Fernando Novais Caio Prado Jr Historiador

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CAIO PRADO JR. ito ou realidade, a chamada "Revolução de 30" parece ter indiscutivelmente estimulado entre nós as atividades intelec- tuais, particularmente voltadas para a interpretação do país; "nunca se falou tanto em realidade brasileira como nessa época — cada um, claro está, vendo-a de maneira diferente." 1 Do volumoso caudal de publicações de então, contudo, poucas resistiram à corrosão definitiva do tempo, que vai separando impiedosa- mente o joio do trigo. Dentre essas pou- cas, que ainda hoje mantêm sua vitali- dade, Evolução política do Brasil (1933) talvez não tenha, quando de seu lança- mento, despertado o interesse que depois viria a consolidar. 2 Hoje, quando pen- samos nas grandes "interpretações" sur- gidas naquele contexto, é sobretudo para três obras que nos voltamos: além do livro de Caio Prado Jr., Casa Grande & Senzala (1933) de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buar- que de Holanda. De lá para cá, os três autores enriqueceram enormemente nos- sa brasiliana, por caminhos diversos e às vezes opostos, mas vale lembrar aque- le ponto de partida: aparecem no bojo do que porventura se possa chamar a "geração de 30", nos quadros de nossa história intelectual. ixado esse patamar, convém esclarecer objetivos e limita- ções, antes de avançar o passo. Efetivamente, o título acima não é uma manifestação da modéstia; antes, pretende ser um exercício de pre- cisão. Caio Prado Jr., ainda que, quanto a nós, seja sempre e antes de tudo histo- riador, cultivou também a filosofia, a economia e o ensaio político. Aqui cui- daremos exclusivamente de sua obra historiográfica, não nos aventurando pe- las sendas filosóficas nem mesmo quando tratarmos de problemas metodológicos, quer dizer, esses problemas serão vistos tal como aparecem na prática do histo- riador, e não nas formulações do filó- sofo. O mesmo para a teoria econômica, por mais que estejam interpenetradas na obra. Dada a postura metodológica do autor — Caio Prado Jr. é marxista ex- plícito — essa fusão é absolutamente natural, e necessária, pois as fronteiras entre as ciências tendem a se diluir. Não significa isso que deixem de existir espe- cializações e formações profissionais, nem que trabalhos centrados numa ou noutra direção careçam de validade; sig- nifica, sim, que devem ser vistos como partes de um conjunto mais amplo e integrado, etapas de um roteiro mais longo a ser percorrido. O que tentare- mos é traçar o perfil de sua obra de historiador, enfatizando o que nos pareça mais relevante em contribuições, indican- do a leitura que nos pareça mais fiel e compreensiva; não deixaremos, é claro, de discutir e questionar alguns pontos, e avançar observações preliminares para situá-lo na historiografia e na cultura brasileira. Não trataremos, porém, da coerência do conjunto da obra (história, filosofia, economia). Pensamos que essa caracterização inicial seja uma etapa im- 1 Wilson Martins. História da Inteligência brasileira (São Paulo. 1979), vol. VI I. p. 1. 2 Em seu minucioso levanta- mento das publicações, W. Martins não menciona Evo- lução política no contexto de 50, referindo-se depois às suas reedições. 66 Fernando Novais NOVOS ESTUDOS N.º 2

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CAIO PRADO JR.

ito ou realidade, a chamada "Revolução de 30" parece ter indiscutivelmente estimulado entre nós as atividades intelec-

tuais, particularmente voltadas para a interpretação do país; "nunca se falou tanto em realidade brasileira como nessa época — cada um, claro está, vendo-a de maneira diferente."1 Do volumoso caudal de publicações de então, contudo, poucas resistiram à corrosão definitiva do tempo, que vai separando impiedosa- mente o joio do trigo. Dentre essas pou- cas, que ainda hoje mantêm sua vitali- dade, Evolução política do Brasil (1933) talvez não tenha, quando de seu lança- mento, despertado o interesse que depois viria a consolidar.2 Hoje, quando pen- samos nas grandes "interpretações" sur- gidas naquele contexto, é sobretudo para três obras que nos voltamos: além do livro de Caio Prado Jr., Casa Grande & Senzala (1933) de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buar- que de Holanda. De lá para cá, os três autores enriqueceram enormemente nos- sa brasiliana, por caminhos diversos e às vezes opostos, mas vale lembrar aque- le ponto de partida: aparecem no bojo do que porventura se possa chamar a "geração de 30", nos quadros de nossa história intelectual.

