a lei oscila em torno de certo ponto de indiferena e vai do mximo possvel de utilidade ao mximo possvel de desproveito. No acerta por ser lei; pode acertar pela atuao benfica que acaso tenha na economia do corpo social.46 (grifo do autor).

A questo da moral do Direito e da seleo natural tambm foi objeto de anlise por parte de Pontes de Miranda, j que representam um processo de adaptao, bem como de seleo. Um fator a ser considerado que o homem possui uma vocao inata para destruio dos seres viventes; da a necessidade da45 46

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.133. Ibidem. p.132-133.

43

moral e do Direito para reprimir os instintos humanos destrutivos. Assim pensa o autor, numa perspectiva pessimista, mas h que se considerar que o homem um ser passvel de erros e que possui uma natureza dbil, j que capaz de promover a eliminao da prpria famlia humanae. Em matria de direito das sucesses, Pontes de Miranda discute a dimenso da seleo natural, comunicvel ao Direito, ao explicar que:Quando o Direito designa o filho mais velho para a sucesso, substitui a seleo interna por outro processo, artificial, que viciar o crculo familiar: em vez da atividade seletiva, que daria o papel de chefe ao irmo que mais valesse, introduz o Direito o automatismo do privilgio, que, se, pelas circunstncias, for til, ser menos do que fora de esperar da designao espontnea. Como corretivo ao artificialismo, que pode errar e pr a direo da famlia em mos inbeis, surgem as substituies, os morgados, etc.47

No se pode omitir que duas importantes questes so debatidas por Pontes de Miranda: a soluo pelo mtodo cientfico e a questo do individualismo. Para o autor, o individualismo uma espcie de variante atmica do antropocentrismo, comprometendo a adaptao do homem vida social. Se o ser biolgico no for compreendido como massa unitria de substncia viva, todo o organismo social ser afetado em razo da divisibilidade do conjunto do organismo. O organismo vivo, por sua vez, possui coeficientes especiais de fora e de caracteres porque a atividade vital o produto das prestaes de trabalho dos elementos morfolgicos. Assim, se o corpo social no se adaptar ao organismo, corre o risco de ser prejudicado; da a importncia do Direito e da moral para reprimir o indivduo desajustado.48

47 48

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.147. Ibidem. p.147-148.

44

No que se refere soluo pelo mtodo cientfico, Pontes de Miranda trata da discusso entre a moral e o Direito, entendendo que primeira tem sido mais eficaz que o segundo, tendo em vista que ela muito mais espontnea; logo, menos arbitrria. Dessa forma:Sempre que a moral fica a servio de outro fato social (o religioso, por exemplo), crescem-lhe as possibilidades de erro, porque o sentimento ou a razo comea a querer normas adrede elaboradas. Ora, tal elaborao somente poderia ser admitida se entregue a rigoroso mtodo cientfico, que lhe fosse a garantia da eficcia e da inocuidade.49

Este mesmo autor, ao tratar do processo de adaptao social, abrange a Economia, a religio e a moral como formas desse processo. A Economia busca atender s necessidades imediatas do indivduo e tem a utilidade como substrato, ao passo que a moral transcende o indivduo e atende s necessidades no diretamente sensveis no indivduo, afetando apenas a coletividade. J, a religio busca apenas a abstrao e aspira uma forma de adaptao dependente da abnegao do escrpulo, enfim, do processo ultra-sensvel da f. Nesse sentido, Pontes de Miranda explica que:Segundo esse critrio de extenso, poderamos considerar o Direito como o mnimo tico, porm nada teramos explicado. Como atividade emprica e imediata relativa ordem social e aos bens da vida, o fenmeno jurdico pode no ter por contedo o elemento moral e ento pecaria o conceito. O que mais o caracteriza intensidade do interesse do alter ou do socius no ato ou na omisso do ego: no se trata de ato ou omisso que realize no indivduo o fenmeno de adaptao, como se dou a esmola ou se respeito a senhora que passa, mas de relao de recproca adaptao entre dois, trs ou mais homens [...] por isto mesmo, se miudessemos os assuntos que constituem o objeto da biologia, no se poderia excluir da lista dos fatos por ela estudados o fenmeno jurdico. A indagao biolgica traz a vantagem de explicar pelo conhecido o fato desconhecido, o que constitui expediente assaz fecundo da elaborao cientfica.50

49 50

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.147. Ibidem. p.159.

