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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA FERNANDA RUSCHEL ROBINSON OS POVOS INDÍGENAS E AS FRONTEIRAS NACIONAIS: A questão da manutenção da integridade da Nação Guarani São José 2004

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

FERNANDA RUSCHEL ROBINSON

OS POVOS INDÍGENAS E AS FRONTEIRAS NACIONAIS: A questão da manutenção da integridade da Nação Guarani

São José 2004

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FERNANDA RUSCHEL ROBINSON

OS POVOS INDÍGENAS E AS FRONTEIRAS NACIONAIS: A questão da manutenção da integridade da Nação Guarani

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Relações Internacionais na Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Educação São José.

Orientadora: Prof. Msc. Ana Paula Rupp Hamms Sell

São José

2004

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“Ymã güiwé mã kowaé ywy ré opambaé gui roikó porã’í. Nhanderu omoetxankã mã tekoa

pyaú’í rã ramo mã roguatá memé romopuã awã tekoa pyaú’í. Ywy mã pãwe mbaé rakaé

djipoi rakaé ikorá, djipoi rakaé ombodjaoá, djipoi rakaé idja raminguá nanhainkoteweí rakaé

nhaporandu mawaé wepé. Djipoi waé kue ywy mbodjaoá. Tekoa mã ikuaí rakaé djawy’á í

hawã nhandekuaí porã’í hawã”.

(Sobre nosso território sempre vivemos livremente. Sempre que Deus nos revelava uma nova

terra nos mudávamos e fazíamos novas aldeias. A terra era de todos, não tinha cerca, não

tinha divisa e não tinha dono. Não precisávamos pedir licença para ninguém. Não existiam

fronteiras entre estados e países. Onde existia um tekoha era o lugar para viver bem).

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Agradeço muito àqueles que

me ajudaram a realizar este trabalho.

A Jorge e Silvana, meus pais, pelo apoio e motivação,

em especial a minha mãe, pela paciência

em me acompanhar nos momentos finais.

A Francesco, meu namorado,

pelo despertar da curiosidade e ricas observações.

À Professora Ana Paula, minha orientadora,

pela ajuda constante, dedicação e amizade.

A Clovis Brigenthi, pela cooperação e companhia nas

visitas às comunidades Guarani e acesso a informações.

Aos Guarani, pela amigável receptividade.

A Deus, por poder compartilhar

esta preciosa experiência com todos vocês.

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SUMÁRIO

RESUMO...................................................................................................................................7

ABSTRACT ...............................................................................................................................8

LISTA DE ABREVIATURAS .................................................................................................9

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................10

CAPÍTULO I - RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS :

PARADIGMAS E CONCEITOS ..........................................................................................14

1.1 Paradigmas de Relações Internacionais: a sociedade global e seus novos atores..............14

1.2 Território, Territorialidade e Fronteira...............................................................................18

1.3 Estado e Nação...................................................................................................................22

1.4 Etnia e Macroetnia..............................................................................................................24

CAPÍTULO II - A QUESTÃO INDÍGENA .........................................................................29

2.1 O que é ser Índio?...............................................................................................................29

2.2 Integração sem Assimilação................................................................................................31

2.3 A Questão Indígena no Mundo...........................................................................................33

2.4 América Latina: O Contato entre Colonizadores e Habitantes do Continente Americano.36

2.5 A Questão Indígena no Brasil.............................................................................................45

2.5.1 O Índio: Cidadão Brasileiro?...........................................................................................46

2.5.2 A FUNAI..........................................................................................................................48

2.6 A Questão Indígena no Paraguai.........................................................................................49

2.7 A Questão Indígena na Argentina.......................................................................................50

CAPÍTULO III - O GUARANI: UM POVO DIVIDIDO POR FRON TEIRAS DE

ESTADOS NACIONAIS........................................................................................................52

3.1 Os Guarani Antes da Invasão Européia..............................................................................54

3.2 Os Subgrupos Guarani e a Preservação da Identidade........................................................56

3.3 A Estrutura Social Guarani.................................................................................................58

3.4 A Economia Guarani...........................................................................................................61

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3.5 A Importância da Terra para o Guarani..............................................................................63

CAPÍTULO IV - A PREOCUPAÇÃO COM A MANUTENÇÃO DA INT EGRIDADE

DAS NAÇÕES INDÍGENAS NO MUNDO..........................................................................72

4.1 A ONU e a Preocupação com os Povos Indígenas.............................................................74

4.1.1 A Convenção 169 da OIT................................................................................................75

4.1.2 A Declaração de Organizações, Povos e Nações Indígenas e o Projeto de Declaração dos

Direitos dos Povos Indígenas....................................................................................................78

4.2 A Luta Pela Conservação da Autonomia............................................................................82

4.2.1 Autodeterminação e participação política........................................................................83

4.2.2 O Livre Trânsito por Territórios Ancestrais....................................................................85

4.3 Ameaça à Soberania?..........................................................................................................88

4.4 A União da Nação Guarani.................................................................................................89

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................91

REFERÊNCIAS......................................................................................................................95

ANEXOS..................................................................................................................................99

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RESUMO

O povo Guarani, foco desta monografia, constitui um dos grupos que originalmente habitam o

continente americano. Com a chegada dos colonizadores e a posterior formação dos Estados

nacionais, este povo teve seu modelo de nação interrompido. Sua nação encontra-se

atualmente dividida pelas fronteiras nacionais do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e

Bolívia. O objetivo da presente pesquisa é verificar de que forma as fronteiras nacionais

interferem na manutenção da integridade da nação Guarani. Para tanto, é analisada a origem

do conflito entre comunidades indígenas e sociedades nacionais, fazendo um levantamento do

problema das nações indígenas no mundo, na América Latina e em alguns países, em especial

no Brasil. São apresentados os aspectos fundamentais da cultura Guarani, que possibilitam o

entendimento da sua organização social, tão diferente das sociedades nacionais em que estão

inseridos. Por último, é mostrada a ativa participação dos povos indígenas em fóruns

internacionais como forma de exigir seus direitos, além da experiência de algumas nações

indígenas que lutam para manter sua integridade.

PALAVRAS CHAVE: POVOS INDÍGENAS; CULTURA E ASSIMILA ÇÃO;

FRONTEIRAS NACIONAIS.

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ABSTRACT

The Guarani people, focus of this paper, is one of the groups who originally inhabited the

American continent. With the arrival of settlers and the subsequent formation of the national

states, these people had their model of nation interrupted. Their nation is nowadays divided by

the national borders of Brazil, Argentina, Uruguay, Paraguay and Bolivia. The present

research aims at verifying in which ways the national borders interfere in the maintenance of

the integrity of the Guarani nation. Thus, the origin of the conflict between native

communities and national societies is analyzed, and a survey of the problem of the indigenous

nations in the world, in Latin America and in some countries, mainly in Brazil, is made. The

fundamental aspects of the Guarani culture are presented, in order to facilitate understanding

of their social organization, so different from the national societies in which they are inserted.

Lastly, the active participation of native peoples in international forums as a means of

demanding their rights, as well as the experience of some Indian nations who fight to maintain

their integrity, are presented.

KEY WORDS: INDEGENOUS PEOPLES; CULTURE AND ASSIMILA TION;

NATIONAL BORDERS.

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LISTA DE ABREVIATURAS

EUA – Estados Unidos da América

FIDA - Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola

FUNAI – Fundação Nacional do índio

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

OEA – Organização dos Estados Americanos

OIT – Organização Internacional do Trabalho

OMS – Organização Mundial de Saúde

ONG – Organização Não Governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

SPI – Sistema de Proteção ao Índio

TI – Território Indígena

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância

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INTRODUÇÃO

É antigo o problema que envolve os povos indígenas e as sociedades nacionais em que

estão inseridos; na verdade, conflitos vêm acontecendo há mais de quinhentos anos, desde os

primeiros contatos do homem europeu com a população nativa da América. No entanto, o

debate acerca da temática indígena tem aumentado nos últimos anos, chegando até as

plenárias internacionais.

O presente trabalho tem como objeto de estudo o povo guarani, principalmente os que

habitam em territórios recortados pelas fronteiras dos Estados latino-americanos Brasil,

Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia. A questão que pretendemos examinar com relação a

este objeto diz respeito às dificuldades que as fronteiras nacionais representam para a coesão

do povo guarani e a conservação de sua cultura. A escolha deste tema aconteceu após termos

mantido contato com uma comunidade guarani na fronteira do Brasil com a Argentina, fato

que despertou o interesse em estudar a situação da preservação da cultura dos povos nativos

do continente americano, assim como compreender os conflitos gerados pelo contato

interétnico.

No curso de Relações Internacionais faz-se pouca referência aos habitantes originais

do nosso continente, apesar de ser este um tema importantíssimo às Relações Internacionais,

que envolve vários países e organizações internacionais e ultrapassa as fronteiras dos

territórios nacionais. Às vésperas de concluir o “Decênio Internacional das Populações

Indígenas do Mundo”, declarado pela Assembléia Geral da ONU em 1995, consideramos

propício discutir questões que ficaram dormentes ao longo de vários séculos, em que os

chamados “índios” foram submetidos à vontade e necessidades dos brancos. Novos

paradigmas não só aceitam, como defendem a importância da multiplicidade de atores nas

Relações Internacionais, que não se limitam à atuação exclusiva dos Estados nacionais.

A população indígena diminui drasticamente na América Latina, sendo vítima de um

extermínio que ainda perdurava no início do século passado. Apesar das várias formas de

extermínio de que foram e continuam sendo alvo, os índios sobreviveram e hoje mantém uma

certa estabilidade no que diz respeito ao número de sua população, além de contribuir

enormemente na formação das culturas e raças do nosso continente. Mesmo tendo perdido sua

liberdade, os índios continuam sendo índios, conservando a essência de sua cultura, que difere

enormemente da nossa, em sua maneira como encaram o mundo e a vida.

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As populações originais habitavam nosso continente muito antes da formação dos

Estados nacionais, e tiveram a continuidade do seu desenvolvimento interrompida com a

chegada dos invasores europeus. Este estudo tem o intuito de verificar de que forma as

fronteiras nacionais interferem na manutenção da integridade da cultura do Guarani.

Primeiramente, buscamos o entendimento de alguns paradigmas de Relações Internacionais e

conceitos que consideramos essenciais para a discussão do tema. Com estes conceitos,

procuramos encontrar as primeiras ferramentas necessárias para verificar a origem da

contradição existente no relacionamento entre comunidade e sociedade, tomando os Guarani

como comunidade indígena, e os Estados nacionais como organização societária. Esta

contradição remonta à época dos primeiros contatos entre as comunidades indígenas e os não-

índios, quando chegaram os colonizadores europeus ao continente que chamariam de

América. Para atualizar e ampliar o entendimento a respeito do povo Guarani, levantamos

alguns aspectos fundamentais da sua cultura, tais como: a relação que este povo tem com a

terra e a forma como essa etnia constrói suas relações familiares, econômicas, políticas e

religiosas. Compilamos também informações a respeito da política indigenista em países da

América Latina, em especial no Brasil, além das alternativas que vêm sendo propostas no

âmbito internacional e em organismos como a ONU. Também foram consideradas as

experiências de outras nações indígenas do continente americano na luta pela manutenção de

suas culturas.

Estes dados foram de fundamental importância para o desenvolvimento do presente

estudo, sendo que na medida em que avançavam as investigações sobre as políticas

indigenistas dos países e as reivindicações dos povos indígenas, percebia-se a complexidade

do tema e a divergência de interesses. Neste contexto, foi possível verificar a dificuldade de

implementação de propostas realmente favoráveis à causa indígena. Ao mesmo tempo, nações

indígenas originárias de várias partes do mundo tentam unir forças e buscar nos organismos

internacionais a devida atenção às suas reivindicações. Os povos nativos demonstram, assim,

o seu posicionamento político no plano internacional, e buscam nos princípios e instrumentos

legislativos das sociedades modernas a legitimidade para o respeito aos seus direitos.

O presente trabalho, de índole introdutória, usa como método de investigação a

pesquisa de caráter qualitativo, também é descritiva e tem caráter exploratório. As

informações utilizadas foram obtidas principalmente em fontes secundárias, tais como

documentos, livros, revistas, periódicos, monografias, dissertações e em meio eletrônico.

Também foram coletadas informações junto a comunidades Guarani, apesar da escassez de

tempo e recursos, o que não possibilitou um maior aprofundamento neste sentido. Ao longo

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do trabalho, entre junho e outubro de 2004, visitamos as seguintes comunidades Guarani:

Fortín Mbororé, em Puerto Iguazú, na província de Misiones, na Argentina, que possui 700

habitantes que vivem em uma área de 25 hectares; Marangatu, em Imaruí, no estado de Santa

Catarina, que possui 104 habitantes que vivem em uma área de 80 hectares; Morro dos

Cavalos, em Palhoça, Santa Catarina, cuja população é de 130 pessoas; e Cambirela, em

Palhoça, que compreende uma área de dois hectares e onde vivem cinco famílias, ou seja,

cerca de 30 pessoas. Visitamos também uma comunidade Xokleng, localizada em José

Boiteux, no estado de Santa Catarina, e na qual vivem algumas famílias Guarani. Durante as

visitas foram feitos alguns debates e entrevistas informais, nos quais pudemos entender

aspectos importantes da cultura Guarani e as dificuldades enfrentadas por seus integrantes, em

especial no que diz respeito à manutenção de sua nação em detrimento dos Estados em que

estão fixados.

Estruturamos a presente monografia em quatro capítulos. No primeiro deles fazemos

um breve estudo dos principais paradigmas para interpretação das relações internacionais e

seus fenômenos, explicando como o cenário internacional necessita de modelos que defendam

a pluralidade de atores nas Relações Internacionais. Explicamos também alguns conceitos

importantes para a discussão do tema, como: território, territorialidade e fronteira; Estado e

nação; e etnia e macroetnia.

Em um segundo capítulo, abordamos a questão indígena como um fenômeno mundial,

cujas características, apesar das particularidades de cada situação, em muito se assemelham.

Assim, sua temática será dividida em recortes que enfocam o problema das nações indígenas

no mundo, na América Latina, no Brasil, Paraguai e Argentina.

O terceiro capítulo traz os aspectos fundamentais da cultura Guarani. Com isso,

mostramos que este povo possui uma identidade própria, e por isso é Guarani antes que

brasileiro, paraguaio, argentino, uruguaio ou boliviano. Além disso, mostramos algumas

dificuldades ocasionadas pela imposição das fronteiras dos Estados nacionais e o contato com

suas respectivas sociedades.

No quarto e último capítulo, contamos como os povos indígenas aprenderam a fazer

uso de recursos típicos das sociedades modernas, como os dispositivos legais, para tentar, de

alguma maneira, melhorar sua situação. Através da maior participação política em fóruns eles

têm conseguido fazer com que organizações internacionais como a ONU atentem aos seus

direitos. Também mostramos o êxito de alguns povos na conquista de ferramentas que

permitem preservar a integridade de suas nações, como o direito à autonomia, que

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compreende autogoverno, reconhecimento do seu direito consuetudinário, maior participação

política nas esferas nacional e internacional, e livre trânsito pelas fronteiras.

Hoje em dia, muitos povos indígenas estão lutando para permanecer em suas terras e

conservar o direito a seus recursos naturais. Muitos foram expulsos de suas terras e proibidos

de utilizar seus idiomas e estilos de vida tradicionais. Os Guarani seguem resistindo e lutam

por medidas que possibilitem a manutenção da integridade de sua nação. Dentro dessa

perspectiva, acreditamos que a importância desta monografia não é apenas acadêmica, pois

que também tem como intuito ser relevante para o futuro das próximas gerações indígenas,

que ainda são marginalizadas nas esferas política e econômica, além da acadêmica.

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1 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS:

PARADIGMAS E CONCEITOS

A questão indígena vem ganhando reconhecimento no mundo e nas relações

internacionais. A realidade atual é de um mundo globalizado, onde as sociedades mantêm

fronteiras porosas, são atravessadas por múltiplos processos de diásporas e operam uma

revalorização de identidades e saberes locais. As decisões quanto ao destino dos povos

indígenas não podem mais ser apenas referidas aos Estados-nacionais, descontínuos e

soberanos, definidos isoladamente através de legislações e políticas específicas, remetidas tão

somente às ideologias e interesses nacionais. Nos últimos cinqüenta anos surgiu e consolidou-

se um corpo de doutrinas e concepções jurídicas sobre os direitos das populações aborígines e

tribais, ratificados em convenções e foros internacionais. (OLIVEIRA, 2000, p. 127).

Assim, as perspectivas de futuro dos povos indígenas são cada vez mais afetadas por

projetos cuja elaboração e decisão não se dá apenas no âmbito interno de cada país, mas que

seguem igualmente um conjunto de normas, convenções e diretrizes definidas em foros

internacionais e em agências multilaterais. Além disso, assuntos dessa natureza são expostos

amplamente nos meios de comunicação de massa e é crescente a pressão da opinião pública.

Desta forma, no primeiro capítulo vamos relacionar a problemática proposta para este

trabalho com alguns paradigmas de relações internacionais. Não obstante, o assunto que nos

propomos a desenvolver vai além do debate sobre estes paradigmas. Neste sentido, é também

necessário o entendimento de conceitos como território, nação e etnia para melhor

compreendermos os conflitos gerados a partir da demarcação de fronteiras no espaço habitado

pelo povo Guarani.

1.4 PARADIGMAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A SOCIEDADE GLOBAL

E SEUS NOVOS ATORES

Não é de agora a preocupação com os problemas sociais no âmbito das relações

internacionais, mas a questão das minorias étnicas tornou-se cada vez mais relevante na

evolução do cenário internacional. Os próprios paradigmas de Relações Internacionais

evoluíram nesse sentido, incluindo na agenda internacional temas que antes faziam parte do

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debate interno dos países. Isto se deve em grande parte à complexidade dos problemas que

enfrentam as sociedades. Conforme Oliveira (2002, p. 85), os paradigmas para interpretação

das Relações Internacionais evoluíram ao longo dos anos no sentido de dar maior abrangência

aos assuntos tratados no âmbito internacional e aos atores envolvidos neste processo. A

autora cita alguns modelos teóricos importantes, entre eles o realista, que reconhece como ator

internacional apenas os Estados, despidos das paixões de seus governantes ou pressões de

atores não-governamentais, pois para este modelo somente os Estados têm relevância no

cenário internacional.

Outro modelo citado pela autora é o da escola dependentista que, ao contrário do

realista, já reconhece outros importantes atores do sistema, como as organizações

internacionais, as organizações não-governamentais, as empresas transnacionais e os

movimentos de libertação nacional, entre outros, além de considerar não existir diferença

entre a esfera estatal e internacional, assumindo “posição marxista de que o Estado é somente

uma superestrutura e que os atores reais são as classes e os grupos sócio-econômicos, se

firmando também o papel decisivo do Estado nas relações de exploração e dominação que

caracterizam o sistema”. (ARENAL apud OLIVEIRA, 2002, p.102).

Juntamente com o modelo dependentista, surge o modelo interdependentista, que

obriga à abertura estatal. Neste sentido cita Oliveira:

Ao abrir-se, o Estado enfraquece mais e mais os conceitos de fronteira, nacionalidade e soberania, fazendo desaparecer a tradicional distinção entre o campo interno e internacional, restringindo a margem de sua autonomia, não mais explicada em termos diplomático-militares, exigindo, em conseqüência, novo modelo de interpretação e análise dessa realidade internacional, onde se vem firmando – presentemente – uma visão holística dos fenômenos internacionais (ARENAL apud OLIVEIRA, 2002, p. 131).

O critério do problema de estudo da interdependência introduz nova agenda de

investigação junto às Relações Internacionais, tendo destaque, entre outros, problemas

ecológicos, temas culturais, direitos humanos e direitos humanitários internacionais. É

justamente nesta época que os problemas indígenas começam a ter maior relevância no

cenário internacional.

Não satisfeitos com as políticas indigenistas dos Estados nacionais em que estão

inseridos, lideranças indígenas passam para a ação política e recorrem a organismos

internacionais como a ONU, OEA e OIT, exigindo soluções para os seus problemas. Estes

organismos, utilizando argumentos fundamentados nos direitos humanos internacionais, têm

se esforçado no sentido de buscar alternativas para solucionar alguns desses problemas. Entre

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as alternativas, está a promoção de fóruns permanentes de encontros e debates a respeito dos

povos originários, com o intuito de divulgar seus problemas e de sensibilizar a comunidade

internacional. Nos últimos anos, importantes avanços foram obtidos neste sentido, como

veremos mais adiante.

Atualmente, é clara a pluralidade de atores internacionais que compõe a sociedade

internacional. É consenso entre os estudiosos apontar os Estados, as organizações

internacionais, as organizações não-governamentais, grupos particulares, empresas

transnacionais, Igreja, sindicatos, partidos políticos e os indivíduos como seus protagonistas.

Oliveira conclui que:

ademais do tradicional ator internacional – Estado soberano – com as sucessivas mudanças e fragmentações operadas no cenário mundial, somado o desenvolvimento do paradigma da interdependência, consolidado nos anos setenta, acentuou-se o surgimento de um número cada vez mais heterogêneo e ampliado de protagonistas, de natureza tão diversificada como aqueles de seus objetivos, entre eles políticos, econômicos, culturais, tecnológicos, etc. (2002, p. 158).

Segundo a autora, o dinâmico processo de expansão geográfica das sociedades

internacionais motivou conflitos de poder entre as unidades, até então isoladas entre si, e

mudanças no âmbito dos atores internacionais, resultando ajustes e conexões entre as

sociedades internacionais, com distintos graus de evolução econômica, política e cultural.

Algumas dessas mudanças foram tão profundas e radicais que desintegraram comunidades

multisseculares em função da emergência de novas sociedades internacionais. Todavia, a

partir do momento em que a sociedade internacional atingir dimensões planetárias amplas,

começará a enfrentar nova problemática: a limitação objetiva de sua existência espacial,

marcada pela demanda das necessidades de seus povos e a escassez de recursos disponíveis

no planeta, comprometida com a utilização inadequada do meio ambiente, entre outros sérios

problemas. A preocupação com estes temas já é visível no cenário internacional e as

comunidades indígenas têm sido fonte de inspiração para solucionar problemas ambientais e

de escassez de recursos.

Numa tentativa de cooperação entre as sociedades nacionais e as comunidades

indígenas, buscam-se novas maneiras de promover o desenvolvimento econômico e de gerar

tecnologias menos agressivas ao meio ambiente por meio da troca de experiências e por meio

da promoção do desenvolvimento sustentável. Essa idéia surgiu da observação dos usos e

costumes dos povos originários, que demonstraram sua familiaridade e adaptabilidade ao

meio ambiente que ocupam. A partir dessa adaptação milenar foram desenvolvidas técnicas

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que podem ser divulgadas, assimiladas e utilizadas na solução de problemas que a sociedade

internacional esteja enfrentando.

António José Fernandes (1998) explica o Paradigma da Comunidade Universal, o qual

defende que a comunidade internacional não se limita à coexistência de sociedades

politicamente organizadas, mas comporta uma pluralidade de atores sub-estatais, estatais,

transnacionais e supranacionais. Segundo ele, a comunidade universal é formada por homens,

os quais, antes da constituição de sociedades politicamente organizadas, já desfrutavam do

direito de se deslocar de uns lugares para outros, de se fixar e permanecer em determinados

espaços geográficos e de estabelecer entre si relações de cooperação e de reciprocidade com

vistas a satisfazer os seus anseios e aspirações.

Os homens são pré-existentes aos Estados, detendo e conservando direitos e prerrogativas fundamentais, que nenhum poder político instituído, nem mesmo aquele a que estão sujeitos, lhes pode tirar; a comunidade universal assenta numa visão universalista do homem e do gênero humano; e as relações internacionais consubstanciam-se no conjunto de relações políticas, ideológicas, econômicas, sociais e culturais, estabelecidas entre os homens e implementadas pelos homens, para lá das fronteiras e além das diplomacias. (FERNANDES,1998, p.122).

Esta visão da comunidade universal foi compartilhada por diversos autores ao longo

dos séculos, que exprimiram uma visão universalista do homem e serviram de base ao

desenvolvimento das teorias do universalismo e do transnacionalismo das relações

internacionais, as quais atribuem importância relevante aos elementos sociais e culturais.

Ainda neste sentido, Octavio Ianni fala sobre o contrato social, do qual fazem parte os

Estados nacionais, as organizações multilaterais, as empresas nacionais e também as

coletividades internas de cada nação, compreendendo grupos, etnias, minorias, classes,

movimentos sociais, partidos políticos, correntes de opinião pública. Para ele, parte

fundamental do contrato social

pode ser o indivíduo, visto como ser social, momento fundamental da vida em sociedade, membro do povo, tomado como coletividade de cidadãos; ou da população tomada como coleção de súditos, estrangeiros, desclassificados. Se pensamos na emergência da sociedade global, são outros, novos ou recriados, os atores, agentes, pessoas físicas e jurídicas inseridos em outros, novos ou recriados, laços de dependência, tensão, antagonismo e integração. (IANNI, 1999, p. 109).

A multiplicidade de atores internacionais e a complexidade de suas relações e

desmembramentos culminaram na formulação de modelos teóricos de reflexão interpretativa

dessa realidade junto à sociedade internacional. Estes modelos têm em comum o fato de

concentrar-se na unidade política da sociedade internacional, onde o Estado apresenta-se cada

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vez mais inadequado para satisfazer as necessidades humanas, as quais sobrepassam as

fronteiras das unidades estatais. Busca-se abranger a globalidade dos conflitos e problemas da

realidade dos atores internacionais, reconhecendo as relações dos grupos étnicos, lingüísticos

ou religiosos, tão importantes dentro do desdobramento da sociedade internacional mundial.

Nos últimos anos, muitos governos da América Latina reconheceram o caráter

multiétnico e pluricultural de suas sociedades nacionais e a necessidade de respeitar essa

diversidade para alcançar a estabilidade política e o progresso social. É, portanto, fundamental

estabelecer condições e oportunidades para a análise e o debate entre o Estado, os povos

indígenas e os demais atores sociais, de assuntos de interesse dos referidos povos.

As considerações acima reforçam a idéia de que as Relações Internacionais não podem

ser compreendidas apenas a partir dos vínculos estabelecidos entre Estados-nação, porque

outras formas de organização social também contribuem para a construção destes nexos. A

seguir veremos que os atores sociais estabelecem ligações entre si a partir de múltiplos

interesses em comum (cultural, racial, classista, entre outros) e muitas vezes constituem um

grupo a partir destes interesses, e não por estarem submetidos a um Estado. Muitos destes

grupos já estavam reunidos em torno de uma identidade até antes do advento das fronteiras

nacionais, como é o caso das comunidades indígenas. Estas idéias servirão como

embasamento para a compreensão das questões propostas nesta monografia.

Neste sentido, consideramos as diferentes etnias, como os grupos indígenas, agentes

que podem contribuir na dinâmica das Relações Internacionais e o fato de que a cultura que

integra o povo Guarani já existia antes do estabelecimento das fronteiras sul-americanas, o

que faz com que este povo coexista com as nacionalidades dos territórios onde estão fixados.

1.2. TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE E FRONTEIRA

Segundo Maldi (1997, p. 186), a categoria do espaço, pela sua universalidade e

anterioridade histórica, provê o fundamento básico da própria sociedade. Assim, a concepção

de espaço resulta da representação que define os parâmetros de classificação conforme a idéia

que a sociedade faz de si mesma.

De acordo com a autora, a noção de território é uma representação coletiva, uma

primeira ordenação do espaço. A transformação do espaço (categoria) em território é um

fenômeno pelo qual os grupos humanos constroem sua relação com a materialidade, num

ponto em que a natureza e a cultura se fundem. A noção de território certamente é formada

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pelo dado imediato da materialidade, mas esse é apenas um componente, visto que todas as

demais representações sobre o território são abstratas.

Conceitualmente, não se dissocia território de territorialidade, como na proposta de

Soja (1971 apud MALDI, 1997, p. 186) em que a territorialidade “é um fenômeno de

comportamento associado à organização do espaço em esferas de influência ou em territórios

nitidamente delimitados, que assumem características distintas e podem ser considerados,

pelo menos em parte, como exclusivos de quem os ocupa e de quem os define”. Em essência,

esta proposta não é diferente da de Robert David Sack (1986 apud MALDI, 1997, p. 187),

segundo a qual a territorialidade pode ser definida como as formas de controle exercidas por

um grupo sobre uma determinada área, o território. No seu limite, a territorialidade é a inter-

relação entre espaço e sociedade.

Enquanto parte do patrimônio material e ideológico que determina as relações da

sociedade com seu espaço, a fronteira pode ser definida ao mesmo tempo como construção

ideológica, cultural, política, e como o conjunto de fenômenos concretos identificáveis no

campo das representações. Mesmo na sua concretude, a fronteira exprime necessariamente

uma dimensão simbólica que ultrapassa o aspecto localizado do fenômeno (MALDI, 1997, p.

187).

A concepção de fronteira, sendo um dado cultural, está diretamente relacionada à

construção que a sociedade faz da alteridade1. Neste sentido, o indivíduo constrói sua

identidade a partir da sua localização com relação a um grupo e da sua relação com a

totalidade, tendo o espaço como paradigma, de modo que o território passa a ser determinado

e vivido através do conjunto de relações institucionalmente estabelecidas pela sociedade.

Mesmo quando o território, enquanto espaço ancestral e original, não se constitui num

elemento atribuidor da identidade social, a sua perda – ou a sua ausência – acaba por

configurar critérios em si mesmos, reivindicados a partir, por exemplo, da memória coletiva.

