Fenomenologia da Comunicação em sua quotidianidade

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21 Intercom – RBCC São Paulo, v.36, n.2, p. 21-39, jul./dez. 2013 Fenomenologia da Comunicação em sua quotidianidade Fábio Fonseca de Castro* Resumo O artigo reflete sobre a relação entre a Comunicação e os processos comunicativos quotidianos à luz do pensamento de Martin Heidegger. Pretendende-se interpretar o fenômeno comunicativo a partir de uma abordagem hermenêutica e fenomeno- lógica, investiga-se a Comunicação como condição tácita de todo estar no mundo e discute-se o caráter banal e quotidiano da Comunicação por meio da noção heideggeriana de falatório (Gerede), a qual procura entender como experiência comunicativa fundamental. O objetivo do artigo é compreender a Comunicação na sua condição fenomênica mais elementar, que identificamos como sendo a sua condição intersubjetiva. Com essa proposição, o artigo procura pensar a Comu- nicação sem as amarras metafísicas que exigem que se pense, nela, como uma condição de eficiência de linguagem e de sentido, iniciando uma fenomenologia da Comunicação que a perceba como fenômeno intersubjetivo e quotidiano. Palavras chave: Comunicação. Fenomenologia. Heidegger. Cotidiano. Inter- subjetividade. Phenomenology of communication in everyday life Abstract The article reflects on the relationship between Communication and commu- nicative everyday processes using Martin Heidegger’s philosophy. Intending to interpret the communicative phenomenon from a phenomenological and her- meneutical approach, we seek to understand Communication as tacit condition of every being in the world and we discuss the banal and quotidian character of Communication through Heidegger’s notion of idle talk (Gerede), comprehen- Professor doutor da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-graduação Comunicação, Cultura e Amazônia no Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Belém-PA, Brasil. Email: [email protected]

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  • 21Intercom RBCCSo Paulo, v.36, n.2, p. 21-39, jul./dez. 2013

    Fenomenologia da Comunicao em sua

    quotidianidade

    Fbio Fonseca de Castro*

    ResumoO artigo reflete sobre a relao entre a Comunicao e os processos comunicativos quotidianos luz do pensamento de Martin Heidegger. Pretendende-se interpretar o fenmeno comunicativo a partir de uma abordagem hermenutica e fenomeno-lgica, investiga-se a Comunicao como condio tcita de todo estar no mundo e discute-se o carter banal e quotidiano da Comunicao por meio da noo heideggeriana de falatrio (Gerede), a qual procura entender como experincia comunicativa fundamental. O objetivo do artigo compreender a Comunicao na sua condio fenomnica mais elementar, que identificamos como sendo a sua condio intersubjetiva. Com essa proposio, o artigo procura pensar a Comu-nicao sem as amarras metafsicas que exigem que se pense, nela, como uma condio de eficincia de linguagem e de sentido, iniciando uma fenomenologia da Comunicao que a perceba como fenmeno intersubjetivo e quotidiano. Palavras chave: Comunicao. Fenomenologia. Heidegger. Cotidiano. Inter-subjetividade.

    Phenomenology of communication in everyday life

    AbstractThe article reflects on the relationship between Communication and commu-nicative everyday processes using Martin Heideggers philosophy. Intending to interpret the communicative phenomenon from a phenomenological and her-meneutical approach, we seek to understand Communication as tacit condition of every being in the world and we discuss the banal and quotidian character of Communication through Heideggers notion of idle talk (Gerede), comprehen-

    Professor doutor da Faculdade de Comunicao e do Programa de Ps-graduao Comunicao, Cultura e Amaznia no Instituto de Letras e Comunicao da Universidade Federal do Par (UFPA). Belm-PA, Brasil. Email: [email protected]

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    ded it as a fundamental communicative experience. The aim of the paper is to understand the Communication in its most basic phenomenal condition, wich we have identified as their intersubjective condition. With this proposition, the article also seeks to understand Communication without the metaphysical bonds that are required to think on it, in other words a condition of effective-ness of language and meaning. Doing this, we start a phenomenology approach by which Communication could be comprehended as intersubjective and daily phenomenon.Keywords: Communication. Phenomenology. Heidegger. Everyday. Intersub-jectivity.

    La fenomenologa de la Comunicacin en la vida cotidiana

    ResumenEl artculo reflexiona sobre la relacin entre la Comunicacin y los procesos comunicativos cotidianos a la luz del pensamiento de Martin Heidegger. Con la intencin de interpretar el fenmeno comunicativo con un enfoque fenomenol-gico y hermenutico, tratamos de comprender la Comunicacin como condicin tcita de todo ser en el mundo y analizamos el carcter banal y cotidiana de la comunicacin a travs de la nocin heideggeriana de habladura (Gerede) que trata de entender como experiencia comunicativa fundamental. El objetivo de este trabajo es entender la Comunicacin en su estado fenomenal ms bsico, se ha identificado como su condicin intersubjetiva. Con esta propuesta, el artculo trata de pensar en Comunicacin sin los lazos metafsicos que requieren a pensar en ella como condicin de eficacia de lenguaje y de significado, empezando una fenomenologa de la Comunicacin que la piense como fenmeno intersubjetivo y cotidiano.Palabras clave: Comunicacin. La fenomenologa. Heidegger. Cotidiano. In-tersubjetividad.