45

Este mesmo autor ainda acredita que a cincia somente pode ser construda com relaes constantes, apoiadas em fatos concretos, pois a ausncia de um substrato real impede a elaborao de qualquer matria cientfica. Esta a vantagem do estudo da Biologia, pois o mtodo dos naturalistas o mais seguro, tendo a capacidade de garantir a credibilidade nas pesquisas e nos resultados. Dessa forma:Pela induo, conseguimos conhecer o que constante nos fatos e no h como negar que as normas jurdicas descrevem o que se d nos fenmenos jurdicos, isto , nas relaes sociais [...] o primeiro grau da explorao cientfica; depois, e somente depois, que podemos pretender a corrigenda dos defeitos de adaptao, atividade de que empiricamente abusaram os despotismos, mas a que devero as sociedades o mais admirvel dos processos de desenvolvimento e harmonia.51

Sobre a vida, ele entende que a mesma sempre existiu, antes mesmo da criao da Biologia; porm, no se pode negar a grande contribuio dos estudos biolgicos vida humana. Com efeito, as cincias da natureza contribuem significativamente para melhorar os organismos, pois trabalham no processo de alterao do meio, bem como no processo de fortalecimento do indivduo. Tal autor ainda acredita que:O Direito que vive no povo cheio de imperfeies, inutilidades e intervenes inoportunas. A vida tambm assim. Durante a semana em que dedico alguns minutos matinais ao meu jardim, os progressos so facilmente notados: a inteligncia humana levou-lhe recursos que so ignorados pelo organismo vegetal. A cincia jurdica positiva pode, na vida dos homens, fazer os mesmos aperfeioamentos e milagres.52

51 52

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.160. Ibidem. p.160.

46

Promovendo a continuidade ao assunto, h que se expor que o Direito cincia natural como qualquer outra e no h impedimento para a utilizao do mtodo das cincias naturais no campo do Direito, pois somente como cincia natural que o Direito digno das cogitaes, do tempo, do zelo e da dedicao de espritos contemporneos. Para corroborar tal pensamento, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda explica que:Como cientista, e somente como cientista, com o nico mtodo que convm cincia, o determinismo, vejamos o que se produz na histria ocidental, da Galilia Rssia e ao Alasca, ao serto brasileiro, s bordas chilenas do pacfico, s cidades e campos da Austrlia e da Nova Zelndia, a variao da idia, e melhor diramos, do expediente adaptativo, em funo do meio. Sob o envoltrio grego, ou a exteriorizao catlica, ou a reforma protestante, ou sob outras mltiplas conformaes que apresentam, o cristianismo o resultado religioso de determinado povo em determinadas condies de meio, leva consigo algo que humano e universal e elemento que varia segundo as variaes dos termos do complexo biolgico organismo x meio.53

No obstante, coerente se torna reproduzir a seguir a crtica feita por Djacir Menezes em relao ao pensamento de Pontes de Miranda, a saber:Firmadas as premissas, no podemos aceitar, como em 1935, as analogias mecnicas ou biolgicas como aspectos do Direito, porque, captando os aspectos mecnicos ou biolgicos do equilbrio, omitem-se as notas essenciais do processo - precisamente as que advm dos fatores realmente humanos. No quer isto dizer, invocando a conotao da racionalidade e da conscincia, regridamos a interiorizao subjetivista para recair nas indagaes metafsicas clssicas.54

Silvio de Macedo acredita que Pontes de Miranda tece crticas s posies clssicas e modernas, pois possvel identificar em suas obras uma investida contra o biologismo, que implica em exclusividade e no em complementaridade. Isso53 54

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.162-163. MENEZES, Djacir. op. cit. p.247.

47

significa que o jurista alagoano se opunha ao particularismo de Haeckel, pois ao lado do fenmeno jurdico temos outros aspectos que lhe afetam. Assim, o biolgico e a vida, tambm entra na composio do fenmeno jurdico.55 Assim, possvel acreditar que, nessa posio de ver na linguagem da cincia biolgica um complemento e no a soluo para a pesquisa jurdica, Pontes de Miranda certamente aceitaria a Teoria da Autopoiese como acessria para a explicao do fenmeno jurdico. Sobre esta Teoria de Niklas Luhmann pode-se, por exemplo, dizer que sua elaborao deve-se aos estudos de Humberto Maturana e Francisco Varela, constantes na obra "De maquinas y seres vivos", publicada em 1973; estes dois autores, pesquisadores chilenos e bilogos, empenharam-se na construo de uma concepo biolgica de vida, dedicando-se a explicar o fenmeno da fora vital; desenvolveram, portanto, a chamada Teoria Autopoitica para dar soluo s pesquisas. Isso prova de que a Cincia Jurdica no est, hodiernamente, imune s contribuies das cincias naturais, sobretudo num mundo ps-moderno, onde se exige o desenvolvimento da Cincia do Bio-Direito. Portanto, a proposta de unidade da cincia de Pontes de Miranda permanece atual, pois a Teoria Autopoitica uma prova de que o Direito pode ser perfeitamente pesquisado pelos mtodos das cincias naturais como, por exemplo, o da Biologia.