(MALDI, 1997, p. 187). Portanto, na raiz da percepção do território está a percepção do nós, a

construção básica da identidade coletiva. Sendo o território uma parte importante da

representação coletiva de uma sociedade, a fronteira é a representação coletiva fundamental

para o estabelecimento da diferença e do limite que nos separa dos “outros”, ou seja, para a

percepção da alteridade.

1 A alteridade é o caráter ou qualidade do que é outro. Este termo é amplamente utilizado pelos antropólogos e fundamental no estudo de diferentes grupos étnicos, pois consiste na percepção do que é próprio de um grupo e o que é de outro. (FERREIRA, 2000, p. 34; MALDI, 1997, p. 187).

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Formando uma conexão entre identidade e alteridade, a fronteira é resultado, portanto,

da imagem que a sociedade constrói sobre si mesma e sobre o outro. De acordo com Maldi

(1997, p. 188), sua elaboração conceitual não pode ser inteligível fora dessa ressonância

básica, que é a projeção, em outras sociedades, de categorias enraizadas nas suas

representações. Nesse sentido, refletem, tanto do ponto de vista estrutural, quanto do ponto de

vista fenomenológico, o que Clifford Geertz chamou de ethos e visão de mundo:

O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de vida, seu estilo moral e estético e sua disposição; é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao mundo que a vida reflete. A visão de mundo é o quadro das coisas como são na realidade, o conceito que um povo tem da natureza e de si mesmo. Esse quadro contém suas idéias mais abrangentes sobre a ordem. (1978 apud MALDI, 1997, p.188).

O ethos dos europeus que aqui chegaram era completamente diferente do ethos dos

habitantes originais do continente americano. Maldi (1997, p. 189) salienta que, em

contraposição a Europa mediterrânea, a América encontrada era desmesurada, imensa: rios

que pareciam oceanos, árvores de altura inacreditável. A diferença de escala no mundo físico

foi um impacto, também porque abrigava uma humanidade distinta e desconhecida.

No imaginário do colonizador, o índio era o habitante de um espaço indefinível,

incompreensível, flutuante e, sobretudo, nebuloso. O projeto colonizador foi, antes de tudo, o

de transformar o espaço desconhecido em território plausível, a partir dos códigos culturais

europeus.

Finazzi-Agrò (1996 apud MALDI, 1997, p.191) chamou a atenção para o fato de que

os portugueses não puderam escapar da perspectiva européia de um mundo selvático e

selvagem pela tradição, e dotando a floresta de uma “dimensão eremítica”, sede do homem

“inclassificável”, vivendo num espaço em que a característica principal era a inexistência de

fronteiras demarcadas, foram incapazes de formular qualquer identificação territorial nativa

diante do espaço misterioso que ficou sendo chamado de “sertão” ou “mato”.

Escapando, portanto, a um código estrutural nos moldes europeus, a representação dos

sertões e de seus habitantes iria se caracterizar pela ausência – seja de limites, seja de

fronteiras, ou de outras formas de atribuição de plausibilidade à dimensão geográfica – o que,

por um lado, abalaria o próprio conceito europeu de fronteira; por outro, iria se prestar de

maneira exemplar aos objetivos da colonização. (MALDI, 1997, p. 192).

Apesar de o colonizador não formular identificações territoriais nativas, há evidências

do reconhecimento de espaços nativos da alteridade colonizada, concebidos sempre à luz dos

modelos europeus.

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Eliane Sigwalt-Dumotier (1994, apud MALDI, 1997, p. 192) analisou as descrições de

alguns cronistas, desde as mais remotas, como a carta de Caminha e um documentário de

Américo Vespúcio, até documentos mais tardios, escolhidos em função da sua relevância

iconográfica. Neles verificou que as populações indígenas são, de forma genérica,

denominadas Tupi-Guarani. Observou também que nos relatos desses cronistas já está

assinalado o fato de que as aldeias, mesmo mudando de lugar, guardavam um nome próprio, o

que mostra que não passou despercebido o registro da denominação dos locais como uma das

formas de marcar o território.

Há, entre os cronistas, a percepção do que a autora chamou de “território tribal”, um

espaço que ultrapassava os limites da aldeia, inclusive com campos e áreas de caça muito bem

marcados por cada grupo. Porém, a base dessa distribuição muito remotamente foi percebida

como uma base cultural, que dependia de fatores extraterritoriais. Um dos principais desses

fatores era a construção da identidade e da alteridade, uma vez que o espaço era definido

também em função da definição do inimigo. Exatamente por esse motivo, a fronteira indígena

na visão do europeu quinhentista era uma fronteira defensiva, fortemente marcada – ressaltada

nas iconografias pelas muralhas e paliçadas.

Pela sua análise, a visão da fronteira indígena passa a mudar a partir de 1534, com a

instituição das capitanias hereditárias, o que constitui um marco no sentido de que a definição

das fronteiras passa a ser administrativa e as fronteiras locais não coincidem mais com esta

idealização. É quando o massacre dos índios aparece indissociável da fronteira porque sua

expansão se efetua sempre num espaço ideologicamente considerado vazio, do ponto de vista

demográfico, econômico ou jurídico.

Todos esses fatores configuraram a atitude coletiva do colonizador com relação à

fronteira e à territorialidade indígenas. Diante de um espaço indefinido e indefinível, que

abrigava uma humanidade igualmente sem parâmetros, a ação colonizadora partiu da sua

negação para empreender o expansionismo. Os primeiros momentos do expansionismo,

porém, já esbarraram na presença física do índio que, na sua concretude, opõe-se às fronteiras

idealizadas e à mobilidade constante dos colonizadores.

A partir do Estado, no início do século XIX, as concepções do território indígena

passam a ser eminentemente uma questão jurídica. A discussão passa a ser centrada no

direito, na idéia de uso, de posse, de ocupação e de pertencimento. De acordo com Maldi

(1997, p. 210), todos os códigos para a construção da idéia de território e territorialidade estão

baseados na ocupação e no direito. São códigos definidos a partir do Estado estabelecendo o

território como sujeito do Estado, ou seja, considerando que o Estado é formado por uma

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combinação de povos em que o território é um elemento constitutivo do próprio Estado, que

se outorga o direito de definir, guardar e defender territórios.

Sendo o próprio Estado em expansão uma representação simbólica e ideológica, os

conceitos de territorialidade e fronteira estão relacionados basicamente ao uso e à ocupação da

terra e, nesse sentido, a condição de barbárie e nomadismo é o principal indicativo de que os

índios não têm nenhum sentido de territorialidade e fronteira, sendo seu espaço o “nebuloso”

e o “indefinido” característicos do início da colonização.

Como expôs Maldi (1997), essa indefinição se prestava aos objetivos da colonização e

do expansionismo, uma vez que os estadistas portugueses foram capazes de formular

inúmeras representações da fronteira e da territorialidade indígena dentro dos interesses do

projeto colonizador como um todo. A incapacidade do reconhecimento da territorialidade e da

fronteira indígenas por parte dos colonizadores não foi apenas uma decorrência do

desconhecimento de critérios que não encontravam ressonância nos moldes europeus, mas

uma incapacidade eminentemente política, que reflete uma ideologia de enfrentamento

centralizada na questão territorial. Assim, defendeu-se a idéia de que os índios são incapazes

de elaborar critérios sobre o território e reconhecer limites, o que serviu de justificativa e

criou condições para o Estado estabelecer seus próprios critérios e legislar sobre os territórios

indígenas. Nesse sentido, o projeto de construção do Estado implicou na superação da

diversidade no interior da sua ideologia e das diferenças étnicas em favor da unidade jurídica

e da cidadania.

Daí a necessidade de estudarmos a distinção entre Estado e Nação para que melhor

possamos compreender a problemática proposta neste trabalho.

1.3 ESTADO E NAÇÃO

Para entendermos melhor a relação do povo Guarani com as sociedades e Estados nos

quais está circunscrito, é importante entender o conceito de Nação. Uma nação é algo distinto

de um Estado: “Uma nação é uma comunidade; o Estado é uma instituição, ou, como Max

Weber lhe chamou, uma ‘associação compulsória’” (GOLDTHORPE, 1977, p. 205). “Nação

é uma sociedade que ocupa um dado território e inclui senso de identidade, história e destinos

comuns” (JOHNSON 1997, p. 157). Estes conceitos nos mostram o caráter artificial da

formação estatal das sociedades modernas, e o caráter espontâneo da formação cultural das

comunidades indígenas.

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Segundo Barazal (2001, p. 136), “desde a institucionalização do modelo de Estado

moderno, caracterizado pela soberania do território, da cultura, da população e da organização

político-administrativa, de tipo legal, a sociedade adquiriu um caráter artificial por sua origem

essencialmente política”. Goldthorpe (1977, p. 206) concorda com o caráter artificial dos

Estados modernos, ao dizer que os mesmos são, em vários aspectos, o legado artificial do

domínio colonial, cujas fronteiras separam os semelhantes com a mesma freqüência com que

juntam os desiguais em uma unidade incômoda. Isso significa que a implementação do

Estado nacional aceita o pressuposto de que todo o Estado ou unidade compreende uma única

cultura, ignorando a formação histórica e cultural anterior ao seu aparecimento. Porém,

quando se observa diferentes comunidades culturais, percebe-se que elas existem graças à

tendência inata do homem à sociabilidade e da

mezcla de distintas famílias y de su convivencia en un lugar determinado donde surge al cabo del tiempo un pueblo que ha creado su propria lengua y se rige por sus proprias leyes y costumbres. A esta comunidad de cultura creada así espontaneamente, se le ha dado en la historia en sentido próprio y específico, el nombre de “nación” (Chalbaud, apud Barazal, 2001, p. 136).

A nação, como concebida neste conceito, formulou-se ao longo de anos de história e

experiências de grupos de indivíduos, que estão ligados, sobretudo, por costumes, crenças e

regras convencionadas entre eles. Este conceito está intimamente ligado ao conceito de

etnicidade, que segundo Johnson (1997, p. 100):

se refere a uma cultura e estilos de vida comuns, especialmente da forma refletida na linguagem, maneiras de agir, formas institucionais religiosas e de outros tipos, na cultura material, como roupas e alimento, e produtos culturais como música, literatura e arte. [...] Até o século XIX, o mundo estava organizado não em termos de nações-estado, mas era constituído por grupamentos étnicos, com fronteiras políticas relativamente fluídas, ao invés dos limites geográficos relativamente rígidos e controle administrativo associado ao Estado moderno.

Foi somente mais tarde que surgiram os Estados-nação e a sociedade internacional,

sendo que a etnicidade constitui uma base importante para a formação de subculturas dentro

dessas sociedades complexas. Segundo Barazal (2001, p. 137), o Estado moderno não

conseguiu, em muitos casos, eliminar sua característica “multinacional” e “multilingüe”, e

este tem sido um dos fatores geradores de conflitos em todo o mundo. Diante deste problema,

a sociedade internacional tem procurado soluções, o que se deve, em boa parte, ao chamado

“direito de autodeterminação dos povos” expresso na carta da ONU. Este direito tem sofrido

alterações quanto à sua interpretação, que no início indicava um princípio político a ser

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seguido pelos Estados que enfrentam o problema da pluralidade étnica, mas que mais

modernamente é entendido como um verdadeiro princípio jurídico, relativo aos direitos

humanos.

Para a autora, este fato vem promovendo alterações nas idéias e procedimentos

políticos contemporâneos com relação aos referidos conflitos e espera-se que elas resultem

em atitudes concretas, que possam modificar a atual condição em que vivem as comunidades

indígenas. Conseqüentemente, observam-se mudanças de postura política por parte de alguns

Estados “multinacionais” e “multilíngues” que reconhecem sua real situação. Porém, no plano

político, poucos são os Estados modernos que tratam de aplicar os pactos de Direitos

Humanos da ONU, aceitando suas possíveis conseqüências. Na verdade, muitos destes

Estados modernos apenas mudaram sua postura porque os índios resolveram partir para a ação

política e defender o reconhecimento da diversidade étnica nas regiões em que vivem. Esta

tem sido a atitude dos índios latino-americanos, que “vêm partindo para a ação política, como

nova estratégia de sobrevivência. Lideranças indígenas criticam o assistencialismo do ‘grande

pai ‘ branco e mostram, em diversos países, que podem defender seus próprios direitos”.

(Farah, apud Barazal 2001, p.138).

Uma pesquisa global, segundo Connor (1972 apud IANNI 1999, p. 152), demonstra

que a consciência étnica está realmente em ascensão, como uma força política. As fronteiras

dos Estados nacionais, como estão atualmente desenhadas, são crescentemente desafiadas por

esta tendência, e os Estados multiétnicos afetados por ela.

1.4 ETNIA E MACROETNIA

Sobre a importância da etnia na compreensão da problemática indígena, o antropólogo

Darcy Ribeiro atesta que “a unidade essencial do fenômeno humano é a comunidade étnica,

que é o lugar em que o homem se reproduz”. Isso reforça a idéia apresentada anteriormente de

que uma nação é formada ao longo de anos de história, a partir das experiências de grupos de

indivíduos ligados pela etnia.

Os seres humanos nascem com a potencialidade de desenvolver personalidade e

condição humana, mas isso só acontece se o homem cresce numa comunidade portadora de

uma cultura que o humanize. É pelo convívio dentro dessa cultura que cada ser humano se

apropria da língua do seu povo e de uma série de conhecimentos e valores. É ali que ele

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aprende os elementos indispensáveis para se desempenhar como homem, à base de

conhecimentos e sentimentos co-participados.

Cada comunidade étnica domina e transmite um corpo de saberes e técnicas, pelos

quais ela se relaciona com a natureza circundante para tirar dela o que necessita para

sobreviver. O que caracteriza uma comunidade étnica e constitui a base do seu ser e de sua

existência são a sua língua, o espírito de comunidade e o sentimento de participação em um

grupo humano exclusivo e exclusivista, com o qual desenvolvem relações de afinidade e

criam um sentimento de rejeição a todos os demais grupos. Outra característica fundamental

da etnia é o seu sistema adaptativo, pelo qual se relaciona com a natureza e o meio ambiente

garantindo sua sobrevivência. Além dos saberes adaptativos de base ecológica, existe um

segundo corpo de saberes que constitui o sistema associativo, integrado por um conjunto de

normas, com as quais os seres humanos se relacionam uns com os outros e se organizam em

famílias, classes ou corporações (RIBEIRO, 1995, p. 86). Os grupos podem relacionar-se

entre si e intercambiar experiências que enriquecem cada um deles, porque além das suas

próprias experiências, podem contar com as experiências adaptativas e associativas dos outros

grupos. É assim que se constrói a cultura humana, tal e qual a conhecemos e concebemos.

Além disso, as comunidades étnicas têm outro componente fundamental, que é um

corpo de valores, crenças e idéias, configurado como seu corpo ideológico. É ele que orienta a

conduta religiosa, artística, ética e a criatividade de cada pessoa humana. Ribeiro salienta que

estes três corpos de saber, e a língua a eles associada, transmitem a cada novo membro o sentimento de pertinência e sabedoria de viver, incorporando-o àquela etnia como membro que com ela se identifica e é por ela plenamente reconhecido como tal. Assume assim, orgulhosamente, que é parte da mais perfeita das comunidades humanas, melhor do que qualquer outro povo do qual tenha notícia. Isso quando se trata de uma cultura integrada. Em certas circunstâncias essa integração pode romper-se, marginalizando parcelas da comunidade, que são levadas ao desengano e ao desespero. A comunidade étnica dotada desses valores, servida por esses saberes, é extraordinariamente resistente. (1995, p. 87).

Ribeiro conta como se surpreendeu, em seus estudos de antropologia, ao descobrir o

imenso poder dessas comunidades étnicas de se manter e permanecer. Ele constatou que uma

comunidade étnica resiste a qualquer condição imaginável de repressão e de perseguição, se

não há uma total destruição física das pessoas, o genocídio2, ou um desgarramento e total

isolamento de seus membros.

2 Genocídio: termo formulado no tribunal de Nüremberg que serviu para denominar as atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus. Significa a destruição física sistemática das pessoas que pertencem a um determinado grupo étnico.

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Quando Darcy Ribeiro estudou os índios do Brasil, a perspectiva de então era de que,

em contato com agentes da civilização, os índios seriam deculturados e aculturados3, por

absorção da língua e da cultura alheia, desaparecendo totalmente, assimilados4 no corpo da

nova sociedade. Porém, os fatos mostraram o contrário: uma comunidade, tendo as condições

mínimas de manter o contato entre seus membros, resiste e permanece. Em lugar algum o

pesquisador encontrou uma comunidade indígena convertida em vila ou vizinhança

“brasileira”; ao contrário, viu situações em que índios submetidos por séculos ao contato e à

pressão econômica, social e religiosa, em suas formas mais perversas, continuaram índios.

Não se converteram, nem se incorporaram, apesar de compulsoriamente integrados na

economia regional e cada vez mais parecidos com seus vizinhos civilizados. Mesmo aquelas

comunidades transfiguradas racialmente, através da violência e da mestiçagem, ou aquelas

que perderam sua língua quando submetidas ao convívio com outros grupos, permanecem

indígenas em suas mentes.

Segundo Ribeiro (1995, p.91), quando a comunidade étnica singular se rompe, quando

ocorrem transformações sociais e econômicas que permitam um salto evolutivo, se dá o

fenômeno da macroetnia. Isso é possível quando há a acumulação de elementos novos da

cultura e o desenvolvimento de sistemas mais eficazes de produção, através da agricultura e

do pastoreio, que permitam uma fartura maior, suficiente para uma população ampliada.

Ocorre então a bipartição da condição rural e da condição urbana e o domínio territorial,

surgindo o citadino e o camponês. O citadino, numa estrutura nova, urbana, desobrigado de

produzir alimentos e dependente para seu sustento do contexto camponês, recebe em

compensação sagração religiosa, proteção militar e um retorno comercial. Nesta sociedade já

não predomina, como critério que ordena a vida social, o parentesco tribal, que é substituído

por novos critérios classificatórios como o cívico-territorial e a divisão em classes. Ribeiro

(1995, p. 92) cita dois mecanismos de quebra da etnia: a separação de pais e filhos e a

escravidão.

Onde surge a escravidão pessoal, o indivíduo que é desgarrado do seu povo, para ser usado como mera força de produção e reprodução, perde

3 Aculturação: palavra introduzida no fm do século XIX pelos antropólogos anlgo-saxões, para designar os fenômenos que resultam dos contatos diretos e prolongados entre duas culturas diferentes, e que se caracterizam pela modificação ou pela transformação de um ou dos dois tipos culturais em presença. Atualmente, aplica-se a palavra num sentido mais restritivo, ao contato particular de duas sociedades de força desigual, em que a sociedade dominante, com maior população ou tecnologicamente melhor equipada – geralmente de tipo industrial -, impõe-se direta ou indiretamente à cultura dominada. (BARAZAL, 2001, p. 161). 4 Assimilação: adoção e fusão, num todo cultural coerente que conserva características essenciais da cultura tradicional, de elementos pertencentes a uma outra cultura. É um processo unilateral, e por isso pode ser considerado como um dos aspectos ou como o resultado do processo de aculturação entendido no seu sentido amplo (Ibid.).

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rapidamente a sua identidade étnica. A unidade societária onde se dá a escravidão já é uma macroetnia organizada como Estado, cuja vinculação é de ordem cívico-territorial. Nela, a qualidade de membro se faz pelo critério de residência no território que ela domina, podendo abranger camponeses ou citadinos, escravos ou senhores, e até mesmo gentes oriundas de diferentes culturas.

O autor esclarece que a passagem de micro para macroetnia implica na transição de

uma sociedade internamente solidária para uma sociedade internamente conflitiva. É certo

que as sociedades tribais vivem em permanente tensão guerreira, mas é nas macroetnias

estatizadas que surge a dinâmica do antagonismo interno pela posição de classes.

Os conceitos de etnia e macroetnia ajudam a compreender a situação dos índios do

Brasil e das Américas no passado e no presente. Havia aqui, originalmente, milhares de etnias

com suas línguas e culturas próprias, as quais, enquanto microetnias, cresciam e se

subdividiam, sem nunca se aglutinar umas com as outras através da “citadização” ou da

estratificação, que as habilitaria à unidade política. Quando chegaram os invasores europeus, a

vantagem populacional dos índios não serviu como vantagem, pois aqueles vinham

estruturados em bases macroétnicas, o que os tornava capazes de atuar planejada e

unificadamente.

Vimos neste capítulo que existe a necessidade de discutir a questão indígena no

âmbito das relações internacionais, visto que o futuro destas populações não se limita a

decisões tomadas no âmbito interno de cada país. Ao contrário, a reivindicação pelos direitos

indígenas tem aumentado e ganhado espaço na mídia internacional. (TABOADA TABONE,

2001, p. 21).

Os índios são os habitantes originais do continente sul americano e sua organização

social baseava-se em laços estabelecidos pela etnia. Esta etnia é tão forte que até hoje, após

séculos de dominação pelo homem branco, ela continua unindo os índios e fazendo com que

eles se identifiquem como tal. Ainda que o projeto dos governos sul americanos fosse o de

assimilar completamente as populações indígenas, isso não foi possível, e por mais

aculturadas que possam estar, elas seguem mantendo um projeto de nação próprio, diferente

das sociedades em que estão inseridas.

Este é o caso dos Guaranis, que são objeto de estudo deste trabalho. Os territórios

ocupados por este grupo foram divididos por fronteiras criadas pelos estados nacionais do

Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia. Como vimos, a formação destes estados é

artificial e não respeitou as diferenças étnicas no seu interior. Estas fronteiras políticas

dificultam a unidade do povo Guarani e a conservação da sua cultura.

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A reflexão sobre a questão indígena e seus direitos como habitantes originais do

continente sul americano nos ajudarão a entender por que estas populações têm direito a

políticas e leis diferenciadas dentro dos Estados que as contêm.

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2 A QUESTÃO INDÍGENA

Neste capítulo faremos um breve histórico do problema indígena. Explicaremos,

primeiramente, o que é ser índio, considerando que tal definição tem sido motivo de constante

polêmica. Em seguida, abordaremos a questão indígena no mundo e, posteriormente, na

América Latina. Por último veremos qual é a situação atual das comunidades indígenas no

Brasil, Paraguai e Argentina5 e como as principais leis destes Estados tratam essas

populações. É importante ressaltar que o problema indígena surge a partir da chegada dos

invasores europeus, ou seja, são os brancos os responsáveis pela situação em que se

encontram as populações indígenas em nosso continente. Cabe aos chamados brancos,

portanto, refletir sobre esta situação e atender às demandas dos habitantes originais do nosso

continente.

Veremos como essas populações continuam marginalizadas, sem nunca terem sido

incorporadas às sociedades nacionais, nem tampouco munidas das condições necessárias para

conservar de forma íntegra sua própria identidade. O europeu “civilizador” deixou uma dívida

histórica para com os povos indígenas, e não podemos perpetuar a quase “invisibilidade”

dessas pessoas, nem tampouco ignorar seus direitos.

2.1 O QUE É SER ÍNDIO?

Os “índios”, é bem sabido, não existiam antes da invasão deste continente pelos

europeus. Foram estes que inventaram o índio. O termo “índio” é produto de uma

simplificação, de um estereótipo construído pelos colonizadores, para justificar a dominação

que tentavam exercer sobre os diferentes povos que habitavam o continente americano. A

categoria “índio” é uma categoria social surgida no momento crucial da história da América

Latina que é a conquista, como uma supracategoria (BONFIL BATALLA, 1991, p. 29), como

uma categoria generalizante (WORSLEY, 1976 apud TAMAGNO, 1997, p. 125) que

implicou na negação da diversidade. O que realmente tinham em comum todos estes povos,

era o fato de serem os conquistados, os dominados, os não-brancos e não-europeus. Tamagno

(1997, p. 114) ressalta que não se deve confundir a história deste índio, que começa há

5 A questão indígena e as principais leis referentes aos índios serão abordadas especificamente nestes três países. Daremos ênfase, porém, ao tratamento que a questão tem recebido no Brasil.

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quinhentos anos com a conquista e continua até hoje com a discriminação e o preconceito,

com a dos povos que foram chamados de índios. Estes povos que o colonizador chamou de

índios são os habitantes originais do continente americano, e sua história tem uma perspectiva

muito maior. Os modos de interpretar o índio estiveram embutidos na idéia de que o índio era

o selvagem, em contraposição à idéia de civilização que possuíam os colonizadores. A

denominação de selvagens seria, assim, o estereótipo legitimador da violência e crueldade

com que a conquista seria feita. A negação da diversidade dos povos que habitavam o

continente americano era necessária, portanto, para que a categoria se convertesse em um

estereótipo impregnado de subestimação e preconceito, e legitimador do etnocídio6 que os

processos de conquista e colonização implicaram.

Ainda hoje se nega a diversidade dos povos originais do continente americano e sua

própria identidade. Para burlar os direitos indígenas, é comum que seja negada sua condição

de índio. Tendo em vista a complexa e diferenciada situação em que se encontram as

sociedades indígenas no Brasil e na América Latina contemporâneos, é difícil estabelecer

critérios para distinguir as coletividades indígenas das que não o são. Normalmente, esses

critérios mostram-se insuficientes e alimentam os estereótipos e preconceitos que se

encontram no senso comum e nos discursos cotidianos, em que os indígenas são sempre

colocados como exemplificações da primitividade.

Os povos que ainda vivem em situação de total isolamento são facilmente

identificados como indígenas. O mesmo não acontece com aqueles que possuem contato

antigo com o homem branco e que incorporaram muitas de suas instituições. Para eles, a

aplicação de critérios para defini-los acabam sempre abrindo espaço e dando foros de

legitimidade para um debate sobre sua pretensa autenticidade, ao gosto dos interesses

regionais e das instâncias locais de poder, como municipalidades e governos estaduais.

Oliveira (2000, p. 133) diz que ao falar em indígenas devemos pensar em

coletividades atuais que se reconheçam como descendentes daquelas populações que

estiveram presentes nesse marco territorial antes da chegada dos colonizadores europeus e da

constituição dos Estados nacionais. É nessa condição – enquanto coletividades que

contribuíram decisivamente para a formação do povo brasileiro e do território nacional – que

6 Etnocídio: termo criado por antropólogos norte-americanos nos anos 50, no intuito de explicar o processo de assimilação da cultura pelo qual estavam passando os povos indígenas da Amazônia. Qualifica a imposição forçada de um processo de aculturação a uma cultura por outra mais poderosa, quando esta conduz à destruição dos valores sociais e morais tradicionais da sociedade dominada, à sua desintegração e depois, ao seu desaparecimento. O etnocídio foi e ainda é freqüentemente praticado pelas sociedades de tipo industrial com o objetivo de assimilarem, “pacificarem” ou transformarem as sociedades ditas “primitivas” ou “atrasadas”, geralmente a pretexto da moralidade, de um ideal de progresso ou da “fatalidade evolucionista”.

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o Estado estabelece para os indígenas um tratamento diferencial, com o reconhecimento de

direitos especiais. A idéia subjacente não é de forma alguma uma peculiaridade brasileira,

mas poderia ser relacionada com um conjunto de procedimentos jurídicos: a existência de

uma política especial e de mecanismos compensatórios.

Para dar operacionalidade a essa concepção, é suficiente ater-se aos termos da

Convenção nº 169 da OIT7, de 07/06/1989, que corresponde a uma revisão e atualização da

Convenção 107 (de 05/06/1957 da mesma OIT) refletindo uma postura mais debatida e

criticada, que expressa o ponto de vista já consolidado a nível mundial entre os juristas

especializados. “A consciência de sua identidade indígena (ou tribal) deverá ser considerada

como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da

presente Convenção”. (art. 1º, item 2º).

Oliveira Filho chama a atenção para o fato de que a condição de indígena não é em

absoluto definida por pressupostos quanto à unidade racial ou de cor. Ao contrário, aquele que

se declara indígena está se referindo à especificidade de seus direitos e de sua relação com o

Estado. “Por manter uma forma de organização social e tradições culturais que considera

serem provenientes de populações pré-colombianas, ele se auto-identifica como ‘indígena’ e

reivindica um tratamento diferenciado do Estado quanto às suas demandas por terra e

assistência”. (1997, p. 68).

De acordo com Oliveira (2000, p. 133), essa concepção tem sido defendida no

contexto brasileiro por alguns antropólogos e se expressou em definições presentes no

“projeto de lei que regulamenta o Estatuto das Sociedades Indígenas” (em tramitação desde

1992 no Congresso Nacional).

2.2 INTEGRAÇÃO SEM ASSIMILAÇÃO

É consenso entre os pesquisadores a constatação de que os índios continuam sendo

índios. Apesar dos quinhentos anos em que foram alvo de perseguição, preconceito e

discriminação, Tamagno (1997, p. 129) considera que os índios

no han desaparecido, sus cuerpos aunque sufridos se levantan como testimonio de una história que cotidianamente pretende ser negada. Negada cuando no se les reconocen los modos de su organización; negada cuando se organizan y entonces se duda de la representatividad y/o la legitimidad de esa organización; negada cuando se solicita de alguna organización

7 Convenção anexa ao final da monografia.

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intermedia que se haga cargo del control de sus proprios proyectos aun teniendo personería jurídica; negada cuando se les emplea en algún cargo público pero a su vez se los controla, dudando de sus capacidades para el desempeño de la función asignada; negada cuando se tenta cooptarlos individualmente, pretendiendo destruir y/o anular el hábito de lo colectivo y lo solidario; negada cuando sus reclamos se convierten em papeles que se pierden en el mundo kafkiano de la burocracia no ya ignorante, sino perversa. A pesar de todo resisten. Algunos por el sólo hecho de existir y dar testimonio, otros a través de prácticas que implican a su vez la construcción de un discurso de legitimación, la construcción de otra verdad (Foucault) a los efectos de luchar por sus derechos y como forma de acceder al poder o de materializar algún poder.