    Introduo

    O propsito deste artigo refletir sobre a relao entre Comunicao, em geral, e os processos comunicati-vos quotidianos, em particular, luz da fenomenologia existencial de Martin Heidegger. Indagamos de que maneira o pensamento desse filsofo pode contribuir para a reflexo sobre a Comunicao e exploramos, em particular, a hiptese de pensar o fenmeno comunicativo por meio da compreenso heideggeriana do falar banal (Gerede), presente na intersubjetividade quotidia-na. Desenvolvemos nossa reflexo por meio de uma abordagem

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    filosfica, e especificamente hermenutica e fenomenolgica, do fenmeno comunicativo.

    Num plano mais amplo, abordamos a dimenso da quotidia-nidade do Dasein o ser-a, categoria fundamental da analtica heideggeriana enquanto processo comunicativo geral e, dessa forma, banal. Num plano mais especfico, discutimos a condi-o mais evidente desse estar-no-mundo, por meio da noo de falatrio (Gerede), que procuramos entender como experincia comunicativa fundamental do Dasein.

    No primeiro tpico aps esta introduo procuramos sintetizar o pensamento de Heidegger sobre a noo de quotidiano obser-vando, particularmente, como as circunstncias da interao e da Comunicao constituem elementos fundamentais para a sua ca-racterizao. Tambm a, esclarecemos como o filsofo compreende o quotidiano como uma situao de queda do ser no mundo da vida. Procuramos explicitar essa noo de queda em seu estatuto ontolgico, ou seja, sem a aferio de valor, atitude que prpria da metafsica. No se trata, assim, de uma queda numa eventual negatividade, ou mesmo em um no-sentido. , simplesmente, a descida, o trnsito do Dasein em direo ao mundo, essa quo-tidianidade na qual ele oblitera a questo sobre o sentido do ser, que constitui o caminho comum de sua existencialidade1.

    No tpico seguinte, observamos a dimenso do falatrio, a Ge-rede de que nos fala Heidegger, na conformao comunicativa dessa

    1 A noo heideggeriana de queda (Verfallenheit) tem sido refletida, pelos au-tores que trabalham com o filsofo, de maneira complexa e mesmo divergente. Enquanto um grupo deles, como Guignon (2002), Haugeland (2002), Magnus (2002), Riviale (2010), dentre outros, compreende que Heidegger pensa a queda e a situao anloga da inautenticidade como uma depreciao da experi-ncia da vida comum e pblica, talvez mesmo da democracia e, eventualmente, como um sucedneo da ancestral desconfiana platnica com toda doxa, outro grupo, que agrega Gelven (1989), Pasqua (1993), Blattner (2006), Guest (2008), dentre outros, compreende a queda, juntamente com a inautenticidade, como, simplesmente, o estatuto ontolgico do fechamento da questo existencial. Nesse contexto de interpretao, quando falamos em iluses, por exemplo, temos, simplesmente, um fato do pensamento, e no uma avaliao moral ou cultural de determinados eventos.

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    quotidianidade. Procuramos explicitar esse conceito, mostrando como o falar, o discurso (Rede) se banaliza enquanto falatrio ao adentrar na vida quotidiana. Procuramos compreender o falatrio como o manifestar comunicativo do Dasein em sua quotidianidade.

    Por fim, no ltimo tpico do artigo, discutimos a banalidade da Comunicao como fenmeno, refletindo sobre seu papel nesse mundo do quotidiano. Procuramos compreend-la sem as amarras metafsicas, que nos exigem pensar Comunicao como uma condio de eficincia de linguagem e de sentido e, para isso, situamo-la como, fundamentalmente, uma experincia de comutao do banal, de construo coletiva da superficialidade e do no-dizer.

    Quotidianidade e Comunicao em Heidegger

    H dois fatos filosficos a notar a respeito da Comunicao, quando pensamos nela a partir da analtica existencial de Heide-gger. O primeiro, que a experincia da Comunicao se d no quotidiano e enquanto quotidiano. O segundo, que a experincia da Comunicao se d no plano do ser-com-outros (Mitsein), j que corresponde, necessariamente, a um contato entre dois ou mais indivduos, em qualquer plano: o contato interpessoal direto ou mediado.

    Para compreender o que significa, em Heidegger, a ideia de quotidiano, ou de quotidianidade, preciso observar que, para o filsofo, ela no anloga s ideias de vida quotidiana ou de vida comum. Para Heidegger, seria a estrutura constitutiva original e incontornvel de todo ser-no-mundo. o universo do ser-com-outros, no qual o ser-com-outros sempre prevalece sobre o ser-a-si-mesmo que se poderia ser, de outro modo.