2.3 Sobre o aspecto sociolgico

Quanto ao aspecto sociolgico, Pontes de Miranda trata de questes como o mecanismo social do Direito, a concepo mecnica, a inexistncia da sociedade

55

MACEDO, Silvio de. op. cit., 1997. p.140.

48

sem o indivduo, o egosmo e a subordinao da poltica humana ao conjunto da cincia. Em seu discurso, o autor introduz a idia de que a concepo mecnica no suprime o indivduo, nem o organismo total. Existem teorias que desprezam o indivduo, assim como concepes que recebem a Teoria do Organismo Vivo ou Social; porm, depois compreendido o mecanismo social do Direito, adquire-se uma viso mais esclarecedora, aquela que leva ao convencimento da falsidade e dos vcios que ambas as teorias carregam. Tal fenmeno ocorre porque se trata de teorias unilaterais, posto que ora focam apenas o indivduo, ora concentram-se apenas no organismo total. Logo, no h sociedade sem o indivduo, assim como no h o indivduo isento dos fios sociais, que o entrelaam e penetram.56 Portanto, o indivduo, como suplemento dos demais seres, penetra no tecido social. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda analisa as primitivas formas sociais de modo convincente, demonstrando completa erudio ao afirmar que:Nas primitivas formas sociais, os crculos, muito pequenos, os constrangiam, a despeito do coeficiente individual, que era brutal e inculto. Como nas sociedades animais, preponderava, quase exclusivamente, a lei da espcie, como se v entre as abelhas, trmites e formigas. Na antiguidade h exemplos humanos; ainda em Esparta podemos encontr-lo; e em Roma, ao tempo dos reis e da repblica, diz Horcio: Privatus illis census erat brevis, Commune magnum.57

Em relao ao modo de produo capitalista, este autor o considera como um sistema individualista e egosta, pois no coloca o indivduo como fim, mas como

56 57

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.165. Ibidem. p.165-166.

49

meio.58 A observao dos males produzidos pelo individualismo ibero-americano importante para que tome cincia dos erros nas quais freqentemente se incorre. Da a defesa que Pontes de Miranda faz de um tipo de Sociologia que esclarea a realidade de duas categorias importantes: indivduo e sociedade. Tambm tarefa desta rea de saber analisar a expresso de tais categorias como foras que devem ser equilibradas pelas vias cientficas. O perodo social individualista corresponde ao movimento ideolgico do socialismo cientfico, j que tal movimento nasce como resposta aos desequilbrios praticados pelo individualismo ibero-americano. Na viso Pontes de Miranda:Procuram-se os melhores meios possveis para regular as relaes entre os indivduos entre si e entre os indivduos e a sociedade. a diretriz positiva da cincia que coincide com a aplicao do fenmeno scio-jurdico nos corpos bi e tridimensionais (acomodaes dos tringulos entre si e no tocante ao tringulo ou crculo envolvente). O processo para se conseguir tal harmonia a socializao em proveito dos indivduos; e o meio a adoo de mtodos rigorosamente cientficos na administrao, na revelao do Direito e no aplicar as regras jurdicas. Na primeira fase o socialismo das raas ou divises mais ou menos puros; na segunda o individualismo; na terceira as distribuies sociolgicas dos homens, aparentemente no sentido do utilitarismo imediato, mas na essncia, para o fortalecimento do mais largo crculo social: a humanidade.59

Adicione-se

a

este

pensamento

o

fato

de

que

as

sociedades

morfologicamente se apresentam como blocos que, por sua vez, se dividem em camadas, todas elas compostas do mesmo elemento humano; cada camada se diferencia da outra pela coeso, pelo peculiar agrupamento das unidades do elemento que as constitui. Portanto, a densidade que denota a lei da constncia. A rigorosa aplicao dos mtodos cientficos permite, tanto ao socilogo quanto ao jurista, estudar a estrutura ntima das camadas sociais superpostas, que

58 59

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.166. Ibidem. p.166-167.

