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Desenvolvimento do Desenvolvimentismo I: do Socialismo Utópico ao Estagnacionismo Fernando Nogueira da Costa Professoradjunto/livredocente Instituto de Economia Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Cidade Universitária “Zeferino Vaz” Caixa Postal 6135 13083970 – Campinas – SP Brasil http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ http://lattes.cnpq.br/6773853439066878 Email: [email protected] Fones: (19) 32878685 / 81663707 Resumo: A Ideologia Desenvolvimentista se origina quando se critica o atraso histórico do capitalismo brasileiro e se inicia a defesa de salto das etapas já percorridas por países industrializados de capitalismo avançado. Na primeira parte deste artigo resenha, depois de apresentada a hipótese a respeito das vertentes formadoras do Pensamento Cepalino e, por decorrência, de parte dessa longa Ideologia Desenvolvimentista, será realizado “teste de hipótese”. Subdivide suas raízes intelectuais em socialismo utópico, positivismo e List. Na segunda parte, serão sintetizados, brevemente, os elementos analíticos que compõem o Pensamento Econômico Brasileiro nos anos 5060, inclusive destacando o pensamento independente de Ignácio Rangel e a evolução das ideias da CEPAL. Como continuação dos Desenvolvimento do Desenvolvimentismo, outro Texto para Discussão apresentará o pensamento das gerações dos economistas formados e/ou influenciados pela “Escola de Campinas”, além de suas diferenças em relação ao autodenominado NovoDesenvolvimentismo. Palavraschave: Desenvolvimento Econômico – Sistema Capitalista Classificação JEL / JEL Classification: O1 – P2

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Desenvolvimento  do  Desenvolvimentismo  I:  do  Socialismo  Utópico  ao  Estagnacionismo  

 

Fernando  Nogueira  da  Costa  

Professor-­‐adjunto/livre-­‐docente    

Instituto  de  Economia    

Universidade  Estadual  de  Campinas  –  UNICAMP  

Cidade  Universitária  “Zeferino  Vaz”  Caixa  Postal  6135  

13083-­‐970  –  Campinas  –  SP  -­‐  Brasil  

http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/    

http://lattes.cnpq.br/6773853439066878  

E-­‐mail:  [email protected]  

Fones:  (19)  3287-­‐8685  /  8166-­‐3707  

Resumo:    

A  Ideologia  Desenvolvimentista  se  origina  quando  se  critica  o  atraso  histórico  do  capitalismo  brasileiro  e  se  inicia  a  defesa  de  salto  das  etapas  já  percorridas  por  países  industrializados  de  capitalismo  avançado.    Na  primeira  parte  deste  artigo-­‐resenha,  depois  de  apresentada  a  hipótese  a  respeito  das  vertentes  formadoras  do   Pensamento   Cepalino   e,   por   decorrência,   de   parte   dessa   longa   Ideologia  Desenvolvimentista,   será   realizado   “teste   de   hipótese”.   Subdivide   suas   raízes  intelectuais   em   socialismo  utópico,   positivismo   e   List.  Na   segunda  parte,   serão  sintetizados,   brevemente,   os   elementos   analíticos  que   compõem  o  Pensamento  Econômico   Brasileiro   nos   anos   50-­‐60,   inclusive   destacando   o   pensamento  independente   de   Ignácio   Rangel   e   a   evolução   das   ideias   da   CEPAL.   Como  continuação   dos   Desenvolvimento   do   Desenvolvimentismo,   outro   Texto   para  Discussão   apresentará   o   pensamento   das   gerações   dos   economistas   formados  e/ou   influenciados   pela   “Escola   de   Campinas”,   além   de   suas   diferenças   em  relação  ao  autodenominado  Novo-­‐Desenvolvimentismo.  

 

Palavras-­‐chave:  Desenvolvimento  Econômico  –  Sistema  Capitalista  

 

Classificação  JEL  /  JEL  Classification:  O1  –  P2      

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A  Economia  hoje  virou  uma  batalha  ideológica  que,  primeiro,  envolve  as  relações  de  Poder.  A  Economia  não  é  um  saber  qualquer,  é  um  saber  muito  relacionado  com  

o  Poder,  com  a  constituição  de  certas  convicções  que  são  importantes  para  a  reprodução  do  Sistema.  Se  você  começa  a  pensar  ao  contrário  do  Sistema,  torna-­‐se  

uma  pessoa  perigosíssima.  (Belluzzo,  2011:  441)  

Introdução  

O  desenvolvimentismo  não  é  uma  corrente  de  pensamento  econômico,  derivada  de  algum  grande  pensador,  Marx  ou  Keynes,  Walras  ou  Friedman.  Ele  constitui  uma  ideologia  mutante.  No  marxismo,  Ideologia  é  o  conjunto  de  ideias  presentes  nos  âmbitos  teórico,  cultural  e  institucional  das  sociedades.  Não  se  pode  ignorar  sua   origem   materialista.   Ela   não   é   idealista   ou   mero   produto   mental.   Está  baseada   nas   necessidades   e   interesses   inerentes   às   relações   econômicas   de  produção.  Enquanto  for  vista  por  marxistas  ou  rebeldes  apenas  como  elemento  de  coesão  e/ou  criação  de  consenso  social,  eles  acharão  que  a   ideologia  apenas  beneficia   as   classes   sociais   dominantes.   Porém,   a   totalidade   das   formas   de  consciência   social   abrange   tanto   o   sistema   de   ideias   que   legitima   o   poder  econômico  da  classe  dominante  (ideologia  burguesa)  quanto  o  conjunto  de  ideias  que   expressa   os   interesses   (revolucionários   ou   não)   da   classe   dominada  (ideologia  trabalhista  ou  socialista).      Por   derivação   ou   extensão   de   sentido,   vamos   empregar   aqui   o   conceito   de  Ideologia  com  a  conotação  que  se  encontra  na  Sociologia.  É  um  sistema  de  ideias  (crenças,   tradições,   princípios   e   mitos)   interdependentes,   sustentadas   por  determinado   grupo   social   de   qualquer   natureza   ou   dimensão.   Seus   adeptos  refletem,   racionalizam   e   defendem   os   próprios   interesses   e   compromissos  institucionais,   sejam   estes   morais,   religiosos,   políticos   ou   econômicos.  Especialmente,   focalizaremos  o  desenvolvimentismo  como  ideologia  nacionalista,  não   necessariamente   conservadora,   pois   pode   se   referir,   em   certos   contextos  históricos,   ao   conjunto   de   convicções   filosóficas,   sociais,   políticas,   etc.,   de  indivíduo  ou  grupo  de  indivíduos  rebelde  contra  a  ordem  existente.  

O   artigo   de   Fonseca   (2000)   contesta   a   tese,   corrente   na   literatura   econômica,  segundo   a   qual   “as   teorias   defendidas   pelos   economistas   ligados   à   Cepal   nas  décadas   de   1950   e   1960   devem-­‐se   à   influência   direta   de   Keynes”.   Para   tanto,  além   de   evidenciar   diferenças   entre   as   duas   construções   teóricas,  mostra   que,  antes  de  a  Cepal  ser  criada,  em  1948,  ou  da  publicação  da  Teoria  Geral,  em  1936,  teses   mais   tarde   consagradas   como   suas   já   encontravam   adeptos   na   América  Latina.    

Ele   questiona   a   tese   que   vê   a   Cepal,   de   forma   jocosa,   como   uma   espécie   de  "keynesianismo   caboclo".   Relativiza   a   influência   de   Keynes   em   aspectos   como  intervencionismo,   demanda   interna   e   críticas   ao   laissez-­‐faire.   Pretende,   assim,  chamar  atenção  para  as  complexas  determinações  historicamente  envolvidas  nas  origens   e   nas   fontes   formadoras   do   pensamento   cepalino.   Eram   formas   de  pensar  e  teses  já  conhecidas  de  forma  embrionária  entre  intelectuais,  políticos  e  empresários   brasileiros,   nas   primeiras   décadas   do   século   XX,   algumas   delas,  inclusive,  remontando  ao  século  XIX.    

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Chama   atenção   para   a   complexidade   da   origem   do   pensamento   estruturalista  latino-­‐americano   e   levanta   hipóteses   sobre   que   correntes   ou   teorias   o   teriam  influenciado   mais   diretamente   em   seu   nascedouro.   Críticas   ao   liberalismo  clássico   (não  necessariamente   integrantes  de  um  corpo  único   coerente)   esteve  antes   associadas   a   interesses   imediatamente   comprometidos   de   governos,   de  associações   empresariais   ou   de   políticos.     Conclui   que   a   contribuição   da   Cepal  consistiu   em   sistematizar,   dentro   de   Programa   de   Pesquisa   Científico,  reconhecido  academicamente,   ideias  que,  de  forma  fragmentária,   já  existiam  na  América  Latina.  

Talvez   o  mais   interessante   e   inovador  no   artigo  de   Fonseca   (2000)   tenha   sido  chamar  a  atenção  para  o  fato  de  as  ideias  posteriormente  consagradas  como  do  corpo   teórico   da   Cepal   terem   profundos   vínculos   com   a   formação   histórico-­‐econômica   dos   países   latino-­‐americanos,   praticamente   acompanhando   seu  processo  tardio  de  industrialização.  Mas  isto  não  significa  que  tais  ideias  fossem  autóctones,   ou   seja,   que  não   receberam  quaisquer   influências   externas   em   sua  formação.    

“Economistas   como  Nurske,  Hans   Singer   e  Myrdal,   por   exemplo,   influenciaram  muito   o   pensamento   cepalino.   Se   isto   é   largamente   difundido,   não   é   o   caso  daquelas  correntes  ou  autores  que  influenciaram  as  ideias  tidas  como  cepalinas  em   seu   nascedouro,   já   nas   primeiras   décadas   do   século   XX,   (...)   para   o   caso  brasileiro   –   e   que   também   são   anteriores   aos   referidos   economistas”.   Para  divulga-­‐las,   Fonseca   (2000:   347),   recorrendo   à   experiência   brasileira,   assinala  três   vertentes   que   influenciaram   tais   ideias,   todas   surgidas   no   continente  europeu   e   que   foram   sendo   assimiladas   na   América   Latina   pelos   críticos   da  ortodoxia  liberal:  a)  o  "liberalismo  de  exceção";  b)  o  positivismo;  e  c)  List.  

Vamos   tentar   falsear,   isto   é,   confirmar   ou   descartar   essa   hipótese   de   Fonseca  (2000)   a   respeito   das   vertentes   formadoras   do   Pensamento   Cepalino   e,   por  decorrência,  Desenvolvimentista.  Na  primeira  parte  deste  artigo-­‐resenha,  depois  de  melhor   apresentada   essa   hipótese,   o   “teste   de   hipótese”   será   realizado   em  tópicos,  subdividindo  as  raízes  intelectuais  da  Ideologia  Desenvolvimentista.  Na  segunda   parte,   serão   sintetizados,   brevemente,   os   elementos   analíticos   que  compõem   o   Pensamento   Econômico   Brasileiro   nos   anos   50-­‐60,   inclusive  destacando   o   pensamento   independente   de   Ignácio   Rangel   e   a   evolução   das  ideias  da  CEPAL.        

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1. Raízes  da  Ideologia  Desenvolvimentista  no  Brasil  

Fonseca  (2000:  337)  salienta  que  “o  marco  teórico  keynesiano,  embora  sujeito  a  várias   leituras,   é   marcado   pelo   equilíbrio   de   curto   prazo”.   Alerta   que   “as  contribuições  pós-­‐keynesianas  que  criticam  essa  interpretação  são  mais  recentes  do   que   as   teorias   cepalinas   e,   portanto,   não  poderiam   tê-­‐las   influenciado”.   Por  isso,  afirma:  “O  princípio  da  demanda  efetiva,  basilar  no  pensamento  keynesiano,  sempre  encontrou   limites  nos   trabalhos  da  Cepal,   apesar  das  análises  de  Celso  Furtado   pela   ótica   "da   demanda",   como   na   Formação   econômica   do   Brasil,   de  1958.   Isto  se  deve  em  parte  ao  fato  de  a  economia  do  subdesenvolvimento  não  poder   considerar   como   dadas   variáveis   tais   como   capacidade   produtiva   e  tecnologia:   o   que   em   Keynes   era   constante,   naquela   eram   exatamente   as  variáveis  de  estudo  por  excelência”.    