De acordo com Ribeiro (1995, p. 103), no Brasil existem centenas de povos indígenas

que, vivendo para além das fronteiras da civilização, ou ilhados nas áreas já dominadas, lutam

para manter sua própria cara e identidade, sob as condições mais adversas. Alguns deles tão

transformados racialmente, tão transfigurados culturalmente, que são quase indistinguíveis da

gente brasileira e do seu contexto. Apesar disso, continuam mantendo uma noção profunda e

arraigada de que são eles próprios, diferentes de todos os outros povos.

A maior parte dos povos indígenas se encontra integrada na sociedade nacional que os

envolve e submetida ao seu sistema de dominação política, que não os incorpora à brasilidade

e tampouco os assimila à cultura e à etnia brasileiras. Mas é mantida uma interação ativa, seja

no plano comercial, que os obriga a produzir mercadorias que lhes permitam comprar o que

precisam para viver; seja no plano social, que os submete à autoridade de um prefeito ou

delegado; seja no plano jurídico, que cai sobre suas comunidades como uma camisa de força;

seja no plano burocrático, que os submete a um órgão de proteção com o poder total de

ampará-los ou de aniquilá-los. (RIBEIRO, 1995, p. 105).

Apesar disso, cada grupo indígena permaneceu com sua identificação étnica, por mais

aculturado que chegasse a ser. Assim

O índio vive na situação desesperada de quem não quer identificar-se com a sociedade nacional, de quem se nega a dissolver-se nela, mas que precisa, igualmente, do seu amparo compensatório. E é um amparo que só o Estado pode dar e deve dar, mesmo porque o problema indígena somos nós, que invadimos suas terras e destruímos suas vidas. Fomos nós que criamos o problema indígena. Somos nós os agressores. Nós, em conseqüência, é que lhes devemos esse amparo oficial e legal – o único que pode garantir condições de sobrevivência. (RIBEIRO, 1995, p. 105).

Os dados apresentados acima são extremamente relevantes: primeiro, porque registram

o aumento da população indígena, a despeito de toda adversidade pela qual têm passado;

segundo, porque atestam que a população indígena do continente americano, apesar de cinco

séculos de contato com os não-indígenas, não se dilui na população nacional. Ao contrário,

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mantiveram sua identidade e sua relativa integração acontece em função da necessidade do

auxílio de serviços públicos para sobreviver.

Esta persistência em querer continuar a ser índio e o fato de que estão aqui, e em toda

parte do território americano, é motivo relevante para que se conheçam as principais

necessidades e reivindicações dos habitantes originais de nossa terra. Nestes séculos de

interação, buscaram-se diferentes soluções para os impasses causados por este contato, como

veremos mais detalhadamente nos próximos itens deste capítulo.

2.3 A QUESTÃO INDÍGENA NO MUNDO

No ano de 1994 a ONU preparou um documentário intitulado “O Direito das Nações

Indígenas”, que foi editado pela Rede Cultura de Televisão. Muitos dos dados a seguir foram

extraídos por Barazal (2001, p. 27) deste documentário. Os números levantados pela ONU

falam da existência de trezentos milhões de indígenas no mundo, espalhados por mais de

setenta países. Esses povos têm por característica comum o fato de serem originários das

regiões que habitam, constituindo nações de povos autóctones8 anteriores à criação das

colônias e, posteriormente, dos Estados nacionais modernos. Pela condição histórica da

antecedência na ocupação desses espaços territoriais, os povos indígenas se autodenominam

“guardiões da mãe-terra”.

Segundo Barazal, a história dessas nações obedece a uma trajetória comum – apesar de

ocorrer em diferentes contextos mundiais – e se efetiva no problema da demarcação de suas

fronteiras territoriais com as populações regionais dos Estados nacionais. À medida que as

populações regionais avançam sobre os territórios indígenas, inicia-se um problema que,

segundo a interpretação das mentalidades ocidentais acostumadas a nivelar o outro pelo seu

próprio olhar, é entendido como sendo de caráter meramente econômico. Na verdade, para a

realidade e visão dos indígenas, o problema significa muito mais do que isto, devido à

importância que a terra tem para sua reprodução cultural, a começar pelas trocas de bens, que

significam ajustamentos sociais, políticos, e se sustentam no sistema de produção familiar. A

autora escreve sobre a importância da terra, das relações de produção doméstica e das trocas

de bens entre os povos indígenas para destacar o tipo de conflito que decorre do encontro

entre culturas organizadas, de um lado, de forma tribal e comunitária, e de outro, a de caráter

8 Autóctone: termo que designa aquele que é oriundo da terra onde se encontra, sem resultar de imigração. (FERREIRA, 200, p. 76).

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individualista, competitiva e de mercado, corporificada nas sociedades modernas. Devido a

esse tipo de conflito comum vivido pelos povos nativos, eles resolveram se organizar e criar

uma espécie de “consenso” reivindicatório elaborado pelas lideranças indígenas, juntamente

com seus órgãos representativos. Dentre as reivindicações destacam-se o reconhecimento do

direito de viver e ocupar suas terras para transmitir suas culturas e seus genes às gerações

futuras, ou, em outras palavras, o direito ao respeito de suas identidades étnicas e à

autodeterminação. Isso acontece num ambiente onde a maioria dos Estados nacionais que

enfrenta esse tipo de problema não se preocupa em legalizar a situação das terras indígenas,

por considerá-las legitimamente integradas ao território nacional. Portanto, o território

ocupado pelos povos originários é considerado, em sua grande maioria, como sendo um

espaço geopolítico-administrativo racionalmente amparado pela lei, que pode vir a ser

ocupado a qualquer momento pelo Estado, sob alegação de defesa do interesse nacional.

Diante desse impasse, algumas lideranças indígenas resolveram apelar para uma

instância supra-estatal, a ONU, solicitando-lhe orientação e intervenção no problema. A

organização, utilizando argumentos fundamentados nos direitos humanos internacionais, tem

se esforçado no sentido de buscar alternativas para solucionar alguns desses conflitos. Entre

as alternativas, está a promoção de fóruns permanentes de encontros e debates a respeito dos

povos originários, com o intuito de divulgar seus problemas e de sensibilizar a comunidade

internacional. Nesses encontros, o centro das discussões gira em torno da luta contra a

exploração e expropriação das terras indígenas, visando equacionar o problema pela via do

diálogo entre as sociedades nacionais e as comunidades indígenas. Buscam-se novas maneiras

de promover o desenvolvimento econômico e de gerar tecnologias menos agressivas ao meio

ambiente por meio da troca de experiências e por meio da promoção do chamado

desenvolvimento auto-sustentável ou desenvolvimento sustentável9. De acordo com

BARAZAL (2001, p. 30), essa idéia surgiu da observação dos usos e costumes dos povos

originários, que demonstraram sua familiaridade e adaptabilidade ao meio ambiente que

ocupam. A partir dessa adaptação milenar foram desenvolvidas técnicas que podem ser

divulgadas, assimiladas e utilizadas na solução de problemas que a sociedade, nacional ou

internacional, esteja pesquisando.

9 Desenvolvimento sustentável: conceito definido de acordo com o relatório FOUNEX, a Declaração de Estocolmo de 1972 e a Declaração de COYOC de 1974, cujo significado surgiu a partir da transmissão de uma mensagem de esperança sobre a necessidade e a possibilidade de se projetar e implementar estratégias ambientalistas adequadas, para promover um desenvolvimento socioeconômico eqüitativo, ou eco-desenvolvimento, uma expressão que foi mais tarde rebatizada pelos pesquisadores anglo-saxões como desenvolvimento sustentável. (SACHS apud BARAZAL, 2001, p. 30).

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O mesmo pode ser considerado em relação às sociedades nacionais que detêm uma

tecnologia que as sociedades indígenas não dominam e podem utilizar para facilitar suas

vidas. Assim, por meio de uma mensagem otimista, o pronunciamento de Boutros, Boutros

Ghali, então Secretário Geral das Nações Unidas, no dia destinado a comemorar os Direitos

Humanos em 1992, afirmou que já se observam

importantes cambios que han beneficiado a la población indígena. Cada vez son más los gobiernos que reconocen el carácter multicultural de sus sociedades. Han restituído la tiera a las comunidades indígenas y apoyado la creación de instituiciones y programas socioeconómicos para la población indígena (Boutros-Ghali, 1995 apud BARAZAL, 2001, p. 30),

a fim de garantir o respeito aos direitos do homem, o progresso social e melhores condições

de vida para todos. Quando, em 1993, aconteceu a reunião de mais de 120 delegações de

povos indígenas, não somente das Américas, mas do mundo inteiro, na sede da ONU em

Nova Iorque, foi elaborada a Declaração de Organizações, Povos e Nações Indígenas10, assim

como o Projeto de Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, dirigido pelo Grupo de

Trabalho sobre Populações Indígenas das Nações Unidas. A elaboração desses documentos

significou a abertura de uma nova etapa desse processo que depende do tratamento que “los

estados y la comunidad internacional den a la poblacion indígena (...) porque será una

importante prueba de la seriedad de nuestro compromisso con un régimen de derechos

humanos genuinamente universal” (Boutros-Ghali, 1995 apud BARAZAL, 2001, p. 30).

Segundo Barazal, o Secretário Geral das Nações Unidas apelou para a seriedade de um

compromisso a ser assumido pelos Estados nacionais para com o regime dos direitos

humanos, como comprometimento ético aceito pelos países que fazem parte das Nações

Unidas. De fato, a ONU não possui outro meio de convencer seus Estados membros a

obedecerem às determinações dos direitos humanos internacionais, porque seu poder

coercitivo em casos de infração é bastante tímido e daí as dificuldades de obter um controle

efetivo da situação. Assim, cabe a cada Estado nacional, membro da ONU, a conscientização

de que seus problemas com as nações indígenas, de caráter particular, estão tomando a

dimensão internacional e recebendo a legitimação do regime universal dos direitos humanos,

o que sugere que alguma solução mais efetiva deva ser tomada.

Barazal chama a atenção para o fato de que a discussão sobre os direitos dos povos

indígenas é anterior ao processo de globalização. Percebe-se, no entanto, que ela tem se

intensificado ao longo do tempo, devido às circunstâncias, porque o momento atual é mais

10 Declaração anexa ao final da monografia.

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favorável à discussão do tema, principalmente no que se refere à autodeterminação dos povos.

Por autodeterminação entende-se a capacidade que “populações suficientemente definidas

étnica e culturalmente têm para dispor de si próprias e o direito que um povo dentro de um

Estado tem para escolher a forma de governo”. (BOBBIO, 1983 apud BARAZAL, 2001, p.

31), ou seja, no âmbito internacional, deveria ser reconhecido o direito de um povo não se

submeter à soberania de um Estado contra a sua vontade, desde que considerado étnica e

culturalmente definido. Diante da possibilidade de reconhecer os povos que compartem as

características acima citadas, a possibilidade de permitir-lhes a autodeterminação aumenta as

expectativas sobre a mudança de posturas políticas dos Estados nacionais, no sentido de virem

a administrar suas divergências internas frente às nações indígenas, baseados em atitudes

humanitárias e democráticas mais adequadas que as que se têm observado nos últimos

tempos.

2.4 AMÉRICA LATINA: O CONTATO ENTRE COLONIZADORES E HABITANTES

DO CONTINENTE AMERICANO

A América é uma síntese que se realizou em detrimento do elemento indígena e se

consolidou durante o curso de três séculos de colonização, porém, a própria unidade da

América Latina é problemática, devido à grande variedade da realidade cultural neste

continente. Halperin Donghi costuma dizer que “existem tantas Américas Latinas quanto são

os Estados nascidos da fragmentação pós-revolucionária” (DONGHI, 1989 apud BARAZAL,

2001, p. 31). Portanto, para falar sobre o tema, selecionamos três breves passagens de sua

história comum e, para tanto, será seguido o roteiro sugerido por Chaunu (1996 apud

BRAZAL, 2001, p. 31) e também utilizado por Barazal: a conquista, a colonização e a

independência.

É impossível determinar qual era a população exata que habitava o continente que se

chamaria América, quando aqui chegaram os primeiros colonizadores. Porém, existem

algumas estimativas aproximadas, sendo que a Enciclopédia do Mundo Contemporâneo

(2000, p. 28) avalia a população da época em 40 milhões de habitantes. Cinco séculos se

passaram desde o primeiro encontro dos habitantes americanos com os invasores europeus. As

primeiras impressões dos europeus foram registradas por seus cronistas e revelam como

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estavam maravilhados e aterrorizados diante daquela gente índia que tinham à sua frente11.

“Os índios nus, alegres, as índias, bonitas – todos predispostos a um convívio cordial (...) A

visão dos índios é oposta. Para eles, aqueles que desembarcavam, deuses ou demônios, eram

seres inverossímeis”. (RIBEIRO, 1995, p. 95). Os europeus vinham fétidos, do fedor natural

do homem branco e de terem passado meses em alto mar, sem banho. Todos com suas caras

cobertas de barbas longas e praguejadas de feridas de escorbuto, vestidos com trapos e com os

pés postos em cascos de couro.

Aquele indígena, aterrorizado com a cara do europeu que desembarcava das naus, fica

maravilhado com os utensílios que nunca vira antes: uma faca, um espelho, um machado, uma

miçanga. Rapidamente esses bens alheios passam a ser indispensáveis aos índios, e tornava-se

importante estabelecer contato com as pessoas que podiam provê-los desses recursos.

Coisas que não tinham valor algum para o europeu, passam a servir de moeda para

conseguir fazer trabalhar arduamente multidões de índios.

Foi muito forte o impacto produzido entre a cultura indígena originária e a cultura

ibérica e, desse encontro, foi sendo construída a chamada América Latina, compreendendo

desde los 32º de latitud norte hasta los 54º de latitud sur, América Latina abarca 21.173.000 km2 aproximadamente, es decir el 15,9% de las tierras emergidas, expresión ésta con la que habitualmente se designa la inmensa fracción del continente americano, descubierta, poblada y colonizada pelos pueblos ibéricos (españoles y portugueses) (CHAUNU, 1996 apud BARAZAL, 2001, p. 32).

Nesse continente, os europeus se depararam com civilizações tecnologicamente

desenvolvidas, como os Maias e Aztecas no México, os Chibchas na Colômbia, e os Incas nos

Andes. Seu contato com os brancos europeus desencadeou uma rápida desestruturação de suas

organizações sociais, obrigadas a reproduzir as técnicas, a religião e o modo de vida dos

conquistadores, estabelecendo-se, dessa maneira, a dominação e submissão dos nativos. Essa

dominação expandiu-se em relação aos demais povos originários do continente americano

que, comparativamente aos anteriormente citados, eram ainda menos desenvolvidos

tecnologicamente, o que permitiu aumentar ainda mais a distância entre dominantes e

dominados.

11 Ver figura 1, na página 38.

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1 - Encontro dos Cristãos com os Guarani, de Lamberé: “...quisemos ser seus amigos, porém

eles não quiseram...quando nos aproximamos detonamos nossos canhões”. (Schmidl, 1947

apud BRIGENTHI, 2001, p. 81).

2 – “Estes Carios ou Guarani são gente baixas e gordas...andam completamente nus, como

Deus Todo Poderoso os criou”. (Ibid.)

FIG. 1. OS ÍNDIOS VISTOS PELOS EUROPEUS DO SÉCULO XVI (Ibid.).

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O resultado, segundo Chaunu, foi o surgimento da América Latina, em função da

deterioração dos elementos indígenas, observados em três fases distintas da história. A

primeira, considerada a fase da administração da conquista; a segunda, que caracteriza o

período da colônia, assim permanecendo por mais três séculos e meio; e, a terceira, a da

revolução do século XIX e de sua independência da metrópole (BARAZAL, 2001, p. 32).

Sobre a primeira fase, a da administração da conquista, Frei Bartolomé de Las Casas,

que se autodenominou “procurador e protetor universal de todos os povos indígenas”,

escreveu vários livros narrando o terrível processo de conquista dos territórios do Caribe,

América Central, México, Colômbia, Venezuela e Peru. O que mais surpreende em suas

obras, segundo Barazal, é a sua atualidade porque, quinhentos anos depois, os episódios ali

descritos se repetem, apesar dos novos contextos históricos. Mesmo com o passar de todo esse

tempo, suas denúncias permanecem vivas porque a vida dos povos autóctones continua

valendo pouco na terra que Colombo julgou ser o “paraíso terrestre”.

Nas obras do Frei os povos nativos são descritos como docilmente submissos a seus

líderes e aos espanhóis, enquanto que os espanhóis são relatados como tiranos que destruíram

uma infinidade de almas com o único objetivo de enriquecer facilmente.

Para Barazal (2001), a importância das idéias de Bartolomé de Las Casas reside no

alerta a respeito dos vitoriosos “conquistadores” como destruidores da América, de uma

América indígena, a qual se propôs conservar como sendo o verdadeiro “descobrimento” para

a humanidade, ou seja, o de uma população até então ignorada por todos. Desde a época das

conquistas, as populações indígenas dependeram de políticas e leis que lhes reconhecessem

como detentores de direitos naturais como: o direito à vida, ao seu território, à reprodução de

sua cultura e à autodeterminação. Enfim, desde que aconteceu o encontro com as culturas

européias, a cultura original passou a ter sua autonomia ameaçada, quando não exterminada.

De várias maneiras, ficaram caracterizadas as atrocidades cometidas pelos conquistadores na

fase da administração da conquista das Américas, cujos métodos em pouco divergirão na fase

seguinte.

Desde o início a política colonizadora demonstrou a forte noção de etnocentrismo12

dos colonizadores europeus. Como vimos no capítulo anterior, eles possuíam um ethos muito

diferente dos habitantes americanos, e seu modelo era considerado como o melhor e mais

correto. A colonização lusitana foi marcada pela mentalidade da “guerra justa”, que

justificava sua expansão nas Américas. Em termos culturais, a “guerra justa” iria preencher o

12 Etnocentrismo: tendência a considerar a cultura de seu prórpio povo como a medida de todas as demais. (BARAZAL, 2001, p. 163).

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que a historiadora Silva Dias (1982 apud MALDI, 1997, p. 201) chamou de “vácuo

doutrinário”, com o direito de evangelização: a humanidade e a legitimidade da presença

ultramarina dos portugueses não sofriam abalo na sua consciência de cristãos porque as

justificativas morais se alinhavam com os objetivos econômicos e políticos que motivaram a

ação colonizadora.

Francisco de Solano (1988, apud MALDI, 1997, p. 201) chamou a atenção para o fato

de que a “guerra justa” só pode ser compreendida a partir da mentalidade medieval que

norteou a conquista americana: um triplo exercício de obtenção de terras, expansão do

cristianismo e de promoções sociais e econômicas. Sob esse ponto de vista, a conquista foi

uma cruzada, uma guerra santa, cujo espírito proselitista, expansionista e militarista se

transladou à América. A cruzada é substituída pela evangelização como um direito e dever

dos cristãos. Trata-se, em essência, da conciliação do ethos conquistador com o cristianismo.

No Brasil, a segunda fase, referente ao processo de colonização, é relatada a partir de

observações feitas por Darcy Ribeiro. De acordo com este autor, a colonização se fez com a

persistência de implantar uma europeidade adaptada aos trópicos, que se deparou com a

resistência, tanto da natureza quanto da história, gerando oposições à “branquitudes e

civilidades, tão interiorizadamente deseuropeus como desíndios e desafros” (RIBEIRO, 1995,

p. 70). Apesar da aparente assimilação, os portugueses mobilizaram os índios como mão-de-

obra indispensável na geração de riqueza. Desta forma

nenhuma terra se desperdiça com o povo que se ia gerando. De toda ela se apropria a classe dominante, menos para uso, porque é demasiada demais, mas a fim de obrigar os gentios subjugados a trabalhar em terra alheia. Nenhuma liberdade se consente, também, porque se trata com hereges a catequizar, livrando-os da perdição eterna (RIBEIRO, 1995, p. 70).

A escravidão indígena predominou durante todo o primeiro século de conquista e

somente no século XVII é que se iniciaria o processo de escravidão dos negros, o que não

impediu a utilização de mão-de-obra indígena para funções auxiliares como transporte de

cargas ou pessoas, preparação de alimentos, para a caça, para a pesca e ofícios artesanais.

Apesar da legislação que garantia a liberdade dos índios, a sua incorporação à vida colonial

continuou acontecendo, e quando Mem de Sá autorizou uma guerra de vingança para

escravizar os índios Caetés, por haverem comido o bispo Fernandes Sardinha, “os colonos,

com base nessa ordem de vingança, caíram sobre as missões jesuíticas e dos 12 mil

catecúmenos sobraram apenas mil, quando a ordem foi revogada”. (RIBEIRO, 1995, p. 100).

A partir do ocorrido, os índios continuaram sendo incorporados à sociedade colonial, não na

condição de membros, mas como mão-de-obra barata, porque custavam a quinta parte do

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preço de um escravo negro. Assim, “o índio cativo se converteu no escravo dos pobres, numa

sociedade em que os europeus deixaram de fazer qualquer trabalho manual” (RIBEIRO, 1995,

p. 100).

De acordo com Barazal (2001, p. 36), no contexto que envolveu a contradição entre os

interesses políticos da Coroa, os dos jesuítas e os dos traficantes de índios, nunca se chegou a

uma decisão segura pela liberdade ou pelo cativeiro dos índios. Os índios podiam ser

legalmente escravizados quando aprisionados numa guerra justa, ou quando adquiridos em

resgate, ou quando compunham um lote pago pelo quinto ao governo local, além da

instituição da escravidão voluntária de índios maiores de 21 anos e a compra de meninos

índios a seus pais para receber treinamento para o trabalho. As reduções jesuíticas foram

formas de cativeiros, apesar de serem os índios das reduções não considerados escravos nem

servos, por estarem sendo cristianizados. Mas, exerciam trabalhos para seu sustento, eram

recrutados para a guerra, eram designados para trabalhos compulsórios de interesse público

(edificação de igrejas, estradas, etc.), e podiam ser arrendados aos colonos mediante salário.

Se esta não era a melhor situação para os índios, com a expulsão dos jesuítas a

situação piorou ainda mais, uma vez que o objetivo era liberar os índios das missões para

integrá-los “como iguais e até com certos privilégios na comunidade colonial”. (RIBEIRO,

1995, p. 105). Não foi o que aconteceu.

Os aldeamentos missionários foram substituídos por vilas que trocaram o carisma

religioso pela opressão das autoridades locais e de colonos, cujas posturas se justificavam a

partir do argumento baseado no exercício e cumprimento de normas legais estabelecidas por

autoridades, nem sempre legítimas. Assim, os índios nominalmente livres, passaram a ser

arrendados numa condição pior do que a de escravos (que possuíam um valor venal), para

servir como mão-de-obra alugada para tarefas lucrativas aos contratantes. Por isso, “esse

desgaste humano do trabalhador cativo constitui uma outra forma terrível de genocídio

imposta a mais de um milhão de índios”. (RIBEIRO, 1995, p. 105). A legislação indigenista

brasileira, desde o período colonial até a independência do Brasil, mostrou-se

progressivamente antiindígena, porque além de incentivar a escravização dos índios, chegou a

prever organizações armadas contra os mesmos, tendo em vista o objetivo de alargar a

colonização até as mais longínquas áreas, ocupadas pelos povos nativos.

Por último, na terceira fase, referente à revolução do século XIX e à independência da

Metrópole, surgiu uma etapa diferente no que diz respeito às relações entre os índios e a

sociedade independente. Com a independência surgiram os Estados nacionais latino-

americanos que, segundo Barazal (2001, p. 37), eram concebidos de acordo com o modelo e

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contexto da revolução francesa e da revolução industrial. Eram, portanto, fundamentados em

uma ordenação de base jurídica que pretendia conectar a legalidade com legitimidade

democrática, objetivando alcançar, pelo menos em termos ideais, a igualdade e a liberdade

dos cidadãos. Estes ideais presentes nas constituições dos recém criados Estados nacionais, na

realidade, não contemplaram a diversidade étnica ou a identidade dos povos autóctones que os

compunham. Isso porque a base para a legitimação e solidificação dos Estados modernos está

pautada na unidade nacional, que necessita de um território politicamente demarcado, uma

população determinada a aceitar as regras de um direito comum, uma cultura única, e a

soberania do Estado em termos político-administrativos.

Assim sendo, não há espaço para contemplar a diversidade cultural ou étnica, presente

nos vários segmentos sociais. Esta nova situação representou para os indígenas uma espécie

de diluição de sua identidade no contexto da identidade nacional. Dessa maneira, apesar do

princípio democrático que sustenta o sistema de organização política das nações modernas,

para as nações indígenas a situação se tornou um pouco mais nebulosa porque, por exemplo,

em função de um Estado de direito instituído, o índio deixou de ser índio para ser um cidadão

comum.

Para melhor entender a lógica do Estado nacional, Barazal (2001) acha necessário

considerar que, no sistema de organização das nações modernas, encontra-se a defesa da

personificação de uma única nação soberana que, por esse motivo, desconsidera a

possibilidade da diversidade. Nos casos em que ocorreram processos de integração de povos

nativos às sociedades nacionais, eles acabaram transformando-se em cidadãos de segunda

mão, devido à perda da identidade e da discriminação social que sofreram. Este fato é muito

comum e visível na América Latina. Há também casos de nações que desapareceram por

completo, tanto física como culturalmente. E existem, ainda, nações indígenas que, resistindo

ao processo de integração, continuam lutando por suas terras e pela preservação de suas

unidades identitárias e autonomia.

A unidade identitária de uma comunidade pode ser reconhecida em casos que, “tendo

uma continuidade histórica como sociedades pré-colombianas, se consideram distintas da

sociedade nacional. E índio é quem pertence a uma dessas comunidades indígenas e é por ela

reconhecido”. (CUNHA, 1987 apud Barazal, 2001, p. 39). Portanto, levando-se a lei em

consideração, pode haver erro na interpretação da realidade indígena quanto à sua integração

na sociedade nacional, assim como é errôneo generalizar essas comunidades como blocos

unitários, quando cada uma delas representa singularidades socioculturais que as diferem

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entre si. Para Ramos, quando se dão os contatos com as populações nacionais que as

envolvem, essas comunidades não são respeitadas como

produtos de processos históricos distintos dos que marcam as sociedades ocidentais e que elas desenvolveram uma série de características que lhes dão uma feição própria e que contrastam fortemente com aquelas...desde a organização da produção até a relação dos homens com o sobrenatural, passando por formas de residência e matrimônio e sistemas políticos. A ênfase nessa busca de denominadores comuns está na preocupação em desvendar a lógica dos sistemas sociais desses povos que, muitos séculos antes da chegada dos europeus ao Novo Mundo, já haviam resolvido problemas que hoje afligem as populações regionais e nacionais, principalmente na Amazônia. (RAMOS, 1988 apud BARAZAL, 2001, p. 39).

Barazal conclui que essa diversidade étnica em contato com os povos nacionais

promove atritos que derivam, primeiramente, do fato de que todos os povos necessitam

desenvolver suas próprias disposições estruturais para resolver os conflitos de interesses de

uma maneira ordenada, para impedir que desemboquem em confrontações internas. Em

segundo lugar, existem diferenças qualitativas e quantitativas entre os tipos de interesses

encontrados nas sociedades organizadas em comunidades e os encontrados nas sociedades

nacionais. E, por último, há diferenças nos métodos empregados para impedir confrontações

prejudiciais.

Existe uma grande distância entre as determinações do direito positivo, que rege as

sociedades modernas, e o direito consuetudinário, comum nas comunidades indígenas, e

existe grande dificuldade em conciliar situações de contato interétnico que envolvam os dois

casos típicos. A verdade é que desde a chegada dos europeus ao continente latino americano,

iniciou-se o conflitivo processo de colonização dos povos nativos, que na época eram maioria

da população e aos poucos foram transformando-se em minoria. Dessa maneira chegou-se à

atual situação dos povos indígenas, prevalecendo a dificuldade de superação das diferenças

culturais. Mudaram os contextos históricos, mas ainda não foi possível superar o conflito

entre as comunidades indígenas e os Estados nacionais.

Barazal chama a atenção para outro fator estrutural preocupante na América Latina,

que diz respeito às dificuldades políticas internas, conseqüência do temperamento latino,

dirigidas por um tipo de mentalidade apolítica, herdada do período colonial e estendida até a

independência. Para a autora, nada é mais desolador que um estudo das várias constituições

sancionadas nos diferentes Estados da América Latina e constatar que as leituras seriam sobre

as mesmas declarações, cópias dos modelos americano ou francês, com os mesmos sistemas

políticos, com a separação dos três poderes, sufrágio universal, etc. Neste sentido, “a América

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Latina continua organizada socialmente entre uma aristocracia, herdeira da conquista, uma

massa iletrada de mestiços e de índios, e a persistente classe média”. (BARAZAL, 2001, p.

41).

