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S P 010 | ESPIRAL EDITORIAL SUMÁRIO PERFIL CORREIO LEITOR CALEIDOSCÓPIO EM FOCO REPORTAGEM OPINIÃO HISTÓRIA CRÓNICA ENTREVISTA TÉCNICA Fernando Mascarenhas e o diálogo com o presidente s privilégios arrastam responsabilidades. É na clara percepção deste princípio e na tranquilidade com que o aceita que Fer- nando Mascarenhas é um homem nobre. Acontece que é também filho da melhor nobreza lusitana. Representante das Casas de Fronteira, Alorna e Távora; Marquês de Fron- teira e Alorna, Fernando Mascarenhas, 57 anos, honra para cima de dez títulos nobiliárquicos. O mais antigo dos quais, extinto, data de 1611. Trá-los no coração, na memória e no rosto. É perturbadora- mente parecido com o 1.º Marquês de Fronteira, construtor do Palá- cio Fronteira, representado em estuque na monumental Sala das Batalhas. Fernando Mascarenhas habita o palácio há muitos anos. É, porventura, a sua maior paixão. O palácio. Peça singular da arquitectura do século XVII, inserido numa propriedade de cinco hectares dentro da área do Parque Florestal de Monsanto, em Lisboa, permanece, aparentemente, acariciado pelo Tempo. Pura ilusão. Se os jardins, as fachadas, os terraços e as cinquenta divisões forradas à excelência da azulejaria, pintura, escultura, mo- biliário respiram hoje uma saudável naturalidade é devido ao árduo empenho de Fernando Mascarenhas. O compromisso entre a preservação e a fruição é o objecto das suas permanentes intervenções. No restauro, sempre que possível, recorre-se às técnicas de há 300 anos para não trair, por exemplo, a luz dos particularíssimos azuis do palácio. É um trabalho exigente e exaustivo. De longo prazo. Que é o tempo da nobreza. Em 1989, Fernando Mascarenhas criou a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, instituição de utilidade pública cuja vocação é, precisamente, o restauro e a preservação do Palácio Fronteira e a promoção de actividades culturais. Único herdeiro do palácio e da Herdade da Torre, 7800 hectares a sul do Tejo, Fernando Mas- carenhas doou a casa e 80% das acções da herdade à Fundação. Não tinha de o ter feito, mas entendeu que a sua pertença implica- va essa obrigação. Devolver à comunidade serviço que desse lustro à grande Casa de Fronteira e Alorna e transmiti-la, incólume, ao seu sucessor. De preferência em melhores condições do que aque- las em que a recebeu. Duas vezes divorciado, Fernando Mascarenhas não tem filhos. An- tónio Mascarenhas, hoje com 17 anos, filho de um primo direito, será o próximo Marquês de Fronteira se seu pai não sobreviver a Fernando Mascarenhas. A António, Fernando Mascarenhas gostaria de legar também a honradez de quem que não trai a sua consciência. Dito isto, é ade- quado afirmar-se que Fernando Mascarenhas vive o seu Tempo sem tiques anacrónicos nem delírios escapistas. Não se furta às es- colhas a que os dias que lhe foram dados viver o convidam. Antes de 1974, abriu as portas do Palácio Fronteira a reuniões políticas anti-regime. A PIDE vigiava-lhe os movimentos e um famoso editorialista francês escreveu, à época, que em Portugal não havia marxismo-leninismo, mas marquesismo-leninismo. O epíte- to de Marquês Vermelho vem daí. Fernando Mascarenhas, Marquês de Fronteira, é, a todos os títulos, invulgar. A sua relação com o tempo es- clarece da sua singularidade. Sendo o tempo da nobreza a longa duração, o marquês não prescinde do seu compromisso com o presente. Porque tem os olhos postos no futuro. O “Vivi o 25 de Abril como homem de esquerda e como ad- ministrador do património da Casa de Fronteira e Alorna. Vivi-o dos dois lados. Não foi fácil, mas foi fascinante.” ESPIRAL | 011 por Paula Moura Pinheiro fotos Kenton Thatcher

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SP

010 | ESPIRAL

EDITORIAL SUMÁRIO PERFIL CORREIO LEITOR CALEIDOSCÓPIO EM FOCO REPORTAGEM OPINIÃO HISTÓRIA CRÓNICA ENTREVISTA TÉCNICA

Fernando Mascarenhas e o diálogo com o presidente

s privilégios arrastam responsabilidades. É

na clara percepção deste princípio e na

tranquilidade com que o aceita que Fer-

nando Mascarenhas é um homem nobre.

Acontece que é também filho da melhor

nobreza lusitana. Representante das Casas

de Fronteira, Alorna e Távora; Marquês de Fron-

teira e Alorna, Fernando Mascarenhas, 57 anos, honra para cima de

dez títulos nobiliárquicos. O mais antigo dos quais, extinto, data de

1611. Trá-los no coração, na memória e no rosto. É perturbadora-

mente parecido com o 1.º Marquês de Fronteira, construtor do Palá-

cio Fronteira, representado em estuque na monumental Sala das

Batalhas. Fernando Mascarenhas habita o palácio há muitos anos.