Lendo  Maria  da  Conceição  Tavares  (1972:30),  reafirma  que  “era  o   investimento  autônomo,   acompanhado   de   inovações   tecnológicas,   que,   associado   à   demanda  exógena   de   exportações,   emprestava   dinamismo   às   economias   centrais,   ao  contrário  do  que  ocorria  nos  países  periféricos”.  Deduz,  corretamente,  que  “esse  enfoque   de   longo   prazo,   voltado   à   necessidade   de   expandir   a   capacidade  produtiva,  opõe-­‐se  frontalmente  às   leituras  convencionais  de  Keynes,  centradas  na  necessidade  de  fomento  da  demanda  para  atingir  o  produto  potencial.  Mesmo  que  se  assinale  o  duplo  caráter  do  investimento  em  Keynes,  de  parte  da  demanda  agregada  e  ao  mesmo  tempo  responsável  por  sua  origem  e  flutuação,  não  se  pode  ignorar  que  na  Cepal  atribuiu-­‐se  à  poupança  uma  importância  que  não  existe  na  Teoria   Geral.”   Para   Fonseca   (2000:   339),   parece   indubitável   que   “a   Cepal   foi  muito  mais   eclética   que   propriamente   keynesiana,   tendo   sofrido   influência   de  outras  correntes  e  autores,  além  do  próprio  Keynes”.  

No   caso   do   Brasil,   Fonseca   (2000:   340)   mostra   que   “as   teses   críticas   à  especialização   agrícola   do   país   e   ao   laissez-­‐faire   sempre   estiveram   associadas;  bem   como   a   defesa   da   indústria   via   de   regra   recorreu   a   argumentos  intervencionistas  e  em  prol  do  protecionismo  alfandegário.  Confundem-­‐se  com  a  própria  luta  pela  industrialização  do  país”.  

Desde   a   segunda   metade   do   século   XIX   e,   mais   precisamente,   por   ocasião   da  Constituinte  republicana,  a  defesa  da  industrialização  não  só  esteve  presente  no  parlamento   e   na   imprensa,   como   recorria   a   argumentos,   termos   teóricos   e  categorias   que   hoje   muitos   só   conhecem   através   dos   trabalhos   da   Cepal,  atribuindo-­‐se,  pois,  a  estes.  As  crises  de  balanço  de  pagamentos  e  de  escassez  de  divisas   eram   interpretadas   como   decorrentes   da   demasiada   dependência   de  importados   do   estrangeiro,   ou   seja,   causa   "estrutural",   e   não   fenômeno  decorrente  da  política  econômica  instrumental  de  curto  prazo.  

Construía-­‐se  o  discurso  muitas  vezes  para  demonstrar  que  o  liberalismo  não  se  adaptava  às  necessidades  do  país,  era  "teórico",  livresco,  divorciado  da  realidade.  Argumentava-­‐se   que   a   teoria   de   não-­‐intervenção   absoluta   apenas   existia   na  concepção  dos  autores  e  nos  livros  em  que  ela  se  acha  exposta.  Na  prática,  o  que  se  via  adotado,  e  com  vantagem,  era  o  regime  oposto,  sem  que  daí  se  concluísse  que  o  Estado  deveria  ser  o  agricultor,  o  industrial,  o  negociante  ou  o  banqueiro  ordinário.   Já  se  enxergava,  antes  da  existência  de  Keynes  e  da  Cepal,  que  havia  

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uma   relação   assimétrica   no   mercado   internacional,   a   favor   das   economias  industrializadas.   O   liberalismo   no   comércio   internacional   era   considerado   "de  uma   simplicidade   altruística,   por   demais   ingênua",   e   não   havia   por   que   temer  represálias  de  retaliação  caso  o  País  o  contrariasse.  

Na   verdade,   Fonseca   (2000:   341)   chama   a   atenção,   “críticas   ao   liberalismo  recorrendo  a  esse  contraste  entre  o  saber   teórico  dominante  e  as  necessidades  práticas   do   país   associam-­‐se   ao   dualismo   entre   o   ‘Brasil   legal’   e   o   ‘Brasil   real’  presente  nos  chamados  pensadores  autoritários  dos  anos  1930:  Oliveira  Vianna,  Azevedo  Amaral,  Francisco  Campos  e  Plínio  Salgado,  entre  outros.  Antecedendo  o   fervor   desenvolvimentista   da   década   de   1950,   estes   intelectuais,   com   as  devidas  peculiaridades  de  cada  uma  de  suas  obras,  haviam  associado  liberalismo  à   estagnação,   ao   marasmo   da   vida   rural   e   ao   domínio   das   elites   ‘liberais’   da  República  Velha  e  do  Império  e,  portanto,  à  subordinação  econômica  do  país  na  ordem   internacional.   Propunham,   alternativamente,   um   governo   mais  centralizado   e   autoritário,   capaz   de   enfrentar   as   elites   agrárias   ‘retrógradas’,  mais   nacionalista   e   que   trouxesse   a   si   a   responsabilidade   de   modernizar  (industrializar)   o   país.   O   liberalismo   bacharelesco   era   tido   como   fruto   de   uma  cultura  importada  pelas  elites,  sempre  dispostas  a  copiar  fórmulas  europeias;  o  intervencionismo,  adaptado  às  reais  condições  econômicas  e  culturais  do  país”.  

Havia   consciência   explícita   nesses   autores   de   que   a   industrialização   e   o  progresso  (o  desenvolvimento  cepalino)  do  país  não  poderiam  decorrer  do  livre  jogo   do   mercado,   mas   só   se   viabilizariam   através   de   políticas   deliberadas,  induzidas   e   implementadas   pelo   Estado   (o   planejamento).   Mais   que   isto,  começou   a   emergir   a   concepção   segundo   a   qual   o   país   estava   em   situação   de  atraso,   que   havia   certa   rota   a   percorrer   para   sair   da   "estagnação".   Sem   o  intervencionismo   estatal   conscientemente   programado   não   havia   como   a  América   Latina   romper   com   seu   passado   agrarista   e   subordinado   na   divisão  internacional   do   trabalho.   A   doutrina   do   laissez-­‐faire   não   estava   propriamente  errada,  mas  não  podia   ser   generalizada:   era   válida   apenas  para   aqueles  países  que  estavam  na   frente  na   industrialização.  Havia,   logicamente,  argumentos  pró-­‐industrializantes,   que   mais   tarde   seriam   incorporados   à   teoria   econômica   da  Cepal  e  por  ela  aperfeiçoados  com  roupagem  "científica".  

Fonseca  (2000:  343-­‐347)  mostra  que  “é  com  Vargas  que  o  discurso  presidencial  assume  posições  mais  próximas  às  da  Cepal.”  Antecipando  a  principal  categoria  de   análise   estruturalista,   começa   a   usar   a   expressão   desenvolvimento  econômico,  entendendo  ser  este  uma  tarefa  de  Estado.  Enfatizou  a  necessidade  do   crédito   para   alavancar   a   produção.   Ele   atribuía   a   crise   iniciada   em   1929   à  superprodução.   Via   a   superprodução   como   proveniente   "do   taylorismo,   da  racionalização  e  do  aperfeiçoamento  técnico  das  indústrias".  Referia-­‐se,  então,  à  existência  de  um  "descompasso"  na  vida  econômica  decorrente  da  tendência  de  aumento  estupendo  da  produção  e  da  produtividade  em  face  da  incapacidade  de  consumo;   esta   ocorria,   inclusive,   pelo   excesso   de   poupança.   “O   consumidor”,  segundo  Vargas  em  1931,   “defensivamente  ou  por  hábito  natural  de  poupança,  procura  restringir  o  consumo  ao  indispensável  às  suas  necessidades”.  

Pelo   exposto,   Fonseca   (2000:   345)   nota   que   “inúmeros   pontos   cruciais   do  pensamento   cepalino,   como   intervencionismo,   crítica   à   especialização   agrícola  

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do  país,  à  divisão   internacional  do  trabalho  e  ao   livre  cambismo,  planejamento,  desenvolvimento   econômico,   divisão   centro/periferia   e   defesa   da  industrialização,  não  eram  propriamente  novidades  no  Brasil  ao  final  da  década  de   1940,   quando   a   Cepal   foi   criada.   Nem   mesmo   a   perda   nas   relações   de  intercâmbio,  a  mais  famosa  das  teses  de  Prebisch”.  

A  hipótese  levantada  por  Fonseca  (2000:  347)  é  que  “com  a  Cepal  estas  ideias,  já  vigentes  há  muito  tempo  na  América  Latina,  passaram  a  constituir  um  Programa  de  Pesquisa,  submetendo-­‐se  a  uma  linguagem  e  a  uma  forma  de  exposição  mais  rigorosas,  bem  como  a  um  referencial  conceitual.  Essa  constatação,  inspirada  em  Lakatos   (1979),   ressalta   que   a   construção   de   teorias   exige   certos   cânones  ‘técnicos’  ou  ‘formais’  não  necessariamente  integrantes  do  discurso  não-­‐científico  –  mesmo  que  a  Ciência  Econômica,  como  quer  forçadamente  McCloskey  (1985:55),  não  passe  de  uma  ‘coleção  de  formas  literárias’.”  

Autores  como  Adam  Smith  e  John  Stuart  Mill,  embora  admitissem  o  liberalismo  como  regra,  não  deixaram  de,  em  alguns  momentos,  arrolar  motivos  pelos  quais  o   livre  mercado   impunha   problemas,   considerados   exceções   à   regra   em   casos  específicos.   Por   falta   de   melhor   denominação,   Fonseca   (2000:   348)   resolveu  chamar  essa  vertente  de   "liberalismo  de  exceção",  o  que   significa  a   recorrência,  pelos   políticos,   industriais   e   ideólogos   brasileiros,   às   exceções   mencionadas  pelos   próprios   autores   liberais.   Ressalta   que   a   construção   do   discurso,   ao  enfatizá-­‐las,  trata  essas  exceções  como  regras  a  serem  seguidas  no  caso  especial  da  economia  brasileira.  

Após   criticar   o   laissez-­‐faire   e   sustentar   que   o   intervencionismo   está   de   acordo  com   as   lições   da   história,   devendo   existir   de   modo   supletivo   e   regulamentar,  esses   desenvolvimentistas   de   outrora   afirmam:   "Economistas   ortodoxos,   dos  mais   insignes,   como  A.   Smith   e   Stuart  Mill,   são   os   primeiros   a   confessar   que   a  ação  auxiliar  ou  supletiva  do  Estado  é  certamente  justificada”.  Também  Fonseca  (2000:  349)  menciona  como  "liberalismo  de  exceção"  apelos  a  figuras  do  porte  de  Thomas   Jefferson,   que   pretendem  evidenciar   que  mesmo  nações  de   forte  cunho  liberal   adotam  medidas   protecionistas/intervencionistas:   "Também   nos   Estados  Unidos   procurou-­‐se   introduzir   idêntica   política   econômica,   mas   o   presidente  Jefferson  recusou  admiti-­‐la,  observando  que  os  países  exclusivamente  agrícolas  nunca  se  erguem  acima  da  mediocridade".  

Pois  bem,  a  partir  dessa  dica,  sem  descartar  sua  hipótese  para  os  autores  “meio  liberais”   brasileiros,   sugiro   também   a   leitura   de   outra   vertente   possivelmente  formadora  da  ideologia  desenvolvimentista,  já  que  essa  corrente  de  pensamento  defendeu  interesses  similares  para  seu  lugar  e  sua  época.  Estou  me  referindo  aos  socialistas  utópicos,  mais  particularmente  a  Saint-­‐Simon.  

1.1. Socialismo  Utópico  

O   socialismo   defendido   por   autores   como   Saint-­‐Simon   (1760-­‐1825),   Charles  Fourier  (1772-­‐1837),  Louis  Blanc  (1811-­‐1882)  e  Robert  Owen  (1771-­‐1858),  foi,  mais  tarde,  denominado  de  “socialismo  utópico”  por  seus  opositores  marxistas.  Estes,  por  oposição,  se  autodenominavam  socialistas  "científicos",  pois  estariam  baseados   nas   “leis   da   História”   reveladas   por   Karl   Marx.   Mais   adiante,   a  

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metodologia  científica  diferenciou  entre  o  que  é  Ciência,  possível  de  ser  falseada,  e  História,  cujos  fatos  não  podem  ser  desmentidos.    

A  crítica  aos   “utópicos”  vem  do   fato  de  seus   teóricos  exporem  os  princípios  de  certa   sociedade   ideal   sem   indicar   os   meios   para   alcançá-­‐la.   Os   socialistas  utópicos  acreditavam  que  a  implantação  do  sistema  socialista  ocorreria  de  forma  lenta   e   gradual,   estruturada   no   pacifismo,   com   imposições   da   realidade   de  conquistas   sociais   à   classe   dominante.   Os   não-­‐reformistas   ou   os   socialistas  radicais  se  apresentavam  como  verdadeiros  “revolucionários”.  