Porém, dados relativamente recentes a respeito da situação dos índios na América

Latina, divulgados pelo jornal Folha de São Paulo no dia 20 de fevereiro de 2000, mostram

que os índios latino-americanos vêm partindo para a ação política, como meio de manter sua

sobrevivência. Alguns líderes indígenas estão criticando o assistencialismo das políticas

públicas e provando que são capazes de defender seus direitos. Para demonstrar a nova

realidade sul-americana, foram apresentados dados contendo a população de alguns desses

países, assim como o percentual da população autóctone e sua participação nas decisões

políticas de cada Estado. No México, 10% dos 97,7 milhões de habitantes são indígenas e há

representações indígenas no lugar de prefeitos em vários municípios no Estado de Oaxaca. Na

Guatemala, 54% dos 12,3 milhões de guatemaltecos são indígenas e o acordo firmado em

1996, que encerrou uma guerra de trinta anos, garantiu-lhes novos direitos. No Equador, 25%

dos 13,1 milhões de equatorianos são indígenas e eles aumentaram sua participação no

Congresso equatoriano, passando de um deputado na legislatura anterior para oito na atual. Na

Nicarágua, 3% dos 5 milhões de nicaragüenses são indígenas e os índios miskitos

combateram o regime sandinista, na década de 1980, que acusavam de tentar acabar com seus

costumes ancestrais. Na Colômbia, 1% dos 38,6 milhões de colombianos são indígenas e a

Constituição de 1991 reconheceu a multiplicidade étnica e cultural do país, garantindo-lhes

duas cadeiras no Senado. No Peru, 46% dos 26,6 milhões de peruanos são indígenas e eles

participaram do conflito que opôs os integrantes do Sendero Luminoso às Forças Armadas.

Esquerdistas dominam sua representação política. Na Bolívia, 65% dos 8,1 milhões de

bolivianos são indígenas e suas entidades estão ligadas a sindicatos importantes e exigem

mais direitos sociais para os índios. No Chile, 5% dos 15 milhões de chilenos são indígenas e

os índios mapuches iniciaram, em 1998, uma ofensiva para reivindicar seus direitos ancestrais

a territórios no sul do Chile. Na Venezuela, 2% dos 23,7 milhões de venezuelanos são

indígenas e a Constituição de 1999 aumentou sua participação política ao garantir-lhes um

mínimo de três vagas na Assembléia Nacional. No Brasil, 0,15% dos 160 milhões de

brasileiros são indígenas e, atualmente, não há índios exercendo cargo de senador, de

deputado federal ou estadual no país, apesar da Constituição de 198813 garantir-lhes mais

direitos e autonomia. Percebe-se uma mudança significativa no cenário da América Latina

13 Capítulo VIII da C.F. anexado ao final da monografia

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quando “a Organização dos Estados Americanos os incluiu, pela primeira vez, no ano

passado, na discussão em torno dos direitos dos povos indígenas. E a ONU debate a

Declaração Universal dos Povos Indígenas, com o envolvimento direto dos interessados”.

(Folha de S. Paulo, 2000 apud BARAZAL, 2001, p. 41). A Declaração foi elaborada em

1992, no encontro realizado entre vários líderes indígenas do mundo, ocorrido na sede da

ONU.

2.5 A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL

Em termos demográficos, a presença indígena no Brasil é das menores verificadas no

panorama latino-americano, contrastando com outros países, como Bolívia, Guatemala, Peru e

Equador. (PEYSER & CHAKIEL, 1994 apud OLIVEIRA FILHO, 1997, p. 62). Apesar de

comparativamente pouco significativa na escala numérica, a presença indígena tem uma

grande importância na formação do Estado Brasileiro e no processo de construção de uma

identidade nacional.

Ancorando-se em disposições jurídicas e em um aparato estatal específico, as questões relativas aos índios já assumem nos dias de hoje um papel de destaque nos debates nacionais sobre ordenamento territorial, proteção ambiental, política mineral e energética e relações internacionais. (OLIVEIRA FILHO, 1997, p. 62).

Conforme Cunha (1997, p. 106), a partir da década de 80, a previsão do

desaparecimento dos povos indígenas cedeu lugar à constatação de uma retomada

demográfica geral. Ou seja, os índios estão no Brasil para ficar! A autora atribui dois motivos

principais para o notável crescimento demográfico da população indígena nas últimas

décadas. Em primeiro lugar, este crescimento se deveria ao fato de que muitos índios já

criaram resistência imunológica às doenças trazidas pelos brancos que outrora dizimaram

tantos deles. Além disso, novos grupos de indígenas foram contatados no início dos anos 70,

durante o chamado milagre brasileiro, e estão agora iniciando este processo de crescimento

demográfico. O outro fator de crescimento populacional seria que muitos grupos, em áreas de

colonização antiga, após terem ocultado sua condição discriminada de indígenas durante

décadas, reivindicam novamente sua identidade étnica.

A população indígena no Brasil aumentou nos últimos dez anos e situa-se hoje,

provavelmente, em torno de 370 mil (Instituto Socioambiental), mas nunca se voltará à

situação de 1500, quando a densidade demográfica da várzea amazônica era comparável à da

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península ibérica: 14,6 habitantes por km² na primeira (de acordo com Denvean, 1976: 230),

contra 17 habitantes por km² em Espanha e Portugal (Braudel, 1972: 42) citados por Cunha

(1997, p. 107).

De acordo com Cunha (1997, p. 108), o Brasil conta atualmente com 519 áreas

indígenas esparsas que, juntas, totalizam 10,52% do território nacional, com 897.577, 85 km².

Apesar da Constituição, em seu artigo 67 das disposições transitórias, prever a data de 5 de

outubro de 1993 para a demarcação destas áreas, atualmente cerca de metade (256) estão

demarcadas fisicamente, e homologadas (Cedi, 1993). As outras 263 áreas estão em diferentes

estágios de reconhecimento, desde as 106 totalmente sem providências até as 27 demarcadas

fisicamente, mas ainda não homologadas. Acrescente-se o dado muito relevante de que cerca

de 85% das áreas indígenas sofrem algum tipo de invasão.

2.5.1 O Índio: Cidadão Brasileiro?

Apesar da copiosa legislação que lhe diz respeito, o índio brasileiro, em face da lei, é

cidadão por omissão e tem uma situação jurídica imprecisa, que dá lugar a uma série de

problemas.

Até a promulgação do Código Civil Brasileiro, o índio era identificado como pessoa

totalmente incapaz e sujeito à tutela dos juízes de órfãos, sempre dispostos a autorizar a

retirada de crianças das aldeias, a título de adoção, e a ratificar as transações mais lesivas aos

índios. A lei impossibilitava, ainda, àqueles que se destacavam do grupo, a realização de atos

civis fundamentais, como a identificação, o casamento, o registro e a transmissão de

propriedades. (RIBEIRO, 1996, p. 225).

O estatuto jurídico de capacidade civil relativa foi regulamentado em 1928, pela lei nº

5484, promulgada por iniciativa do SPI (o extinto Serviço de Proteção ao Índio), em que o

indígena é colocado sob tutela direta do Estado, representado por aquele órgão,

estabelecendo-se que dela poderia emancipar-se progressivamente, até sua plena investidura

nos direitos e deveres do cidadão brasileiro comum. Esta integração progressiva é prevista na

lei, sendo o SPI encarregado de classificar os grupos tribais em quatro categorias, relativas a

diferentes graus de participação na vida nacional, a saber: os grupos nômades, os grupos

arranchados ou aldeados, os grupos reunidos em povoações indígenas e, finalmente, os

incorporados a centros agrícolas onde vivem como civilizados. Os índios das três primeiras

categorias regem suas relações pelos costumes tribais, enquanto que os da última categoria

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têm assistência do SPI em suas relações com as autoridades ou perante a justiça, sendo nulos

os atos firmados sem esta assistência. (RIBEIRO, 1996, p. 226).

A mesma lei estabelece medidas de proteção às terras indígenas, define o modo de se

processarem os atos civis, classifica como revestidos de circunstâncias agravantes os delitos

cometidos contra índios e assegura amparo especial ao índio que cometa qualquer infração,

permitindo que as penas a que forem condenados índios das três primeiras categorias sejam

cumpridas nos postos indígenas, e proibindo a prisão celular para qualquer silvícola14.

(RIBEIRO, 1996, p. 226).

Diversas inovações na situação legal do índio foram introduzidas pelos atos que

aprovaram o regimento do SPI e, posteriormente, o modificaram. Dentre elas, destaca-se o

abandono da classificação de postos indígenas, criada pela lei nº 5484, de 1928, e sua

substituição por outra que prevê os seguintes tipos de postos: de atração, vigilância de

fronteiras, assistência, nacionalização e educação, criação de gado e alfabetização. A nova

tipologia, não se prestando à classificação dos índios para efeito de responsabilidade civil,

veio tornar ainda mais complexa a imprecisa situação jurídica do índio (RIBEIRO, 1996, p.

227).

Nestas condições, impõe-se a regulamentação do Código Civil, tendo em vista

condicionar o gozo dos direitos e a atribuição dos deveres co-relativos somente à capacidade

individual dos indígenas para exercê-los. Emancipando o índio, como pessoa, da tutela legal,

no que possa ter de limitativa, mas preservando, para a comunidade e para os índios a ela

vinculados, condições especiais de amparo legal, como as asseguradas à mulher grávida e ao

menor que trabalha. (RIBEIRO, 1996, p. 227).

A mesma revisão é imposta quanto ao Código Penal. Segundo Ribeiro (1996, p. 228),

a experiência do SPI demonstra que a punição de crimes cometidos entre índios, assim como

todos os seus problemas de delinqüência, devem ser confiados aos sistemas tribais de

dissolução de conflitos e de controle social, apenas interferindo o agente do posto quando

estes deixam de atuar ou no caso de conflitos entre índios e não-índios.

Seria incoerente entregar o índio à justiça comum, para aplicar-lhe dispositivos de um

código de castigos feitos para outra sociedade e incapaz de penetrar os valores que motivam

seu comportamento.

A legislação protecionista propugnada pelo SPI tem em vista compensar a condição

desfavorável do índio para competir igualitariamente com os demais cidadãos, assumir

14 Silvícola: O termo se refere àquele que nasce ou vive nas selvas e é freqüentemente utilizado por Ribeiro para referir-se aos índios.

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deveres e gozar de direitos estatuídos na legislação ordinária para o membro comum da

comunidade nacional. Sendo, porém, uma legislação de exceção, só o é nos limites das leis

também especiais que amparam o menor e a mulher que trabalha, para assegurar-lhes

garantias indispensáveis à sobrevivência na atuação competitiva dentro da sociedade nacional.

(RIBEIRO, 1996, p. 229).

Muitas vezes, alega-se que esta legislação tutelar priva o índio de seus direitos

sagrados como cidadão. Ribeiro (1996, p.229) alega que só ela é capaz de garantir aos índios

a liberdade de permanecerem índios e de deixarem de sê-lo, quando as condições sociais o

permitam e quando eles vejam vantagem em assumir a condição do brasileiro comum. Para o

autor, longe de extinguir seus direitos, essa legislação especial lhes dá mais oportunidades de

exercê-los. Se fosse equiparado ao cidadão brasileiro comum, o índio perderia as instituições

assistenciais que o defendem, tendo apenas o direito nominal de recorrer a instituições

comuns que desconhece e que, se não atendem ao cidadão perfeitamente integrado na vida

nacional, a ele atenderiam muito menos.

2.5.2 A FUNAI

A FUNAI é o órgão do governo brasileiro que atualmente estabelece e executa a

política indigenista no Brasil, dando cumprimento ao que determina a Constituição de 1988.

O órgão foi instituído em 1967, para substituir o antigo SPI, criado em 1910, quando, segundo

Ribeiro (1996, p. 158), se “fixou as linhas mestras da política indigenista brasileira”. Todas as

funções do extinto órgão foram, então, transferidas à FUNAI.

Compete à FUNAI promover a educação básica aos índios, demarcar, assegurar e

proteger as terras por eles tradicionalmente ocupadas, além de estimular o desenvolvimento

de estudos e levantamentos sobre os grupos indígenas. A fundação tem, ainda, a

responsabilidade de defender as Comunidades Indígenas, de despertar o interesse da

sociedade nacional pelos índios e suas causas, gerir o seu patrimônio e fiscalizar as suas

terras, impedindo assim as ações predatórias de garimpeiros, posseiros, madeireiros e

quaisquer outras que ocorram dentro de seus limites e que representem um risco à vida e à

preservação desses povos.

Muitas críticas são feitas à FUNAI, principalmente no sentido de que o órgão é

baseado em princípios assistencialistas e tutelares. Para Manchieri (ou Haji Yine), líder

indígena que preside a COICA (Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia

Amazônica), “esse processo não é mais útil aos povos indígenas. A Funai tem um quadro

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impossível de se trabalhar. É tão burocrático, que as pessoas só vivem de favores”. (2003).

Para ele, o ideal seria a criação de um órgão ligado diretamente à Presidência que atuasse em

coordenação permanente com as organizações indígenas, que fosse mais eficaz na

demarcação de terras e na agilização de investigações sobre crimes.

2.6 A QUESTÃO INDÍGENA NO PARAGUAI

A população total do Paraguai, segundo o Censo Nacional de Población y Viviendas,

de 1992 (apud MELIÁ & TELESCA, 1997, p. 85), alcança o número de 4.152.588 habitantes,

dos quais a população tida como indígena se reduz a escassos 49.487 indivíduos. Já a revista

MBYA, nº 24 (1995 apud MELIÁ & TELESCA), contabiliza em 79.070 os habitantes

indígenas do país.

De acordo com Meliá e Telesca (1997, p. 104), as principais mudanças em relação à

legislação e políticas indígenas no Paraguai aconteceram a partir de 1989, quando foi

derrubado o regime ditatorial de Stroessner. Desde então, iniciou-se um fortalecimento das

instituições democráticas do país e deu-se início ao processo de elaboração de uma nova

Constituição. Na ocasião, líderes indígenas mobilizaram-se no sentido de exigir participação

direta dos indígenas na elaboração da nova constituição. Após forte pressão e uma histórica

manifestação na esplanada da Catedral até o Congresso, a Convenção para elaboração da

Constituição cedeu aos representantes indígenas um espaço com voz, mas sem voto.

Os autores consideram que tanto a marcha histórica dos indígenas como o apoio de

personalidades do âmbito nacional e internacional influenciaram para que a proposta indígena

fosse levada a sério. Além disso, a presença constante dos representantes indígenas no recinto

das sessões e a habilidade dos assessores indígenas conseguiram que a nova Constituição

reconhecesse a existência dos povos indígenas e seus direitos.

Sem dúvida, o capítulo V da Constituição - De los Pueblos Indígenas15 – consiste em

um avanço sem precedentes na legislação paraguaia, ainda mais se considerando que desde a

Constituição de 1870 os indígenas eram constantemente ignorados. No entanto, Meliá e

Telesca atentam para o fato de que este primeiro passo necessita de um posterior

desenvolvimento. Existe um grande número de leis que se relacionam com diversos direitos

indígenas, e também estas devem ser regulamentadas. Além disso, apesar de respaldados por

15 Capítulo V – De los Pueblos Indígenas - da Constituição paraguaia anexado ao final da monografia.

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mecanismos legais mais complexos, os índios continuam enfrentando graves problemas. Os

autores consideram que estes problemas não são fruto da falta de vontade política, como

muitos costumam dizer. Eles acreditam que esta é uma questão de conflito de poderes e

sistemas de vida, os mesmos conflitos que vêm tendo os povos indígenas desde a colônia.

Para Meliá e Telesca:

Una de las tareas es la de crear condiciones de posibilidad para pensar y re-pensar la relación entre la llamada sociedad nacional y los pueblos indígenas. Estos no pueden ser tenidos como eterno problema, sino como principio de solución para muchos problemas de la sociedad nacional. Y para ellos es de suma importancia que los mismos indígenas continúen en sus formas de vida y tenían posibilidad de comunicarlas, de hacerlas aceptables y respetables y hasta ejemplares en muchos aspectos. La cuestión indígena sigue siendo uno de los termómetros para medir la democracia y el alcance de la práctica de los derechos humanos en un país. En este momento, respetar los derechos indígenas ya consagrados em la Constitución es condición necesaria para construir una sociedad histórico posible más justa. (1997, p. 108).

No Paraguai, os povos de língua Guarani, de acordo com Meliá e Telesca (1997, p. 88)

se extendem pela chamada Região Oriental, localizada a leste do Rio Paraguai, região fértil

especialmente apropriada para os típicos cultivos de milho, mandioca e espécies adaptadas às

montanhas subtropicais. Segundo os autores, estes territórios estão tradicionalmente ocupados

pelos Guaranis há cerca de 2.000 anos. Há, no entanto, dois grupos Guaranis, os Chiriguanos

e os Ñandeva, que estão localizados na região ocidental do Paraguai.

2.7 A QUESTÃO INDÍGENA NA ARGENTINA

Tamagno (1997, p. 119) considera que o problema indígena é um questão negada na

Argentina. A autora escreve sobre a imagem que os argentinos construíram ante seus vizinhos

latino-americanos, de que são um país sem índios, que os índios são o passado, que eram

poucos e não deixaram sinais, que não conformam sequer parte da sua identidade nacional,

que são um país de “gringos”, que definitivamente se parecem mais aos europeus que a seus

irmãos latino-americanos.

Apesar da imagem de país branco, gerada em relação aos interesses próprios das elites

dominantes, a questão indígena apareceu como uma preocupação na política no ano de 1984,

quando se iniciou a discussão sobre o Proyecto de Ley de Protección y Apoyo a las

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Comunidades Aborígenes. O projeto seria promulgado com o número 23.302 e serviria de

plataforma de discussão e marco legal para um série de movimentos de representação.

A lei 23.302 sobre política indígena e apoio às comunidades aborígines foi sancionada

em 1985, mas segundo Tamagno (1997, p. 123), ainda não houve avanços significativos com

relação à regulamentação da mesma que permitam sua plena aplicação. Para a autora, a

criação do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas, apesar de haver sido objeto de

regulamentação, não conseguiu converter este organismo em algo mais que um ente

assistencial, sem nenhuma participação de representantes indígenas em seu funcionamento.

No que diz respeito à aplicação da lei, Tamagno considera que existem apenas

algumas exceções onde uma forte mobilização local tem permitido que se apele à citada

norma para fazer valer algumas reclamações. No entanto, tem crescido significativamente a

pressão daqueles que se reconhecem com indígenas organizados para exigir seus direitos. A

autora assinala, portanto, que a simples existência da norma legal gera a possibilidade de

legitimar as exigências.

A Asociación Civil, segundo Tamagno, é o marco legal ao que devem recorrer os

povos indígenas para obter o status de Pessoa Jurídica no país. A atual reforma da

Constituição dá direito às comunidades indígenas de obter este status, mas ele não diminui as

dificuldades da implementação. Para a autora, o que parecia um avanço legal, os coloca ante a

necessidade de organizar-se através de uma formalização que lhes é alheia e que está longe de

expressar as lideranças tal como se constroem na prática cotidiana do grupo.

A Constituição Nacional Argentina, de 1853, em sua revisão de 1994 dispõe sobre os

direitos indígenas em seu Capítulo IV- Atribuiciones Del Congreso16.

16 Capítulo IV- Atribuiciones Del Congreso – da Constituição Argentina anexado ao final da monografia.

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3 O GUARANI: UM POVO DIVIDIDO POR FRONTEIRAS DE

ESTADOS NACIONAIS

Em todo o mundo existem muitos casos em que povos indígenas e tribais foram

divididos por fronteiras nacionais estabelecidas sem o seu consentimento. Os Guarani vivem

no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia17. Há pelo menos dois mil anos ocupam a

mata atlântica deste território, que foi sendo dividido por fronteiras antes mesmo da invasão

portuguesa. O Tratado de Tordesilhas em 1493, entre Portugal e Espanha, já dividiu o

território desse povo e a partir de então várias outras retaliações aconteceram. Na Argentina,

os Guarani vivem na Província de Misiones, em pelo menos 60 comunidades, com

aproximadamente 3.900 pessoas. No Brasil, distribuem-se nos estados do Rio Grande do Sul,

Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, sendo cerca de

40 mil pessoas. No Paraguai vivem cerca de 20 mil pessoas, e no Uruguai existe apenas uma

comunidade, próxima a Montevidéu. A Bolívia é o país onde vive a maior quantidade de

indivíduos: são 50 mil. (De acordo com o PORANTIM, 2004).

Neste capítulo veremos alguns aspectos fundamentais da cultura guarani, com o

objetivo de demonstrar que este povo possui uma identidade própria e por isso é antes

Guarani que brasileiro, argentino, paraguaio e uruguaio. Os conceitos trabalhados

anteriormente, de nação e etnia, nos ajudam a entender por que os Guaranis constituem uma

nação alheia aos Estados nacionais em que estão inseridos, ainda que submetidos à soberania

dos mesmos. O que queremos é demonstrar que este grupo, ainda hoje, após séculos de

dominação e contato com as sociedades nacionais, mantém viva sua cultura e identidade. Isso

faz com que mantenham intenso contato com seus parentes que vivem além das fronteiras

nacionais dos países em que estão fixados. Em nossas visitas a comunidades Guarani,

constatamos que não só os Guarani que vivem em regiões de fronteira, mas também aqueles

que estão distantes delas, como os que moram na Grande Florianópolis, mantêm relações com

os Guarani de outros países. Isso demonstra que mesmo divididos pelas fronteiras político-

administrativas dos Estados nacionais, os Guarani entendem que são membros de uma mesma

nação, independentemente do país em que estão fixados.

17 Ver figura 2 na página 53.

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O povo Guarani vem sendo objeto de estudo de vários autores, que abordaram muitos

aspectos de sua cultura. Neste trabalho não nos aprofundaremos em nenhum aspecto

específico da cultura Guarani, mas faremos uma síntese daquilo que consideramos

fundamental para demonstrar que este povo possui cultura e identidade próprias. Tal

constatação deriva tanto da pesquisa bibliográfica, quanto das nossas visitas realizadas a

comunidades Guarani entre junho e outubro de 2004.

3.1 OS GUARANI ANTES DA INVASÃO EUROPÉIA

Conforme expõe Brighenti (2001, p. 18), a bibliografia que trata do território ocupado

pelos Guarani na época da conquista é bastante ampla e homogênea, não havendo

contradições comprometedoras entre os diferentes pesquisadores. A partir de dados históricos

é possível reconstituir um território básico ocupado por esse povo no momento da conquista.

Para Melià

esses grupos que conhecemos como Guarani passaram a ocupar as selvas subtropicais do Alto Paraná, do Paraguai e do Uruguai Médio. Os índios que assim se movimentam em busca de novas terras não são nômades que dependem substancialmente da caça e da coleta; são agricultores que sabem explorar eficazmente essas terras de selva, cujas árvores derrubam e queimam, plantam milho, mandioca, legumes e muitas outras culturas. São também hábeis ceramistas, fabricando os artefatos que necessitam para preparar e servir os alimentos. Como colonos dinâmicos, os Guarani continuarão sua expansão migratória até os tempos da invasão européia no Rio da Prata (na década de 1520) e ainda em plenos tempos históricos até nossos dias (grifo do autor). (MELIÀ apud BRIGENTHI, 2001, P. 19).

Saguier identifica que havia maior concentração Guarani em um núcleo central na

região situada entre os rios Paraná e Paraguai e que a partir desse núcleo estendiam-se por um

território mais amplo:

O núcleo Guarani propriamente dito se centrava entre os rios Paraná e Paraguai com certas prolongações; pode-se dizer que os Guarani habitavam a atual região oriental do Paraguai, o estado do Mato Grosso e partes da costa Atlântica, no Brasil, e a província de Misiones na Argentina, com algumas fixações em território boliviano pelo noroeste e Uruguai pelo sudeste. (SEGUIER apud BRIGENTHI, 2001, p. 19).

Já Hélène Clastres não identifica um núcleo populacional central para os Guaranis,

mas pela sua descrição, percebe-se que essa população ocupava uma ampla região no cone sul

americano, como descreve:

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Os Guarani ocupavam a porção do litoral compreendida entre Cananéia e Rio Grande do Sul; a partir daí estendiam-se para o interior até os rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Da confluência entre o Paraguai e o Paraná, as aldeias indígenas distribuíam-se ao longo de toda a margem oriental do Paraguai e pelas duas margens do Paraná. Seu território era limitado ao norte pelo rio Tietê, a oeste pelo rio Paraguai. (CLASTRE apud BRIGENTHI, 2001, p. 19).

Os Guarani formavam aquilo que os missionários espanhóis chamaram de conjuntos

territoriais ou províncias. De acordo com Melià (apud Brigenthi, 2001, p. 20), estas

províncias abrangiam um vasto território que ia desde a costa atlântica, ao sul de São Vicente,

no Brasil, até à margem direita do rio Paraguai, e desde o sul do rio Paranapanema, e do

Grande Pantanal ou lago de Jarayes, até às ilhas do delta, junto a Buenos Aires.

Conforme expõe Brigenthi (2001, p. 24), mesmo considerando a abrangência do

território ocupado, a domesticação de grande variedade de plantas, a alta produção de

alimentos, os permanentes contatos entre os diversos guára (grupos de aldeias), a unidade

lingüística, dentre outros fatores que propiciam a integração, é mais comum entre os

pesquisadores a afirmação de que a organização dos Guarani não estava na perspectiva de

sociedade estatal. Dentre os defensores desta tese está Schaden, que utiliza seu argumento

também para os Guarani contemporâneos: “de qualquer forma os Guarani constituem uma

unidade apenas no sentido ‘tribo-nação’, e não ‘tribo-estado’. Em parte alguma, a sociedade

guarani contemporânea chegou a constituir organização de tipo estatal". (SCHADEN apud

BRIGENTHI, 2001, p. 24).

Nessa mesma linha de análise segue o pensamento de Melià, argumentando que os

Guarani formavam uma nação, embora não no sentido moderno de Estado. De qualquer

forma, dada a pertinência do tema, é possível concluir que não estamos tratando de um

pequeno grupo de pessoas, mas de um povo bastante grande para os padrões quinhentistas,

vivendo um período de mudanças. Os pesquisadores estimam que a população Guarani

situava-se entre um milhão e quinhentos mil e dois milhões de habitantes.

Dada a unidade lingüística dos diferentes dialetos que compunham os vários guára,

além da estreita relação na organização sócio-política e nas manifestações culturais,

receberam o nome genérico Guarani, que continua sendo utilizado até hoje. Segundo a

classificação de Rodrigues (apud BRIGENTHI, 2001, p. 28), os falantes da língua guarani

pertencem à família tupi-guarani e ao tronco lingüístico macro-tupi ou Tupi.

De acordo com Brigenthi (2001, p. 29), as pesquisas arqueológicas sugerem que os

primitivos Tupi teriam se originado há provavelmente cinco mil anos atrás, entre os rios Ji-

paraná e Aripuanã, afluentes do rio Madeira. Com o processo de diferenciação cultural, houve

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56

a separação completa de Tupi e Guarani há mais de 2.000 anos. Isto ocorreu devido ao fato de

os Guarani estarem ocupando o Paraná e o Rio Grande do Sul nesse período, conforme

provaram as pesquisas arqueológicas. As populações que se adaptaram ao clima quente do

litoral atlântico foram os Tupi, e os que se adaptaram ao clima temperado das matas

subtropicais dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, desenvolvendo uma tradição baseada na

cultura do milho, foram os Guarani.

3.2 OS SUBGRUPOS GUARANI E A PRESERVAÇÃO DA IDENTIDADE

A maioria das populações indígenas encontradas pelos europeus na bacia platina

falava dialetos da língua guarani. Não houve preocupação, necessidade ou interesse, por parte

da metrópole, em compreender melhor as relações internas dos diferentes grupos e as relações

estabelecidas entre eles. De acordo com Brigenthi (2001, p. 34), os agentes europeus

organizaram e catalogaram nucleações a partir de seus interesses, da disponibilidade de

informações e das relações que se estabeleciam. As nomeações dadas a essa população eram

as mais variadas possíveis. Não havia critérios lingüísticos ou sociais para esse fim, usavam

basicamente informações empíricas, colhidas no próprio grupo ou a partir da região onde

viviam, como foram os nomes dos diferentes guára, e que muitas vezes recebiam também o

nome do cacique principal.

Para Cadogan (apud BRIGENTHI, 2001, p. 35), o Guarani apresenta cinco variantes

dialetais: Guarani Paraguayo (denominada assim a língua híbrida hispano-guarani); o Mbyá

Guarani, o Chiripa, o Pãi ou Pãi Kaiowá e o Guayaki. Melià completa a informação, dizendo

que, na região ocidental do Paraguai, existem ainda o Guarayo e o Tapieté, sendo que estas

duas línguas correspondem ao complexo Chiriguano da Bolívia.

Na tentativa de unificação de pronúncia, Schaden (apud BRIGENTHI, 2001, p. 36)

organizou, nos anos 50, uma nova classificação dos subgrupos Guarani encontrados no Brasil,

e que serviu também para classificar os grupos Guarani que vivem no leste do Paraguai e na

província de Misiones, na Argentina: Mbyá, Kaiowá (ou Paí no Paraguai) e Nhandeva (ou

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Xiripá no Paraguai). Para os Guarani que vivem na Bolívia, continua-se usando a

denominação de Chiriguano18.

A classificação sugerida por Schaden corresponde a diferenças existentes entre esse

povo, verificadas nas aldeias, já que boa parte delas é constituída apenas por uma das

parcialidades, embora haja pessoas de outros subgrupos vivendo numa mesma aldeia. Os

critérios básicos utilizados por Schaden para esta classificação foram a proximidade

lingüística e, sobretudo, a cultura material:

em que pese as ligeiras variações entre as numerosas aldeias, a divisão em três subgrupos se justifica por diferenças sobretudo lingüísticas, mas também por particularidades da cultura material e não material. (...) A existência de três dialetos Guarani em território brasileiro pode ser verificada com a maior facilidade. Não há dúvida de que fora do Brasil existem outros. (SCHADEN apud BRIGENTHI, 2001, p. 37).