    Nesse mundo, o Dasein cede lugar ao Se. o universo do se , se diz, se faz, se v, se sabe... Mesmo quando se diz Eu, est-se pensando nesse ns despessoalizado que o se. Nesse estar-junto o Dasein se torna annimo, se eclipsa. Segundo Harr, intrprete de Heidegger, a quotidianidade presente nesse se designa uma substitutividade indefinida de papis, situaes, gestos, palavras

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    que, longe de permanecer exterior (ao indivduo), constitui seu primeiro eu mesmo (HARR, 1989, p.213).

    assim que se produz o fenmeno da queda (Verfallenheit), a auto-identificao do Dasein como mais uma coisa-no-mundo. a queda que leva ao encobrimento do ser e inautenticidade do Dasein. No mundo da queda, do ser encoberto e inautntico, tem-se a iluso de que se tem individualidade, identidade etc, quando tudo isso, efetivamente, no passa de um encobrimento, de uma fuga, das questes existenciais que se colocam ao Dasein.

    O segundo fato, referente ao carter interativo da Comu-nicao, deriva da evidncia de que o Dasein constitui, inexo-ravelmente, tambm, um Mitsein. Em termos heideggerianos, o primeiro co-existencirio ao segundo. Na verdade, dizer que a experincia da Comunicao ocorre no plano do ser-com-outros pode parecer redundante, para quem est familiarizado com o pensamento de Heidegger, porque, como se sabe, o Dasein , fun-damentalmente, ser-com-outros. Porm, esse fato inverte a lgica com a qual se constri o pensamento epistemolgico-metafsico sobre a Comunicao, que no a tem como uma inerente inter-subjetividade, mas sim como um fluxo de conscincias, umas em direo a outras.

    Assim, a concepo heideggeriana do Dasein, do ser-a, como, necessariamente, um ser-com-outros (Mitsein), constitui um ele-mento central do pensamento do filsofo sobre a Comunicao. Na verdade, a percepo do Dasein como um ser-com, constitutiva da prpria gnese vocabular de Ser e Tempo. Como assinala Caval-cante (1993, p.318) a respeito do Dasein, todas as suas concreti-zaes na existncia exercem uma ao expressa pela preposio com (mit). Mesmo isolado, mesmo solitrio, o Dasein , sempre, Mitsein. O mundo sempre mundo compartilhado (Mitwelt); o viver sempre convivncia (Miteinandersein) (CAVALCANTE, 1993, p.318). Na mesma direo, Boutot afirma que, Mesmo s, mesmo quando no tem nenhum outro ser na sua proximidade imediata, o Dasein est, sempre, com algum. A solido no tem sentido, a bem dizer, seno para um ser que est, fundamental-mente, em relao com outros (BOUTOT, 1989, p.29).

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    Mesmo sendo redundante diz-lo, nos parece fundamental reafirmar essa ideia, em primeiro lugar, para que se perceba que o carter comunicativo do Dasein inerente sua condio exis-tencial e, em segundo lugar, para que se evite uma compreenso metafsica da ideia de Comunicao, assimilando-a no como uma condio existencial, mas como uma condio de eficcia no processo de interao entre indivduos ou, pior ainda, como o processo de transmisso de mensagens.

    Esses dois fatos, ou temas, heideggerianos, so convergentes. O mundo do quotidiano, o mundo do se, ocorre em funo da co-existencialidade entre o Ser-a e o ser-com-outros, ou seja, em funo da evidncia de que o Dasein constitui, inexoravelmente, um Mitsein. no quotidiano que o ser com outros e, em conse-quncia, quando com outros no quotidiano, portanto que o ser se comunica.

    O mundo do se permite as iluses do Dasein. um mundo cmodo, que lhe exime de formular as questes sobre sua exis-tncia e, assim, de dissimular, na metafsica da vida comum, sua pretenso de integralidade, totalidade e identidade. A disperso entre os outros lhe confere um abrigo, equivale ao fazer parte de um coletivo de incgnitos, a estar no seio da manada.

    Harr (1975, p.214-215) menciona as iluses prementes do Dasein na sua quotidianidade, circunstncia na qual toda preten-so integralidade, totalidade e identidade se esvai sem que, no entanto, o Dasein tenha qualquer percepo desse fato:

    O ser do mundo quotidiano nos fora a tornar nossas, antecipadamente, as vias j traadas e percorridas, as condutas prescritas, as ideias recebidas. Porque, mais uma vez, todo mundo quer, honestamente, lucidamente e com todas as suas foras, ao que parece, se realizar (como se diz!). Todo mundo se orgulha de ter sua prpria opinio sobre o que dizem os jornais, de ter uma margem de manobra no interior das imposies sociais que ningum contesta. Todo mundo se acha capaz de se diferenciar do ser mdio e ordi-nrio (durch-schnittlich) que, como se cr, lhe proposto e no imposto.

    A pretenso a ter-se opinio, a se realizar, a se comunicar, dentre outras quaisquer, traem o seu anunciado propsito.