Comumente,   o   nome   da   obra  Utopia,   publicada   em   1516   por   Thomas  More,   é  entendido  como  lugar  que  não  existe,  ou  seja,  imaginário.  Porém,  a  leitura  correta  seria   a   crítica   comparativa   às   mazelas   do   lugar   que,   na   realidade,   existe.   Os  primeiros  socialistas  que  propuseram  a  construção  de  certa  sociedade  igualitária  foram,  posteriormente,  definidos  como  utópicos.  Essa  qualificação  não  deve  ser  vista  de  maneira  pejorativa,  mas  sim  como  equivalente  a  críticos  à  desigualdade,  portanto,  “de  esquerda”.  

Autores  como  Thomas  More  (1478-­‐1535)  e  Tommaso  Campanella  (1568-­‐1639)  imaginavam   uma   sociedade   de   iguais.   Exprimiam   o   desejo   de   reforma   da   vida  social,  política  e  religiosa  dos  europeus  do  século  XVI.  Na  França  do  século  XVIII,  o   revolucionário   Gracchus   Babeuf   (1760-­‐1797)   escreve   o  Manifesto   dos   Iguais  que  diferencia  a  igualdade  formal  da  tríade  “liberdade,  igualdade,  fraternidade”  e  a  desigualdade  real.  

No  século  XIX,   com  as  condições  econômicas  e  o  capitalismo  se  desenvolvendo  desde   a   revolução   industrial,   as   cidades   incham   de   proletários   com   baixos  salários.   As   críticas   ao   liberalismo   resultam   da   constatação   de   que   a   livre  concorrência  não  trouxe  o  equilíbrio  prometido  e,  ao  contrário,  instaurou  ordem  injusta  e  imoral.  

As   novas   ideologias   exigem,   então,   a   igualdade   real   e   não   apenas   a   ideal.   Em  1864,  é  fundada  em  Londres  a  Associação  Internacional  dos  Trabalhadores,  mais  tarde  conhecida  como  Primeira   Internacional,  visando  a   luta  para  emancipação  do  proletariado.  Esta  união  de  grupos  operários  de  vários  países  europeus  teve  em   Marx   seu   principal   inspirador   e   porta-­‐voz.   Na   França,   o   pensamento  socialista  teve  como  porta-­‐vozes  Saint-­‐Simon,  Fourier  e  Proudhon.  

Os   diversos   teóricos   do   socialismo   utópico   têm   ideias   diferentes   e   propõem  soluções   diversas,   mas   é   possível   reconhecer     dois   traços   comuns.   Primeiro,  tentam  reformar  a  sociedade  através  da  boa  vontade  e  participação  de  todos.  Em  outras  palavras,  adotam  o  reformismo.  Segundo,  todas  as  tentativas  não  vão  além  de   postura   fortemente   filantrópica   e   paternalista:   melhoria   de   alojamentos   e  higiene,   construção   de   escolas,   aumento   de   salários,   redução   de   horas   de  trabalho.  

Saint-­‐Simon  pensava   em   sociedade   industrial   dirigida   por   produtores,   entre   eles,  classe  operária,  empresários,  sábios,  artistas  e  banqueiros!    Para  testar  a  hipótese  que   levantamos   a   respeito   de   certas   similaridades   do   Pensamento   Socialista  Utópico  e  do  Pensamento  Desenvolvimentista  de  Esquerda,  vale  explorar  mais  um  

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pouco  a  biografia  de  Saint-­‐Simon.  Ele   foi   filósofo  e  economista   francês,  um  dos  teóricos   do   socialismo   utópico.   Propôs   a   criação   de   novo   regime   político-­‐econômico,  pautado  no  progresso  científico  e  industrial,  em  que  todos  os  homens  dividissem   os   mesmos   interesses   e   recebessem   adequadamente   pelo   seu  trabalho.  

Claude   Henri   Saint-­‐Simon   (1720-­‐1825)   pertencia   à   família   aristocrata.   Foi  apresentado   aos   altos   meios   sociais   da   França.   Mas   a   respeito   da   educação  formal  que  Saint-­‐Simon  recebeu,  bem  como  de  sua  revolta  em  relação  a  ela,  ele  descreve   com   tom  de   ironia   as   consequências  das  penas   impostas  durante   seu  ensino:   "nossa  educação  atingiu   seu  propósito:   fez-­‐nos   revolucionários".  Desde  cedo,   a   filosofia   ocupou-­‐lhe   a  mente   de   tal   forma   que   o   tornou   extremamente  independente,  a  ponto  de  causar-­‐lhe  aversão  à  religião:  Saint-­‐Simon  reusou-­‐se  a  fazer  a  primeira  comunhão  aos  treze  anos.  Após  esse  evento,  seu  pai  lhe  mandou  para   a   prisão   de   Saint-­‐Lazare,   onde   viveu   até   os   seus   dezessete   anos!   Nessa  idade,   recebeu   convite   para   se   juntar   ao   exército,   que   só   pode   aceitar   um   ano  depois,  devido  empecilhos  criados  por  seu  pai.  

Durante   sua   carreira   militar,   Saint-­‐Simon   teve   a   oportunidade   de   batalhar   ao  lado   dos   norte-­‐americanos,   na   própria   América,   na   Guerra   de   Independência  contra  os  britânicos.  Sua  estadia  de  dois  meses  no  novo  continente  o  influenciou  decisivamente,   ajudando-­‐lhe   a   descobrir   sua   maior   afinidade   com   a   Ciência  Política  do  que  com  as  armas.  A  experiência  americana  provocou-­‐lhe  o  desejo  de  trabalhar   pela   "evolução  da   civilização",   que   ele   acreditava   estar   ocorrendo   na  América.    

Para   Saint-­‐Simon,   havia   na   América   quatro   condições   para   a   evolução   da  sociedade,   inexistentes  na  Europa:   “tolerância   religiosa,   ausência  de  privilégios  sociais,   noção   de   que   poder   econômico   e   político   não   podem   se   confundir   e  aceitação   universal   de   uma   filosofia   baseada   no   pacifismo,   na   indústria   e   na  economia  frugal".  O  pensador  francês  acreditava  na  existência  de  regime  muito  mais  liberal  e  democrático  na  América  do  que  na  Europa.  

A   partir   de   1789,   com   a   eclosão   da   Revolução   Francesa,   Saint-­‐Simon   estava  entusiasmado   e   rapidamente   endossou   os   ideais   revolucionários   de   liberdade,  igualdade   e   fraternidade.   Porém,   durante   o   período   de   Terror,   o   pensador   foi  preso,  suspeito  de  atuar  contra  a  Revolução.  Foi  libertado  em  1794,  com  a  queda  de  Robespierre  e  do  Regime  do  Terror.  

Para   Saint-­‐Simon,   o   avanço   da   ciência   determinava   a   mudança   político-­‐social,  além   da   moral   e   da   religião.   É   considerado   o   precursor   do   Socialismo,  idealizando  que,  no  futuro,  a  sociedade  seria  basicamente  formada  por  cientistas  e   industriais.   O   pensamento   saint-­‐simoniano   pode   ser   resumido   no   conhecido  lema  socialista:   "a  cada  um  segundo  sua  capacidade,  a  cada  capacidade  segundo  seu  trabalho".  

Diante   da   violência   da   Guerra   Napoleônica,   abrigou-­‐se   no   Cristianismo,  imaginando   partir   de   uma   base   cristã   para   construir   as   bases   da   sociedade  socialista.   Previu   a   industrialização  da  Europa   e   sugeriu  união   entre   as   nações  para  acabar  com  as  guerras.  

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Quando  Saint-­‐Simon  falou  sobre  a  nova  sociedade,   imaginou   imensa  fábrica,  na  qual   se   substituiria   a   exploração   do   homem   pelo   homem   pela   administração  coletiva   ou   autogestão.   Assim,   a   propriedade   privada   não   caberia   mais   nesse  novo  sistema  industrial.  Existiria  ainda  pequena  desigualdade  e  a  sociedade  seria  perfeita   apenas   depois   de   reformar   o   Cristianismo.  Dizia   que   “o   homem  não   é  apenas   algo   passivo   na  História,   pois   sempre   procura   alterar   o  meio   social   no  qual  esta  inserido”.    

Cada  sociedade  funciona  dentro  das  normas  que  a  ela  correspondam,  pois  não  é  possível   colocar   determinada   regra   de   uma   sociedade   em   outra.   A   regra   deve  combinar  com  a  estrutura  para  que  a  sociedade  industrial  se  desenvolva.    

Saint-­‐Simon  ainda  mantém  a  ideia  de  sociedade  hierarquizada.  Por   isso,  haveria  ainda   certa   desigualdade   no   socialismo,   pois   no   topo   estariam   diretores   da  indústria  e  de  produção,  engenheiros,  artistas  e  os  cientistas;  na  parte  de  baixo  estariam   os   trabalhadores   responsáveis   pela   execução   dos   projetos   feito   pelos  inventores   e   diretores.   Com   isso,   previa   que   se   alcançaria   o   grau   máximo   da  capacidade  de  produção,  ou  seja,  o  pleno  emprego.  Ele  foi  o  primeiro  a  perceber  que  o  conflito  de  classes  estava  relacionado  com  a  Economia.  Seria  nas  mãos  dos  trabalhadores  que  o  futuro  seria  construído,  mas  guiados  por  alguém.  

Para   Saint-­‐Simon,   o   vínculo   da   sociedade   deveria   repousar   sobre   os   ideais  industriais,  ou  seja,  sobre  a  organização  mais  favorável  a  indústria.  Nas  colônias  emancipadas,   no   caso,   Saint-­‐Simon   se   referia   à   América,   a   classe   industrial  cresceu  e  adquiriu  poder  político.  Este  poder  ela  usava  para  não  mais  aceitar  um  governo  que  atuasse  fora  dos  limites  impostos  por  ela.    

Saint-­‐Simon  acreditava  que  a  humanidade  caminhava  em  direção  ao  progresso,  desde   a   emancipação   das   colônias,   passando   pela   Reforma   Protestante   na  Inglaterra,   até   as   Revoluções   Americana   e   Francesa.   Esperava,   portanto,   a  revolução  geral  de  todos  os  seres  humanos,  nações  e  sociedade,  em  direção  à  sua  melhora.  Nessa  sociedade  evoluída,  o  governo  não  “governaria”  os  homens,  mas  apenas   garantiria   as   condições  para   o   exercício  dos   trabalhos;   não  disporia  de  muitos   recursos,   pois   recursos   escassos   seriam   suficientes  para   cada   empresa;  não   recolheria   impostos,   pois   seus   fundos   seriam   providos   por   doações  voluntárias   daqueles   (todos   os   trabalhadores   ou   a   sociedade   em   geral)   que   se  interessariam   pela   manutenção   das   condições   de   trabalho.   Eles   próprios   se  responsabilizariam  pela  fiscalização  da  destinação  desses  recursos.  

Saint-­‐Simon   considerava   que   os   homens   que   se   sustentavam   por   meio   da  indústria  tinham  uma  necessidade  básica:  a  liberdade.  Por  essa  liberdade,  Saint-­‐Simon   designava   o   desejo   desses   homens   não   trabalharem   e   não   serem  atrapalhados  quando  desfrutassem  do  que  tinham  produzido.    

Os  homens  não  eram  capazes  de  vencer  esse  desejo  de  “ócio”,  para  satisfazer  a  seus  desejos   e  prazeres.   Por   esse  motivo,   tinham  de   ser   impelidos   a   trabalhar.  Havia,   porém,   certa   classe   de   homens   que,   embora   não   tivessem   vencido   a  preguiça   e   não   trabalhassem   como   os   outros,   desfrutavam   dos   produtos   e   de  prazeres  como  se  o  tivessem  feito.  Saint-­‐Simon  chamava  a  esses  homens  ociosos  de  “ladrões”,  sejam  porque  recebiam  ou  tomavam  o  que  não  lhes  pertencia.  

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Nesse  sentido,  os  trabalhadores  precisavam  de  estrutura  que  os  livrasse  do  risco  de  não  poderem  desfrutar  dos  produtos  pelos  quais  trabalhavam.  Essa  estrutura,  que   impediria  que  a  violência  e  a  ociosidade  encontrassem   lugar  na  sociedade,  seria  o  Governo.    