Brigenthi (2001, p. 37) observa que nos últimos anos vem se explicitando e

acentuando cada vez mais a subdivisão entre os três subgrupos – Mbyá, Chiripá e Kaiowá. Os

conflitos e a auto-afirmação cultural são perceptíveis entre os três subgrupos, evidenciando a

necessidade de exaltar suas particularidades, cada qual querendo se apresentar como sendo

mais Guarani que os outros. É consenso entre os pesquisadores considerar o Mbyá como o

grupo mais conservador no tocante à pureza de sua cultura e ao mesmo tempo o menos

abalado em sua organização social. Os Chiripá são percebidos como os mais “aculturados”

que se submetem à FUNAI e a toda ordem de projetos e pessoas.

O tipo de conflito que estabelecem entre si está relacionado com as perspectivas

culturais e sociais das comunidades. Embora continuem manifestando a existência do

distanciamento cultural, Brigenthi visualizou uma aproximação ao estereótipo cultural: a vida

sedentária torna-os mais iguais. Atualmente, as maiores diferenças são percebidas entre os

que aceitaram a assistência do Estado e a sedentarização, e os que permaneceram migrantes,

“livres nas matas”.

Litaiff (1996, p. 55) notou, principalmente entre os Mbyá, o desejo de continuar livre

nas matas, como forma de manter sua tradição. “O Guarani quer viver assim no mato, quer

fazer plantinha dele, quer segurar nação, a língua, a tradição”, declarou o cacique Verá Mirim

ao autor. A preservação da língua Guarani também é destacada como ferramenta fundamental

da preservação do Guarani: “sendo a língua importante fator de identidade e coesão social

para os Mbyá, sua etnicidade vai além de suas aldeias e fronteiras nacionais” (1996, p. 54).

18 Por ser este um subgrupo que está presente majoritariamente na Bolívia, observamos que não existe uma interação tão intensa entre os Guarani que vivem na Bolívia e os que vivem no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. De todas maneiras, nosso objetivo não é aprofundar a questão dos subgrupos Guarani.

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Em nossas visitas, constatamos que os Guarani conversam entre si somente no seu idioma,

excluindo de suas conversas os não-índios. Com os estranhos, comunicam-se em português ou

espanhol carregado de sotaque. Muitos falam somente a língua nativa, principalmente as

crianças mais novas e os idosos, que não mantêm contato com a sociedade externa.

De um modo geral notamos a preocupação dos Guarani em manter viva sua cultura e

identidade étnica. No entanto, o lugar onde experimentamos isso com maior intensidade foi

com os Guarani Mbyá de Fortín Mbororé, na província de Misiones, na Argentina. Lá, fomos

convidados a participar de uma cerimônia de canto e dança na casa de reza. Todos cantaram e

dançaram; um rapaz tocava o mbaracá (o violão de madeira ocidental, porém afinado de

maneira diferente da convencional), enquanto que os demais homens e meninos tocavam o

chocalho, e as mulheres e meninas uma espécie de bambu que batem no solo, como que

querendo comunicar-se com sua mãe terra. O cacique Silvino Moreira nos falou da sua

preocupação em manter viva a cultura do grupo:

La única manera de nos mantener como Guarani es mantener la cultura y las costumbres. Por eso ensinamos a los niños nuestra costumbre. Ellos tienen que aprender a bailar, a cantar nuestras canciones, rezar, aprender a plantar también, para sobrevivir como Guarani. Tenemos un coro de niños que cantan, hasta grabamos un cd. (DEPOIMENTO À AUTORA EM 23/06/04)

3.3 A ESTRUTURA SOCIAL GUARANI

Segundo Melià (apud BRIGENTHI, 2001, p. 42) “Para o Guarani a palavra é tudo. E

tudo pra ele é palavra”. Essa frase sintetiza o modo de ser Guarani e toda sua visão de mundo.

Brigenthi explica que no caso da palavra Guarani, não se trata da palavra ensinada ou

aprendida por outros humanos, mas da palavra enquanto essência de vida que só Nhanderu -

nosso pai, a divindade - pode ensinar. A palavra nutre as relações da comunidade, onde tudo

está ligado.

Todos os estudiosos da cultura Guarani destacam a importância da família na

organização social. Como em quase todos os povos de tradição tupi, no caso Guarani a família

extensa representa e desempenha um papel fundamental na organização social, sendo

praticamente sua base. Fogel (apud BRIGENTHI, 2001, p. 44) comenta que “a linhagem

sócio-econômica básica era a linhagem ou família extensa; numa casa comunal residiam até

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100 famílias, numa aldeia havia normalmente entre três a sete unidades habitacionais ou

casas-linhagem”. A família é a unidade de produção e é na família que se dá a distribuição

dos bens. Conforme os registros do século XVII, havia uma linhagem patrilinear ou grupo

macrofamiliar, unido pelo parentesco, composta pelo pai, mãe, filhos solteiros, filhas

solteiras, filhas casadas, genros, filhos adotivos, netos e bisnetos, que habitavam a casa

comunal. Na medida em que a família extensa cresce, através dos casamentos e nascimentos,

ela vai se desmembrando e criando novas famílias nucleares e extensas, originando assim um

tekohá (aldeia).

Em vários casos existe a prática da endogamia entre os Guarani, que consideram ideal

o casamento entre indivíduos do mesmo subgrupo, da mesma aldeia ou de outras aldeias. Em

nossas visitas, observamos apenas um caso de um homem Guarani casado com uma mulher

branca. Atualmente, a prática da endogamia torna-se ainda mais importante para preservar a

existência do grupo, já que são poucos se comparados aos não-índios:

Algum índio casa com branco, mas não pode misturar, acaba nação, a

criança fica tudo misturadinha. Se jogar um pouquinho de milho num saco

de arroz, o milho desaparece. Com Guarani é assim, muito pouquinho,

branco já tem muito, então se misturar o índio desaparece.

(DEPOIMENTO A LITAIFF, 1996, p. 59).

De acordo com Brigenthi (2001, p. 46), o papel principal na comunidade Guarani é

exercido pelo Nhanderu - nosso pai, líder religioso, rezador ou líder espiritual, como gostam

de definir os Guarani contemporâneos. A liderança ocorre fundamentalmente na família

extensa ou na união das várias famílias extensas. Ao Mburuvichá ou Tuvichá, que é o líder

político, cabe a função de lidar com os problemas terrenos, conflitos e relações, exercendo um

papel social de integração.

Os estudiosos das chamadas sociedades tribais ou primitivas observam que nessas

sociedades o chefe não tem poder, ou melhor, a palavra é o seu único poder. O chefe

representa apenas um vínculo entre o divino e os seres mortais, devendo transmitir as palavras

do alto. Brigenthi (2001, p. 47) observa que essa ausência de poder do chefe confundiu muito

os primeiros europeus que aqui chegaram, acostumados com o poder central do rei. Por isso

afirmaram “que os ‘chefes’ não possuíam poder algum sobre os povos, que ninguém mandava

ou obedecia; declaravam que essa gente não era policiada, que não se tratava de verdadeiras

sociedades: selvagens, sem fé, sem lei, sem rei”. (CLASTRES apud BRIGENTHI, 2001, p.

47). Aqui reside, pois, o núcleo gerador do conflito entre sociedades com e sem Estado.

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Enquanto que nas sociedades com Estado existe uma clara divisão entre dominantes e

dominados, nas sociedades sem Estado o poder não é separado da sociedade e não se pode

isolar a esfera política da esfera social.

O líder ou chefe tribal jamais toma decisões por conta própria e não as impõe à

comunidade, porque não possui meio de coerção para dar ordens: “é um fazedor da paz, ou

seja, a instância moderadora do grupo”. (KERN apud BRIGENTHI, 2001, p. 48). Observa-se

que os papéis são distribuídos internamente na aldeia e cada qual tem o dever de cumprir sua

função. Há um misto entre papéis previamente ou naturalmente constituídos, como é o caso

das lideranças religiosas, e os papéis dos demais cargos, como as lideranças políticas e de

ajuda, geralmente indicadas pelas lideranças religiosas ou até mesmo escolhidas pela

comunidade. Quando há interferência de agentes externos nas indicações dos cargos dessa

segunda ordem, é comum ocorrerem conflitos internos ou descontentamentos.

Brigenthi comenta que a figura do cacique, difundida provavelmente pelos espanhóis,

tomou grande dimensão não só entre os Guarani como entre outros povos. Embora

mantenham as lideranças tradicionais, geralmente o cacique é escolhido dentre elas e é o que

tem maior facilidade para relacionar-se com os não-indígenas. Junto à figura do cacique

aparece também a figura do vice-cacique. Em muitas aldeias Guarani existe igualmente a

figura do capitão, que muitas vezes exerce a função de cacique. É também uma figura imposta

e quase sempre é um chefe autoritário, fora do sistema tradicional. Essa figura do capitão é

mais comum entre aos Chiripá e Kaiowá, ou nas aldeias Mbyá que tiveram contatos mais

intensos com a FUNAI. Portanto, fica claro que essa figura foi imposta pelo próprio Estado.

Nos últimos anos, em função do crescente contato com os não-indígenas e do

envolvimento e participação em discussões e debates na defesa de seus direitos, surgiu a

necessidade de estabelecer maior contato fora das aldeias em reuniões e encontros. Surgiu,

assim, a figura da liderança que, na maioria das vezes, é ocupada pelos mais jovens que

possuem maior domínio da língua portuguesa ou espanhola e melhor conhecimento das

questões estruturais e políticas das sociedades não-indígenas.

3.4 A ECONOMIA GUARANI

De economia essencialmente agrícola, os Guarani tiveram papel importante na época

da conquista, quando socorreram os primeiros viajantes europeus, de acordo com Brigenthi

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(2001, p. 51). Produziam com fartura, tanto para alimentar a população de suas aldeias, como

para alimentar as comitivas dos conquistadores.

Além de se apropriarem dos alimentos oferecidos pelos Guarani, os espanhóis os

forçavam a plantar em quantidade suficiente para abastecer os seus navios. Melià (apud

BRIGENTHI, 2001, p. 52) afirma que a agronomia dos Guarani era mais desenvolvida que a

dos europeus, especialmente nas técnicas e na variedade de plantas cultivadas. Os colonos

europeus se apropriaram das técnicas e das espécies utilizadas pelos Guarani, pois não

conseguiriam sobreviver apenas com as técnicas rudimentares trazidas da Europa.

Os Guarani praticavam uma agricultura denominada coivara, que consiste na queima

proposital da vegetação para o plantio, com alta produtividade, sem a utilização de

equipamentos de aço ou ferro, como machados e foices. No ambiente tropical e subtropical, a

horticultura consistia em abrir clareiras no meio da densa mata e plantar as espécies

disponíveis. A prática da horticultura era complementada pela caça, pesca e coleta, abundante

na região. Esse método de agricultura exigia o permanente deslocamento, em busca de novas

terras.

A variedade de plantas cultivadas era enorme para os padrões europeus da época:

Os Guarani cultivavam em suas roças 39 gêneros vegetais, subdivididos em pelo menos 159 cultivares [...] Em um estudo de caso, realizado na região do delta do rio Jacuí, Rio Grande do Sul, verifiquei que havia mais de 300 itens vegetais que poderiam compor a dieta Guarani, além das plantas das roças. (NOELLI apud BRIGENTHI, 2001, p. 54).

Brigenthi (2001, p. 54) observa que, como a terra nunca é apenas um simples meio de

produção econômica, a produção também não é um bem acumulativo. Os Guarani geralmente

produzem para viver e, dessa forma, quanto maior a capacidade de produção de uma família,

menor o tempo dedicado a essa finalidade. Segundo o pesquisador, não havia e não há, entre

os Guarani, a prática de armazenar os excedentes na perspectiva de acumular, a não ser para a

reprodução da espécie vegetal e para a utilização em festas. Os vários aspectos da vida

Guarani, como o uso da terra, a produção, a distribuição, e a religião formam uma unidade

indissociável. Assim, a produção destina-se a um fim coletivo, a satisfazer as necessidades do

grupo familiar, através do sistema da troca e distribuição entre as famílias nucleares. Essa

forma de relacionar-se economicamente no sistema doméstico foi denominada por vários

autores de reciprocidade:

A reciprocidade é a expressão mais profunda da solidariedade tribal, o que leva cada um a reconhecer o outro e, portanto, a aceitar as regras que valem para todos [...] O reconhecimento da justa reciprocidade possibilita a

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perfeição, ao fazer os homens existirem como eleitos. (CLASTRES apud BRIGENTHI, 2001, p. 55).

No sistema econômico adotado pelos Guarani, a produção é orientada para atender as

necessidades da comunidade e não ao lucro. Assim, as relações de produção não aparecem

dissociadas das demais relações, sociais, religiosas e de parentesco.

O fundamental na economia Guarani é a oferta recíproca de produtos e trabalhos.

Sobre a distribuição de produtos, Kern observa:

A doação gratuita dos bens e dos alimentos é um dever de cada um e um privilégio de todos [...] É esta reciprocidade solidária e constante que anula as forças centrífugas dos grupos domésticos de consumo e permite a autonomia completa dos grupos tribais e das aldeias. Cada um dá e ganha tudo de todos [...] Desta maneira, o indígena se articulava em termos da reciprocidade e de distribuição de bens e alimentos, num solidarismo constante. A redistribuição constitui, do ponto de vista social, uma relação no interior mesmo do grupo, caracterizando-se por ser uma ação coletiva. Já a reciprocidade é uma relação entre componentes dos grupos, ou seja, ação e reação entre as partes do todo. (KERN apud BRIGENHTI, 2001, p. 55).

Na economia Guarani a festa desempenha um papel fundamental de socialização dos

bens colhidos em abundância e de exaltação da forma de vida aspirada com plenitude, além

de estar relacionada a um poder simbólico de manter a abundância e perpetuar as festas

futuras. (MELIÀ apud BRIGENTHI, 2001, p.56).

Brigenthi (2001, p. 57) comenta que, apesar das mudanças que se processaram no

sistema econômico guarani, as formas de distribuição e troca continuam sendo mantidas com

os bens adquiridos no mercado ou doados por terceiros, especialmente alimentos. O

pesquisador verificou, no entanto, que em casos de recebimento individual de salários, como

ocorre com indígenas que trabalham na função de professores, agentes de saúde e outras, vai

se criando uma diferenciação, pois este ganho é consumido no núcleo familiar e raramente é

repartido. A espécie monetária talvez tenha uma outra conotação, ou seja, não é interpretada

como um bem a ser distribuído.

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3.5 A IMPORTÂNCIA DA TERRA PARA O GUARANI

Um dos aspectos fundamentais da cultura Guarani é a relação estabelecida com o

espaço geográfico, ou seja, a maneira pela qual estão ligados à terra, que se transforma em

espaço cultural e religioso. A terra representa muito mais que um simples espaço de

residência e cultivo; é o lugar da vivência religiosa.

A questão da terra, a terra perfeita, a terra sem mal, a terra ideal e o ideal de terra, para

os Guarani, formam um todo. A terra se identifica com o tekohá, ou seja, o lugar onde se dão

as condições que possibilitam o modo de ser Guarani. O tekohá é o conjunto, a combinação

de três espaços com características físicas e sócio-políticas. De acordo com Brigenthi (2001,

p. 59), o tekohá deve possuir os seguintes espaços:

Espaço I: local de mata preservada, onde realizam a perambulação e onde praticam a

caça, a pesca, a coleta de frutos, mel e material para a confecção de utensílios domésticos e de

artesanato;

Espaço II: local cultivável, que pode ser na mata, com roças descontínuas;

Espaço III: local social e político, que consiste na aldeia, onde são construídas as

casas, a opy - casa de reza, o pátio, constituindo o lugar de convívio diário e de habitação.

Fig. 3. DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DE UM TEKOHÁ (a partir do modelo proposto por

Melià e apresentado por Brigenthi).

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Os três espaços se cruzam e se complementam na medida em que as relações políticas

e sociais também acontecem no espaço da roça e da coleta. Portanto, não é possível separar ou

desmembrar espaços ou querer reduzi-los a uma das três categorias apenas.

Segundo Brigenthi (2001, p. 61), alguns Guarani atuais consideram sua aldeia um

tekohá, enquanto que outros não, justamente pela falta de espaço adequado. São visíveis os

problemas enfrentados pelos Guarani, face à necessidade de se adaptarem a lugares inóspitos

e transformá-los em tekohá. A falta de um espaço apropriado compromete a sobrevivência de

gerações e a manutenção da cultura do grupo. Em muitos lugares a população Guarani está

bastante concentrada. A concentração populacional das aldeias, além de constituir aspecto

importante da sua cultura, pode ser considerada, atualmente, como a única forma possível de

sobrevivência, dada a ausência de terras regularizadas e a própria pobreza do solo. O

desequilíbrio populacional está intimamente ligado ao desequilíbrio das relações sociais e

econômicas.

A relação entre a terra, enquanto espaço físico mensurável, e o ideal de terra, a Terra

sem mal - Yvy mara ey, gerou entre os estudiosos os mais controvertidos debates acerca dos

verdadeiros motivos que estariam levando esse povo a desenvolver extensas caminhadas em

busca de novos lugares.

Em relação a esse tema, Brigenthi (2001, p. 61) cita duas correntes entre os estudiosos

da cultura guarani. Uma delas, baseada em Nimuendaju (1914), Métraux (1927) e Clastres

(1978), encara as migrações dos Guarani como uma atitude simbólico-religiosa, cujo objetivo

seria encontrar a “Terra sem mal”. A outra, baseada especialmente em Melià, Noelli (1999) e

Cadogan (1959 e 1992), agrega outros fatores às migrações guaranis, como os ecológicos e as

relações com a sociedade dominante.

Clastres justifica que as migrações dos Guarani, antes da chegada dos europeus,

tinham como finalidade a busca da terra sem mal. Comenta que também depois da conquista

“várias migrações efetuadas por tribos tupis ou guaranis tiveram como fim exclusivo a busca

da terra sem mal”. (CLASTRES apud BRIGENTHI, 2001, p. 62).

Com relação às migrações guaranis pós-conquista, foi Nimuendaju o primeiro a

referir-se, presenciar e registrar uma migração, segundo ele, com essa finalidade. Afirma ter

sido o primeiro a registrar o local ideal, segundo a tradição guarani, para se alcançar a terra

procurada, que seria, na interpretação Guarani, do outro lado do mar, a leste.

Os líderes religiosos conheciam os caminhos que levavam à Terra sem mal, mas isso

não quer dizer que conheciam o local exato. Ter o conhecimento dos mecanismos e das

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formas de conduta social que levam um Guarani a seguir o caminho e a alcançar a Terra sem

mal, não significa partir para um determinado local. Como diz Clastres, “é muito mais: é

querer escapar do peso – demasiado humano – da coletividade”. (CLASTRES apud

BRIGENTHI, 2001, p. 63).

Clastres, ao referir-se às migrações de caráter religioso, afirma:

[...] uma tradição religiosa que nem os maiores abalos conseguiram enfraquecer. Nenhum sincretismo existe aqui. E, ao contrário do que se dá com os movimentos messiânicos, não deparamos com nenhuma ressonância política: não se trata de revoltas; nenhuma reivindicação política ou territorial acompanha ou provoca as migrações. É, ao contrário, e como antigamente, o abandono do território e a passagem à vida nômade.

(CLASTRES apud BRIGENTHI, 2001, p. 64).

Na opinião da autora, a Terra sem mal é o local onde não há morte, local indestrutível,

onde a terra produz em abundância. Não é apenas o local destinado aos mortos, mas um lugar

que é possível atingir em vida, “ir de corpo e alma”. Para isso é necessário atingir a perfeição,

a completude, tornando-se leve. Sendo assim, a vida na terra é apenas um tempo de prova,

uma etapa passageira, sujeita a todo tipo de peso e não apenas ao peso do alimento que se

ingere, mas à “toda vida social”. Viver a vida tradicional com muita reza e dança, recusando-

se a aceitar o modo de vida “estrangeiro”, ingerir alimento tradicional, à base de milho e

excluir os alimentos não Guarani, deixam a pessoa mais leve e possibilitam atingir a Terra

sem mal.

Na outra corrente de pensamento, com enfoque mais fundamentado na perspectiva

atual, estão as posições de Cadogan, Melià e Noelli.

Para Cadogan, as migrações guaranis, lideradas por pajés, que se sucederam depois da

presença européia em seu território, eram forçosamente realizadas para fugir da dominação

espanhola.

Melià afirma que a Terra sem mal não é propriamente a terra “depois do oceano”, ou

no “zênite”, mas a terra palpável, a terra que se materializa e ao mesmo tempo a terra que

continua sendo buscada.

Como veremos, a busca da “terra sem mal” e de uma “terra nova” estrutura marcantemente seu pensamento e suas vivências; a “terra sem mal” é a síntese histórica e prática de uma economia vivida profeticamente e de uma profecia realista, com os pés no chão. Animicamente, o Guarani é um povo em êxodo, embora não desenraizado, pois a terra que procura é a que lhe servirá de base ecológica, amanhã como em tempos passados. (MELIÀ apud BRIGENTHI,2001, p. 66)

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O autor considera que a migração, como história e como projeto, constitui um traço

característico dos Guarani, embora muitos de seus grupos tenham permanecido por séculos

num mesmo território e nunca tenham realizado uma migração efetiva. Ele enfatiza, no

entanto, que o Guarani não é nômade, que o caminhar faz parte do grupo, pois ele gosta de

visitar outras comunidades e os parentes. A migração se dá pela necessidade de recriar as

condições ambientais, de buscar novos espaços para melhor desenvolver seu modo de ser. “A

tradição neste caso é profecia viva”.

Se há necessidade de buscar a Terra sem mal, é porque a terra onde estão não é mais

adequada às suas necessidades em plenitude; é porque o mal está impregnado nas relações

que forçosamente se estabelecem com os não-indígenas. Os espaços possíveis de

constituírem-se em tekohá vêm sendo intensivamente reduzidos, destruindo o ambiente

ecológico da floresta, intensificando o cultivo num mesmo local e provocando o cansaço do

solo. A terra já não é mais um bem coletivo, criado por Nhanderu - Nosso Pai, para servir a

toda população, mas necessita de uma legislação que a determine e delimite. Em

conseqüência, faz-se necessária a busca de novos espaços mais adequados.

Em visitas a comunidades Guarani, constatamos que muitos indivíduos mudam

freqüentemente de lugar ao longo de suas vidas. São comuns os relatos, principalmente de

pessoas acima de 40 anos, sobre a quantidade de deslocamentos efetuados durante a vida,

tendo como ponto de partida alguma aldeia situada em território paraguaio, argentino ou

brasileiro. O pesquisador Brigenthi (2001) compilou vários testemunhos que confirmam esta

constatação.

Segue o resumo do relato das andanças de Wera Ñeery ou Artemio Brizola, ou

Brissoela, como gosta de ser tratado, de 70 anos. Nascido no Tekohá Pirapó no Paraguai, hoje

mora na aldeia Ka’agüycupé ou Piraí, localizada no município de Araquari em Santa Catarina.

Werá se diz pertencer ao subgrupo lingüístico Mbyá.

Quando morreu meu pai, eu vim do Paraguai [com mais ou menos oito anos], me trouxeram de lá. Na Argentina, morei lá na Argentina, morei 35 anos. Eu conheço Capiovi, Cunhapiru, Porto Rico, Garuva Pé, Paranaí, Cunhatambu, Eldorado, Arroio Toro. Ali também tem Guarani. Perto de Iguaçu também tem, não sei que parte. Lá tem tudo parente meu, lá na Argentina. Eu tenho meu irmão, lá na Argentina. Eu tenho meu irmão que tá morando lá em Paranaí, o Sílvio Brissoela, Brizola. Conhece esses? Não sei quantos anos vim pro Brasil, faz uns 14 anos. Primeiro vim pra Gamelinha, em Guarita. Aí passei pro Cantagalo, eu primeiro que entrei lá, com o Artur e outras pessoas. Depois do Cantagalo fiquei um ano perto de Criciúma, de lá saí pra Pirabeiraba (Garuva), aí voltei pra Corveta, naquele tempo tava o sogro do Aparício. O Aparício morava aí perto de Jaguaruna. Fui pro Piraí II, depois pra Barra do Sul e voltei pra Corveta. Quando saí da

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Corveta fui para Itajaí. Morei lá quatro anos. Em Itajaí, no Espinheirinho, saí de novo e fui pra Ibirama, morei nove meses. Daí voltei outra vez, voltei pra Itajaí, de lá aí passou a Funai e levou tudo pro Morro dos Cavalos. Aí vim pra cá, morei na Corveta e da Corveta vim pra aqui. (Depoimento a BRIGENTHI em março de 1999).

Alcindo Werá Moreira, 71 anos, liderança religiosa da comunidade Guarani de

M’biguaçu, em Santa Catarina, afirma pertencer ao subgrupo lingüístico Chiripá, tendo

nascido em território brasileiro. Até hoje sempre residiu em aldeias situadas no Brasil, quase

todas em Santa Catarina:

Eu sou nascido em Passo Feio, em Nonoai (aldeia Guarani em TI Kaingang, RS). Estou com setenta e poucos anos. O pai já veio do Paraguai, não sei de onde. Me criei em Santa Catarina, sem família, lá por Quilombo (Rio Pesqueiro ou Rio do Peixe), andando de lá pra cá. Porque no meu tempo, quando eu tinha sete anos, não ficava mais em casa. Pra lá e pra cá. Fazia qualquer coisa... balaio, né. (Depoimento a BRIGENTHI).

Karaí Tataendy, Augusto da Silva, 56 anos, nasceu no Brasil, no estado do Paraná.

Quando criança mudou-se para a Argentina, e mais tarde retornou ao Brasil. Atualmente vive

no Tekohá Massiambu, município de Palhoça, em Santa Catarina. Karaí, diz que é Mbyá.

Eu nasci na Mangueirinha, na Palmeirinha, esse dois lá perto do Iguaçu. Então de lá, quando eu tinha sete anos, nós saímos de lá e fomos morar perto de Foz do Iguaçu, ali num lugar chamado Capanema. Não é bem Capanema ainda, é do outro lado, na Argentina, mas é bem na divisa. A gente trabalhava no Brasil, no tempo da colheita, só que morava do outro lado, na Argentina... A minha mãe está lá no Peperi Guaçu (Argentina), perto de Itapiranga (Município de Itapiranga SC). Parece que é Coqueiros o nome do lugar. De Capanema nós fomos ali no Peperi. Ficamos uns tempos lá, e, depois, viemos lá ... em Porto Alegre. Eu fiquei uns tempos lá, por lá. No Rio Grande eu fiquei uns tempos na Pacheca e depois em Cantagalo, no município de Viamão, e de lá eu vim aqui na Palhoça (terra fraca), na beira da BR (282). De lá já faz uns quatro anos que eu vim aqui (Massiambu). (Depoimento a BRIGENTHI)

Existem muitos outros relatos de pessoas que vivem atualmente nas mais diferentes

aldeias e que apresentam uma história comum: os inúmeros deslocamentos por territórios hoje

considerados Paraguai, Argentina, Brasil e Uruguai. Por trás de cada história, cada

deslocamento, há referências a violência e sonhos. Violência que os impede de continuar

vivendo livremente em suas aldeias nas matas, que praticamente já não existem mais, e nas

terras que lhes pertencem. Violência que lhes tolheu a liberdade de continuar a viver a

reciprocidade e o sonho de encontrar a terra com liberdade, com produtividade, com mato,

com os espíritos, a terra sem os males.

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Pelos depoimentos, percebemos que existe uma conjugação de fatores que motivam ou

forçam os deslocamentos. Entre eles está a prática da FUNAI que, desde os tempos do

Serviço de Proteção ao Índio, confina famílias e diferentes povos num mesmo local. A

permanência em terras de outros povos gera conflito devido à impossibilidade de viverem seu

próprio sistema tradicional. Outro motivo é a questão das terras, que muitas vezes são

apropriadas e se tornam alvo de disputa entre os índios e os não-índios. Em muitos desses

casos, o grupo prefere abandonar o local, optando pelo deslocamento ao invés do confronto.

Conflitos com políticas e práticas governamentais também são apontados como fatores que

motivam os deslocamentos. Há, ainda, outros fatores, como o casamento, a visita de parentes,

mortes, feitiços e concentração populacional que provocam deslocamentos. Entretanto, estes

fatores independem das condições adversas, pois fazem parte da tradição guarani.

Melià, analisando o caso específico dos Mbyá, sintetiza as pressões externas que

provocam as migrações:

Estes movimentos de verdadeiras migrações, que nada tem a haver com um hipotético nomadismo dos Mbyá, são causados pela grande mobilidade da população paraguaia e de imigrantes brasileiros em toda região, que empurram os indígenas a novos locais. São os indígenas que sofrem as conseqüências da grande e desordenada ocupação de espaços por parte de terceiros, que afetam seu território tradicional, e que provocam mudanças forçadas. A este respeito há outro dado que se deve ter em conta: o surgimento de uma nova comunidade, em um novo local, geralmente acontece por cisão; quer dizer, uma parte da comunidade continua no lugar de origem, porém outras famílias mudam-se. Assim o aumento de localidades, sobretudo no caso dos Mbyá, não tem nada de estranho do ponto de vista da sociologia desta etnia. (MELIÀ apud BRIGENTHI, 2001, p. 113).