É, porventura, a sua maior paixão.

O palácio. Peça singular da arquitectura do século XVII, inserido

numa propriedade de cinco hectares dentro da área do Parque

Florestal de Monsanto, em Lisboa, permanece, aparentemente,

acariciado pelo Tempo.

Pura ilusão. Se os jardins, as fachadas, os terraços e as cinquenta

divisões forradas à excelência da azulejaria, pintura, escultura, mo-

biliário respiram hoje uma saudável naturalidade é devido ao árduo

empenho de Fernando Mascarenhas.

O compromisso entre a preservação e a fruição é o objecto das suas

permanentes intervenções. No restauro, sempre que possível,

recorre-se às técnicas de há 300 anos para não trair, por exemplo, a

luz dos particularíssimos azuis do palácio. É um trabalho exigente

e exaustivo. De longo prazo. Que é o tempo da nobreza.

Em 1989, Fernando Mascarenhas criou a Fundação das Casas de

Fronteira e Alorna, instituição de utilidade pública cuja vocação é,

precisamente, o restauro e a preservação do Palácio Fronteira e a

promoção de actividades culturais. Único herdeiro do palácio e da

Herdade da Torre, 7800 hectares a sul do Tejo, Fernando Mas-

carenhas doou a casa e 80% das acções da herdade à Fundação.

Não tinha de o ter feito, mas entendeu que a sua pertença implica-

va essa obrigação. Devolver à comunidade serviço que desse lustro

à grande Casa de Fronteira e Alorna e transmiti-la, incólume, ao

seu sucessor. De preferência em melhores condições do que aque-

las em que a recebeu.

Duas vezes divorciado, Fernando Mascarenhas não tem filhos. An-

tónio Mascarenhas, hoje com 17 anos, filho de um primo direito,

será o próximo Marquês de Fronteira se seu pai não sobreviver a

Fernando Mascarenhas.

A António, Fernando Mascarenhas gostaria de legar também a

honradez de quem que não trai a sua consciência. Dito isto, é ade-

quado afirmar-se que Fernando Mascarenhas vive o seu Tempo

sem tiques anacrónicos nem delírios escapistas. Não se furta às es-

colhas a que os dias que lhe foram dados viver o convidam.

Antes de 1974, abriu as portas do Palácio Fronteira a reuniões

políticas anti-regime. A PIDE vigiava-lhe os movimentos e um

famoso editorialista francês escreveu, à época, que em Portugal não

havia marxismo-leninismo, mas marquesismo-leninismo. O epíte-

to de Marquês Vermelho vem daí.

Fernando Mascarenhas, Marquês de Fronteira, é, a todos os títulos, invulgar. A sua relação com o tempo es-clarece da sua singularidade. Sendo o tempo da nobreza a longa duração, o marquês não prescinde do seucompromisso com o presente. Porque tem os olhos postos no futuro.

O

“Vivi o 25 de Abril como homem de esquerda e como ad-

ministrador do património da Casa de Fronteira e Alorna.

Vivi-o dos dois lados. Não foi fácil, mas foi fascinante.”

ESPIRAL | 011

por Paula Moura Pinheirofotos Kenton Thatcher

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capacidades e das minhas escolhas.

O que quer dizer, para si, ser de esquerda?

Às vezes, quando se começa a falar em concreto nas coisas, as dife-

renças entre alguma esquerda e alguma direita não são muito

grandes. Mas acho que continuam a existir. Ser de esquerda é ter

essencialmente duas preocupações: o valor supremo da liberdade e a

justiça social como objectivo fundamental. A direita tem uma tendên-

cia para minimizar o valor da liberdade, nomeadamente a liberdade

de expressão. E, em relação à justiça social, a direita continua a privi-

legiar o direito à propriedade em detrimento da solidariedade social.

Em qualquer caso, parece-me urgente repensar os termos desta

democracia. A lógica do curto prazo nas acções dos eleitos parece-me

muito grave, muito grave. Tem de se inventar qualquer coisa…

A dificuldade é garantir o valor da liberdade num quadro de

longo prazo, não é?

Pois é. É uma questão difícil. Mas que esta democracia devia ser

repensada, isso devia.