No   entanto,   quando   o   governo   atuasse   fora   de   sua   função,   tornar-­‐se-­‐ia  autoritário   e   tirânico.   Consequentemente,   sua   ação   tornar-­‐se-­‐ia   mais   nociva   à  indústria  do  que  sua  omissão.  O  objetivo  da  empresa  e  do  governo  ideal  de  toda  a  sociedade   era   constituir   e   manter   certa   situação   de   segurança   da   forma  mais  barata  possível.    

Saint-­‐Simon   explicava   que   foi   na   América   que   pela   primeira   vez   vislumbrou   o  progresso  e  o  fim  último  da  sociedade,  desejando  o  vislumbrar  também  em  seu  país.  A  Revolução  Francesa,  embora  tenha  se  iniciado  com  ideais  de  liberdade  e  com  caráter  industrial,  deu  lugar  apenas  à  tirania  e  ao  despotismo  militar.  

Constituiu   seu   objeto   de   estudo   a   diferença   entre   os   desejos   últimos   da  sociedade  dos  trabalhadores  e  a  matéria  a  ser  administrada  pelo  governo.  Se  os  governantes   se   propusessem  a   ouvir   e   colocar   em  prática   o   que   afirmavam  os  escritores  políticos  e  os  industriais,  tudo  estaria  adequado.  Haveria,  porém,  uma  contradição,   pois   o   governante   nem   sempre   teria   interesse   em   administrar  adequadamente   os   interesses   gerais.   Embora   os   industriais   desejassem   ser  governados   o   menos   possível,   dentro   dos   limites   de   atuação   do   governo,   os  governantes  desejavam  estender  ao  máximo  seu  poder.    

Saint-­‐Simon  também  criticava  a  atuação  dos  governos:  “os  vemos  ocuparem-­‐se  e  empregarem  toda  sua  influência  não  para  descobrir  a  opinião,  mas  para  formá-­‐la;   não   para   buscar   pessoas   que   discutam,   mas   pessoas   que   aprovem   e  demonstrem;  em  uma  palavra,  não   conselheiros,   sim  advogados”.  Dessa   forma,  Saint-­‐Simon   concluía   que   era   preciso   anular   esse   mediador   inútil   e  potencialmente   perigoso,   para   estabelecer   relações   diretas   entre   industriais   e  escritores   políticos,   de   forma   a   realizar   o   objetivo   primordial   do  empreendimento:  o  bem  comum.  

Finalmente,   o   pensador   francês   pergunta-­‐se   sobre  a  existência  de  um  princípio  geral   da   política.   Faz   sete   afirmações   que   considera   serem   as   mais   gerais   e  comprovadas  asserções  da  Ciência  Política:    

• a   produção   de   coisas   úteis   é   o   único   objetivo   razoável   a   que  sociedades  políticas  podem  se  propor;    

• o   governo   sempre   prejudica   a   indústria   quando   atua   fora   de   seus  limites;    

• os  produtores,  por  serem  os  únicos  que  pagam  impostos,  são  os  únicos  homens  úteis  a  sociedade  e  que,  portanto,  podem  votar;    

• os  homens  nunca  podem  lutar  entre  si  sem  prejudicar  a  produção;    • o  desejo  de  subjugar  outros  povos  é  nocivo,  pois  diminui  a  produção;    • a  moral  se  aperfeiçoa  de  forma  diretamente  relacionada  à  melhora  da  

indústria;    • os  homens  devem  se  considerar  uma  sociedade  de  trabalhadores.    

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A  partir  de  tais  considerações,  Saint-­‐Simon  concluía  que  “a  Ciência  Política  pode  ser  unicamente  compreendida  e  sintetizada  como  a  Ciência  da  Produção”.  

1.2. Positivismo  

Fonseca  (2000:  349)  comenta  que  “outra   fonte  a  que  os  críticos  do   liberalismo  frequentemente   recorriam   eram   os   autores   positivistas,   entre   os   quais   o  mais  citado  era  Comte.  O  positivismo,  apesar  de  manter  certos  dogmas  liberais,  como  o   orçamento   equilibrado,   admitia   a   possibilidade   de   intervenção   estatal   não  apenas   como   exceção,   mas   como   regra   de   que   o   governante   poderia   se   valer  quando  houvesse  forte  necessidade  social”.  

“O   positivismo”,   como   Fonseca   relembra,   “influenciou   vasta   parcela   da  intelectualidade   latino-­‐americana   e   brasileira,   em   particular,   desde  meados   do  século  XIX  e,  nos  cursos  de  Direito,  representou  a  rebeldia  às  teses  liberais  e  jus-­‐naturalistas.  Do  ponto  de  vista  da  Economia,  suas  teses  têm  importância  não  só  por  admitirem   ideologicamente   certo   intervencionismo   (limitado,   ademais,  pelo  princípio  das  "finanças  sadias"  do  orçamento  equilibrado),  mas  por  enfatizar  que  cabia  aos  governantes  tomar  medidas  para  que  se  alcançasse  o  progresso”.    

Ordem   nas  Finanças  Públicas   e  progresso   na  Nação,   o   lema  da  bandeira  parece  também  incrustrada  na  ideologia  desenvolvimentista.  Seus  ideólogos  definem  o  que  deveria  ser,  praticando  Economia  Normativa,    e,  curiosamente,  não  aceitando  se  restringir  à  Economia  Positiva  com  seu  diagnóstico  sobre  o  que  é.  Esta  não  é  Positivista...  

A  proposta  de  romper  com  o  passado,  isto  é,  o  liberalismo  associado  ao  marasmo  agrarista   e   à   cultura   livresca,   sem   base   na   realidade   brasileira,   como   mostra  Fonseca   (2000:  350),  aparece  nos   "pensadores  autoritários"  dos  anos  de  1930.  Essa  ruptura   inspira-­‐se   tanto  no  positivismo   como  nas  doutrinas  corporativistas  então   nascentes,   tendo   em   comum   com   elas   o   repúdio   ao   liberalismo   dos  bacharéis,   divorciados   do   que   consideravam   a   realidade   do   país,   agrário,  copiador   de   culturas   importadas   e   atrasado.   A   indústria   representava   a  modernidade,  a  evolução,  o  progresso,  a  supremacia  da  ciência  e  da  técnica  sobre  os   costumes   ultrapassados   pela   marcha   da   civilização.   O   positivismo   trouxe  consigo,  portanto,  uma  agenda  a  ser  implementada.  Fonseca  indaga:  “como  falar  em  laissez-­‐faire,  laissez-­‐passer  dentro  desse  contexto?”  

A   influência   corporativista   sobre   Vargas   talvez   se   deva   ao   próprio   Auguste  Comte,  defensor  da  integração  do  proletariado  à  sociedade  industrial  através  de  medidas   de   proteção  aos   trabalhadores,   como   forma   de   impedir   os   avanços   da  miséria   decorrente   da   Revolução   Industrial.   Fonseca   (2000:   351)   assinala   que  “um  dos  autores  mais  citados  por  Vargas,  era  Saint-­‐Simon”.  No  período  de  1817-­‐1824,  Auguste  Comte  foi  secretário  do  conde  Henri  de  Saint-­‐Simon,  como  visto,  expoente  do  socialismo  utópico.  Com  ele  aprendeu  as  primeiras   lições  críticas  ao  liberalismo  inglês.    

Comte  julgava  irrealista  e  anticientífica,  sem  base  nos  fatos,  a  tese   liberal  de  que,  cada  um  buscando  seu  próprio  interesse,  chegar-­‐se-­‐ia  ao  melhor  para  todos.  Nisto,  inspirava-­‐se   em   Saint-­‐Simon,   como   também   ao   propor   uma   sociedade   mais  

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racional,   governada   por   critérios   científicos   e   voltada   para   o   progresso.   Como  afirma   Fonseca   (2000:   351),   “as   teses   desse   pensador   francês   marcaram   as  grandes   ideologias   do   século   XIX,   acabando   por   influenciar   uma   corrente  conservadora,  a  ‘ditadura  científica’  de  Comte,  com  progresso  dentro  da  ordem,  e  outra  socialista,  fundada  no  planejamento  estatal.  Em  qualquer  uma  das  versões,  todavia,   há   a   defesa   do   intervencionismo   e   da   supremacia  da   sociedade   sobre  o  indivíduo,   como   em   pronunciamento   de   Vargas,   em   1927,   de   forte   cunho  positivista  (e  ‘desenvolvimentista’)”.  

A  dedução  é  que  “desenvolvimento  e   integração  dos   trabalhadores  ao  mercado  interno,  bem  como  descrença  nos  mecanismos  de  mercado  para  alcançá-­‐los  sem  a  presença  de  políticas  indutoras,  são  ideias  anteriores  à  criação  da  Cepal  e  que  já   há   tempo,   sob   a   égide   do   positivismo,   encontravam   adeptos   na   América  Latina”  (idem;  ibidem).  

Mas,   antecipando   um   pouco   o   que   virá   na   continuação   deste   Texto   para  Discussão,   e   “testando   a   hipótese”   de   que   essas   ideias   varguistas,   positivistas   e  saint-­‐simonianas,  de  desenvolvimento  e  integração  dos  trabalhadores  ao  mercado  interno,  mantém   ainda   hoje   adeptos   entre   os   “desenvolvimentistas   de   esquerda”,  destacamos  depoimento  recente  (Cadernos  do  Desenvolvimento  [CD];  2011:  427)  de  Luiz  Gonzaga  Belluzzo  (LGB):    

LGB:   “Eu   e   João   Manuel   éramos,   no   fundo,   muito   críticos   da   visão   da  Universidade  de  São  Paulo  [muito  crítica  em  relação  a  Gilberto  Freyre  e  Getúlio  Vargas].  Éramos  alunos  de  lá  e  tínhamos  mais  afinidades  com  uma  pessoa  como  o   Fernando   Novais,   que   estava   muito   mais   próximo   da   outra   visão   do  desenvolvimento,  a  do  ISEB.  (...)  Nós  tínhamos  uma  posição  contrária  à  da  USP,  até  por  questões  biográficas.  Meu  pai  era  muito  getulista  e  o  pai  do  João  Manuel  era   anti-­‐udenista.   Meu   tio   era   ligado   à   editora   José   Olympio,   onde   eu   conheci  muitos  autores.  Eu  era  menino  e  ia  lá,  via  Gilberto  Freyre,  José  Lins  do  Rego.  

CD:   Então,   você   também   não   compartilhava   a   visão   da   USP,   em   especial   do  Francisco  Weffort,  sobre  o  populismo?  

LGB:  Nós  tínhamos  horror  a  essa  visão,  com  todo  o  respeito  ao  Weffort.  Isso  era  o  negócio  do  antigetulismo  da  USP,  que  vivia  numa  espécie  de  udenismo.  

CD:  Provocando:  isso  não  ajudou  a  produzir  o  PT,  anos  depois?  Justamente  com  a  insistência  na  ideia  da  organização  autônoma  da  classe  trabalhadora?  

LGB:  Claro!  O  Weffort  era  o  secretário-­‐geral  do  PT,  era  o  ideólogo  do  partido.  

CD:   E   não   era   só   a   crítica   que   o   PT   fazia   a   esse   populismo   do   Vargas,  mas   ao  modelo   corporativo,   à   tutela   pelo   Estado.   Quando   surge,   o   PT   quer   uma  concepção  pluralista,  de  organização  dos  interesses  dos  trabalhadores.  Opunha-­‐se  frontalmente  à  herança  varguista,  que  era  então  interpretada  por  Brizola.  

LGB:  O  Weffort  era  de  origem  trotskista.  E  os   trotskistas  acham  essa  discussão  sobre  a  nação  fora  do  lugar.”  

 

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1.3. List  

Fonseca  (2000:  352)  nota que,  “a  despeito  da  semelhança  entre  as  teses  da  Cepal  e   as   de   List,   este   autor   é   pouco   citado   pelos   economistas   vinculados   àquela  instituição.   Entretanto,   não   se   pode   alegar   desconhecimento:   List   tornou-­‐se  bastante  conhecido  no  meio  da  intelectualidade  latino-­‐americana  por  sua  defesa  enfática   da   industrialização   e   pela   crítica   ao   livre   cambismo,   sendo   referência  obrigatória   em   muitos   cursos   de   Economia   Política   e   amplamente   citado   por  políticos,  militares  e  líderes  empresariais.”  