Com referência aos Guarani, é muito comum o uso de expressões como: “são índios

paraguaios”, “são estrangeiros”, "vieram do Paraguai" "vieram da Argentina". Ladeira já

assinalava esse ponto: “os Guarani, além de carregarem o estigma de índios aculturados em

virtude do uso de roupas e de outros bens e alimentos industrializados, são considerados como

índios errantes e nômades, vindos do Paraguai” (LADEIRA apud BRIGENTHI, 2001, p. 135)

O fato de que a maior parte dessa população descende de famílias que migraram de

regiões onde hoje se situa o território paraguaio ou argentino, dá margem a incompreensões

em torno da condição de ser Guarani ou de pertencer a um Estado nacional. Percebem-se

discursos equivocados e observações simplistas, pela ausência de uma análise mais apurada.

Existe, por parte dos Estados nacionais, uma análise de cunho político-ideológico, que lhes

nega ou reduz os direitos, mediante a argumentação de que, na condição de estrangeiros, não

terão os mesmos direitos dos demais, especialmente no tangente ao reconhecimento e à

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demarcação das terras que tradicionalmente ocupam. É sabido que as migrações atuais dos

Guarani partiram de um território básico na região compreendida entre o leste paraguaio, o

sudoeste brasileiro (Santa Catarina e Paraná), o sul do Mato Grosso do Sul e o nordeste da

Argentina. Porém, isso não significa que esta seja a totalidade do território Guarani.

Para Melià:

a questão de fundo não é outra que a relação do povo Guarani com o Estado. É um problema de direito e de filosofia política que não diz respeito somente à Argentina, senão também ao Paraguai, ao Brasil e à Bolívia, no caso dos Guarani, mas também a todos os Estados americanos quando se trata de povos indígenas em geral. (MELIÀ apud BRIGENTHI, 2001, p. 136).

De fato, o cerne da questão é a relação dos povos indígenas com o Estado nacional,

que busca a submissão e a integração de um povo que tem vida própria e que não deseja

depender deste Estado. As divisões das fronteiras nacionais separaram o território Guarani,

obrigando este povo a buscar outros espaços e a fugir da pressão das políticas de cada Estado

nacional.

O líder religioso Tekohá Massiambu, Karaí Tataendy, perguntado sobre o guatá, o

caminhar do povo Guarani, respondeu:

É esse que tem que ser Deus que ensina. Antigamente eles pediam pra Deus que vinha pegar eles para levar. Mas é só com Deus que tem que ir. E o Deus não dando o caminho, já não vai, não adianta. E é sempre por aqui que eles iam (referindo-se ao litoral). Bem antes de Pedro Álvares Cabral descobrir essa terra aqui, os índios já iam [..] porque naquele tempo, era uma terra só, não era Brasil, não era Argentina, nem nada, era uma terra só. E aí os índios iam. (grifo do autor). (Em entrevista cedida a ROSATTO apud BRIGENTHI, 2001, p. 137).

Este discurso evidencia vários aspectos fundamentais para o debate da questão atual da

sujeição dos Guarani a um determinado Estado nacional. O espaço sem fronteiras está na

memória guarani. Ele é traduzido na prática pelo guatá, a busca de um local, e não pode se

limitar às fronteiras impostas pelos Estados. Quando os Estados lhes impõe fronteiras, não

apenas negam o direito dos Guarani de possuírem uma terra, mas também o direito de estarem

nessa terra como Guarani.

Nessa perspectiva, Melià conclui sua observação dizendo que:

O Guarani está no Paraguai, está no Brasil, está na Bolívia e está na Argentina, porém não é paraguaio, nem brasileiro, nem boliviano, nem argentino, ou se preferir, ele é paraguaio, brasileiro, boliviano e argentino ao mesmo tempo e de uma só vez. Querer negar esta realidade é querer tapar o sol com a peneira. (MELIÀ apud BRIGENTHI, 2001, p. 138).

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Levantamos vários aspectos que demonstram que as definições de terra e território não

se apresentam aos Estados da mesma forma como para os Guarani. Para estes, o território

constitui um espaço cultural, permeado de símbolos, que vão muito além da geografia. A

partir do território se realiza a construção de identidades e os limites sociais e, portanto, de

regiões sócio-simbólicas. A construção de territorialidades acarretará constantes conflitos e

refletirá disputas de poder. Vimos como para os Guarani o território está carregado de

símbolos, enquanto que para os governos e iniciativa privada, a terra representa somente uma

mercadoria.

Para melhor compreender o significado dessa discórdia, é preciso ver o território desde

o ponto de vista dos seus habitantes, os Guarani, e não dos agentes invasores. É necessário

conservar a identidade do povo Guarani dentro da sua macroregião, como direito fundamental

dos povos originais do mundo.

Como afirmou Reséndiz (2002, p. 44), “el territorio es el espacio apropiado y

valorizado – simbólica e instrumentalmente - por los grupos humanos; esta valorización se

realiza mediante la representación y el trabajo”.

Neste sentido, os Guaranis que hoje habitam as regiões fronteiriças ocuparam um

território há milhares de anos, e o transformaram a partir de suas práticas produtivas e

culturais, antropomorfizando-o. A continuidade cultural do povo Guarani transcendeu as

diversas formas de dominação política, dotando seu espaço de simbolismo. Apesar das

inúmeras tentativas de tirar este território sagrado das mãos indígenas, os Guarani continuam

se servindo dele de forma produtiva ao utilizar os espaços usurpados pela cultura ocidental.

Um dos exemplos disso é o que observamos na região de fronteira entre Brasil, Argentina e

Paraguai, próxima ao Parque Nacional do Iguaçu. Lá, os Guarani de Fortín Mbororé e de

regiões próximas vendem seus artesanatos utilizando o lugar como meio de preservação de

sua cultura, e não sendo empregados assalariados do parque, onde teriam que usar uniformes

e cumprir com normas alheias a sua cultura.

Vimos que os Guarani, mesmo divididos por fronteiras nacionais, pertencem a um

mesmo território ainda hoje. Todo este território humanizado gerou uma rede de relações

sociais e espaços de identidade, que só são possíveis pela sociabilidade comunitária e

intracomunitária que se criou ao longo de várias gerações. Estas gerações enfrentaram os

mesmos problemas históricos e foram guiadas por modelos de valores semelhantes. Daí o

surgimento de um estilo de vida específico e uma vontade de viver em uma coletividade

ampla e extensa que lhes confere sua identidade. Desta forma, a região cultural pode ser

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considerada como suporte da memória coletiva e como o espaço de inscrição do passado do

grupo. Jiménez diz que:

La identidad regional se da cuando una parte significativa de los habitantes de una región ha logrado incorporar a su propio sistema cultural los símbolos, valores y aspiraciones más profundas de su región. [...] Vivir la identidad no se da de manera aislada, sino asimilando las diversas experiencias externas a la comunidad, relacionándose claramente en una macroregion, incorporando elementos ajenos a la tradición cultural. Así estas experiencias son asimiladas a sus procesos culturales; la diversificación, la apertura y las relaciones comunes permiten fortalecer la identidad regional. (Jiménez, 2000 apud Reséndiz, 2002, p.52).

Para fortalecer a identidade nacional, é necessário conservar as culturas das

populações originais sem cometer um etnocídio, despojando-as de sua identidade cultural para

assimilá-las às sociedades nacionais.

O breve relato etnográfico sobre os Guarani pôde mostrar que a manutenção da

integridade da cultura deste povo tem, literalmente, esbarrado nas fronteiras nacionais

estabelecidas pelos Estados que se formaram no território originalmente ocupado pelos

indígenas. No entanto, e apesar disso, a conservação da identidade dos Guarani só tem sido

possível graças a uma relativa autonomia. Este elemento é básico, já que não existe identidade

sem autonomia. Uma coletividade que não pode decidir sobre seu modo de vida, que não pode

viver segundo os valores que considera fundamentais, não consegue existir como tal. Para

reverter esta situação, a configuração do território Guarani deveria estar desvinculada de

fronteiras estabelecidas, negociadas e impostas pelos Estados nacionais. Porém, prerrogativas

desta natureza só são possíveis se previstas em leis ou convenções ratificadas pelos Estados

nacionais.

No próximo capítulo veremos o empenho de outras nações no sentido de procurar

resolver problemas semelhantes aos do povo Guarani.

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4 A PREOCUPAÇÃO COM A MANUTENÇÃO DA INTEGRIDADE DAS NAÇÕES INDÍGENAS NO MUNDO

O continente Americano é, desde a domesticação do milho há 15 mil anos, morada de

diversos povos e civilizações originais cujo projeto de nação foi subitamente cortado com a

invasão européia. O projeto civilizatório destes povos se viu impedido e surgiu a necessidade

de submeter-se ao invasor para sobreviver como povo nação. No capítulo anterior mostramos

que os Guarani constituem um desses povos. Entendemos que, mesmo depois de tanto tempo

submetidos às vontades dos Estados nacionais em que estão situados, mantêm viva uma

identidade própria e a noção de povo Guarani.

No entanto, estas pessoas são constantemente submetidas à opressão, exclusão dos

processos de tomada de decisões, marginalização, exploração, assimilação forçada e repressão

quando tratam de exigir seus direitos. No caso dos Guarani, que tiveram sua nação dividida

por fronteiras de Estados nacionais, esses problemas são ainda mais agravantes. O fato de não

poderem manter sua unidade como nação enfraquece a força política do grupo e dificulta o

reconhecimento dos seus direitos por parte dos governos.

Atualmente os problemas, as queixas e os interesses dos povos indígenas são muito

semelhantes, especialmente no que diz respeito à manutenção da sua identidade e patrimônio

cultural. Os povos indígenas aprenderam a fazer uso de recursos típicos das sociedades

modernas, como os dispositivos legais, para tentar, de alguma maneira, melhorar sua situação.

Para isso, solicitam a defesa de seus direitos estabelecidos por leis nacionais e internacionais.

Nos últimos anos, diferentes povos e comunidades têm encontrado as ferramentas necessárias

em instituições internacionais ou nos sistemas jurídicos dos países em que vivem para a

aplicação efetiva de uma legislação que respeite seus direitos em todos os aspectos de sua

existência. As reivindicações estão voltadas para a preservação e manutenção de suas culturas

e territórios, assim como para seu direito natural à autonomia, clamando pelo fim do

genocídio e etnocídio, destino traçado aos povos autóctones de todo o mundo.

Com base nos direitos humanos, pretende-se recriar, a partir de instrumentos legais, o

ambiente em que estão envolvidos os povos indígenas. Neste contexto, existem discussões

que buscam encontrar alternativas para a inclusão dos direitos básicos de diferentes etnias na

estrutura social do Estado. Estas propostas, baseadas nos direitos humanos, visam a busca de

alternativas no atual curso dos acontecimentos, apesar das dificuldades enfrentadas e pelas

reações contrárias por parte do sistema jurídico instituído. Sistema este idealizado a partir do

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direito natural, capaz de estabelecer normas de moralidade e justiça de valor universal, que

não contemplaram as necessidades do homem histórico, como por exemplo, as dos povos

indígenas. Barazal (2001, p. 142) completa:

O mesmo sistema político que precisa superar a visão evolucionista que, ao considerar as organizações sociais comunitárias, classifica-as segundo o direito consuetudinário, ou baseado no costume interpretado como um pré-direito, oral, empírico ou arcaico, quando comparado com o direito que rege a maioria das sociedades modernas. As sociedades modernas, ao adotarem o direito positivo, estão usando a classificação de ‘mais evoluídas’ na escala dos tipos de direito existentes. Não é preciso concordar com esta visão evolucionista, mas, se realmente assim fosse, não seria o caso de se cobrar das sociedades ‘mais evoluídas’ uma postura mais amadurecida em relação aos povos autóctones tidos como ‘primitivos’?

Tomei & Lee (1999, p. 8) definem o direito consuetudinário como as normas

obrigatórias que os povos indígenas e tribais costumam aplicar aos membros de suas próprias

comunidades. Esse direito, em geral, não é codificado nem reconhecido pelo sistema legal

nacional dos países onde vivem os ditos povos. Existem muitos exemplos de práticas que para

os indígenas têm caráter obrigatório, mas que na nossa sociedade são inaceitáveis. Por

exemplo, quando uma mãe Yanomami dá a luz a gêmeos, somente a criança que nasce

primeiro é mantida viva, enquanto que a outra é morta, geralmente por afogamento. A prática,

usada pelos Yanomami como forma de preservação do grupo e equilíbrio na comunidade,

costuma assustar os não-índios e é considerada crime pelo Estado brasileiro. Mesmo assim, os

Yanomami jamais são punidos por tal atitude, já que é um direito seu decidir sobre as

questões internas que lhes afetam.

De todas maneiras, a discussão sobre os direitos sociais ou coletivos demonstra que

alguns segmentos da sociedade encontram-se menos amparados, juridicamente, que outros, o

que não condiz com os princípios do direito. O que se pretende é garantir os direitos de

sobrevivência física, genética e cultural aos povos indígenas que, pelo simples fato de

pertencerem a um estado cultural divergente daquele que rege as sociedades modernas, vêem-

se obrigados a submeter-se a legislações que lhes são pouco favoráveis.

No caso específico dos Guarani, trata-se de buscar legitimidade dentro do direito

internacional a um grupo étnico que é alheio às sociedades nacionais. No mundo, e em

especial no continente americano, existem leis e experiências que levam à autonomia na livre

determinação dos povos. A privação dos Guarani de se locomoverem, produzirem e

reproduzirem-se conforme seus costumes nos seus territórios originais é colocada, então, em

xeque, pois que a tendência mundial é de reverter esta situação. Isso deve ser feito a partir dos

Estados, sendo que assim isso não se atentaria em absoluto a sua soberania. É fundamental,

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porém, que se leve em consideração a cultura Guarani, “visto que os Estados sempre fizeram

as leis para os indígenas sem tomar em conta seus desejos” (TABOADA TABONE, 2003, p.

18). Um exemplo claro disso é o que observamos em comunidades Guarani da grande

Florianópolis, onde o governo construiu algumas edificações, que deveriam servir como casa

de reza. Naturalmente, tais construções são completamente alheias à sua cultura e sequer são

utilizadas pelos Guarani.

A seguir veremos como algumas organizações internacionais vêem se ocupando da

questão indígena e como estes organismos dão respaldo à proposta desta monografia sobre a

preocupação com a integridade da nação Guarani em detrimento das fronteiras dos Estados

Nacionais. Veremos, ainda, que existem povos indígenas de determinadas etnias que já

lograram estabelecer vínculos de cooperação através das fronteiras de Estados nacionais.

4.1 A ONU E A PREOCUPAÇÃO COM OS POVOS INDÍGENAS

A ONU tem se ocupado de forma crescente em promover os direitos dos indígenas.

Esta crescente preocupação, evidentemente, foi marcada pelas pressões feitas pelos povos e

organizações indígenas, inclusive nos fóruns da ONU. A Organização estima os indígenas em

300 milhões de pessoas, que formam em torno de 5000 povos indígenas em 70 países do

mundo.

No intuito de promover os direitos dessas populações, no ano de 1982 criou-se o

Grupo de Trabalho Sobre Populações Indígenas, um órgão subsidiário à Subcomissão,

estabelecido pela Subcomissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Este Grupo de

Trabalho chegou à redação da Declaração sobre os Direitos das Populações Indígenas, que

atualmente está sendo revisado.

Existem ainda vários organismos especializados do Sistema das Nações Unidas, como

PNUD, UNICEF, FIDA, UNESCO, Banco Mundial, OIT e OMS, que trabalham para dirigir

programas destinados a melhorar a saúde, os direitos trabalhistas, e a alfabetização dos

indígenas, assim como para evitar a deterioração ambiental das terras nativas destes grupos.

O ano de 1992 representou um momento histórico para as populações indígenas,

quando aconteceu a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento. Na ocasião, vinte representantes indígenas eleitos por populações

autóctones se manifestaram diretamente da Assembléia Geral, expressando suas preocupações

ante a deterioração de suas terras e do meio ambiente, assim como as condições atuais de seus

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povos e os esforços que serão necessários para captar a atenção internacional e lograr uma

vida melhor para as populações indígenas de todo o mundo. A Assembléia Geral proclamou

1993 o “Ano Internacional das Populações Indígenas do Mundo” e a década de 1995-2004

como o “Decênio Internacional das Populações Indígenas do Mundo”, no intuito de fortalecer

a cooperação internacional para resolver os problemas das comunidades indígenas.

4.1.1 A Convenção N° 169 da OIT

A Convenção nº 169, Sobre Povos Indígenas e Tribais19, é considerada o instrumento

jurídico mais atualizado sobre o tema. Foi adotada na Conferência Internacional do Trabalho,

em Genebra, em junho de 1989, e desde então vários países a ratificaram. Somente na

América Latina, segundo nota do Instituo de Estudos Socioeconômicos (INESC), foram doze

países até agora: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala,

Honduras, México, Paraguai, Peru e Venezuela. No Brasil, após vários anos em tramitação no

Congresso Nacional, a Convenção no 169 foi aprovada em junho de 2002. Assim, a

Convenção, que havia entrado em vigor internacional em 5 de setembro de 1991, passou a

vigorar no Brasil em 25 de julho de 2003. Por fim, em 19 de abril do presente ano, entrou em

vigor o decreto que estabelece que a Convenção será cumprida tão inteiramente como nela se

contém.

De acordo com Tomei & Lee (1999, p. 13), a Convenção tem exercido significativa

influência na definição de políticas e programas nacionais, além de servir de modelo na

formulação de diretrizes e políticas de vários órgãos de desenvolvimento. Os autores citam,

como exemplo, o caso do governo da Guatemala, que após longas negociações com a

Unidade Nacional Revolucionária Guatemalteca (UNRG), assinou o Acordo sobre Identidade

e Direitos dos Povos Indígenas, em 1995. Para tanto, as partes utilizaram a Convenção nº 169

como parte do contexto conceitual. Outro exemplo é o ocorrido na Federação da Rússia, onde

a Duma (órgão relativo aos povos tribais no país), com base na Convenção nº169, analisou a

legislação e as medidas práticas em favor dos povos indígenas residentes no norte do país.

19 O termo “indígenas” é utilizado para os povos que habitavam uma área específica antes da chegada de outros grupos e é válido no continente americano e em algumas regiões do Pacífico. O termo “tribais” é utilizado na maior parte do mundo, onde não há distinção clara entre a época em que os povos originais habitavam uma região e a chegada de outros grupos. A intenção da Convenção é abranger uma situação social sem estabelecer prioridades nos antepassados que houvessem ocupado primeiro uma área territorial. De qualquer forma, a Convenção não faz nenhuma distinção no tratamento dos povos indígenas e dos povos tribais, dando a ambos os mesmos direitos.

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Segundo Tomei & Lee (1999, p. 14), a Convenção tem despertado interesse mesmo

naqueles países que não possuem população indígena. Os governos que defendem a

ratificação da mesma argumentam que dessa forma as políticas de desenvolvimento e a ajuda

bilateral aos povos indígenas e tribais serão mais eqüitativas e efetivas.

Ao adotar a Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais, a convenção observou

que em muitas partes do mundo estes povos não gozam dos direitos humanos fundamentais na

mesma proporção que o resto da população, reconhecendo suas aspirações a assumirem o

controle de suas próprias instituições, seu modo de vida e seu desenvolvimento econômico. A

nova Convenção consiste em uma revisão de normas anteriores da OIT, especialmente da

Convenção nº 107, de 1957, e se aplica aos povos indígenas em países independentes cujas

condições sociais, culturais e econômicas os distinguem de outros setores da coletividade

nacional e a aqueles povos considerados indígenas por sua descendência.

Os conceitos básicos da Convenção são o respeito e a participação; respeito à cultura,

à religião, à organização social e econômica e à identidade própria, que são premissas

indispensáveis para a existência perdurável dos povos indígenas e tribais.A Convenção

anterior, de nº 107, presumia sua integração às sociedades nacionais. A consciência de sua

identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para

determinar os grupos interessados, o que significa que à ninguém é dado o direito de negar a

identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal. A utilização do termo

“povos” na Convenção se refere à idéia de que não são “populações”, mas sim “povos” com

identidade e organização própria. Porém, esclarece-se que a utilização de tal termo não deverá

ser interpretada em sentido que tenha alguma implicação no que se refere aos direitos que

possam ser conferidos a esse termo no Direito Internacional.

A Convenção estabelece que os governos deverão assumir, com a participação dos

povos interessados, a responsabilidade de desenvolver ações para proteger os direitos desses

povos e garantir o respeito a sua integridade. Para isso, deverão ser adotadas medidas

especiais para salvaguardar as pessoas, as instituições, seus bens, seu trabalho, sua cultura e

meio ambiente. Portanto, os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos

humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculo ou descriminação, não devendo ser

utilizado nenhum meio de força ou coação que viole estes direitos e liberdades.

Ficou definido também que, ao aplicar a Convenção, os governos deverão consultar os

povos interessados sempre que examinarem medidas que os afetem diretamente,

estabelecendo os meios através dos quais possam participar livremente da adoção de decisões

em instituições eletivas e outros organismos. Da mesma forma, foi reiterado que os povos

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indígenas e tribais deverão ter o direito de decidir suas próprias prioridades com relação ao

processo de desenvolvimento, na medida em que este afete suas vidas, crenças, instituições,

bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou utilizam, e de controlar, na medida do possível,

seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural.

A Convenção reforça as disposições que continha a Convenção 107 a respeito da

necessidade de que a legislação nacional e os tribunais levem devidamente em consideração

os costumes ou o direito consuetudinário dos povos indígenas e tribais. Deverão ser

respeitados, por exemplo, os métodos a que esses povos recorrem tradicionalmente para a

repressão dos delitos cometidos por seus próprios membros. .

Um aspecto muito importante da Convenção é o capítulo sobre as terras, em que se

reconhece a relação especial que os indígenas mantém com a terra e os territórios que ocupam

ou utilizam e, em especial, os aspectos coletivos desta relação. São reconhecidos, portanto, o

direito de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam, além da

utilização, em alguns casos, de terras que já não ocupam, mas às quais tradicionalmente

possuíam acesso para garantir sua subsistência e atividades tradicionais. Os direitos desses

povos aos recursos naturais existentes em suas terras deverão ser especialmente protegidos,

compreendendo o direito a participar do uso, administração e conservação desses recursos. A

Convenção estabelece que os povos indígenas e tribais não devem ser removidos das terras ou

territórios que ocupam, sendo que em casos excepcionais, quando a remoção e

reassentamento desses povos sejam considerados de extrema necessidade, eles só deverão ser

efetuados com o seu consentimento.

Outro aspecto relevante na Convenção, principalmente para a problemática proposta

neste trabalho, é a parte VII, que trata de contatos e cooperação através das fronteiras. Esta

parte é dedicada aos vários casos de povos e tribos indígenas que foram separados por

fronteiras nacionais sem o seu consentimento. Para amenizar as implicações dessa situação, a

Convenção estabelece em seu artigo 32 que “os governos deverão adotar medidas

apropriadas, inclusive mediante acordos internacionais, para facilitar os contatos e a

cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive as atividades nas

áreas econômica, social, cultural, espiritual e do meio ambiente”. Para tanto, pode ser

necessária a realização de acordos e tratados entre os países, a fim de dar acesso especial aos

povos interessados. De acordo com Tomei & Lee, este artigo não se limita a contatos entre

pessoas da mesma etnia ou do mesmo grupo cultural, devendo ser levado em conta que os

povos indígenas e tribais podem se comunicar com povos de outros países a fim de criar

vínculos de solidariedade internacional.

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A Convenção também trata de outros temas, como contratação e condições de

emprego, formação profissional, promoção do artesanato e atividades rurais, previdência

social e saúde, educação e meios de comunicação.

Vale lembra que uma convenção constitui em instrumento jurídico internacional,

adotado por uma organização internacional, que obriga legalmente os países que a ratificam.

Ao ratificar a Convenção, os países membros se comprometem a adequar a legislação

nacional e a desenvolver as ações pertinentes de acordo com as disposições nela contidas.

4.1.2 A Declaração de Organizações, Povos e Nações Indígenas e o Projeto de Declaração dos

Direitos dos Povos Indígenas

No ano de 1992, o Conselho Indígena Estadunidense, que é um dos órgãos

subsidiários da ONU, conseguiu reunir em sua sede, em Nova Iorque, mais de 120 delegações

de povos indígenas de todo o mundo, para discutir questões provenientes dos problemas por

eles enfrentados. As questões discutidas giraram principalmente em torno da difícil

sobrevivência de suas nações, religiões e culturas, e da manutenção dos territórios em que

vivem. Como resultado da reunião, foram redigidos a Declaração de Organizações, Povos e

Nações Indígenas, em que se encontram registrados os problemas enfrentados pelos

indígenas, assim como propostas para possíveis soluções; e o Projeto de Declaração dos

Direitos dos Povos Indígenas, elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas

das Nações Unidas. Os dirigentes indígenas fizeram seus pronunciamentos juntamente com

representantes de diferentes regiões do mundo, como América do Norte, do Arco do Pacífico,

da África e Eurásia. Este fato representou um avanço no sentido de se conseguir uma

conscientização mundial sobre a existência de um problema que exige soluções, frente aos

impasses vividos, há muito tempo, pelas populações autóctones.

Considerando o apelo dos povos indígenas como um direito legítimo, por estarem de

acordo com os objetivos dos direitos humanos, notou-se que os próprios Estados nacionais se

mostram incoerentes porque, se eles se mantém comprometidos, por meio de um pacto

internacional, com a Organização das Nações Unidas, no sentido de fazer cumprir suas

determinações, porque não as cumprem de fato? A própria ONU passou a intermediar as

relações das comunidades indígenas e as respectivas sociedades nacionais com uma postura

de pressão política, na tentativa de encaminhar soluções ao problema.

É importante salientar que, para a elaboração de ambos os documentos, os líderes

indígenas e suas organizações fizeram uso dos princípios básicos que constam da Declaração

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Universal dos Direitos do Homem, como forma de legitimar suas reivindicações. Esta atitude

demonstrou que, aos indígenas, não restava outra alternativa que a de adotar os mesmos

critérios utilizados pelas sociedades dominantes, como meio mais eficiente de comunicação.

Pela própria experiência adquirida da convivência com as sociedades modernas, eles

acabaram percebendo que a ninguém é dado o direito de desconhecer a lei. Assim, quando da

realização da Declaração de Organizações, Povos e Nações Indígenas, os membros e

organizações indígenas reunidos na ONU relatam que, para sua elaboração, invocaram

primeiramente os espíritos de seus antepassados, de acordo com a tradição de resistência na

defesa da “mãe-terra”. A seguir, dando início ao registro de suas solicitações baseadas nos

próprios direitos fundamentais e históricos, enumeraram milhões de pessoas que morreram

defendendo suas culturas milenares. Por último, falaram em nome de mais de 300 milhões de

indígenas que atualmente habitam a Terra e dos anos de trabalho por eles empreendidos,

juntamente com a cooperação de ONGs para conseguirem agendar aquele encontro no qual

registraram suas reivindicações comuns.

Dentre as reivindicações consta, no primeiro item, o direito à autodeterminação, tal

como está exposto nos princípios da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. Assim

sendo, pediram a aprovação imediata de tal Declaração para que pudessem decidir sobre

questões relacionadas com assuntos de tipo espirituais, sociais, econômicos e políticos, sem

interferências externas. No segundo item, constataram que o direito aos territórios é

reivindicado por todas as nações e povos indígenas e que as sociedades dominantes continuam

lhes negando. No terceiro item, comentaram a respeito do desenvolvimento das nações-estado

que destroem recursos naturais, até então protegidos em territórios indígenas. Segundo eles,

com este procedimento, as nações-estado estariam ameaçando a sobrevivência de todas as

espécies. No quarto item, reivindicaram das nações-estado e dos organismos internacionais, a

valorização, o respaldo e a inclusão dos povos indígenas na diversidade cultural, intelectual e

social do mundo. No quinto item, reforçaram a legitimação dos direitos indígenas à

reprodução de suas culturas, identidades e línguas como sendo inalienáveis. Alertaram sobre a

não contemplação destes direitos nos programas, nas políticas e pressupostos das nações-

estado e organismos internacionais. No sexto item, denunciaram a contradição de

procedimentos adotados pelas sociedades dominantes que se proclamam democráticas e, no

entanto, praticam o genocídio, promovem a miséria no continente americano e no resto do

mundo. Como exemplo citaram textualmente o caso da América Central e do Sul. No sétimo

item, enalteceram o fato de que, apesar da repressão exercida pelas nações-estado e a

sociedade dominante, o governo soberano dos indígenas continua sobrevivendo. E, no oitavo

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item, ressentiram-se da prática governamental que costuma profanar os lugares, seus objetos

religiosos e sagrados quando deles se apropriam privando, desta maneira, as nações indígenas

de reproduzirem suas formas de vida espiritual.

A partir destes itens comuns à maioria das nações indígenas, solicitam medidas

concretas e não paternalistas por parte das sociedades dominantes. Para tanto, exigiram as

seguintes providências:

1° O reconhecimento dos direitos indígenas a seus territórios ancestrais, incluindo sua

recuperação e sua demarcação.

2º O reconhecimento, o respeito e a elaboração documental, de acordo com o direito

internacional, de todos os tratados, os convênios, acordos e outros pactos estabelecidos com

os povos indígenas, como prioridade por parte das Nações Unidas e seus estados membros.

3º O reconhecimento e o respeito às formas de governo indígenas que se orientam pelos

costumes e leis tradicionais.

4º O fomento e fortalecimento dos direitos de propriedade cultural e intelectual indígena, de

acordo com o direito internacional e seus princípios.

5º A consulta às organizações e nações indígenas para a ratificação da Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho.

6º A disposição em garantir assistência legal e formação técnica às organizações e nações

indígenas.

7º O fomento à reforma de leis e políticas para que se reconheçam os direitos soberanos dos

povos indígenas, tanto no plano nacional quanto internacional.