50

se afastam entre si, mas insuladas, resistem percusso.60 Conhecida a morfologia social, pode-se quantificar as formas provisrias e as definitivas, mas somente duas formas so reconhecidas por Pontes de Miranda como essenciais e definitivas, tanto para a vida social quanto para o Direito, a saber: o indivduo e a universalidade humana. As demais configuraes, como a horda, a tribo, a fratria, a cidade, o feudo, o matriarcado, o patriarcado, a maior parte das leis, e o prprio Estado so formas secundrias, provisrias, transitrias, sujeitas a mutaes. Os mais importantes elementos de criao e de alterao do Direito correspondem as trs necessidades vitais: a alimentao, a proteo fsica e a conservao da espcie, que so tratadas pelo jusfilsofo alagoano como lmpadas perenes da vida animal. Tome-se como exemplo o fato de que os grandes carnvoros da idade antiga devoravam muitos homens primitivos; a sada para o problema foi a utilizao de armas para fins de compensar a inferioridade fsica e biolgica da ao fsica do homem. Assim, o Direito pode ser considerado um meio de proteo artificial do corpo, com tendncia s adaptaes.61 Na ordem da natureza existem muitos defeitos, assim como na ordem social, e como exemplo pode-se citar o roubo, a embriaguez, a mendicncia, entre outros. Pontes de Miranda acredita que:No podemos afirmar que o homem somente possa viver em sociedade; em sociedade que ele poder perpetuar-se, mas o homem perdido nas selvas, que conseguiu l viver dez ou quinze anos, no inconcebvel, nem impossvel. Logo que convive, comea o fato social da solidariedade, sem o qual seria impraticvel a vida social. Principia tambm o Direito, que forma interior da convivncia, e, pois, sociologicamente necessidade, como, para a geometria o valor de dois retos, que devem ser somados, os ngulos do tringulo, ou para a qumica, ou de que o corpo a misturado ao corpo b produza o corpo c. na indstria que o homem consegue o mximo de poder, mas conhecemos sociedades animais que so superiores indstria primitiva, isto , instrumentos de contornos60 61

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.53-54. Tambm se presta a corrigir defeitos na adaptao.

51

naturais aproveitados em estado bruto com melhoramentos escassssimos que os sobpem pedra talhada das indstrias paleoltica e neoltica.62

Pontes de Miranda distingue dois tipos de espcies; uma em sentido concreto, correspondente totalidade das coisas, e outra a espcie humana, que possui uma dimenso subjetiva. Porm, o individualismo comete um erro quando concebe o homem concreto como algo desvinculado historicamente da espcie, isto , com a sociedade. A cincia recomenda que se deva estudar o homem na sociedade e no a sociedade no indivduo, pois, segundo o autor:A maioria dos motivos, princpios das foras - que dirigem, produzem e, no raro, constituem a realidade geral em que se d a subsuno dos atos individuais - e das representaes coletivas, preexiste e subsiste em relao aos membros do grupo e s geraes. medida que se coordenam dados e materiais, acentuam-se as uniformidades e o mtodo comparativo o que se impe. Foi o que, na antropologia, fizeram Taylor, Frazer, Hartland e Andrew Lang.63

Sobre a estrutura do corpo social, deve-se entend-la como um corpo integrado de massa inorgnica, orgnica e psquica. Os movimentos fsicos, psicofsicos e psquicos tambm se encontram nos domnios que antecedem ao social, isto , esto presentes no mundo orgnico e inorgnico, assim como no mineral. Pontes de Miranda tambm entende que a economia poltica concedeu um legado ao Direito, qual seja, a aplicao da Matemtica ao fenmeno jurdico, j que a aplicao de axiomas matemticos no Direito indispensvel integrao cientfica do conhecimento, e acaba por justificar a opo, a escolha, a adoo pelo autor do mtodo indutivo no estudo desta rea de saber.

62 63

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit. 2005b. p.169. Ibidem. p.170.