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    O que pode significar, no mundo do quotidiano, se ter uma opinio sobre o que dizem os jornais? Ou ento se sentir como parte de uma qualquer nao? Ou, um se entender, com algum, a propsito de algo? Ou, ainda, acreditar que se pode ter uma mar-gem de manobra, garantida pela prpria conscincia, no interior das determinaes sociais?

    Para o sujeito imerso na sua quotidianidade, isso tudo diz respeito coeso do mundo, ideia de que o mundo tem uma ordem e est em ordem. , talvez, o pensamento do Dasein, com honestidade e lucidez, como diz Harr, em seu quotidiano. Mas esse significar s tem sentido enquanto sentido banal. Processada a analtica existencial que Heidegger opera, o que vemos no mais essa coerncia e essa integridade do ser, mas, apenas, a iluso transcendental, por meio da qual o Dasein acredita que cabe a ele, que est nele, a possibilidade de apreender o absoluto do ser que ou do qual participa (RIVIALE, 2010, p.10). O se do Dasein sua iluso de mundo e, assim, por extenso, a sua Comunicao enquanto processo, ou ato, quotidiano.

    O falatrio como experincia comunicativa e como queda

    do Dasein na sua quotidianidade

    Para compreender a dimenso comunicativa e quotidiana do Dasein, procuramos nos concentrar na noo de Gerede, de dif-cil traduo mas que evoca, de maneira forte, ideias como senso comum, opinio corrente, bate-papo e falatrio. Em lngua espa-nhola tem sido comum a traduo do termo por habladuria, que no tem equivalente em portugus, mas que ajuda a compreender a extenso do termo quando consideramos o esprito comum das duas lnguas2. Na obra de Heidegger, num sentido mais erudito, tambm h uma associao com a ideia de publicidade, ffentli-

    2 Procurando comparar as escolhas de traduo para a terminologia heidegge-riana, percebemos que, em francs, Gerede tem sido traduzido por bavardage, escolha tanto da traduo de Martineau (Authentica, 1985) como da de Vezin (GALLIMARD, 1986). Em ingls, por idle talk, presente na traduo de Mcquarrie (SCM Press, 1962) e de Stambaugh (State University of New York Press, 1996).

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    chkeit, sempre no sentido de algo que, tornado pblico, se torna permissvel a todos; sobre o que todos podem falar, dizer algo3.

    O prefixo ge- da palavra indica coletividade, conjunto, como Gebirge (cordilheira) e Geschwiste (irmos, frtria). Literalmente, indica o conjunto do que referido, a soma, o acmulo e, nesse sentido, tambm o transbordo, o excesso e, em consequn-cia, o vazio.

    Gerede evoca uma vacuidade no dizer, o excesso de sentido que leva ausncia de sentido. A vacuidade no dizer uma con-dio tpica da ffentlichkeit publicidade, no sentido de tornado pblico, sabido por todos e a partir das expresses ffnen (abrir), offenbar (suscetivel de abertura) e ffentlich (algo que est aberto a todos) (HEIDEGGER, 1976, p.126-128).

    Outra evocao possibilitada pelo termo a noo de Sicht (Heidegger, 1976, p.69-70), que traduziramos em portugus literal como vista, em portugus corriqueiro como olhadela, espia ou espiada, um conhecimento intuitivo que se produz por livre associao, por cognio. algo que se realiza no instante: o vendo, o percebendo ou melhor, o sacando, gria que, a nosso ver, explica totalmente a ideia. Cabe lembrar que, em Heidegger, Sicht um termo paralelo a Umsicht (viso perifrica, circunviso) e palavra Rcksicht, literalmente olhando para trs, mas no sentido de ter respeito por algo ou algum, levar algo ou al-gum em considerao. O Sicht se assemelha a uma iluminao (Gelichtetheit), a uma abertura para o mundo tal como ele se apresenta numa determinada conjuntura. O Sicht um processo natural do Dasein; e fundamental no seu estar no mundo. um modo pelo qual o indeterminado se substantivisa, se torna algo.

    O falatrio d, ao Dasein, uma possibilidade de viver-seu--tempo, de ser-consigo-mesmo (bei ihm selbst). a possibilidade da livre prospeco, uma liberdade perscutiva que o projeta no futuro

    3 Optamos pela expresso falatrio porque ela, a nosso ver, favorece a percepo do carter de novidade instigante, de opinio carregada de afeto, de opinio impressiva, de opinio banal e de opinio que se espalha com rapidez elementos que vemos presentes no pensamento de Heidegger a respeito do Dasein, que est em meio a outros Dasein e entes comuns do mundo quotidiano.

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    o falatrio visa o futuro. O Dasein que experimenta o falatrio um ser-no-futuro (Zuknftigsein). O Dasein que experimenta o falatrio se confunde com o tempo: ele j no est no tempo, mas o tempo. O falatrio d tempo ao Dasein: configura o presente no futuro e acomoda o passado.

    Feitas essas consideraes sobre o sentido do falatrio, po-demos perceb-lo no uso heideggeriano, o qual a tem como uma experincia do quotidiano.