8º O fomento e consolidação da educação, da cultura, da arte, da religião, da filosofia, da

literatura e da ciência das nações indígenas.

9º A devolução dos lugares históricos, dos locais e objetos sagrados que pertencem às nações

indígenas.

10º A demonstração sincera de compromisso para com os povos indígenas, facilitando-lhes os

recursos econômicos adequados para a tomada de medidas que sejam consideradas

procedentes.

11º Que o secretário geral das Nações Unidas e seus órgãos, comissões e programas

especializados consultem os povos indígenas do mundo em nível mais regionalizado possível.

12º Que o secretário geral das Nações Unidas crie imediatamente um programa específico que

seja administrado e aplicado com a participação direta das nações indígenas.

Em resumo, as nações indígenas estão solicitando das sociedades dominantes e das

autoridades competentes que reconheçam e respeitem seus direitos, segundo os próprios

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princípios que orientam as Nações Unidas. A elaboração da Declaração de Organizações,

Povos e Nações Indígenas e a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas significa a

concretização formal de denúncias que há muito tempo vêm sendo feitas sobre o desrespeito

de direitos considerados fundamentais. A partir de então, chegou-se a um estágio onde se

cobra a seriedade e responsabilidade das sociedades dominantes, na figura de seus

governantes, quanto ao cumprimento de seus “próprios” princípios. As nações indígenas

atingiram seus limites quando se viram obrigadas a apelar para os mesmo recursos jurídicos

empregados pelas sociedades dominantes. Assim sendo, existe a expectativa de se constatar o

real comprometimento ético dos governos para consigo mesmos e para com as causas

indígenas que, historicamente, merecem uma reparação dos transtornos impostos aos povos

indígenas.

Ainda que as normas internacionais sejam instrumentos criados pelos Estados e para

os Estados, é preciso reconhecer que há uma progressiva preocupação com relação à proteção

dos povos indígenas no sistema das Nações Unidas. É um fato que, apesar da resistência de

alguns governos que já se preparam para se opor à aprovação do projeto da Declaração, nos

últimos anos, os povos indígenas passaram a ser reconhecidos pela comunidade internacional

como objeto e por alguns como sujeitos do Direito Internacional. Mesmo com as devidas

reservas por tratar-se de normas desenvolvidas pelos governos e para os governos, esta

atenção aos direitos coletivos, a desejada aprovação da Declaração Universal sobre Direitos

Indígenas e a sua ratificação pelos Estados subscritores configuram um novo espaço

internacional no qual os povos indígenas poderão continuar a luta tanto para melhorar quanto

para mudar a situação de discriminação e opressão a que têm estado submetidos nos últimos

séculos no seio dos diferentes Estados nacionais.

Porém, a poucos meses de concluir o Decênio Internacional dos Povos Indígenas,

constata-se que muito pouco foi feito pelos povos indígenas no período. De acordo com nota

do Porantim (ago. 2004, p. 12), o Prêmio Nobel da Paz Rigoberta Menchú Tum, liderança

indígena do Equador, pronunciou-se recentemente ao secretário geral da ONU, Kofi Annan,

neste sentido. A liderança observou que o Decênio deu à comunidade internacional a

oportunidade de conhecer os direitos dos povos indígenas e atuar em prol dos mesmos. Ao

estabelecer a década, os Estados membros da ONU estabeleceram um compromisso que não

consta na atuação de cada um desses Estados em relação aos povos indígenas. Ela lamentou a

incapacidade de lograr-se um consenso no seio da ONU para aprovar a Declaração Universal

dos Povos Indígenas, atitude que não é coerente com a postura adotada frente à criação do

Decênio. Apesar dos importantes esforços, as comunidades indígenas continuam entre as mais

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pobres e mais marginalizadas do mundo, o que evidencia que os objetivos desejados no início

do Decênio não foram atingidos. Por último, ela apelou ao secretário que levasse a cabo uma

avaliação do que foi o Decênio e uma redefinição da agenda relativa aos povos indígenas

tanto no plano internacional como no dos Estados nacionais. “As condições enfrentadas pelos

povos indígenas não admitem postergações, pois do contrário, continuarão engrossando as

fileiras dos mais desprotegidos, dos mais excluídos e dos mais esquecidos”.

4.2 A LUTA PELA CONSERVAÇÃO DA AUTONOMIA

Apesar das diferenças entre cada grupo étnico, existem elementos fundamentais dentro

da cultura dos povos indígenas que são comuns à maioria deles. Dentro destes elementos

encontram-se ferramentas que lhes concedem a liberdade mínima para preservar sua

identidade cultural. Sem elas, torna-se impossível a manutenção da sua existência. A seguir

veremos quais são as principais dessas ferramentas e a experiência de diferentes grupos em

garantir o uso das mesmas.

O conceito de autonomia deriva de uma máxima simples, a livre determinação dos

povos, conceito presente nos manifestos e constituições independentistas desde a Revolução

Francesa até os dias atuais. De acordo com o Artigo 1º do Pacto Internacional dos Direitos

Civis e Políticos, Sociais e Culturais, todos os povos têm direito à autodeterminação. Esse

conceito inclui situações muito variadas, que vão desde formas de autogoverno em âmbito

local até a criação de estados independentes (Tomei & Lee, 1999, p. 7).

Bonfil Batalla (1991) considera que para o desenvolvimento autônomo (e não

autárquico), devem ser considerados alguns conceitos. Entre eles, a reconstituição e posterior

garantia dos territórios étnicos, bem como a livre circulação por tais territórios; o auspício

para o ressurgimento de níveis de organização social supracomunais que permitam superar a

atomização das etnias; a oficialização de formas de governo e códigos de direito hoje

consuetudinário, e a necessidade de que sejam compatíveis com as normas mínimas gerais do

Estado; o reconhecimento de todas as línguas e a ampliação do espaço para seu uso social; a

organização de um sistema educativo ajustado em sua forma e conteúdo às necessidades

culturais de cada povo; a criação de condições para o desenvolvimento da sabedoria própria

de cada povo, sem violentar sua cosmovisão e sem impedir, por outra parte, a apropriação real

de conhecimentos externos que julguem ou se mostrem adequados.

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4.2.1 Autodeterminação e Participação Política

Taboada Tabone (2001, p. 23) destaca que o conceito de autodeterminação foi

delimitado e levado à prática pelo Exército Libertador do Sul, comandado pelo general

Emiliano Zapata na Revolução Mexicana de 1910. Seus ideais e o conjunto de leis que foram

expedidas desde o Quartel General de Tlaltizapan de 1911 a 1919 foram herdados pelos povos

da América Latina e recentemente cristalizados nos municípios autônomos conhecidos como

Caracoles, nas mãos do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) no Estado de

Chiapas, no México. Para lograr esta autonomia municipal dos povoados maia chiapanecos, o

EZLN fez uso de armas desde 1995 e foi através de uma proposta pacífica que foi-se obtendo

esta autonomia. O resultado desta experiência foi a criação do Conselho Nacional Indígena

(CNI), que busca no futuro obter a autonomia das mais de 60 nações indígenas que

constituem o território mexicano. O CNI logrou que várias etnias se conscientizem de sua

situação e persigam o mesmo ideal do EZLN. Existem ainda outros povos, como os Inuit no

norte do continente americano, que controlam um vasto território autônomo confederado ao

Canadá; este Estado confederado se chama Nunavut.

Outro exemplo da experiência de autodeterminação é o que teve lugar na Nicarágua,

durante o governo sandinista dos anos 80, que contemplou a coletividade indígena abrindo-lhe

espaço político. Conforme dados da Enciclopédia Mundo Contemporâneo (2000, p. 28), em

1987 foram criadas duas regiões autônomas: uma no sul, predominantemente misquita e

sumo, e outra no norte, mestiça e crioula, dando origem aos primeiros territórios indígenas

autônomos no continente americano.

De acordo com a mesma enciclopédia, o Equador também foi palco de importantes

reivindicações indígenas. Em 1991 houve um levante indígena que questionou as bases do

próprio país, já que os sublevados reivindicavam a criação de um Estado plurinacional que

tivesse como meta os seguintes elementos: a transformação da sociedade; o reconhecimento

da diversidade cultural; a defesa da organização comunitária independente baseada na

solidariedade; uma nova territorialidade que contemplasse as diversas nacionalidades

indígenas, mas sem que isso significasse a ruptura com o Estado equatoriano. Estas

experiências proporcionaram, tanto no Equador, como na Bolívia, que o povo tenha maior

controle sobre seus recursos naturais, como o gás natural. Em 2003, os bolivianos

conseguiram fazer com que o então presidente, Lozada, renunciasse a seu cargo por querer

privatizar a indústria do gás para vendê-lo aos EUA e México. Este movimento está sendo

liderado pelos indígenas Aymara e Quecha, sob a direção de Evo Morales. Segundo

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declarações do líder, sua luta caminha no sentido de obter a autonomia das maiorias indígenas

neste país onde quase 90% da população é indígena. (TABOADA TABONE, 2001, p. 26).

A Constituição da Bolívia reconhece a personalidade jurídica das comunidades

indígenas e estipula que as autoridades naturais poderão exercer funções de administração e

aplicação de normas próprias como solução alternativa de conflitos, de acordo com seus

costumes e procedimentos, desde que não sejam contrários à Constituição e às leis. Desde

1994, vigora a Lei de Participação Popular, que especifica que as Organizações Territoriais de

Base (OTB) são sujeitos de participação popular. As OTB incluem, entre outros, povos

indígenas organizados de acordo com seus costumes e tradições. De acordo com Tomei & Lee

(1999, p. 31), por força dessa lei, os povos indígenas ou suas autoridades podem exercer

funções de administração pública. Além disso, a Secretaria Nacional de Assuntos Étnicos de

Gênero e de Gerações e a Conferência de Povos Indígenas do Oriente da Bolívia (CIDOB)

firmaram, em 18 de abril de 1994, um convênio e coordenação por meio do qual a Secretaria

se compromete a consultar o Conselho Consultivo dos Povos Indígenas, composto por um

representante de cada grupo étnico, sobre qualquer plano de ação, projeto ou programa nessas

regiões.

Segundo Tomei & Lee (1999, p. 31), na Colômbia a participação indígena no

Congresso é garantida pela Constituição. O Artigo 171 da Constituição estipula a eleição de

dois senadores indígenas eleitos em determinada circunscrição nacional por comunidades

indígenas. Para essas representações, só podem ser candidatos pessoas que antes ocuparam

cargo de autoridade em suas comunidades ou foram líderes de alguma comunidade indígena.

Além disso, os conselhos e organizações indígenas tradicionais são reconhecidos como

entidades legais e os territórios habitados pelos povos indígenas como entidades territoriais do

mesmo modo que os departamentos, municípios e distritos. As Entidades Territoriais

Indígenas (ETI) têm um sistema político administrativo próprio, que pode compreender

distritos, municipalidades e províncias e incluir as reservas e áreas autônomas. Nas áreas de

segurança, os conselhos indígenas têm plena autoridade judicial, de acordo com seu direito

consuetudinário e práticas tradicionais, desde que não contrariem a legislação nacional.Toda

vez que uma pessoa indígena cometa uma falta dentro de sua comunidade, e esta comunidade

não a considera grave, pode ser nela reabilitada.

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4.2.2 O Livre Trânsito por Territórios Ancestrais

Quando os Estados Unidos da América (EUA) empurraram sua fronteira com o

México para a posição atual, em 1848, muitas comunidades indígenas foram separadas de

seus parentes, terras natais tradicionais e locais sagrados. Entre os povos divididos pela

fronteira entre EUA e México estão os Yaqui, Cocopah, Tohono O’odham e Hia-Ced

O’dham, atualmente localizados na área entre Sonora (no México) e o Arizona (nos EUA), e

os Kikapu, localizados em Oklahoma e no Texas (EUA) e em Coahuila (México). A nação

Yaqui possui soberania reconhecida pelos EUA, o que também é o caso dos Tohono

O’Odham, que inclusive possuem um governo soberano. De todas maneiras, os integrantes

dessas nações enfrentam problemas ao cruzarem a fronteira e são assim impedidos de

compartilhar suas tradições com os demais membros de suas etnias.

O problema de fronteiras foi um dos temas tratados na Conferência de Hermosillo, em

setembro de 1995, de acordo com Hays. Os participantes discutiram questões atuais, como a

reação negativa ocasionada pelas políticas contra a imigração, a militarização da fronteira e os

problemas que as exigências com documentação significam para os índios que atravessam a

fronteira, muitos dos quais são semi-nômades e, portanto, não possuem os documentos

necessários para passar pela alfândega. Os participantes resolveram formar uma coalizão que

daria às tribos ao longo da fronteira voz coletiva face aos problemas de seu cruzamento,

constituindo assim a Aliança Indígena Sem Fronteiras. De acordo com o organizador do

seminário, José Matus, “a idéia é organizar encontros com oficiais do México e dos EUA para

começar a discutir alternativas, tais como cidadania dupla para membros de tribos binacionais

ou um ‘passaporte indígena’ que facilitaria o processo de cruzamento”(HAYS)20. Se lograrem

emitir seus próprios passaportes, o documento deverá ser reconhecido pelos governos do

México e dos EUA para ter validade oficial.

Existem casos semelhantes a esse também entre a fronteira dos EUA e Canadá, em

que o livre trânsito através das fronteiras possui respaldo legislativo. De acordo com Nickels,

desde 1794 grupos de índios americanos e canadenses têm se beneficiado do direito de livre

passagem pela fronteira do Canadá e dos EUA de acordo com as cláusulas do Tratado Jay. O

tratado estabeleceu que os índios dos dois lados da fronteira conservariam o direito de livre

locomoção através da fronteira, a assim chamada “passagem livre” (direito 3). No entanto,

20 Tradução da autora. No original: “(...) the idea is to arrange meetings with U.S. and Mexico officials in order to begin discussing alternatives, such as dual citizenship for binational tribe members, or na ‘Indian passport’ that would ease the crossing process”.

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Nickels observa que nos últimos dez anos, especialmente, os tribunais canadenses têm tomado

decisões que parecem diminuir, senão ameaçar eliminar completamente, os direitos de

passagem livre dos índios garantidos no tratado. O autor alega que, enquanto que nos EUA

um índio canadense não pode ser deportado sequer por posse de heroína, para exigir o direito

de passagem livre no Canadá, um índio americano precisa demonstrar um nexo cultural ou

histórico com a área que deseja visitar. De fato, esse teste de nexo foi aplicado até mesmo a

índios canadenses entrando de volta ao Canadá, proibindo os privilégios do Tratado Jay

sempre que um índio canadense deixasse de cruzar locais que o seu grupo tribal

historicamente cruzava. A restrição ou completa eliminação do direito de passagem livre

pelos tribunais canadenses poderia resultar em nada menos do que caos para esses grupos de

nativos andando pela fronteira do Canadá e dos Estados Unidos, tais como o grupo

Okanogan/Colville, quanto para qualquer membro de uma tribo que desejasse exercer seu

direito de livre passagem.

De acordo com Taboada Tabone (2003, p. 19), os indígenas Kumiai, do estado da

Baixa Califórnia Norte, são dos grupos mais afetados pelas medidas extremas que o governo

republicano dos EUA vem desenvolvendo desde o 11 de Setembro21. Os Kumiai são um povo

que foi dividido pela fronteira imposta durante a invasão norte americana ao México em 1947.

Até antes do 11 de Setembro, os habitantes deste grupo podiam locomover-se dos EUA ao

México somente com o requisito do seu passaporte. Famílias divididas podiam se visitar

inúmeras vezes, pois suas comunidades estão repartidas entre os territórios de ambos países;

no entanto, com a implementação destas políticas, restringiu-se o livre trânsito desta etnia.

O pesquisador relata o que presenciou em sua visita ao território kumiai, na serra

conhecida como La Rumorosa; ele foi informado de um triste acontecimento, no qual a

autoridade tradicional desta comunidade, dona Esperanza, uma senhora de 90 anos, foi visitar

um de seus filhos na comunidade em São Diego. As autoridades a surpreenderam ali a em

poucos dias se proibiu a entrada nos EUA de qualquer pessoa que não tivesse um visto ou

documento provando sua nacionalidade indígena binacional. Dona Esperanza está há dois

anos sem poder regressar com seus filhos ao lado mexicano, pois neste caso já não terá a

oportunidade de regressar e ver seus filhos que vivem no lado estadunidense. Além disso,

depois de estar há três meses nos EUA, ultrapassou seu tempo limite de permanência e agora

21 Em 11 de setembro de 2001 os EUA foram alvo de ataques terroristas a importantes sedes governamentais e centros executivos, episódio que ficou mundialmente conhecido como “O 11 de Setembro”. Desde então, o país endureceu sua política de controle de fronteiras e restringiu a entrada de pessoas no seu território.

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se encontra fora da lei. Os Kumiai hoje são vítimas de etnocídio e suas liberdades como povo

indígena são ignoradas.

Os exemplos acima citados mostram a luta de povos indígenas para conseguir manter

a integridade de suas nações apesar das fronteiras nacionais. Cada linha de fronteira

demarcada foi criada pelo processo de colonização e violência contra as nações indígenas.

Sejam domésticas ou internacionais, as fronteiras contém a mesma lógica colonial;

fundamentalmente, elas significam o fim desses povos indígenas.

Algumas etnias já lograram inclusive ter sua soberania como nação reconhecida e

respeitada. Outros tentam, de alguma forma, reduzir a discriminação racial e as detenções que

sofrem com freqüência quando tratam de cruzar a fronteira. O que estes povos anseiam, nada

mais é do que fazer valer seus direitos ancestrais para poder viver, produzir e transitar de

forma livre dentro de seus próprios territórios, sem que tenham que acatar limites

internacionais ou restrições autoritárias impostas pelos governos nacionais. A integridade

dessas comunidades não pode ficar à mercê dos governos instáveis do nosso continente, que

conforme sua vontade limitam até mesmo direitos já adquiridos pelos indígenas. Os índios

devem gozar do direito de continuar com suas práticas tradicionais, e não ser colocados no

mesmo patamar de qualquer estrangeiro que deseja entrar nos países, apesar da ocupação

pelos seus grupos das mesmas terras fronteiriças por milhares de anos antes do

estabelecimento dos territórios nacionais, por Portugal, Espanha e Inglaterra e suas colônias.

O primeiro passo para lograr o reconhecimento dos povos indígenas por parte dos

Estados nacionais, é precisamente reconhecê-los como nações dentro de diferentes territórios

artificialmente divididos. Uma das medidas possíveis para isso é conseguir o livre trânsito

destes indivíduos por seus territórios como um documento específico que contenha este

reconhecimento por parte das autoridades. Outra medida importante é garantir o direito de

autodeterminação e autogoverno dos povos indígenas. Com isso se consegue o respeito à

diferença.

Estas propostas não se opõem, nem contradizem os tratados e convenções

internacionais já assinados pelo Brasil e aprovados pelo Senado e Congresso nacionais, como

é o caso da Convenção nº 169 da OIT, onde está muito clara a parte da autonomia, usos e

costumes e o direito ao território. Ao contrario, a adoção de posturas dessa natureza confirma

o caráter democrático dos países latino-americanos.

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4.3 AMEAÇA À SOBERANIA?

A introdução de novos temas como a questão indígena na agenda internacional,

principalmente a partir da segunda metade dos anos 80, foi encarada com grande entusiasmo

pelos países desenvolvidos e ONGs de todos os quadrantes. No entanto, o interesse acentuado

por tais temas foi visto com desconfiança entre os governos dos países subdesenvolvidos ou

em desenvolvimento, “que pressentiam a abertura de campos propícios para ações atentatórias

às soberanias nacionais” (ALVES, 2001, p. 43). Muitas vezes, esses temores decorriam da

ilegitimidade evidente dos governantes, ou de preocupações absurdas com o fictício poderio

da ONU.

De acordo com Carneiro (1997, p. 109), a partir da década de 70, as declarações

universais passam a falar em etnodesenvolvimento (Declaração de San José, da UNESCO, de

1981), direito à diferença, valor da diversidade cultural. Direito à diferença, que segundo a

autora, deve ser entendido como acoplado a uma igualdade de direitos e de dignidade. As

declarações e instrumentos internacionais falam crescentemente em povos indígenas. Muitos

Estados, incluindo o Brasil, receiam que este termo possa implicar o status de sujeito do

Direito Internacional e, de acordo com a Carta das Nações Unidas (art. 1.2), que reconhece o

princípio de autodeterminação dos povos, seja posta em risco a integridade do território.

Porém, tanto povos quanto autodeterminação podem ter entendimentos variados. Para

Carneiro, o termo povos se generalizou sem implicar ameaças separatistas. Para evitar mal-

entendidos, a Convenção 169 da OIT e o Acordo Constitutivo do Fundo para

Desenvolvimento dos Povos Indígenas na América Latina e Caribe, criado em 1991,

rechaçam explicitamente as implicações temidas por alguns. No seu art. 1, parágrafo 3, a

Convenção 169 diz: “A utilização do termo povos nesta Convenção não deverá ser

interpretada como tendo qualquer implicação com respeito aos direitos que se possa conferir a

esse termo no direito internacional”. A vulgarização do termo povos nos textos internacionais

é acompanhada da exclusão explícita de direitos à soberania. O termo autodeterminação está

sendo interpretado nos mesmos textos como vigência do direito costumeiro interno e

participação política dos povos indígenas nas decisões que os afetam, não como reivindicação

separatista. Está, portanto, afastada a ameaça de que as declarações internacionais relativas

aos povos indígenas poderiam abalar a integridade do território nacional.

Outra variante dessa mesma preocupação é o alegado perigo que a existência de áreas

indígenas em faixa de fronteira poderiam representar para a segurança nacional. O senador

Jarbas Passarinho, ex-Ministro da Justiça que assinou a portaria reconhecendo a área

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Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela, respondendo a críticas de setores das

Forças Armadas, afirmou que: “Qual o risco para a soberania nacional? Nenhum. Pode haver,

se assim julgar o governo, e sem nenhuma necessidade de ouvir o Congresso, a instalação de

tantos pelotões ou companhias de fuzileiros quantos quisermos”. E continua lembrando que as

terras indígenas são propriedade da União e, sendo assim, se houver “superposição com a

faixa de fronteira, a União é duplamente proprietária. Ela exerce sua soberania tanto para os

índios como para garantir nossa fronteira, assegurando plenamente a integridade do território

brasileiro”. (Revista Clube Militar apud Carneiro, 1997, p. 110).

Vale lembrar ainda que a ratificação de um instrumento internacional é prerrogativa

exclusiva dos Estados nacionais. Portanto, somente ao Estado cabe agir em conformidade

com os instrumentos internacionais que ratifique.

4.4 A UNIÃO DA NAÇÃO GUARANI

Como foi demonstrado acima, o fato de se dar espaço efetivo para a participação

política da população ameríndia não representa, de forma alguma, uma ameaça à segurança e

à soberania nacional. Este temor se mostra ainda mais infundado quando conhecemos as reais

preocupações que norteiam os debates realizados por líderes dos povos indígenas, como o que

ocorreu recentemente, entre os dias 29 de julho e 2 de agosto deste ano, quando lideranças

Guaranis do litoral do Estado de Santa Catarina estiveram reunidas em Assembléia Geral,

para tratar de temas como a terra, identidade e união do povo. Também estiveram presentes

dois representantes de comunidades Guarani que vivem na província de Missiones, Argentina.

Hilário Moreira, cacique do Tekohá Ka’akupé, na Argentina, afirmou: “Somos um só povo,

temos uma só cultura, mas estamos divididos pelas fronteiras dos brancos. Temos que nos

unir para conquistar nossos direitos, especialmente o direito à terra, porque sem terra não

temos cultura e sem cultura própria não viveremos” (PORANTIM, ago. 2004, p. 5). Na

mesma ocasião, a cacique Pará Mirin (ou Arminda Ribeiro) disse acreditar que a solução para

os problemas enfrentados pelos Guarani “é ficar muito unido para ter forças pra lutar. Os

brancos querem que fiquemos igual a eles, mas nós não podemos, nós temos nossa tradição”.

(PORANTIM, ago. 2004, p. 5). O cacique José Duarte, da aldeia Katupyru, em Missiones foi

ainda mais enfático: “Nosso povo não pode se dividir e aceitar as fronteiras impostas pelos

países. Nossos parentes estão em todo canto, temos que dialogar, buscar alternativas entre nós

mesmos. Não podemos esperar os governos” (PORANTIM, ago. 2004, p. 5). Duarte chamou

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a atenção para a Convenção 169 da OIT, como um importante instrumento para unificar as

lutas dos Guarani no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia. Na assembléia, todos

foram unânimes em observar que qualquer projeto que afete uma das regiões Guarani afeta o

povo por inteiro, já que essas ações provocam migrações e a necessidade de buscar novos

espaços.

O fato de demonstrarem uma grande preocupação com a união das várias tribos

Guarani, evidencia a existência de um grupo preocupado em manter sua identidade cultural.

Além disso, o empenho na união parece também traduzir uma necessidade de fortalecimento

político deste grupo com o objetivo de, justamente, preservar sua cultura, apesar de estarem

instalados em territórios de diferentes Estados. Outrossim, é igualmente importante destacar

destas falas o problema das fronteiras nacionais, que veio à tona como sendo uma barreira real

para a união dos Guarani.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que a nação Guarani, assim como aconteceu com outros povos autóctones,

começou a ser ameaçada a partir da chegada dos primeiros colonizadores ao nosso continente.

Desde então, as populações indígenas dependeram de políticas e leis que lhes reconhecessem

como detentores de direitos naturais como: o direito à vida, ao seu território, à reprodução de

sua cultura e à autodeterminação.

Com a formação dos Estados latino-americanos, que implicou na superação da

diversidade no seu interior em favor da unidade jurídica, a integridade da nação Guarani se

viu ainda mais abalada. Ainda hoje se nega a diversidade dos povos originais do continente

americano e sua própria identidade. Para burlar os direitos indígenas, é comum que seja

negada sua condição de índio.

Como habitantes originais do continente americano, a organização social das nações

indígenas baseava-se em laços estabelecidos pela etnia. Esta etnia é tão forte que até hoje,

após séculos de dominação pelo homem branco, ela continua unindo os índios e fazendo com

que eles se identifiquem como tal. Ainda que o projeto dos governos sul americanos fosse o

de assimilar completamente as populações indígenas, isso não foi possível, e por mais

aculturadas que possam estar, elas seguem mantendo um projeto de nação próprio, diferente

das sociedades em que estão inseridas. Na verdade, essas populações estão marginalizadas,

sem nunca terem sido incorporadas às sociedades nacionais, nem tampouco munidas das

condições necessárias para conservar de forma íntegra sua própria identidade.

Os territórios ocupados pelos Guarani foram divididos por fronteiras criadas pelos

Estados nacionais do Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia, que dificultam a unidade

do povo Guarani e a conservação da sua cultura. Mesmo assim, este povo possui uma

identidade própria e por isso é antes Guarani que brasileiro, argentino, paraguaio, uruguaio ou

boliviano, constituindo uma nação, apesar dos Estados nacionais em que está inserido, ainda

que submetido à soberania dos mesmos. Prova da sua resistência é a manutenção de alguns

aspectos fundamentais de sua cultura, tais como sua organização social, sua relação com a

terra, a produção, a distribuição, e a religião, que juntos formam uma unidade indissociável

baseada na reciprocidade. Além disso, mantêm viva a tradição do caminhar do grupo; a antiga

crença na busca da Terra sem mal (Evy mara ey), é a profecia viva, reforçada pela

necessidade de buscar novos espaços para se desenvolver.

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O espaço sem fronteiras está na memória Guarani, mas sua cultura tem esbarrado nas

fronteiras nacionais estabelecidas pelos Estados que se formaram no território originalmente

ocupado por eles. Diante disso, o Guarani se vê obrigado a buscar outros espaços e a fugir da

pressão das políticas de cada Estado nacional.

Os problemas enfrentados pelos Guarani giram justamente em torno de sua relação

com os Estados nacionais, que buscam a submissão de um povo que tem vida própria e não

deseja depender destes Estados. No entanto, o contato com o homem europeu e o processo de

composição dos Estados nacionais americanos foi criando uma relação que foi subtraindo,

gradativamente, as condições necessárias para que estes povos originais das Américas

continuassem mantendo sua organização social e, conseqüentemente, sua auto-suficiência.

Este processo histórico culminou na dependência destes povos, em maior ou menor grau, com

as políticas de assistência dos governos, por necessidade e não por escolha ou “preguiça” –

idéia que faz parte de um consciente coletivo ou da ideologia dominante, e que ajuda a

construir uma imagem negativa deste povo. São problemas que não dizem respeito somente

ao Brasil, mas também ao Paraguai, a Argentina à Bolívia e ao Uruguai, no caso dos Guarani,

e também a todos os Estados americanos quando se trata de povos indígenas em geral.

Atualmente os problemas, as queixas e os interesses dos povos indígenas são muito

semelhantes, especialmente no que diz respeito à manutenção da sua identidade e patrimônio

cultural. Para melhorar sua situação, os povos indígenas aprenderam a fazer uso de recursos

típicos das sociedades modernas, como os dispositivos legais, e partiram para a ação política.

Para isso, solicitam a defesa de seus direitos estabelecidos por leis nacionais e internacionais

e, assim, tentam garantir seu direito de sobrevivência física, genética e cultural.