52

Ressalte-se que a Matemtica no tem por nico objeto a realizao de clculos numricos, pois nem tudo pode ser expresso por smbolos algbricos; ela tambm usada para identificar relaes entre grandezas que numericamente no podem ser sopesadas, entre funes. Beccaria apontado pelo autor objeto deste estudo como um dos fundadores da economia pura; fato curioso, pois na academia jurdica ele conhecido por integrar a Escola Clssica de Direito Penal, e famoso por sua obra Dei delitti e delle pene. Cita tambm o nome de Schumpeter responsvel pelo fortalecimento de investigaes econmicas pelo critrio matemtico. Pontes de Miranda tambm destaca o pensador alemo Emlio Durkheim, atribuindo-lhe a criao de uma regra metodolgica composta de algumas variantes. Tal regra consiste em tratar os fatos sociais como coisas; considerada como mtodo da normalidade, generalidade e evoluo, tem como finalidade observar, comparar e classificar os fatos sociais. O jurista e filsofo alagoano explica que, quanto s variantes do referido mtodo, foram estabelecidas trs formas, a saber:a) para determinado tipo social, que se considere em determinada fase do seu desenvolvimento normal o fato social quando se produz na mdia das sociedades da mesma espcie, consideradas na fase correspondente da sua evoluo; b) podem ser verificados os resultados do mtodo precedente em se mostrando que a generalidade do fenmeno depende das condies gerais da vida coletiva no tipo que se escolheu ou estuda; c) necessria a verificao quando o fato diz respeito espcie social que ainda no cumpriu a evoluo integral.64

interessante expor que o autor trata o mundo social como algo que a todo o momento reflete o grau do conhecimento humano, mas no esclarece se a mensurao do conhecimento humano feita em quantidade ou qualidade. Se for

64

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.173.

53

admitido que Pontes de Miranda jamais se contradisse em relao ao mtodo por ele adotado, surge ento a obrigao de se admitir que essa mensurao s pode ser levada a efeito em termos de quantidade. Ele se posiciona de maneira muito curiosa quando faz apelo ao uso de bons mtodos na anlise dos fenmenos e dos aspectos relacionados, direta ou indiretamente, ao fenmeno jurdico. A esse respeito, adotou o seguinte entendimento:At aqui a razo individual ou coletiva, desapercebida de mtodos cientficos, pouqussimo fez em benefcio dos grupos sociais, isto , realizou apenas o que lhe era possvel como contedo da prpria funo biolgica da conscincia, a cada momento escravizada pelos impulsos indisciplinados de toda a sorte; mais ainda: com as nossas fantasias, com o nosso empirismo e sobretudo com a nossa ignorncia apoiada em culturas inteis, em vez de auxiliarmos, temos prejudicado a prpria defesa e iniciativa inconsciente das sociedades; com o uso de bons mtodos, com a pesquisa objetiva, dar-se- o contrrio: acima da ao dos agregados sociais, para conservao e o progredimento. Estaro a inteligncia individual e a coletiva a prover sabiamente harmonia e ao engrandecimento geral. Hoje muito difusa e complicada a matria social, mas as novas convices e a doutrina, elementos da cincia, depois de exteriorizadas e inseridas na vida social, passam categoria de valores, de fatos, de substncias, e como tais so melhor entendidas pela inteligncia, que presidiu sua elaborao, do que os outros, anteriores interveno dela e consistentes em ensaios do instinto, em tateamento e heterogeneidades embaraantes, como so certas utopias e erros.65

Pontes de Miranda tambm menciona Jellinek, estudioso responsvel pela atribuio de dois princpios. O primeiro diz respeito fora de aplicao do Direito, segundo o qual o Direito s pertence ordem jurdica e realmente Direito apenas quando se aplica; Direito, que no mais se aplica ou que ainda no se aplicou no Direito. O outro se refere relatividade dos fins do Estado: os fins deste variam em funo das condies sociais; quanto maior o interesse solidrio, mais o Estado chamado a satisfaz-lo.

65

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. op. cit., 2005b. p.174.

54

A respeito do pensamento de Jellinek, Pontes de Miranda concluiu que:[...] a solidariedade grandeza dinmica, que se modifica conforme as circunstncias (lugar, tempo, povos, etc.,), por isto mesmo a frmula se submete quanto ao seu contedo poltico, as influncias do momento e s condies gerais do estado de cultura do povo ou do crculo social composto de povos.66

At aqui possvel entender que vai ganhando corpo a concepo funcionalista culturalista do fenmeno jurdico.

2.4 Sobre o aspecto ideolgico

No que diz respeito ao aspecto ideolgico, Pontes de Miranda explora o universo filosfico helnico para tratar das necessidades como causas e da evoluo da metafsica jurdica. As necessidades como causas possui um fundo ideolgico, j que as necessidades econmicas, m