O 25 de Abril apanhou-o no papel ingrato de latifundiário. O

Fernando Mascarenhas estava na Torre, a sua herdade de

7800 hectares. Deve ter vivido momentos muito difíceis, entre

as obrigações de nobre para com a sua Casa e as convicções

ideológicas pessoais…

Isso é que foi o interessante: eu vivi o 25 de Abril como homem de

esquerda e como administrador do património da Casa. Vivi-o dos

dois lados. Não foi fácil, mas foi fascinante. Mas, repare, eu nunca

tive ilusões. Quando, em 1969, tomei as posições que tomei contra

o regime, eu já conhecia a Revolução Francesa e estava bem ciente

de que, se houvesse uma revolução, a minha cabeça também

acabaria por rolar. Nunca tive dúvidas a esse respeito. Portanto,

quando ocuparam a herdade, eu aceitei o facto pacificamente. Não

estava a desempenhar o papel de latifundiário com grande con-

vicção, essa é que é a verdade. Por isso, contratámos uma pessoa

que tomou o meu lugar na herdade. Afinal, acabou por ser uma

ocupação simbólica. Também não há notícia de uma reforma

agrária que alguma vez tenha sido bem-sucedida. As coisas

seguiram o seu curso normal e, com o passar dos anos, vinte e tal

anos, a herdade foi-nos integralmente devolvida.

Mas imagine que não tinha sido assim. Imagine que a reforma

agrária se tinha concretizado com sucesso para o povo por-

tuguês. O que é que prevaleceria: o seu amor à Casa ou o seu

amor à causa?

(Pausa). Acho que as minhas convicções como homem teriam pe-

sado mais. Sem dúvida. Sabe, tenho uma sorte enorme: não tenho

mau feitio (risos).

A propósito de hipótese, gosta de ficção científica, não é?

Ah, sim. Gosto imenso. Desde criança. Acho que a ficção científica é

ideal para ensaiar novos mundos, para encenar utopias. Sempre tive

uma atracção muito grande pelo futuro, pelo processo da conquista

espacial e pelos computadores, claro. Quando soube, para aí há 30

anos, que tinham aparecido computadores pessoais nos EUA fiquei

logo a sonhar com um.

Custa-lhe levantar-se cedo?

Custa. Só o fiz quando fui assessor do Jorge Sá Borges, que foi

ministro do Trabalho no governo Pintasilgo. Estava todos os dias

às nove horas em ponto no Ministério. Nem podia ser de outra

maneira. Ainda por cima, no Ministério do Trabalho! É caso para

se dizer noblesse oblige (risos). Mas, tirando esse período, os meus

dias variam conforme as épocas. Tento sempre descansar de ma-

nhã. Às vezes acordo cedo quando tenho de tratar de alguma coisa,

faço o que tenho a fazer e volto a dormir até à hora de almoço. Al -

moço com a mãe. E trabalho à tarde. Tenho o computador no quar-

to e arranjei forma de trabalhar deitado na cama. Deitado de lado,

como os antigos romanos, cá estão os Clássicos outra vez (risos)…

Vejo filmes e séries na televisão, gosto de histórias bem contadas,

jogo bridge na Internet, sou maníaco do e-mail. Levo uma vida des-

cansativa.

Presumo que não liga ao relógio.

Engana-se. Sou obsessivamente pontual. Muito consciente do Tempo.

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EDITORIAL SUMÁRIO PERFIL CORREIO LEITOR CALEIDOSCÓPIO EM FOCO REPORTAGEM OPINIÃO HISTÓRIA CRÓNICA ENTREVISTA TÉCNICA

Fernando Mascarenhas

“Quando, em 1969, tomei as posições que tomei contra o regime

eu já conhecia a Revolução Francesa e estava bem ciente de

que, se houvesse uma revolução, a minha cabeça também

acabaria por rolar.”

Agradecemos à Fundação das Casas de Fronteira e Alorna

Auto-retratoNome Fernando Mascarenhas.

Idade 57 anos.

Formação licenciado em Filosofia.

Local ideal qualquer, desde que com bons amigos; o meu quarto,

quando estou só.

Defeito mais tolerável preguiça.

Defeito menos tolerável veemência autoconfiante.

Virtude estar atento ao outro.

Herói o que é capaz de sobreviver contra tudo e contra todos

e ainda assim tem a coragem de se dar.

Ídolo não tenho.

Vilão o egoísta estúpido.

Sonho haver outra(s) vida(s) com memória da que ficou para trás.

Morte uma necessidade que acaba por se aceitar.

Religião cristão por educação, agnóstico por ignorância.

Cor quase todas, dependendo de "onde" e "para quê", com

excepção de alguns verdes, os adstringentes e os nausea-

bundos, e de alguns azuis, os deslavados e os impertinentes.

Escultura o David de Miguel Ângelo, Donatello.

Literatura no romance: Guerra e Paz de Tolstoi, A Paixão do Conde

de Frois e Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde de Mário

de Carvalho; no teatro: os grandes tragediógrafos gregos,

Shakespeare, Corneille e Racine; na poesia: Camões, Pessoa,

Luís Filipe Castro Mendes.

Passatempo Civilization II de Sid Meyer (jogo de computador).

Vício secreto feliz ou infelizmente não é secreto.

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