Considerando que seus apelos constituem um direito legítimo, por estarem de acordo

com os objetivos dos direitos humanos, notou-se que os próprios Estados nacionais se

mostram incoerentes porque, apesar de comprometidos, por meio de pactos internacionais

como a ONU, no sentido de fazer cumprir suas determinações, não as cumprem de fato. Nos

últimos anos, a própria ONU passou a intermediar as relações das comunidades indígenas e as

respectivas sociedades nacionais com uma postura de pressão política, na tentativa de

encaminhar soluções ao problema. Prova disso é a elaboração da Convenção nº 169 da OIT e

a posterior escolha da década de 1995-2004 como O Decênio Internacional dos Povos

Indígenas, com a Declaração das Organizações, Povos e Nações Indígenas e o Projeto de

Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. Desta forma, as nações indígenas estão

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93

solicitando das sociedades dominantes e das autoridades competentes que reconheçam e

respeitem seus direitos, segundo os próprios princípios que orientam as Nações Unidas.

No entanto, a poucos meses de concluir o Decênio Internacional dos Povos Indígenas,

constata-se que muito pouco foi feito por eles no período. Apesar dos importantes esforços, as

comunidades indígenas continuam entre as mais pobres e mais marginalizadas do mundo.

Ainda não foi possível constatar o real comprometimento ético dos governos para consigo

mesmos e para com as causas indígenas que, historicamente, merecem uma reparação dos

transtornos impostos aos povos indígenas.

O primeiro passo para lograr o reconhecimento do povo Guarani por parte dos Estados

nacionais, é precisamente reconhecê-lo como nação dentro de diferentes territórios

artificialmente divididos. Para isso, é necessário conceder maior autonomia a ele, através do

direito de autodeterminação, auto-governo e livre trânsito em seus territórios ancestrais. Com

isso se consegue o respeito à diferença e a manutenção da identidade do Guarani. Estes

elementos são básicos, já que não existe identidade sem autonomia. Uma coletividade que não

pode decidir sobre seu modo de vida, que não pode viver segundo os valores que considera

fundamentais, não consegue existir como tal.

Estas propostas não apresentam ameaça à soberania dos Estados nacionais, pois não se

opõem, nem contradizem os tratados e convenções internacionais já assinados pelo Brasil e

demais países. Ao contrário, a adoção de posturas dessa natureza confirma o caráter

democrático dos países latino-americanos.

É importante lembrar que o problema indígena surge a partir da chegada dos invasores

europeus, ou seja, são os não-índios os responsáveis pela situação em que se encontram as

populações indígenas. Cabe aos não-índios, portanto, refletir sobre esta situação e atender às

demandas dos habitantes originais do nosso continente. Nos últimos anos, muitos governos da

América Latina reconheceram o caráter multiétnico e pluricultural de suas sociedades

nacionais e a necessidade de respeitar essa diversidade para alcançar a estabilidade política e

o progresso social. É, portanto, fundamental estabelecer condições e oportunidades para a

análise e o debate entre o Estado, os povos indígenas e os demais atores internacionais, de

assuntos de interesse dos referidos povos.

Uma das tarefas importantes é criar condições para repensar a relação entre as

sociedades nacionais e os povos indígenas. Os povos indígenas não podem ser considerados

um eterno problema, mas sim o princípio de solução para vários problemas das sociedades

modernas, como apontam alguns estudos que objetivam promover a preservação de

ecossistemas. Para isso, é muito importante que os indígenas possam continuar em suas

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formas de vida, e que elas possam ser comunicadas, aceitas, respeitadas e até mesmo usadas

como exemplo em muitos aspectos. Vale lembrar que estes povos, muitos séculos antes da

chegada dos europeus ao Novo Mundo, já haviam resolvido problemas que hoje afligem as

sociedades modernas.

A questão indígena continua sendo um dos termômetros para medir a democracia e o

alcance da prática dos direitos humanos em um país. Neste momento, respeitar os direitos

indígenas já consagrados nos marcos legislativos é condição necessária para construir uma

sociedade possivelmente mais justa.

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ANEXOS

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ANEXO A - CONVENÇÃO No 169 DA OIT SOBRE POVOS INDÍGENAS

E TRIBAIS

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CONVENÇÃO No 169 DA OIT SOBRE POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho,

Convocada em Genebra pelo Conselho Administrativo da Repartição Internacional do Trabalho e tendo ali se reunido a 7 de junho de 1989, em sua septuagésima sexta sessão;

Observando as normas internacionais enunciadas na Convenção e na Recomendação sobre populações indígenas e tribais, 1957;

Lembrando os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação;

Considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores;

Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram;

Observando que em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão freqüentemente;

Lembrando a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à diversidade cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e à cooperação e compreensão internacionais;

Observando que as disposições a seguir foram estabelecidas com a colaboração das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e da Organização Mundial da Saúde, bem como do Instituto Indigenista Interamericano, nos níveis apropriados e nas suas respectivas esferas, e que existe o propósito de continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a aplicação destas disposições;

Após ter decidido adotar diversas propostas sobre a revisão parcial da Convenção sobre populações Indígenas e Tribais, 1957 (n.o 107) , o assunto que constitui o quarto item da agenda da sessão, e

Após ter decidido que essas propostas deveriam tomar a forma de uma Convenção Internacional que revise a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957, adota, neste vigésimo sétimo dia de junho de mil novecentos e oitenta e nove, a seguinte Convenção, que será denominada Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989:

PARTE 1 - POLÍTICA GERAL

Artigo 1o

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1. A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

3. A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.

Artigo 2o

1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.

2. Essa ação deverá incluir medidas:

a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população;

b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições;

c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.

Artigo 3o

1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e mulheres desses povos.

2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados, inclusive os direitos contidos na presente Convenção.

Artigo 4o

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1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.

2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados.

3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração como conseqüência dessas medidas especiais.

Artigo 5o

Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:

a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente;

b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos;

c) deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos interessados, medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de trabalho.

Artigo 6o

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Artigo 7o

1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação,

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aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.

2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.

3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.

4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.

Artigo 8o

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste principio.

3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.

Artigo 9o

1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.

2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.

Artigo 10

1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.

2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.

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Artigo 11

A lei deverá proibir a imposição, a membros dos povo interessados, de serviços pessoais obrigatórios de qualquer natureza, remunerados ou não, exceto nos casos previstos pela lei para todos os cidadãos.

Artigo 12

Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus direitos, e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja mediante os seus organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos. Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.

PARTE II - TERRAS

Artigo 13

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

Artigo 14

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.

Artigo 15

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.

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2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.

Artigo 16

1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.

2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.

3. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento.

4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam anteriormente, e que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Quando os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser concedida com as garantias apropriadas.

5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como conseqüência do seu deslocamento.

Artigo 17

1. Deverão ser respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra entre os membros dos povos interessados estabelecidas por esses povos.

2. Os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade.

3. Dever-se-á impedir que pessoas alheias a esses povos possam se aproveitar dos costumes dos mesmos ou do desconhecimento das leis por parte dos seus membros para se arrogarem a propriedade, a posse ou o uso das terras a eles pertencentes.

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Artigo 18

A lei deverá prever sanções apropriadas contra toda intrusão não autorizada nas terras dos povos interessados ou contra todo uso não autorizado das mesmas por pessoas alheias a eles, e os governos deverão adotar medidas para impedirem tais infrações.

Artigo 19

Os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para fins de:

a) a alocação de terras para esses povos quando as terras das que dispunham sejam insuficientes para lhes garantir os elementos de uma existência normal ou para enfrentarem o seu possível crescimento numérico;

b) a concessão dos meios necessários para o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam.

PARTE III - CONTRATAÇÃO E CONDIÇÕES DE EMPREGO

Artigo 20

1. Os governos deverão adotar, no âmbito da legislação nacional e em cooperação com os povos interessados, medidas especiais para garantir aos trabalhadores pertencentes a esses povos uma proteção eficaz em matéria de contratação e condições de emprego, na medida em que não estejam protegidas eficazmente pela legislação aplicável aos trabalhadores em geral.

2. Os governos deverão fazer o que estiver ao seu alcance para evitar qualquer discriminação entre os trabalhadores pertencentes ao povos interessados e os demais trabalhadores, especialmente quanto a:

a) acesso ao emprego, inclusive aos empregos qualificados e às medidas de promoção e ascensão;

b) remuneração igual por trabalho de igual valor;

c) assistência médica e social, segurança e higiene no trabalho, todos os benefícios da seguridade social e demais benefícios derivados do emprego, bem como a habitação;

d) direito de associação, direito a se dedicar livremente a todas as atividades sindicais para fins lícitos, e direito a celebrar convênios coletivos com empregadores ou com organizações patronais.

3. As medidas adotadas deverão garantir, particularmente, que:

a) os trabalhadores pertencentes aos povos interessados, inclusive os trabalhadores sazonais, eventuais e migrantes empregados na agricultura ou em outras atividades, bem como os empregados por empreiteiros de mão-de-obra, gozem da proteção conferida pela legislação e a prática nacionais a outros trabalhadores dessas categorias nos mesmos setores, e

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sejam plenamente informados dos seus direitos de acordo com a legislação trabalhista e dos recursos de que dispõem;

b) os trabalhadores pertencentes a esses povos não estejam submetidos a condições de trabalho perigosas para sua saúde, em particular como conseqüência de sua exposição a pesticidas ou a outras substâncias tóxicas;

c) os trabalhadores pertencentes a esses povos não sejam submetidos a sistemas de contratação coercitivos, incluindo-se todas as formas de servidão por dívidas;

d) os trabalhadores pertencentes a esses povos gozem da igualdade de oportunidade e de tratamento para homens e mulheres no emprego e de proteção contra o acossamento sexual.

4. Dever-se-á dar especial atenção à criação de serviços adequados de inspeção do trabalho nas regiões donde trabalhadores pertencentes aos povos interessados exerçam atividades assalariadas, a fim de garantir o cumprimento das disposições desta parte da presente Convenção.

INDÚSTRIAS RURAIS

Artigo 21

Os membros dos povos interessados deverão poder dispor de meios de formação profissional pelo menos iguais àqueles dos demais cidadãos.

Artigo 22

1. Deverão ser adotadas medidas para promover a participação voluntária de membros dos povos interessados em programas de formação profissional de aplicação geral.

2. Quando os programas de formação profissional de aplicação geral existentes não atendam as necessidades especiais dos povos interessados, os governos deverão assegurar, com a participação desses povos, que sejam colocados à disposição dos mesmos programas e meios especiais de formação.

3. Esses programas especiais de formação deverão estar baseado no entorno econômico, nas condições sociais e culturais e nas necessidades concretas dos povos interessados. Todo levantamento neste particular deverá ser realizado em cooperação com esses povos, os quais deverão ser consultados sobre a organização e o funcionamento de tais programas. Quando for possível, esses povos deverão assumir progressivamente a responsabilidade pela organização e o funcionamento de tais programas especiais de formação, se assim decidirem.

Artigo 23

1. O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais e relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a caça, a pesca com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores importantes da manutenção de sua cultura e da sua autosuficiência e desenvolvimento econômico. Com a participação desses povos, e sempre que for adequado, os governos deverão zelar para que sejam fortalecidas e fomentadas essas atividades.

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2. A pedido dos povos interessados, deverá facilitar-se aos mesmos, quando for possível, assistência técnica e financeira apropriada que leve em conta as técnicas tradicionais e as características culturais desses povos e a importância do desenvolvimento sustentado e equitativo.

PARTE V - SEGURIDADE SOCIAL E SAÚDE

Artigo 24

Os regimes de seguridade social deverão ser estendidos progressivamente aos povos interessados e aplicados aos mesmos sem discriminação alguma.

Artigo 25

1. Os governos deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos interessados serviços de saúde adequados ou proporcionar a esses povos os meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo possível de saúde física e mental.

2. Os serviços de saúde deverão ser organizados, na medida do possível, em nível comunitário. Esses serviços deverão ser planejados e administrados em cooperação com os povos interessados e levar em conta as suas condições econômicas, geográficas, sociais e culturais, bem como os seus métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais.

3. O sistema de assistência sanitária deverá dar preferência à formação e ao emprego de pessoal sanitário da comunidade local e se centrar no atendimento primário à saúde, mantendo ao mesmo tempo estreitos vínculos com os demais níveis de assistência sanitária.

4. A prestação desses serviços de saúde deverá ser coordenada com as demais medidas econômicas e culturais que sejam adotadas no país.

PARTE VI - EDUCAÇÃO E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Artigo 26

Deverão ser adotadas medidas para garantir aos membros dos povos interessados a possibilidade de adquirirem educação em todos o níveis, pelo menos em condições de igualdade com o restante da comunidade nacional.

Artigo 27

1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais.

2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir

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progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado.

3. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos apropriados para essa finalidade.

Artigo 28

1. Sempre que for viável, dever-se-á ensinar às crianças dos povos interessados a ler e escrever na sua própria língua indígena ou na língua mais comumente falada no grupo a que pertençam. Quando isso não for viável, as autoridades competentes deverão efetuar consultas com esses povos com vistas a se adotar medidas que permitam atingir esse objetivo.

2. Deverão ser adotadas medidas adequadas para assegurar que esses povos tenham a oportunidade de chegarem a dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais do país.

3. Deverão ser adotadas disposições para se preservar as línguas indígenas dos povos interessados e promover o desenvolvimento e prática das mesmas.

Artigo 29

Um objetivo da educação das crianças dos povos interessados deverá ser o de lhes ministrar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na da comunidade nacional.

Artigo 30

1. Os governos deverão adotar medidas de acordo com as tradições e culturas dos povos interessados, a fim de lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, aos serviços sociais e aos direitos derivados da presente Convenção.

2. Para esse fim, dever-se-á recorrer, se for necessário, a traduções escritas e à utilização dos meios de comunicação de massa nas línguas desses povos.

Artigo 31

Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos. Para esse fim, deverão ser realizados esforços para assegurar que os livros de História e demais materiais didáticos ofereçam uma descrição eqüitativa, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos interessados.

PARTE VII - CONTATOS E COOPERAÇÃO ATRAVÉS DAS FRONT EIRAS

Artigo 32

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Os governos deverão adotar medidas apropriadas, inclusive mediante acordos internacionais, para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive as atividades nas áreas econômica, social, cultural, espiritual e do meio ambiente.

PARTE VIII – ADMINISTRAÇÃO

Artigo 33

1. A autoridade governamental responsável pelas questões que a presente Convenção abrange deverá se assegurar de que existem instituições ou outros mecanismos apropriados para administrar os programas que afetam os povos interessados, e de que tais instituições ou mecanismos dispõem dos meios necessários para o pleno desempenho de suas funções.

2. Tais programas deverão incluir:

a) o planejamento, coordenação, execução e avaliação, em cooperação com os povos interessados, das medidas previstas na presente Convenção;

b) a proposta de medidas legislativas e de outra natureza às autoridades competentes e o controle da aplicação das medidas adotadas em cooperação com os povos interessados.

PARTE IX - DISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 34

A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país.

Artigo 35

A aplicação das disposições da presente Convenção não deverá prejudicar os direitos e as vantagens garantidos aos povos interessados em virtude de outras convenções e recomendações, instrumentos internacionais, tratados, ou leis, laudos, costumes ou acordos nacionais.

PARTE X - DISPOSIÇÕES FINAIS

Artigo 36

Esta Convenção revisa a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957.

Artigo 37

As ratificações formais da presente Convenção serão transmitidas ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registradas.

Artigo 38

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1. A presente Convenção somente vinculará os Membros da Organização Internacional do Trabalho cujas ratificações tenham sido registradas pelo Diretor-Geral.

2. Esta Convenção entrará em vigor doze meses após o registro das ratificações de dois Membros por parte do Diretor-Geral.

3. Posteriormente, esta Convenção entrará em vigor, para cada Membro, doze meses após o registro da sua ratificação.

Artigo 39

1. Todo Membro que tenha ratificado a presente Convenção poderá denunciá-la após a expiração de um período de dez anos contados da entrada em vigor mediante ato comunicado ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registrado. A denúncia só surtirá efeito um ano após o registro.

2. Todo Membro que tenha ratificado a presente Convenção e não fizer uso da faculdade de denúncia prevista pelo parágrafo precedente dentro do prazo de um ano após a expiração do período de dez anos previsto pelo presente Artigo, ficará obrigado por um novo período de dez anos e, posteriormente, poderá denunciar a presente Convenção ao expirar cada período de dez anos, nas condições previstas no presente Artigo.

Artigo 40

1. O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho notificará a todos os Membros da Organização Internacional do Trabalho o registro de todas as ratificações, declarações e denúncias que lhe sejam comunicadas pelos Membros da Organização.

2. Ao notificar aos Membros da Organização o registro da segundo ratificação que lhe tenha sido comunicada, o Diretor-Geral chamará atenção dos Membros da Organização para a data de entrada em vigor da presente Convenção.

Artigo 41

O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho comunicará ao Secretário - Geral das Nações Unidas, para fins de registro, conforme o Artigo 102 da Carta das Nações Unidas, as informações completas referentes a quaisquer ratificações, declarações e atos de denúncia que tenha registrado de acordo com os Artigos anteriores.

Artigo 42

Sempre que julgar necessário, o Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho deverá apresentar à Conferência Geral um relatório sobre a aplicação da presente Convenção e decidirá sobre a oportunidade de inscrever na agenda da Conferência a questão de sua revisão total ou parcial.

Artigo 43

1. Se a Conferência adotar uma nova Convenção que revise total ou parcialmente a presente Convenção, e a menos que a nova Convenção disponha contrariamente:

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a) a ratificação, por um Membro, da nova Convenção revista implicará de pleno direito, não obstante o disposto pelo Artigo 39, supra, a denúncia imediata da presente Convenção, desde que a nova Convenção revista tenha entrado em vigor;

b) a partir da entrada em vigor da Convenção revista, a presente Convenção deixará de estar aberta à ratificação dos Membros.

2. A presente Convenção continuará em vigor, em qualquer caso em sua forma e teor atuais, para os Membros que a tiverem ratificado e que não ratificarem a Convenção revista.

Artigo 44

As versões inglesa e francesa do texto da presente Convenção são igualmente autênticas. FONTE: INSTITUTO AMP. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: < www.institutoamp.com.br/oit169.htm>. Acesso em: 24 out. 2004.

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ANEXO B - DECLARACIÓN DE LAS ORGANIZACIONES, PUEBLO S

Y NACIONES INDÍGENAS

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DECLARACIÓN DE LAS ORGANIZACIONES, PUEBLOS Y NACION ES INDÍGENAS

Gueumatz, Condor, Padre Sol, Aguila, Anahuac, Madre Tierra

INVOCANDO a los espíritus de nuestros antepasados y actuando conforme a nuestra tradición de resistencia en defensa de la Madre Tierra, reivindicando nuestros derechos fundamentales e históricos,

REIVINDICANDO a los millones de hermanos y hermanas que entregaron la vida en defensa de nuestra cultura milenaria. En nombre de los mas de 300 indígenas que habitan la Tierra, y de los esfuerzos de anos de trabajo de los pueblos indígenas y de las Organizaciones No Gubernamentales, nosotros, miembros de las naciones y organizaciones indígenas, reunidos en la ciudad de Nueva Cork del 8 al 10 de diciembre de 1992,

Consideramos que:

I. Todos los pueblos indígenas tienen derecho a la autodeterminación tal como se expone en los principios de la Declaración Universal de los Derechos de los Pueblos Indígenas. Por consiguiente, los pueblos indígenas tenemos derecho de decidir todas las cuestiones relacionadas con nuestros asuntos culturales, espirituales, sociales, económicos y políticos. Pedimos la inmediata aprobación de la declaración mencionada.

II. La lucha por nuestros derechos territoriales es común a todas las naciones y pueblos indígenas, y los Estados y sociedades dominantes nos niegan persistentemente esos derechos.

III. Las prácticas de desarrollo económico de las naciones-estado están destruyendo los recursos naturales que han permanecido protegidos en los territorios indígenas. Como consecuencia de ello, se ve amenazada la supervivencia de todas las especies.

IV. Las naciones-estado y las organizaciones internacionales han de valuar y respaldar la aportación de los pueblos indígenas a la diversidad cultural, intelectual y social del mundo, particularmente a la ecología y la armonía de la Madre Tierra.

V. Los derechos humanos de los pueblos indígenas a nuestras culturas, identidades, religiones y lenguas, son inalienables. Esos derechos se siguen sacrificando en los programas, la política y los presupuestos de las naciones-estado y de los organismos internacionales.

VI. Aunque las sociedades dominantes proclamen la democracia, para los pueblos indígenas eso significa represión, genocidio y miseria en el continente americano y en el resto del mundo. Como ejemplo de ello, en el proceso por el que se esta llevando a cabo el diálogo por la paz en Centroamérica y Sudamérica, no existe participación directa de las naciones y organizaciones indígenas, pese al hecho de que los pueblos indígenas se ven directamente afectados por las guerras.

VII. La supervivencia de los gobiernos soberanos indígenas es un hecho a pesar de las medidas y programas represivos de las naciones-estado de la sociedad dominante.

VII. Los gobiernos continúan profanando los lugares y los objetos religiosos y sagrados, y apropiándose de ellos, privando a las naciones indígenas de todo el mundo de sus formas de vida espiritual básicas.

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POR TANTO: El Año Internacional de los Indígenas del Mundo, 1993, ha de consistir en algo más que simples celebraciones y declaraciones paternalistas; para que se resuelva todo lo anterior es preciso que las Naciones Unidas y los Estados que pertenecen a dicha organización tomen las siguientes medidas: 1. Reconocer los derechos de los indígenas a sus territorios, incluyendo la recuperación y demarcación de dichos territorios. 2. Reconocer, respetar y documentar de acuerdo con el derecho internacional todos los tratados, convenios, acuerdos y otros pactos establecidos con los rublos indígenas del mundo. Además, el estudio de los Tratados Indígenas encargado a la Comisión de Derechos Humanos deberá ser objeto de atención prioritaria por parte de las Naciones Unidas y de sus Estados miembros. 3. Reconocer y respetar las formas de gobierno indígenas cuando eses gobiernos se atengan a las costumbres y las leyes tradicionales. 4. Fomentar y fortalecer los derechos de propiedad cultural e intelectual de acuerdo con el Derecho Internacional y con sus principios. Además, debería darse carácter prioritario al estudio de los derechos de propiedad cultural e intelectual de la Comisión de los Derechos Humanos de as Naciones Unidas.

5. Consultar con las organizaciones y naciones indígenas la ratificación de la Convención 169 de la Organización Internacional del Trabajo.

6. Proporcionar asistencia legal y formación teórica a las organizaciones y naciones

indígenas. 7. Fomentar a nivel nacional e internacional la reforma de leyes y políticas para que se

reconozcan los derechos soberanos de los pueblos indígenas. 8. Fomentar y consolidar la educación, la cultura, el arte, la religión, la filosofía, la

literatura y la ciencia de las naciones indígenas. 9. Devolver los lugares históricos y los parajes y objetos sagrados a las naciones

indígenas a las que pertenecen. 10. Demostrar el compromiso sincero de la nueva asociación con los pueblos

indígenas facilitando los recursos económicos adecuados para tomar las medidas que aquí se proponen. Además, hacer aportaciones significativas al Fondo Voluntario para que se realicen los futuros proyectos y garantizar que los pueblos indígenas participen directamente en la administración de dicho fondo.

11. Que el secretario general de las Naciones Unidas y sus órganos, comisiones y

programas especializados celebren consultas especiales con los pueblos indígenas del mundo al nivel más local posible.

12. Que el secretario general de las Naciones Unidas cree de inmediato un programa

indígena específico que se administre y aplique con la participación directa de las organizaciones indígenas.

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Escrito en la ciudad de Nueva York,

el 9 de diciembre de 1992.

FONTE: BARAZAL, Neuza Romero. Yanomami: um povo em luta pelos direitos humanos.

São Paulo: Editora da USP, 2001.

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ANEXO C - CONSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS:

DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS REFERENTES AOS POVOS

INDIGENAS

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CONSTITUIÇÕES LATINO-AMERICANAS: DISPOSIÇÕES CONSTI TUCIONAIS REFERENTES AOS POVOS INDIGENAS

BRASIL

Este documento traz os artigos da CF/88 que estão relacionados à situação dos índios brasileiros.

Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania;

Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4.º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

III - autodeterminação dos povos;

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Art. 20. São bens da União:

XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

§ 2.º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XIV - populações indígenas;

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

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XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais;

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

XI - a disputa sobre direitos indígenas.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§ 3.º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros. § 4.º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei. Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

§ 1.º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 2.º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

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Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1.º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2.º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. CAPÍTULO VIII

Dos Índios

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4.º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população,

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ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7.º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3.º e 4.º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

ADCT Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.

Brasília, 5 de outubro de 1988.

Ulysses Guimarães, Presidente

Mauro Benevides, 1.º Vice-Presidente

FONTE: FUNAI. Disponível em: < http://www.funai.gov.br/>. Acesso em 28 set. 2004.

ARGENTINA:

Constitución Nacional de 1853, revisión de 1994

Capítulo IV, Atribuciones del Congreso

Artículo 75

Corresponde al Congreso:

17. Reconocer la preexistencia étnica y cultural de los pueblos indígenas argentinos.

Garantizar el respeto a su identidad y el derecho a una educación bilingüe e intercultural ; reconocer la personería jurídica de sus comunidades, y la posesión y propiedad comunitarias de las tierras que tradicionalmente ocupan; y regular la entrega de otras aptas y suficientes para el desarrollo humano ; ninguna de ellas será enajenable, transmisible ni susceptible de

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gravámenes o embargos. Asegurar su participación en la gestión referida a sus recursos naturales y los demás intereses que los afecten. Las provincias pueden ejercer concurrentemente estas atribuciones.

BOLÍVIA:

Constitución del 2 de Febrero de 1967

Título III, Régimen Agrario y Campesino

Artículo 171

Se reconocen, respetan y protegen en el marco de la ley, los derechos sociales, económicos y culturales de los pueblos indígenas que habitan en el territorio nacional, especialmente los relativos a sus tierras comunitarias de origen, garantizando el uso y aprovechamiento sostenible de los recursos naturales, su identidad, valores, lenguas, costumbres e instituciones.

El Estado reconoce la personalidad jurídica de las comunidades indígenas y campesinas y de las asociaciones y sindicatos campesinos.

Las autoridades naturales de las comunidades indígenas de las comunidades indígenas y campesinas podrán ejercer funciones de administración y aplicación en normas propias com solución alternativa de conflictos, en conformidad a sus costumbres y procedimientos, siempre que no sean contrarias a esta Constitución y las leyes. La Ley compatibilizará estas funciones con las atribuciones de los Poderes del Estado.

PARAGUAI:

Constitución del 20 de junio de 1992

Título II, De los Derechos, de los Deberes y de las Garantías, Capítulo V, De los Pueblos Indígenas

Artículo 62, De los pueblos indígenas y grupos étnicos

Esta Constitución reconoce la existencia de los pueblos indígenas, definidos como grupo de cultura anteriores a la formación y organización del Estado paraguayo.

Artículo 63, De la identidad étnica

Queda reconocido y garantizado el derecho de los pueblos indígenas a preservar y a desarrollar su identidad étnica en su respectivo hábitat. Tienen derecho, asimismo, a aplicar libremente sus sistemas de organización política, social, económica, cultural y religiosa, al igual que la voluntaria sujeción a sus normas consuetudinarias para la regulación de la

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convivencia interna siempre que ellas no atenten contra los derechos fundamentales establecidos en esta Constitución. En los conflictos jurisdiccionales se tendrá en cuenta el derecho consuetudinario indígena.

Artículo 64, De la propiedad comunitaria

Los pueblos indígenas tienen derechos a la propiedad comunitaria de la tierra, en extensión y calidad suficientes para la conservación y el desarrollo de sus formas peculiares de vida. El Estado les proveerá gratuitamente de estas tierras, las cuales serán inembargables, indivisibles, intransferibles, imprescriptibles, no susceptibles de garantizar obligaciones contractuales ni ser arrendadas; asimismo, estarán exentes de tributo.

Se prohíbe la remoción o traslado de su hábitat sin el expreso consentimiento de los mismos.

Artículo 65, Del derecho a la participación

Se garantiza a los pueblos indígenas el derecho a participar en la vida económica, social, política y cultural del país, de acuerdo con sus usos consuetudinarios, está Constitución y las leyes nacionales.

Artículo 66, De la educación y la asistencia

El Estado respetará las peculiaridades culturales de los pueblos indígenas, especialmente en lo relativo a la educación formal. Se atenderá, además, a su defensa contra la regresión demográfica, la depredación de su hábitat, la contaminación ambiental, la explotación económica y la alienación cultural.

Artículo 67, De la exoneración

Los miembros de los pueblos indígenas están exonerados de presentar servicios sociales, civiles o militares, así como las cargas públicas que establezcan la ley.

FONTE: Ciudad Virtual de Antropología y Arqueología. Constituciones latinoamericanas - disposiciones constitucionales referidas a los pueblos indígenas. Disponível em: < http://www.naya.org.ar/articulos/constituciones.htm>. Acesso em: 26 set. 2004.

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ANEXO D - FOTOS

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VISITA A TEKOHA GUARANI MBYÁ FORTIN MBORORÉ, NA PRO VÍNCIA DE

MISIONES, ARGENTINA – JUNHO DE 2004

JOVENS GUARANI MBYÁ NO TEKOHA FORTIN MBORORÉ, NA PR OVÍNCIA

DE MISIONES, ARGENTINA – JUNHO DE 2004

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CASA GUARANI NO MORRO DOS CAVALOS, EM PALHOÇA – SC – OUTUBRO

DE 2004

PAJÉ E MENINAS GUARANI MBYÁ NO TEKOHA FORTIN MBOROR É, NA

PROVÍNCIA DE MISIONES, ARGENTINA – JUNHO DE 2004