    H duas formas de Comunicao em Heidegger: aquela que se d com o falar (Rede), e que consiste na voz existencial do Dasein, na sua construo ontolgica4, e aquela que habita o quotidiano e que, em nossa compreenso, diz respeito, fundamentalmente, ao falatrio. No 35 de Ser e Tempo Heidegger trata da maneira como o falar (Rede) se torna mero falatrio. Ele adverte que a expresso no pejorativa, j que sua abordagem sempre ontolgica. No est fazendo uma crtica moralizante ou uma filosofia da cultura (PASQUA, 1993, p.80). Nesse sentido, falatrio tem um sentido positivo, medida em que Significa, terminologicamente, um fenmeno positivo que constitui o modo de ser do compreender e do explicitar do Dasein quotidiano (HEIDEGGER, 1976, p.223).

    Falatrio o falar banal, dirio, o falar por falar, sem que leve, necessariamente, a uma compreenso. Esse evento diminui ou esgota a Comunicao, pois, como diz Pasqua, se os interlo-cutores entendem a mesma coisa porque eles se movem num falar-em-comum para o qual o que importa, antes de tudo, 4 Literalmente, Rede significa discurso, em portugus e assim traduzido na edio brasileira de Ser e Tempo. No obstante, essa traduo apresenta um problema, porque Heidegger no est se referindo quilo que ns entendemos por discurso ou seja, um determinado conjunto de enunciados que possuem, conscientemente ou no, vnculos intersubjetivos e ideolgicos mas sim re-flexividade no banalizada do Dasein. Para utilizar uma expresso do Heidegger tardio, podemos dizer que a palavra discurso j foi enfeudada pela metafsica tradicional, de forma que no podemos utiliz-la sem nos remetermos ao sentido corrente com que se usa o termo e que pertence, assim, ao campo do falatrio de discurso como algo previamente elaborado, que se alcana ou no. Por essa razo, seguimos a opo de Martineau de traduzir Rede, simplesmente, como o falar (le parler). Nossa intenso garantir o sentido aberto, ontolgico, com que Heidegger utiliza o termo.

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    falar (PASQUA, 1993, p.80). Nesse ato, a Comunicao cessa de comunicar.

    Pode-se deduzir que, por Comunicao, Heidegger no en-tende um falar-em-comum, ou o fato de entender a mesma coisa que os interlocutores. Sendo isso o terreno do falatrio e, por extenso, da Comunicao, no mundo na vida, no mundo do quotidiano, seno uma ideia referencial, metafsica, que diz respeito a uma condio que, efetivamente, no alcanvel seno na vida quotidiana.

    O falatrio uma experincia que se processa no Mitsein do Dasein ou seja, do estar junto desse indivduo que somos cada um de ns, humanos em nossa faculdade de indagar sobre o que somos e estamos a fazer. Mitsein, ser-com-outros, uma expres-so igualmente central para construirmos nossa leitura e , em Heidegger, a base de uma teoria da intersubjetividade. Podemos associ-lo experincia da interao social, em geral, procurando trazer a fenomenologia existencial para um campo sociolgico e, especificamente, para a dimenso comunicativa da experincia social. Enquanto experincia do Mitsein, o falatrio consiste num fenmeno comunicativo e interativo.

    O falatrio a atitude de compreender uma coisa sem apro-priao prvia do assunto. Ele tem uma dimenso negativa, re-presentada por sua banalidade, impreciso e futilidade e, tambm, uma dimenso positiva, representada pela possibilidade de que, por meio dela, o Dasein compreenda, ou compreenda melhor, os fenmenos que ocorrem ao seu redor.

    Apesar de Heidegger abordar a quotidianidade do Dasein por meio do que seriam, segundo ele, as suas trs formas caractersticas ambiguidade (Zweideutigkeit), curiosidade (Neugier) e falatrio (Gerede), pensamos que esta ltima ocupa um lugar especial na descrio do Mitsein. O falatrio nos parece a mais importante, porque corresponde a um estar-no-mundo caracterstico, enquanto que as outras duas so peculiaridades desse processo.

    Na verdade, esses trs processos so coetneos e simultneos: o falatrio se realiza por meio da ambiguidade e da curiosidade. A ambiguidade representa o fato de que o Dasein nunca pode ter

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    certeza sobre a autenticidade e sobre a veracidade do seu encontro com aquilo que encontra no dia a dia. Por aquilo se deve enten-der os entes: eventos, objetos, processos e outros Dasein. Quais desses encontros seriam genunos? E quais, dentre eles, seriam envolvidos pelo manto ambguo do falatrio do que , publi-camente, interpretado? Da mesma forma: quanto de ambiguidade no est presente na maneira como o Dasein projeta a si mesmo, no seu encontro com o mundo? afinal, a publicidade de si-mesmo tambm atravessa o falatrio, tambm publicamente interpretada.