Há  passagens  na  principal  obra  de  List  (1983)  que  assombram  pela  semelhança  de   argumentos   e   até  de   linguagem  com  os  principais   economistas   cepalinos.  A  industrialização  como  questão  nacional,  nos  moldes  da  Cepal,  vem  à  tona  com  a  mesma   divisão   internacional   do   trabalho   perversa   às   nações   agrícolas  dependentes:   "A   história   demonstra   que   os   dispositivos   protecionistas   se  originaram   do   esforço   natural   das   nações   para   atingirem   sua   prosperidade:  independência   e   poder,   ou   das   guerras   e   da   legislação   comercial   hostil   das  nações   manufatureiras   predominantes"   (1983:127).   E   daí   List   concluía   pela  defesa   intransigente   do   mercado   interno:   "o   comércio   exterior   só   pode  prosperar   nas   nações   que   desenvolveram   sua   indústria   interna   em   alto   grau"  (1983:130).   A   prioridade   do   mercado   interno,   portanto,   deveria   ocorrer  concomitantemente  à  mudança  na  pauta  de  exportações.  Esta  só  aconteceria  se  a  nação  se  industrializasse.  

Da  mesma   forma   que  Vargas   e,  mais   tarde,   os   cepalinos,   ainda   de   acordo   com  Fonseca  (2000:  354),   “List  postulava  não  haver  contradição  entre  os   interesses  industriais  e  agrícolas,  desde  que  sob  a  hegemonia  dos  primeiros”.  Na  verdade,  a  ideia  de  conciliação  entre  elite  e  contra-­‐elite,  ou  mesmo  entre  classes  socialmente  antagônicas,   é   tradição   brasileira   que   muitos   acadêmicos   (marxistas   ou   não)  brasileiros   teimam   em   desprezar   como   “populismo”,   mas   os   defensores   do  desenvolvimentismo   insistem  em  enxergar   como  a  necessária   “coesão  política”  para  construção  de  Nação  civilizada.  

Georg   Friedrich   List   (1789-­‐1846)   foi   economista   partidário   do   protecionismo,  matéria   sobre  a  qual   teorizou.  Até  meados  do   século  XX  a   sua  obra  era  a  mais  traduzida  de  qualquer  economista  alemão  com  exceção  de  Karl  Marx.  

De   acordo   com   o   seu   pensamento   económico,   as   empresas   nacionais   não   se  poderiam   desenvolver   se   o   mercado   já   estivesse   ocupado   por   empresas   de  países   estrangeiros   economicamente   mais   avançados.   Nessas   circunstâncias  justificava-­‐se   certo   protecionismo   educador,   tendo   por   objetivo   proteger  temporariamente   o   mercado   nacional   para   assegurar   a   consolidação   das  indústrias   nacionais.   Em   médio   prazo,   talvez   elas   pudessem   concorrer   com  sucesso   em   ambiente   de   livre   concorrência,   sem   que   essa   competição   se  transformasse   rapidamente   em   esmagamento   das   indústrias   do   território  economicamente  menos  desenvolvido.  

Esta   teoria   tem   larga   aplicação   nos   países   em   via   de   desenvolvimento.  Anteriormente,   foi   também   muito   utilizada   pelos   Estados   europeus   e   pelos  Estados  Unidos  da  América.  Apesar  de  toda  a  retórica  em  torno  da  globalização  e  

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do  livre-­‐comércio,  mesmo  os  Estados  mais  avançados  ainda  recorrem  a  medidas  de   protecionismo   seletivo,   nos   setores   considerados   ‘’estratégicos’’,   que   se  enquadram  no  pensamento  de  List.  

Em  1817,  List  se   tornou  professor  de  Administração  e  Política  na  Universidade  de   Tübingen,   tendo   que   renunciar   em   1819   por   desentendimentos   políticos.  Como   deputado,   defendeu   avidamente   a   Reforma   Administrativa   do   Estado  alemão.  Foi  expulso  da  Câmara,  em  1822,  e   sentenciado  a  dez  meses  de  prisão  com  trabalhos  forçados.  Fugiu  para  a  Alsácia,  e  depois  de  percorrer  a  França  e  a  Inglaterra   regressou,   em   1824,   para   terminar   sua   sentença.   Foi   liberado   sob  condição   de   emigrar   para   os   Estados   Unidos,   onde   viveu   de   1825   a   1832,  inicialmente  como  agricultor,  dedicando-­‐se  mais  tarde  ao  jornalismo.  

Foi  nos  Estados  Unidos  onde  obteve  a  inspiração  que  o  levou  à  Economia  e  à  visão  de   "Sistema   Nacional".   Foi   muito   influenciado   pelos   princípios   econômicos   de  Alexander  Hamilton,  primeiro  Secretário  do  Tesouro  norte-­‐americano,  inclusive  por  sua  rejeição  à  doutrina  econômico-­‐liberal  apoiada  em  Adam  Smith.  

List  era   contra  os  princípios   cosmopolitas  e  a  Economia  dominante  na  Europa,  ou  seja,  a  doutrina  do  livre-­‐comércio.  Defendia  a  predominância  da  ideia  nacional  e   insistia   na   autodeterminação   de   cada   Nação,   dadas   suas   circunstâncias  particulares,   e   especialmente   em   favor   do   seu   desenvolvimento.   Questionava,  publicamente,  a   sinceridade  da   retórica  em   favor  do   livre  comércio  das  nações  desenvolvidas,  em  particular  a  da   Inglaterra.  Defendeu  com  firmeza  a  extensão  do   sistema   de   ferrovias   na   Alemanha.   Acabou   sendo   um   dos   inspiradores   da  criação  da  União  Aduaneira  dos  Estados  Alemães  de  1834,  que  abrangeu  a  maior  parte  das  entidades  políticas  que   formaram  a  Alemanha  unificada.   Inspirado  na  experiência   norte-­‐americana,   suas   ideias   inspiraram   o   “salto   de   etapas”   no  desenvolvimento  de  Nações  em  atraso  histórico.  

Em   sua   Apresentação   na   tradução   brasileira   do   livro   de   List   (1983)   ,   o  economista  e  senador  Cristovam  Buarque  (p.  XXIII-­‐XXIV)  afirma  que  “ao  longo  de  sua   obra,   ele   propõe   medidas   que   se   identificam   claramente   com   todas   as  normas  modernas  de   indução  e  planejamento  em  países  capitalistas  atrasados.   A  análise  dessas  medidas  instrutoras  se  identifica  com  a  visão  da  CEPAL,  e  outros  organismos  de  planejamento  nacionais,  faltando  apenas  uma  instrumentalização  institucional   (Bancos  de  Desenvolvimento,  Órgãos  de  Planejamento)   e   técnicas  específicas”.  

Buarque   (1983:  XXVI)   sintetiza   “toda   a   concepção  do  desenvolvimentismo  que  está  presente  em  List”  da  seguinte  forma:  

• Objetivo:  o  desenvolvimento  de  qualquer  Economia  tem  como  objetivo  a  limitação  dos  países  já  industrialmente  desenvolvidos;  

• Etapas:  as  economias  se  desenvolvem  mediante  etapas  sucessivas,  que  só  podem  ser  superadas  através  da  ação  indutora  do  Estado;  

• Protecionismo:   o   caminho   da   industrialização   (condição   necessária   e  razão   do   desenvolvimento)   das   Nações   passa,   obrigatoriamente,   por  proteção  aduaneira  à  indústria  nacional;  

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• Mercado  Interno:  o  protecionismo,  ao  permitir  o  dinamismo  da  indústria  local,   gera   também   o   mercado   interno   necessário   ao   seu   próprio  crescimento;  

• Infraestrutura:  para  que  a  industrialização  seja  possível  é  fundamental  a  execução,  com  apoio  do  Estado,  de  obras  de  infraestrutura,  especialmente  no  setor  de  transportes.  

 

2. Pensamento  Estruturalista  (ou  Cepalino)  sobre  o  Desenvolvimento  

Walt   W.   Rostow   dividiu   o   processo   de   desenvolvimento   em   cinco   etapas:   a  sociedade   tradicional,   as   precondições   para   o   arranco,   o   arranco   propriamente  dito,  a  marcha  para  a  maturidade,  a  era  do  consumo  de  massa.  Essas  cinco  etapas  do   desenvolvimento   tinham   conteúdo   idêntico   para   todos   os   países,  independentemente   do   momento   em   que   cada   qual   se   iniciou   no   caminho   da  industrialização.  

Celso   Furtado,   em   Teoria   e   Política   do  Desenvolvimento   Econômico   (São   Paulo,  Abril  Cultural,  1983:  109),    criticava  esse  enfoque  faseológico  do  desenvolvimento.  Achava  que  era  esforço  interpretativo  da  história  que,  dada  a  complexidade  dos  processos   históricos,   exigia   elevar   extremamente   o   nível   de   abstração,   o   que  evidentemente  reduzia  a  eficácia  explicativa  dos  modelos  construídos.  “Imaginar  que   esses   tipos   ideais   [categorias   abstratas   de   sistemas   econômicos]   são   fases  pelas  quais  passam  necessariamente  todas  as  sociedades  em  sua  evolução  é  uma  forma   particular   de   interpretação   da   história   fundada   nas   ideias   de   progresso  que  permeiam  a  filosofia  europeia  a  partir  do  iluminismo”.  

Assim,  em  razão  de  sua  extrema  generalidade,  o  valor  dessas  análises,  como  base  de   antecipação  de   tendências   a   longo  prazo,   é   reduzido  ou  nulo.  No   entanto,   a  despeito   dessas   limitações   que   levam   o   alcance   do   enfoque   faseológico   a   ser  meramente  descritivo,  ele  pode  alertar  para  o  papel  dos  fatores  não-­‐econômicos  que   interferem   nos   processos   de   desenvolvimento   e   das   características  específicas  das  atuais  economias  subdesenvolvidas  ou  em  desenvolvimento.    

Furtado  (1983:  113)  alertou  para  os  aspectos  políticos  do  desenvolvimento.  “É  no  controle   das   estruturas   de   poder   –   assim   como  na   apropriação   e   utilização   do  excedente  –  por  grupos  cujas  motivações  não  se  relacionam  de  forma  principal  com   a   atividade   produtiva   e   na   aliança   desses   grupos   com   elementos  estrangeiros   cujos   objetivos   não   são   compatíveis   com   os   interesses   da  coletividade  que  se  encontram  os  principais  obstáculos  ao  desenvolvimento  dos  atuais  países  subdesenvolvidos”.  

Um   outro   perfil   de   base   histórica   do   desenvolvimento   da   economia  contemporânea   foi   sugerido   por   Raúl   Prebisch   (1901-­‐1986),   economista  argentino  secretário  executivo  da  CEPAL  –  Comissão  Econômica  para  a  América  Latina  –  desde  sua   fundação,  pela  ONU  –  Organização  das  Nações  Unidas  –,  em  1948,  até  1962.  Prebisch  parte  da  análise  da  propagação  da  tecnologia  moderna  e  da  repartição  dos  frutos  do  progresso  técnico.  A  característica  principal  dessa  economia   é   a   coexistência   de   um   centro,   que   comanda   o   desenvolvimento  

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tecnológico,  e  uma  vasta  e  heterogênea  periferia.  O  tipo  de  relações  que  existe  entre   o   centro   e   a   periferia   estaria   na   base   do   fenômeno   de   concentração   de  renda  em  escala  mundial,  que  se  realiza  principalmente  por  meio  da  deterioração  persistente  dos  termos  do  intercâmbio  entre  os  países  periféricos  exportadores  de  produtos  primários  com  baixo  valor  agregado  e  os  país  centrais  exportadores  de  bens   industriais.   Sua   análise   dinâmica   indica   que   não   existe   tendência   à  passagem   automática   de   uma   fase   qualquer   a   outra   superior.   Ao   contrário,   a  única  tendência  visível  é  que  os  países  subdesenvolvidos  continuarão  a  sê-­‐lo.  

Esse   pensamento   é   denominado   estruturalista   porque   a  matriz   estrutural   de  um  modelo  é  o  conjunto  de  relações  precisas  existentes  entre  as  variáveis,  isto  é,  a   forma   como   a   partir   dos   valores   conhecidos   de   um   vetor   de   variáveis  (exógenas)   se   determina   os   valores   de   outro   vetor   de   variáveis   (endógenas).   A  análise  econômica  estruturalista  se  propõe  a  explicar  certos  fenômenos  a  partir  de   outros   que   são   conhecidos.   Se   os   valores   dos   parâmetros   –   variáveis   ou  constantes  às  quais,  em  relação  determinada  ou  em  questão  específica,  se  atribui  papel   particular   e   distinto   do   das   outras   variáveis   ou   constantes   –   são  especificados,   as   relações   entre   as   variáveis   assumem   características   precisas,  definindo-­‐se   certa   estrutura.   O   termo   estrutura,   portanto,   refere-­‐se   às  proporções   e   relações   que   caracterizam   determinado   conjunto   econômico  localizado  no  tempo  e  no  espaço.  Furtado   (1983:   71/72)   afirma:   “o   estudo   (no   tempo)   das   modificações   das  matrizes   estruturais  dos  modelos  que   acompanham  a   intensificação  da  divisão  social  do  trabalho  –  vale  dizer:  o  aumento  da  produtividade  do  trabalho  no  plano  macroeconômico   e   a   diversificação   da   demanda   no   plano   social   –   é   a  matéria  central  da  teoria  do  desenvolvimento”.  No  modelo   adotado   por   economistas,   o   sentido   substantivo   dos   elementos   do  conjunto   –   decisões   de   consumo,   de   investimento,   etc.   –   é   imprescindível   para  que   se   entendam   as   relações,   isto   é,   para   que   se   defina   a   estrutura.   O  estruturalismo  econômico  –  escola  de  pensamento  surgida  na  primeira  metade  dos  anos  50  entre  economistas  latino-­‐americanos  –  teve  como  objetivo  principal  pôr   em   evidência   a   importância   dos   “parâmetros   não-­‐econômicos”   dos   modelos  macroeconômicos.   O   comportamento   das   variáveis   econômicas   depende   em  grande  medida  desses  parâmetros.  

Os  economistas  que  deram  ênfase  especial  ao  estudo  de   tais  parâmetros   foram  chamados   de   “estruturalistas”.   Exemplos   desses   fatores   “não-­‐econômicos”  particularmente  pertinentes  com  respeito  a  sistemas  econômicos  heterogêneos,  social  e   tecnologicamente,   como  é  o  caso  das  economias  subdesenvolvidas  são,  entre  outros:  

1. Regime   de   propriedade   da   terra:   sem   conhecimento   adequado   da  estrutura  agrária  não  seria  possível  entender  a  rigidez  da  oferta  de  alimentos  em  certas  economias;  

2. Controle  das   empresas  por   grupos  estrangeiros:  sem  análise  do  sistema  de  decisões,  cujo  controle  poderia  estar  em  mãos  de  grupos  estrangeiros,  não  seria  fácil  entender  a  orientação  das  inovações  técnicas;  

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3. Existência  de  parte  da  população  “fora”  da  economia  de  mercado:  sem  a  identificação   do   dualismo   estrutural   não   seria   fácil   explicar   a   tendência   à  concentração  de  renda.  

Metodologicamente,   os   estruturalistas   retomaram   a   tradição   do   pensamento  marxista,  no  sentido  que  ambas  correntes  colocaram  em  primeiro  plano  a  análise  das  estruturas  sociais  como  meio  para  compreender  o  comportamento  de  variáveis  econômicas.  O  trabalho  desses  economistas  estruturalistas  aproxima-­‐se  também  do   daqueles   outros   preocupados   em   dinamizar   os   modelos   econômicos,  contrapondo-­‐se  à  construção  de  modelos  “estáticos”  de  caráter  a-­‐histórico.    

O  modelo   da   síntese   neoclássica-­‐keynesiana   havia   sido   construído   em   elevado  nível   de   abstração,   limitando-­‐se   a   explicar   as   interações   de   sete   variáveis  agregadas,  impedindo  que  se  referisse  somente  à  alguma  realidade  histórica  bem  definida.  Assim,  não  seria  tão  fácil  “generalizá-­‐lo”,  isto  é,  estender  o  seu  alcance  explicativo  à  realidade  histórica  fundamentalmente  diversa,  como  era  o  caso  de  economias   subdesenvolvidas.  O  modelo  macroeconômico   devia   estar   em  menor  nível   de   abstração,   isto   é,   em   termos   de   teoria   aplicada,   reincorporando  elementos  sociais  e  políticos  antes  abstraídos,  para  ser  referido  a  essa  realidade  histórica.  

Em   síntese,   de   acordo   com   o   pensamento   de   Furtado   (1983:   74),   a  Microeconomia  constituía  simples  conjunto  de  regras  de  racionalidade  formal  e  a  Macroeconomia,  esforço  de  captação  a  posteriori.  O  esforço  de  sua  tradução  em  linguagem   econômica   de   processo   histórico   no   qual   o   “econômico”   e   o   “não-­‐econômico”   se   condicionaram  mutuamente   em   todos   os   instantes   era   o  maior  desafio   dos   cepalinos.   “O   avanço   da   análise   econômica   requer   a   combinação  desses   dois   enfoques:   por   um   lado,   o   estudo   dos   processos   históricos,   ou   das  realidades  sociais  globais,  e  a  construção  de  tipologias  referidas  aos  mesmos;  por  outro,   o   aprofundamento   na   compreensão   do   comportamento   dos   agentes  econômicos  a  partir  de   contextos  perfeitamente  definidos.  Os  dois   enfoques   se  completam  e  mutuamente  enriquecem.  Que  seja  necessário  combiná-­‐los  indica  a  complexidade  do  trabalho  de  teorização  na  Ciência  Econômica”.  

O   método   histórico-­‐estruturalista,   baseado   no   argumento   da   “condição  periférica”,  se  desenvolveu  como  escola  de  pensamento  especializada  no  exame  das  tendências  econômicas  e  sociais  em  médio  e   longo  prazo  dos  países   latino-­‐americanos.   Eles   evoluíram   do   modelo   de   crescimento   primário-­‐exportador  “hacia  fuera”  ao  modelo  urbano-­‐industrial  “hacia  adentro”.  

Bielschowsky   (1998)   traça,   esquematicamente,   a   evolução   das   ideias   da  Comissão   Econômica   para   a   América   Latina   no   Número   Extraordinário  comemorativo  dos  50  Anos  de  Reflexões  sobre  América  Latina  e  Caribe  da  CEPAL.  Reproduzimos   abaixo   sua   síntese   dos   elementos   analíticos   que   compõem   o  pensamento  histórico-­‐estruturalista  da  CEPAL.  

 

 

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Períodos  e    Temas  

Elementos  Permanentes  da  Análise  Histórico-­‐Estruturalista  

Inserção  internacional  

(centro-­‐periferia  e  vulnerabilidade  

externa)  

Condições  estruturais  internas  

(econômicas  e  sociais)  do  

crescimento  /  progresso  técnico  e  

do  emprego  /  distribuição  da  

renda  

Ação  estatal  

1948-­‐1960  (industrialização)  

Deterioração  dos  termos  de  intercâmbio;  desequilíbrio  estrutural  do  balanço  de  pagamentos;  integração  regional  

Processo  de  industrialização  substitutiva  de  importações;  tendências  perversas  causadas  pela  especialização  e  a  heterogeneidade  estrutural:  desemprego  e  inflação  

Conduzir  deliberadamente  a  industrialização  

1960  (reformas)   Teoria  da  dependência:    política  internacional  de  redução  da  vulnerabilidade    na  periferia  

Reforma  agrária  e  distribuição  da  renda  como  requisitos  para  redinamizar  a  economia:  heterogeneidade  estrutural;  dependência    

Reformar  para  viabilizar  o  desenvolvimento  

1970  (estilos  de  crescimento)  

Dependência,  endividamento  perigoso,    insuficiência  exportadora  

Estilos  de  crescimento,  estrutura  produtiva  e  distributiva  e  estrutura  de  poder;  industrialização  que  combina  o  mercado  interno  e  o  esforço  exportador  

Viabilizar  o  estilo  que  leve  à  homogeneidade  social;  fortalecer  as  exportações  industriais  

1980  (dívidas)   Asfixia  financeira   Ajuste  com  crescimento;    oposição  aos  choques  do  ajuste,  necessidade  de  políticas  de  renda  e  eventual  conveniência  de  choques  estabilizadores;    custo  social  do  ajuste  

Renegociar  dívida  externa  para  ajustar  com  crescimento  

1990-­‐1998  (transformação  produtiva  com  equidade)  

Especialização  exportadora  ineficaz  e  vulnerabilidade  aos  movimentos  de  capitais  

Dificuldades  para  transformação  produtiva  social  eficaz  

Executar  políticas  para  fortalecer  a  transformação  produtiva  com  equidade  

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3. Correntes  do  Pensamento  Econômico  Brasileiro  nos  anos  50-­‐60  

 

Bielschowsky  (1988)  dá  pistas  sobre  a  localização  institucional  dos  economistas  brasileiros  e   suas  publicações  entre  1945  e  1964.  Houve,   a  partir  dos  anos  50,  verdadeira   tomada   de   consciência   da   importância   da   luta   política   no   campo  intelectual.   Os   economistas   e   intelectuais,   de  modo   geral,   iriam   agrupar-­‐se   em  novas   instituições   com   projetos   básicos   claramente   definidos   no   tocante   à  condução   do   processo   de   desenvolvimento.   As   cinco   grandes   correntes   de  pensamento  econômico  articularam-­‐se  da  seguinte  maneira:  

• Os   neoliberais   conquistaram   dois   espaços   importantes.   Em   primeiro  lugar,   na   Fundação   Getúlio   Vargas,   o   retorno   de   Richard   Lewinsohn   à  Europa,   em   1952,   deu   condições   à   equipe   de   Eugênio   Gudin   e   Octávio  Bulhões,   que   já   controlava   o   Instituto   Brasileiro   de   Economia   (IBRE),   e  editava  a  Revista  Brasileira  de  Economia   (RBE),  de  passar  ao  controle  da  revista   Conjuntura   Econômica,   desalojando   desenvolvimentistas   como  Américo  Barbosa  de  Oliveira  e  Thomas  Accioly  Borges.  Em  segundo  lugar,  formaram  o  Departamento  Econômico  do  Conselho  Nacional  de  Economia  (CNE),   cujo   predomínio   dos   neoliberais   foi   marcante.   A  Revista   do   CNE  passou  a  sair  com  regularidade,  desde  meados  de  1952,  e  teve  destacada  participação   na   defesa   das   posições   monetaristas   da   equipe   Gudin-­‐Bulhões.  Bielschowsky   (1988:   428)  menciona   ainda   a   criação,   em  1953,  de  um  terceiro  espaço  no  Conselho  Técnico  da  Confederação  Nacional  de  Comércio,   cujos   textos   das   conferencias   e   debates   passaram   a   ser  publicados,  a  partir  de  1955,  no  Boletim  Carta  Mensal.  

• Os   desenvolvimentistas   de   tendência   “não   nacionalista”,   isto   é,  técnicos   de   governo   defensores   do   capital   estrangeiro   na   energia,  transportes  e  mineração,   constituíram  um  grupo  numericamente  menos  importante,  mas  com  ativa  militância  intelectual.  Esse  grupo,  cujo  centro  de   poder   era   a   codireção   do   BNDE,   repartida   com   desenvolvimentistas  nacionalistas,   não   formou   propriamente   um   núcleo   de   produção  intelectual.   Seus  membros   estavam,   aliás,   em   posição   que   lhes   permitia  transitarem  tanto  entre  os  neoliberais  como  entre  os  desenvolvimentistas  nacionalistas.  Roberto  Campos,  Lucas  Lopes  e  Glycon  de  Paiva  são  os  três  nomes  mais   expressivos   dessa   corrente.   Publicaram  na  RBE,   no  Digesto  Econômico  e  na  Carta  Mensal.  

• Os   desenvolvimentistas   nacionalistas   criaram   duas   importantes  instituições:   o   Instituto   Brasileiro   de   Economia,   Sociologia   e   Política  (IBESP),   que,   em   1956,   transformou-­‐se   no   famoso   ISEB   (Instituto  Superior   de   Estudos   Brasileiros),   e   o   Clube   de   Economistas.   O   IBESP  publicou   cinco   edições   da   revista  Cadernos  do  Nosso  Tempo.   Na   área   de  Economia,   o   IBESP,   como   o   ISEB,   foi   principalmente   instrumento   de  divulgação   das   análises   marcadamente   cepalinas   de   economistas   como  Ewaldo  Correia  Lima  e  Heitor  Lima  Rocha.  A  exceção,  nesse  sentido,  era  

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dada   pelo   pensamento   independente   de   Ignácio   Rangel,   um   dos  intelectuais   de   destaque   do   grupo   pioneiro   de   Itatiaia,   entre   os   quais  encontravam-­‐se   também   os   economistas   Rômulo   de   Almeida   e   Jesus  Soares   Pereira.   O   Clube   de   Economistas   tinha   a   mesma   inclinação  analítica  que  o  IBESP.  Sua  grande  liderança  intelectual  era  dada  por  Celso  Furtado.  Foi   formado  a  partir  de  um  núcleo  inicial  de  técnicos  do  BNDE.  Publicou,   desde   o   ano   de   sua   fundação,   1955,   até   1962,   a   Revista  Econômica   Brasileira,   que   se   destacou   por   crítica   ao   pensamento  neoliberal  brasileiro.  