    J a curiosidade (Neugier) representa a dificuldade que tem o Dasein de concentrar sua ateno, seu interesse, naquilo que v. O Dasein marcado pela disperso (Zerstreuung), por uma inca-pacidade de permanecer (Unverweilen) no mundo que o circunda. Heidegger utiliza um vocabulrio variado, rico de expresses, para descrever esse processo. Alm desses dois termos, bem conhecida sua caracterizao da curiosidade do Dasein como uma carncia de morada (Auf enthaltslosigkeit).

    O tema remete, claro, crtica agostiniana da tentao (tentatio) da curiosidade (curiositas) alis, j comentada por Heidegger nos seus cursos sobre a fenomenologia da religio, em 1920-21 uma concupiscentia oculorum, que Agostinho condena, sobretudo, quando o indivduo se deixa atrair por alguma das trs perversa scientia magia, mstica e teosofia que, segundo ele, podem levar a uma runa do indivduo. Tambm para Heidegger (1976, p.226-228) a curiosidade um fator que pode provocar a queda do Dasein.

    Pode-se compreender a curiosidade e a ambiguidade como os elementos de ao do falatrio; como seus impulsores. Assim, toda compreenso e toda projeo, afinal , no dia-a-dia, ambgua e se deve essa curiosidade pelo banal. O falatrio resulta da concretizao discursiva dessa ambiguidade e dessa curiosidade.

    Como diz Heidegger, o falatrio a possibilidade de a tudo compreender sem apropriao prvia da coisa (HEIDEGGER, 1976, p.224). Ou seja, se no h o que compreender, todos podem compreender. Na verdade, compreender o que o falatrio a maneira mais fcil de entender o que a queda (Verfallenheit) do

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    Dasein, o encontro do Dasein com o mundo uma ideia tambm presente em Gelven, para quem, talvez seja sob a forma do fala-trio que a metodologia presente na interpretao heideggeriana que a queda seja mais bvia (GELVEN, 1989, p.107).

    O Dasein que se atm ao falatrio se distancia cada vez mais de seus vnculos ontolgicos com o mundo. Ele se desenraza. um fenmeno presente no humano, em geral, mas que encontra novas foras, novas dinamizaes, com os processos de tecnologizao da experincia social e particularmente com a tecnologizao da experincia comunicativa.

    A consequncia do falatrio sobre a existencialidade do Da-sein que, por meio dele, o Dasein se esconde, se perde (verloren) na existncia coletiva do se (das Man): perdendo-se no domnio pblico do se e no seu falatrio, o Dasein deixa de entender, en-tendendo o se-mesmo do seu prprio si-mesmo (HEIDEGGER, 1976, p.361). A queda do Dasein no mundo quotidiano lhe impe, pois esse mundo do entre-dito e da disperso do si-mesmo, que o mundo comum do se.

    Sobre a banalidade da Comunicao como fenmeno

    O mundo do quotidiano, segundo Heidegger, um mundo de esquecimento do sentido do Ser e de inautenticidade para esse mesmo Ser. Submerso num ambiente banal de disperso e de curiosidades mltiplas, envolto num crescendo polifnico de vozes e discursos que no se completam, esse Ser, que somos ns quando pensamos no que significa o Ser que somos e que fomos, simplesmente, sem mais explicaes, jogados a, nesse mundo, se abriga nele prprio como quem se protege do vazio e do silncio que levam questo sobre o sentido do Ser.

    Sim, estamos falando do nosso mundo. O mundo do quoti-diano sempre foi o nosso mundo. A tcnica e, com ela, a midiati-zao da realidade, o banalizam, o quotidianizam, ainda mais. A Comunicao, enquanto fenmeno da linguagem, pode at abrir clareiras para o Ser recuperar sua autenticidade, mas, em geral, se deixa levar pela tentao fcil da repetio vazia da fala. A Comu-

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    nicao midiatizada, podemos deduzir, contribui para intensificar ainda mais essa experincia de disperso, curiosidade e de estar-se envolto na polifonia de vozes que povoa o mundo, esse falatrio inconstante que d ao Ser toda a sua quotidianidade.

    Mas ateno: esse mundo quotidiano no deve ser avaliado, necessariamente, de maneira negativa. Imersos na grande meta-fsica ocidental, temos tendncia a perceber esse mundo, banal e inautntico, como um mundo imperfeito, irreal e falso. Heidegger (1976, p.222) alerta que no assim que ele deve ser visto. Ele , simplesmente, o mundo no qual somos, no qual estamos.

    A vida quotidiana a vida do Dasein na experincia de sua queda (Verfallenheit). E queda, de acordo com Heidegger, a con-dio existencial do Dasein que vai de encontro ao mundo e ao convvio seguro com os outros. o mundo social dos homens. o mundo fundamental, o mundo comum, o mundo no qual habitamos.

    H uma conexo, uma mtua implicao, entre falatrio, curiosidade e equvoco. O filsofo procura interpretar, ontologi-camente, essa ligao, dizendo que ela exprime, na prtica, um modo de ser fundamental da existncia: justamente, a queda. Mas, ateno, para que se compreenda o que Heidegger quer dizer por queda preciso seguir o raciocnio ontolgico e seguir sem atribuir a essa queda um valor negativo. preciso v-la somente como uma dimenso existencial do ser-no-mundo: a dimenso prpria do Ser em sua quotidianidade5.