• Os  desenvolvimentistas  que   trabalhavam  na  área  privada  situavam-­‐se,   principalmente,   em  duas   instituições.  No  Rio  de   Janeiro,   atuavam  no  Departamento  Econômico  da  CNI,  editando  a  revista  Estudos  Econômicos,  cujo   último   número   data   de   1954.   Destacava-­‐se   como   intelectual   João  Paulo   de   Almeida   Magalhães.   Em   São   Paulo,   o   primeiro   núcleo   de  economistas   desenvolvimentistas   de   razoável   competência   acadêmica,  preocupados   com  o   rigor   analítico,   organizou-­‐se  em   torno  da  Revista  de  Ciências  Econômicas,   editada  pela  Ordem  dos  Economistas  de  São  Paulo.  Sua  figura  mais  promissora  era  o  então  jovem  acadêmico  Antônio  Delfim  Netto.  

• Os   socialistas   tiveram   participação   ativa   na   campanha   do   Petróleo   É  Nosso,   paradoxalmente,   tendo   como   veículo   de   difusão   de   suas   ideias   a  Revista   do   Clube   Militar.   Após   a   morte   de   Stalin,   com   a   liberalização  soviética,   surgiu   a   Revista   Brasiliense,   editada   por   Caio   Prado   Júnior,  publicação   que   deu   espaço   a   intelectuais   marxistas   ligados   ao   Partido  Comunista  Brasileiro  (PCB).  

Quanto  à  caracterização  básica  dessas  correntes  do  pensamento  econômico  brasileiro,   entre   meados   dos   anos   50   e   primeira   metade   dos   anos   60,  Bielschowky  (1988:  284)  esquematiza  o  seguinte  quadro:      

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Grandes  Correntes  de  Pensamento  Econômico  

Orientação  Teórica  

Projeto  Econômico  Básico  

Tese  Básica  (Ideia-­‐Força)  

Interpretação  do  Processo  

de  Crescimento  

Neoliberal   Liberalismo  de  teorias  clássicas  e  neoclássicas  

Crescimento  econômico  equilibrado  via  forças  de  mercado  

Baixa  produtividade    da  mão  de  obra  redunda  em  desemprego  

Crescimento  desequilibrado  e  ineficiente  devido  a  erros  de  política  econômica  

Desenvolvimentistas  Não  Nacionalistas  

Síntese  neoclássica  keynesiana    

Industrialização  em  ritmo  compatível  com  equilíbrio,  capital  estrangeiro  e  planejamento  parcial  

Focalizar    “pontos  de  estrangulamento”  e  “pontos  de  crescimento”  

Tendências  a  desequilíbrios  não  corrigidas  por  erros  de  política  econômica  

Desenvolvimentistas  do  Setor  Privado  

Síntese  neoclássica  keynesiana  e  Prebish  

Industrialização  com  proteção  estatal  ao  capital  industrial  nacional  

Crédito  à  produção  como  instrumento  de  crescimento  

Substituição  de  importações  

Desenvolvimentistas  Nacionalistas  

Síntese  neoclássica  keynesiana  e  Prebish  

Industrialização  planificada  e  fortemente  apoiada  por  empreendimentos  estatais  

Teses  cepalinas  como  desenvolvimento  para  dentro,  estruturalismo,  etc.  

Substituição  de  importações,  desequilíbrios  estruturais  passíveis  de  correção  em  longo  prazo  com  planejamento  estatal  

Socialistas   Materialismo  histórico  marxista  

Viabilizar  revolução  burguesa  nacional,  via  industrialização  e  reforma  agrária,  para  passagem  à  etapa  socialista  

Etapa  antifeudal  e  antiimperialista  

Duas  contradições  básicas:  concentração  fundiária  e  imperialismo  

Ignácio  Rangel   Smith,  Keynes,  Marx  e  Hilferding  

Industrialização  planificada  e  fortemente  apoiada  por  empreendimentos  estatais  

Tese  da  dualidade  básica  

Substituição  de  importações  (anos  50)  e  crise  de  realização  (anos  60)  

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Quanto   ao   posicionamento   dessas   grandes   correntes   no   debate   de   questões  objetivas   do   desenvolvimento   econômico   brasileiro,   curiosamente,     todas  elas   eram   favoráveis   ao   protecionismo,   até   mesmo   a   neoliberal,   embora   esta  evidentemente   propusesse   fortes   reduções   de   tarifas.   Dividiam-­‐se   em   outras  questões:  

 

Grandes  Correntes  de  Pensamento  Econômico  

Apoio  financeiro  interno  a  

investimento  

Capital  estrangeiro  

Empresa  estatal  

Planejamento  

Neoliberal   Estruturação  do  sistema  financeiro  

Estimular   Enfaticamente  contrária  

Entre  contrária  e  tolerante  ao  planejamento  parcial  

Desenvolvimentista  Não  Nacionalistas  

Tributação     Estimular   Tolerante  quando  capital  privado  nacional  e  estrangeiro  não  manifestar  interesse  

Favorável  a  planejamento  parcial  

Desenvolvimentista  do  Setor  Privado  

Incentivos  à  reinversão  de  lucros  

Favorável  com  certos  controles  

Moderadamente  favorável  

Favorável  

Desenvolvimentista  Nacionalista  

Tributação   Favorável  com  certos  controles  excluindo  mineração  e  serviços  de  utilidade  pública  

Enfaticamente  favorável  

Enfaticamente  favorável  a  planejamento  geral  e  regional  

Socialista   Tributação   Enfaticamente  contrária  

Enfaticamente  favorável  

Enfaticamente  favorável  

Ignácio  Rangel   Estruturação  do  sistema  financeiro,  isto  é,    surgimento  do  capitalismo  financeiro  nacional  

Industrialização  planificada  e  fortemente  apoiada  por  empreendimentos  estatais  

Enfaticamente  favorável  

Enfaticamente  favorável,    mas  com  modalidade  de  planejamento  parcial  via  comércio  exterior  

     

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Outros  temas  de  debate:  

 

Grandes  Correntes  de  Pensamento  Econômico  

Déficit  Externo   Inflação   Salário,  Lucro  e  Distribuição  de  Renda  

Reforma  Agrária  

Neoliberal   Inflação  como  causa  básica  

Pleno  emprego  como  causa  básica  e  erros  de  política  de  estabilização  

Argumento  neoclássico  de  produtividade  marginal  

Contrária  

Desenvolvimentista  Não  Nacionalistas  

Possível    sem  inflação,    mas  em  geral  causada  por  ela    

Plena  ocupação  da  capacidade  produtiva  como  causa  básica  e  erros  de  política  de  estabilização  

Redistribuição  da  renda  reduz  crescimento  

Omissa  

Desenvolvimentista  do  Setor  Privado  

Estrutural   Ênfase  na  utilidade  da  expansão  creditícia  

Defesa  do  reinvestimento  do  lucro  retido  

Reforma  limitada  

Desenvolvimentista  Nacionalista  

Estrutural   Estrutural   Concentração  de  renda  leva  à  estagnação  econômica  

Favorável  

Socialista   Falta  de  regulação  do  Estado  principalmente  sobre  remessa  de  lucros  

Ênfase  na  defesa  do  salário  real  ou  reposição  integral  da  taxa  de  inflação  

Redistribuição  da  renda  via  reforma  agrária  e  luta  sindical  amplia  mercado  interno  

Enfaticamente  favorável  

Ignácio  Rangel   Desequilíbrio  gerado  por  falta  de  regulação  do  Estado  e  monopólio  estatal  do  comércio  exterior  

Estrutura  de  mercado  oligopolista  e  oligopsonista  na  intermediação  mercantil  de  alimentos  e  inflação  de  oligopólio  com  capacidade  ociosa  

Elevação  de  salário  como  forma  de  estimular  a  demanda  e  ocupar  a  capacidade  produtiva  ociosa  

Conforme  tese  da  dualidade:  coexistência  funcional  de  dois  modos  de  produção  permitiria  transição  lenta  e  gradual  

Fonte:  Bielschowky  (1988:  285)      

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Para   o   argumento   de   que   a   implantação   plena   do   capitalismo   financeiro   foi  decisão   crucial   na   economia   brasileira,   pois   mudou   o   contexto   de   maneira  irreversível,   vale   recuperar   a   crítica   de   Ignácio   Rangel   aos   estruturalistas   e  monetaristas,   realizada   em   seu   livro   publicado   em   1963,   A   Inflação   Brasileira (São   Paulo,   2a.   ed.   Bienal,   1986):   ambos   buscavam   a   gênese   da   inflação   em  suposta   insuficiência   ou   inelasticidade   da   oferta   –   global,   no   caso   dos  monetaristas,  e  setorial,  no  caso  dos  estruturalistas  –,  quando  deveriam  perceber  que  o  problema   inflacionário  estava  na  crônica  insuficiência  da  demanda   e  não,  como  sugeriam,  no  seu  excesso.  

O  diagnóstico  de  Rangel,  após  a  realização  do  Plano  de  Metas  nos  anos  JK  e  antes  do   Golpe   Militar   em   1964,   era   que   havia   nível   de   demanda   insuficiente   para  assegurar   utilização   satisfatória   do   potencial   produtivo   existente,   após   aquela  expansão   da   capacidade   produtiva   dos   anos   50.   Isso   era   devido   à   própria  inflação,   à   distribuição   de   renda,   e   à   arcaica   estrutura   agrária,   com   a  concentração  da  propriedade  fundiária.  

A  demanda  dos  gêneros  alimentícios  possuía  inelasticidade  específica.  A  rigidez  da   demanda   de   gêneros   agrícolas,   face   à   grande   elasticidade   –   e   não  inelasticidade   como   generalizava   a   Cepal,   baseada   na   experiência   chilena   –   da  oferta  agrícola,  dava  margem  à  anomalia  no  mecanismo  de  formação  de  preços.  A   comercialização   dos   produtos   agrícolas   era   feita   através   de   oligopsônio   na  compra   e   oligopólio   na   venda,   conseguindo-­‐se,   na   intermediação   mercantil  atacadista,  a  manipulação  da  alta  de  preços.  

O  aumento  dos  preços  dos  alimentos  provocava  queda  dos  salários   reais  e,   em  consequência,   diminuía   a   demanda   popular   de   outros   itens   de   consumo,   que  sofriam   já   insuficiência   genérica   ou   global   de   consumo   massivo.   A   retenção   de  estoques  acabava  se  realizando  não  nas  atividades  causadoras  da  alta,  mas  sim  nas  atividades  supridoras  de  bens  com  maior  elasticidade-­‐renda  da  demanda.    

A  elevação  da  capacidade  ociosa  não-­‐planejada   impedia  o  surgimento  de  novas  oportunidades  de  investimento,  após  o  excesso  ocorrido  em  setores  prioritários  ou  incentivados.  Causava  também  a  elevação  dos  custos  fixos  unitários,  que  eram  repassados  para  os  preços,  resultando  numa  chamada  inflação  de  oligopólio.  

O   que   ficou   conhecido   como   a   curva   de   Rangel   representava,   graficamente,   a  ideia  de  que  a   inflação  brasileira,  em  vez  de  regredir,  crescia  com  a  capacidade  ociosa.   O   nível   geral   dos   preços   era   inversamente   proporcional   ao   nível   da  produção.  

Rompia-­‐se   o   equilíbrio   econômico-­‐financeiro   das   empresas   supridoras   desses  produtos   com   excesso   de   estoques   e/ou   capacidade   ociosa.   A   alta   da   relação  contábil    entre  o  realizável  e  o  disponível  favorecia  ao  atendimento  da  demanda  de  crédito  bancário,  sancionada  pela  oferta  endógena  de  moeda.  

O  papel  passivo  do  poder  emissor  (o  governo)  sancionava  a  inflação.  Se,  apesar  das   pressões   políticas,   o   governo   resistisse   às   injunções   no   sentido   de   que  sancionasse   a   oferta   de   moeda,   não   apenas   se   privaria   dos   fluxos   de   receita  tributária,   de   imposto   inflacionário   e   de   depósito   compulsório,   como   seria  

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penalizado   financeiramente,   devido   ao   socorro   futuro   às   empresas.  Empiricamente,   era   impossível   dizer   se   o   que   vinha   primeiro   era   o   ato   de  acomodar  a  oferta  de  moeda,  realizado  pelo  Estado,  ou  o  ato  de  elevar  os  preços,  pela   empresa   privada.   Mas,   teoricamente,   Rangel   argumentava   a   respeito   da  endogeneidade  da  oferta  monetária.  