    Evidentemente h uma tendncia cultural, derivada da prpria metafsica, a compreender-se inautntico como algo negativo e autntico como algo positivo. Da mesma maneira, a queda, asso-ciada ao inautntico, no , em si mesma, uma condio existen-cial negativa: a queda do Ser no mundo, na sua quotidianidade 5 A noo de queda resulta de uma espcie de metamorfose daquilo que Heidegger chamava, em sua obra anterior a Ser e Tempo, de ruinncia (Ruinanz) (GREISCH 1994, p.226). Em Ser e Tempo, o tema introduzido no 9, onde Heidegger fala sobre a inautenticidade (Uneigentlichkeit). A queda (Verfallenheit) uma variao desses conceitos. Greisch define a relao entre a queda e a inautenticidade di-zendo que esta um estado, enquanto a primeira um movimento, por meio do qual o Dasein volta as costas para si mesmo e se abandona ao mundo (GREISCH 1994, p.226).

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    repleta de impresses vagas que, fundamentalmente, resultam num distanciamento do Ser em relao a suas questes ontolgi-cas. Heidegger (1976, p.231-232) adverte, enfaticamente, que o termo queda no representa uma apreciao negativa (negative Bewertung), mas sim o envolvimento do Dasein com o modo de Ser comum do mundo, com sua pouca disposio em indagar a respeito do Ser ou melhor, formular as questes referentes ao Ser.

    Esse equvoco possui, alis, similaridade com outros eventuais equvocos presentes na cultura. Por exemplo, a noo heide-ggeriana de queda no deve ser entendida, tal como o , pela teologia em geral, como status corruptionis, tal como definido na doutrina do pecado original, na qual a palavra queda tem um lugar destacado6. Tambm no se deve compreender queda tal como novamente a teologia a refere enquanto propriedade ontolgica m e deplorvel (HEIDEGGER, 1976, p.232), que a evoluo da humanidade deixa para trs. E, por fim, no deve, ainda, entend-la enquanto a viso noturna(Nachtansicht) do Dasein: ou seja, uma percepo do Dasein como algo andino, advertncia dirigida por Heidegger ao irracionalismo.

    A queda , assim, um antema do fenmeno do existir. O termo existir provm de ek-sistire, no qual o prefixo grego ek (ou ex) evoca a ideia de projetar para fora. Nesse sentido, o ser ek-siste, ou seja, sai de sua condio mais imediata, que a da sua mate-rialidade como ente. Em outras palavras, reflete sobre o que , o que remete compreenso de que o pertencimento do ente ao ser equivale a uma despossesso de si. Existir significa, assim, sair do ente, elaborar a questo sobre o sentido de ser. uma propriedade

    6 A ideia crist de pecado original supe uma relao entre ser e ente concebidos como criador e criatura. No disso que Heidegger fala. Para ele, a queda se d exclusivamente nos limites do Dasein, significando que ele se observa ou so enquanto ser. Como observa Pasqua (1983, p. 85), a queda um movimento que ocorre dentro do Dasein ele-mesmo. Para Heidegger, se a palavra pecado tem um sentido, esse sentido est no fato de que pecado um sentido qualquer que, como qualquer outro, afeta o Dasein: no tica ou moralmente, e sim, apenas, ontologi-camente. Uma perceo associvel compreenso do mal maneira dos gnsticos.

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    do Dasein: por meio da reflexo sobre a finitude do seu corpo, do seu ente, existir significa se distanciar de sua condio imediata.

    No quotidiano, no mundo, o Dasein ignora essa relao ontolgica. Evita refletir sobre sua condio de inerente finitude e, assim, transforma a existncia num simples estar no mundo. No quotidiano, ser e existncia se confundem, como se fossem a mesma coisa. , pois, preciso distinguir entre o ente intramun-dano como seja e o ente que tem um ser. nesse sentido que, se existir no coincide, necessariamente, com o estar presente, essa coincidncia se torna imperativa na vida quotidiana. Alm disso, essa coincidncia tem um nome: queda, a queda do sentido do ser no mundo, que a condio existencial presente no falatrio, na curiosidade e no equvoco.

    Ela tambm demarca a diferena entre o viver autntico e o viver inautntico.

    No existir autntico o ser tem conscincia da questo on-tolgica, no existir inautntico no. Em consequncia, o existir inautntico caracterizado por um equvoco: o de pensar que Ser e existncia so coincidentes. Existir autenticamente saber disso. Existir inautenticamente ignor-lo, procurar um paliativo para a dor da existncia, imergir no anonimato do se o vive-se, come-se, gosta-se no lugar de vivo, como, gosto ou seja, des-tacar o aspecto impessoal do Dasein.

    Porm, resta perceber voltemos a esse ponto, que funda-mental que no por ser inautntico que o ser ek-siste menos ou que ele no ek-siste. O processo da ek-sistncia ocorre indepen-dentemente dela ser autntica ou inautntica. Tal como dizamos acima, preciso superar a tendncia metafsica de compreender-se inautntico, ou o fechamento do ser, como algo necessariamente negativo e o autntico, ou a abertura do ser, como algo necessa-riamente positivo.

    Percebida ontologicamente, sem que lhe imputemos valores, a queda, ou o fechamento do ser em uma condio de inautenti-cidade , tambm, portanto, uma dimenso existencial do Dasein. a situao e a condio da imerso do ser na vida quotidiana. E, cabe aqui, uma observao: como o Dasein j est jogado no

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    mundo, ou seja, j tem na sua quotidianidade a sua condio existencial fundamental, o ideal no perceber a queda como uma queda no sentido que a palavra evoca, na maioria das lnguas, enquanto cada ou tombamento, mas sim como uma despos-sesso. A queda o que se produz no interior do Dasein. No exatamente o ser que cai no mundo, pois o Dasein j estava no mundo, medida em que um ente mundano, mas o ser que se percebe sem ser e que, simplesmente, submerge nesse conforto da impessoalidade.

    A queda, portanto, se d em relao a si e ao mundo. Os sintomas do falatrio so os mesmos dessa queda. E, em conse-quncia, podemos dizer que a Comunicao, anloga ao falatrio, conforma uma experincia de queda, do Ser, na inautenticidade. A Comunicao uma experincia que se torna possvel no fala-trio: O falar, quando falado, a Comunicao. A tendncia ontolgica da Comunicao fazer os que escutam participarem do ser que aberto, que referido, por meio do falar que fala, do falar que est falando (HEIDEGGER, 1976, p.223).

    Esse falar, quando falado o falatrio. o falar presente no mundo da vida. Em sendo falatrio, a Comunicao, neces-sariamente, no partilha uma relao primria do ser com o ente sobre o qual est falando. Ela se atm, necessariamente, quilo que est sendo dito:

    A comunicao no partilha a relao primria do ser com o ente sobre o qual ele est falando, o ser-com-outros se envolve em um falar-como--outros e em uma preocupao com aquilo que est sendo falado. Nessa situao, tudo o que importa aquilo que est sendo falado. O que se diz, o dito e a dico, se empenham, nessa situao, como os garantidores da autenticidade e da adequao (da objetividade) do falar e da compreenso (HEIDEGGER, 1976, p. 223-224).

    No falatrio, portanto, a garantia da autenticidade, da adequa-o e da objetividade daquilo que dito, no dependem daquilo que seria autntico, adequado ou objetivo em relao ao ser do ente referido, mas, exclusivamente, do dizer, do dizendo, do dito, da dico. Segundo Heidegger, o falar do falatrio perdeu ou

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    jamais encontrou sua referncia original com o ente sobre o qual est falando:

    E como o falar perdeu, ou jamais encontrou, sua referncia original com o ente sobre o qual est falando, ele no se comunica possuindo uma referncia ou uma apropriao originria desse ente, contentando-se em repetir e em passar adiante a fala. O falatrio, dessa maneira, se estende a crculos mais largos, e assim se reveste de um carter autoritrio. A coisa assim porque assim se a diz, assim ela dita (HEIDEGGER, 1976, p.224).

    E isso tem, por consequncia, a sujeio, do mundo quotidia-no, a esferas de autoridade que, sem sentido e sem origem com-preensvel, se afirmam como sendo toda a realidade: Die Sache ist so, weil mane es sagt, a coisa assim porque assim dita.

    Compreender a Comunicao sem as amarras metafsicas que so de seu uso habital e que fundam sua epistemologia, como conhecimento reflexivo resulta em perceber a Comunicao, por-tanto, no enquanto eficincia e eficcia de uma interao, de um discurso, de um dito, dizendo ou dico, mas sim, exclusivamente, como um no-dizer; como a interao, direta ou mediada, e, em mediada, at mesmo mediatizada, de indivduos, na comutao do banal e na construo coletiva da superficialidade e do no-dizer.

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    FENOMENOLOGIA DA COMUNICAO EM SUA QUOTIDIANIDADE

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    Fbio Fonseca de CastroDoutor em sociologia pela Universit de Paris V (Sorbonne Descartes). Mestre em Antropologia pela Universit de Paris III (Sorbonne-Nouvelle). Mestre em Comunicao pela Universidade de Braslia. Ps-doutorando pela Universit de Montral. Foi Secretrio de Estado de Comunicao no Governo do Par. autor dos ensaios A Cidade Sebastiana. Era da borracha, memria e melancolia numa capital da periferia da modernidade (Labor, 2010), Entre o Mito e a Frontei-ra. Estudo sobre a figurao da Amaznia na produo artstica de Belm (Labor, 2011) e Comunicao, Poder e Democracia (Labor, 2012). Atua na investigao das relaes entre cultura e Comunicao na experincia social de populaes amaznicas, com nfase nos processos sociais intersubjetivos e com apoio das sociologias fenomenolgicas e hermenuticas e da ethnometodologia.

    Recebido: 13.08.2013Aceito: 15.11.2013