Embora   as   maiores   referências   teóricas   da   professora   Maria   da   Conceição  Tavares,  nos  anos  60,  eram  ainda  autores  estrangeiros  dos  anos  50,  como  Michal  Kalecki   e   Gurley   &   Shaw,   conversando   com   ela,   anos   depois,   chamou-­‐me   a  atenção   para   o   pioneirismo   tanto   de   Ignácio   Rangel,   quanto   dela,   na   esquerda  brasileira.   Foram   eles   os   primeiros   a   atentar   para   o   “lado   financeiro”   do  capitalismo.  Até   então,   seja  nacional-­‐desenvolvimentistas,   seja  marxistas,   todos  os   militantes   destacavam   apenas   a   exploração   dos   trabalhadores   na   “órbita  produtiva”.  Achavam  que  falar  de  moeda  era  coisa  de  monetarista.  Curiosamente,  foi   o   próprio  Milton   Friedman   que   alertou   aos   (futuros)   pós-­‐keynesianos   que,  para   Keynes,   “a   moeda   importa”,   isto   é,   não   é   neutra.   Foi   realizada,   então,   a  releitura   de   sua   obra   de   maneira   diferente   da   que   a   faziam   os   fiscalistas   da  síntese  neoclássica.  

Em   sua   premonição,   Rangel   (1963:   XVI)   afirmava   que,   para   o   nosso  desenvolvimento   independente,   o   centro   da   luta,   que   antes   era   para   “a  estruturação   do   parque   industrial”,   se   deslocava,   naquela   conjuntura,   para   “a  estruturação   do   mercado   interno   de   valores”.   (...)   “o   Brasil   entra   em   novo  estágio,   no   qual   o   desenvolvimento   não   será   mais   comandado   pelo   capital  industrial,   mas   pelo   capital   financeiro,   que   está   surgindo   com   extraordinário  vigor,   sob   o   impulso   da   oferta   de   capitais   a   taxas   negativas   de   juros   reais”.  Conceição,  em  seu  ensaio  financeiro,  escrito  quatro  anos  após,  chegava  à  mesma  conclusão:  se  a  esquerda  quisesse  entender  o  que  se  passava  com  o  capitalismo  brasileiro,  teria  que  estudar  o  capital  financeiro!  

 

4. Estagnação  e  Subconsumo  

Segundo   Mantega   e   Moraes   (1978:   33),   “o   eixo   da   discussão,   que   durante  principalmente  a  primeira  metade  da  década  de  60,  girava  em  torno  dos  limites  da   acumulação   capitalista   ou   do   desenvolvimento   econômico,   vai   sendo  gradativamente   deslocado   para   a   questão   da   distribuição   de   renda.   Assim,   as  teses   estagnacionistas   são   substituídas   pelas   explicações   de   como   o   chamado  ‘modelo’   brasileiro   teria   conseguido   superar   as   aparentemente   intransponíveis  barreiras  para  o  desenvolvimento”.  

As   correntes   de   interpretação   que   apontavam   os   limites   do   mercado   interno  como   causa   principal   da   estagnação   do   capitalismo   brasileiro,   e   para   dela  emergir   serem   necessárias   reformas   (agrária,   financeira,   educacional,   etc.),  surpreenderam-­‐se   com   o   chamado   “milagre   econômico   brasileiro”,   após   a  política  de   estabilização  e  modernização   conservadora   implantada  pelo   regime  militar.   A   denúncia   da   esquerda   passou   dos   problemas   da   estagnação   para   os  problemas  da  distribuição  da  renda.  

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A  hipótese  subconsumista,  que  havia  sustentado  o  diagnóstico  estagnacionista,  foi  reformulada,   de   modo   a   se   adaptar   ao   novo   contexto   de   reconcentração   de  renda.   A   crítica   de   Mantega   e   Moraes   (1978:   33)   diz   respeito   à   indevida  dissociação  entre  o  processo  de  produção  e  o  consumo,  onde  este,  ao  invés  de  ser  determinado  por  aquele,  aparecia  como  variável  independente.  Certas  correntes  do  pensamento  crítico,  como  a  da  Escolatina  em  Santiago  do  Chile,  passaram  a  se  preocupar   em   explicar   como   se   havia   criado   a   “demanda   suplementar”,  propiciadora  da  retomada  do  crescimento  econômico,  após  a  crise  de  estagnação  ocorrida  entre  1962  e  1967.  Mantega  e  Moraes  argumentam  que,  simplesmente,  incorporaram   o   conceito   keynesiano   de   demanda   efetiva   para   novas   análises  subconsumistas:   “foi   assim   que   as   análises   de   Kalecki   e   de   Steindl   foram  transplantadas  para  a  realidade   latino-­‐americana,  principalmente  por  meio  dos  trabalhos  de  Maria  da  Conceição  Tavares”  (id.;ibid.).  

Conceição  Tavares,  ainda  segundo  Mantega  e  Moraes  (1978:  37),  “não  conseguiu  distanciar-­‐se  de  seus  primeiros  trabalhos  estagnacionistas.  Após  alguns  lampejos  críticos   em   relação   a   estes   (vide   sua   crítica   às   teses   estagnacionistas   de   Celso  Furtado   [referem-­‐se   ao   “Além   da   Estagnação”,   artigo   de   autoria   de   Tavares   &  Serra,  em  1970]),  Conceição  Tavares  retorna  às  teses  subconsumistas.  Para  ela,  a  acumulação   de   capital   vê-­‐se   continuamente   às   voltas   com   uma   produção   de  mercadorias   maior   do   que   a   capacidade   de   consumo   da   sociedade.   Porém,   a  grande   expansão   da   produção   de   bens   de   luxo   (voltados   para   o   consumo   dos  capitalistas   e   não   dos   assalariados)   tem   ajudado   a   resolver   os   problemas   de  realização   nos   países   desenvolvidos.   Mas   o   mesmo   não   acontece   nos   países  subdesenvolvidos,  onde  a  expansão  da  produção  de  bens  de  consumo  capitalista,  ademais  não  resolver  o  problema  de  realização,  introduz  nesses  países  ‘além  da  contradiçãoo   geral   salários-­‐lucros,   uma   contradição   particular:   consumo   dos  trabalhadores  versus  consumo  dos  capitalistas’  (Tavares,  1975:  39).  

Para  Conceição  Tavares,  segundo  a  leitura  de  Mantega  e  Moraes  (1978:  38),  “em  modelo   econômico   com  dois   setores   (D1  que  produz  bens  de   capital   e  D3  que  produz   bens   de   consumo   popular)   estabelece-­‐se   uma   ‘interdependência  dinâmica’   onde   não   interessa   rebaixar   ao   mínimo   os   salários,   pois   estes  constituem   a   demanda   do   setor   de   bens   de   consumo   popular.   Porém,   essa  ‘interdependência  dinâmica’  pode  ser  rompida  à  medida  em  que  se  estabelece  e  passa  a  liderar  a  acumulação  de  capital  um  setor  produtor  de  bens  de  consumo  capitalista   (D2   na   concepção   de   Tavares).   ‘Nesse   caso,   pode   produzir-­‐se   um  antagonismo  crescente  entre  salário  e  taxa  de  acumulação  que  assume  o  caráter  de  oposição  entre  o  consumo  de  trabalhadores  versus  consumo  dos  capitalistas’  (Tavares,  1975:  51)”.  

Portanto,  o  argumento  de  Mantega  e  Moraes  é  que  Conceição  Tavares  teve  uma  recaída  no  subconsumismo  explicativo  da  dinâmica  capitalista  no  País.    Porém,  sua   argumentação   é   insuficiente   para   ao   leitor   entender   porque   teria   ocorrido  essa   “irracionalidade”,   depois   dela   ter   escrito   com   coautoria   de   José   Serra,   em  1970,  o  ensaio   “Além  da  Estagnação”.  Ele   contém   justamente  a  crítica  à  tese  da  estagnação   secular,   defendida   então   por   Celso   Furtado,   que   prejudicava   a  compreensão   do   dinamismo   do   capitalismo   no   Brasil,   em   período   de   crise.   A  crise  era  vista  por  esses  autores  como  situação  de  transição  para  novo  esquema  de  desenvolvimento  capitalista.    

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Parece  que  é  questão  de  grau  de  radicalismo.  Mantega  e  Moraes  (1978:  39)  fazem  a   patrulha   ideológica   dizendo   que   “Conceição   Tavares   corre   o   risco   de  negligenciar   a   contradição   salários-­‐lucros   (ou   as   relações   de   classe   que   esta  expressa)  em  favor  de  uma  nova  contradição  (consumo  dos  assalariados  versus  consumo   dos   capitalistas)   que,   ao   que   parece,   expressaria   a   nova   tônica   das  relações  sociais.  Assim,  no  limite,  a   luta  de  classes  poderia  ficar  reduzida  à   luta  pelo  consumo,  e  basta  elevar  gradativamente  o  consumo  dos  trabalhadores,  para  dissolver  os  antagonismos  de  classe”.    

Esta   interpretação,   realizada  em  1978,   colidia   com  os   fatos,  ou  melhor,   com  as  teses   que   nós,   alunos   do   Mestrado   selecionados   após   1974,   presenciávamos  estar   sendo   defendidas   no   DEPE-­‐IFCH-­‐UNICAMP.     Por   exemplo,   com   nosso  professor   Antônio   Barros   de   Castro   aprendemos   o   que   ele   relembraria   em  depoimento   pessoal   mais   adiante   (Conversas   com   Economistas   Brasileiros   II,  1999:   172)   “o   pensamento   latino-­‐americano   começou   muito   bem   (...).   Mas,   a  partir  do  início  dos  anos  60,  vai  crescendo  uma  tendência  de  acordo  com  a  qual  a  função   do   intelectual,   especialmente   quando   politicamente   de   esquerda,   é  explicar   o   fracasso   [do   capitalismo].   Nessa   perspectiva,  mesmo   os   períodos   de  crescimento   rápido   são   apenas   interregnos,   suspensões   momentâneas   do  destino.   Os   desequilíbrios   estruturais   de   natureza   social,   regional   e   setorial  bloqueiam   o   avanço.  O  desenvolvimento   começa  a   ser   referido   como  um  mito,   e  esta  percepção,   aliás,   virar   título   com  Celso  Furtado.  Em  vez  de  explicações  do  desenvolvimento,   teremos   teorias  da  estagnação,  e,  sobretudo,  do   ‘esgotamento’.  (...)  Esta  é  a  trajetória  do  texto  ‘Além  da  Estagnação’  [Tavares  &  Serra,  1970],  que  toma   aquela   ideia   de   que   a   reconcentração   dos   anos   60,   ao   invés   de   impedir,  dava  um  novo  fôlego  ao  crescimento.  O  texto  encontra-­‐se  embebido  da   ideia  de  que  o  crescimento  tende  a  se  esgotar,  em  meio  ao  agravamento  dos  problemas  de  estrutura.  (...)  Este  tipo  de  argumento,  seria,  supostamente,  apenas  uma  tentativa  de  racionalização  do  fracasso”.  

Brincávamos   com   os   professores   “catastrofistas”.   Sempre,   ao   final   de   suas  palestras  ou  aulas,  alertavam  que  estávamos  em  pleno  “Apocalipse  Now”.  

Havia  pluralidade  teórica  entre  os  nossos  professores,  isto  é,  os  economistas  de  Campinas,   embora   se   observasse   grande   influência   de   Kalecki,   Keynes,  Schumpeter   e,   sobretudo,   de   Marx.   Reconhecidamente,   fizemos   uma  reinterpretação   marxista   do   desenvolvimento   capitalista   no   Brasil.   Acertamos  nossas  diferenças  com  a  Economia  Política  da  CEPAL  da  qual  somos  orgulhosos  descendentes.   Além   disso,   debatemos   a   política   econômica   em   vigor   e  propusemos   reformas   econômicas   e   sociais.   Isto   tudo,   evidentemente,   sem  esquecer  nossa  luta  política  pela  democracia  contra  o  regime  militar.  

A   respeito   do   pensamento   das   gerações   dos   economistas   formados   e/ou  influenciados   pela   “Escola   de   Campinas”,   e   suas   diferenças   em   relação   ao  autodenominado  Novo-­‐Desenvolvimentismo,  nos  dedicaremos  na  segunda  parte  deste   Texto   para   Discussão,   cujo   título   será   Desenvolvimento   do  Desenvolvimentismo:  da  Escola  de  Campinas  ao  Social-­‐Desenvolvimentismo.        

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