ixado esse patamar, convém esclarecer objetivos e limita- ções, antes de avançar o passo. Efetivamente, o título acima

não é uma manifestação da modéstia; antes, pretende ser um exercício de pre-

cisão. Caio Prado J r . , ainda que, quanto a nós, seja sempre e antes de tudo histo- riador, cultivou também a filosofia, a economia e o ensaio político. Aqui cui- daremos exclusivamente de sua obra historiográfica, não nos aventurando pe- las sendas filosóficas nem mesmo quando tratarmos de problemas metodológicos, quer dizer, esses problemas serão vistos tal como aparecem na prática do histo- riador, e não nas formulações do filó- sofo. O mesmo para a teoria econômica, por mais que estejam interpenetradas na obra. Dada a postura metodológica do autor — Caio Prado Jr. é marxista ex- plícito — essa fusão é absolutamente natural, e necessária, pois as fronteiras entre as ciências tendem a se diluir. Não significa isso que deixem de existir espe- cializações e formações profissionais, nem que trabalhos centrados numa ou noutra direção careçam de validade; sig- nifica, sim, que devem ser vistos como partes de um conjunto mais amplo e integrado, etapas de um roteiro mais longo a ser percorrido. O que tentare- mos é traçar o perfil de sua obra de historiador, enfatizando o que nos pareça mais relevante em contribuições, indican- do a leitura que nos pareça mais fiel e compreensiva; não deixaremos, é claro, de discutir e questionar alguns pontos, e avançar observações preliminares para situá-lo na historiografia e na cultura brasileira. Não trataremos, porém, da coerência do conjunto da obra (história, filosofia, economia). Pensamos que essa caracterização inicial seja uma etapa im-

1 Wilson Martins. História da Inteligência brasileira (São Paulo. 1979), vol. V I I . p. 1.

2 Em seu minucioso levanta- mento das publicações, W. Martins não menciona Evo- lução política no contexto de 50, referindo-se depois às suas reedições.

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portante para uma avaliação mais defi- nitiva e global; sabemos que as limita-ções indicadas impõem provisoriedade a conclusões.

Delimitada, circunscrita, a tarefa não é, ainda assim, fácil; pois os estudos de historiografia — isto é, de história da história — são sempre inçados de difi- culdades sem conta. Procura a historio- grafia conhecer melhor a história através da obra dos historiadores, ao mesmo tem- po em que a obra dos historiadores atra- vés da história. Neste jogo complexo, em que várias etapas têm de ser ultra- passadas, vários recortes são possíveis: pode-se, por exemplo, fixar um tema (um evento, um processo) e elencar as obras de vários autores a ele referentes; ou, em sentido inverso, fixar um autor, e acompanhar os temas por ele tratados. No primeiro caso, a biografia do histo- riador contará menos; no segundo, ga- nhará relevo. E reaparecem as dificulda- des: a biografia é um dos mais difíceis gêneros de história.

o caso de Caio Prado Jr., in- telectual em atividade, conta- mos com o sugestivo esboço biográfico de Francisco Iglé-

sias;3 por ali se percebe que esse per- curso existencial se organiza em torno de dois eixos básicos: a militância polí- tica e a ruptura de classe que ela envol- veu. Pertencente ao tronco de uma das mais típicas famílias da elite aristocrati- zante de São Paulo,4 Caio Prado Jr. desde muito jovem tornou-se militante comunista e pensador marxista. Sua pro- dução intelectual configura a praxis-teó- rica em sentido pleno, pois fundada diretamente na atividade política. É aí que radicam, evidentemente, as opções mais fundas, — que por serem a um tempo intelectuais e existenciais assu- mem a força de convicções extremas, marcando a coerência que atravessa toda a obra. Mais ainda, a recorrência e insis- tência em certos temas, problemas, ex- plicações, posições: nesse retornar quase obsessivo a certos pontos parece expres- sar-se a reafirmação daquelas opções ou rupturas. Percurso de vida e andamento do discurso relacionam-se, assim, ilumi- nando-se mutuamente. É, por outro lado, sua origem de classe, a que se liga uma refinada e sólida formação intelectual, que de certo modo permitiu a Caio Prado Jr. escapar do esquementismo em que tantas vezes sossobram os intelec- tuais marxistas. Marxismo, para ele, não

terá significado o desdobramento natural da radicalização do intelectual de classe média, em determinadas condições; 5

mais do que isso, implicava o rompi- mento com as raízes, o engajamento como intelectual orgânico do mundo do trabalho. Dramática, essa ruptura de classe ainda pode ser vista de outro ângulo. Trata-se, efetivamente, não ape- nas de uma facção de classe dominante, mas de uma elite aristocratizante, que se configurou em certos momentos e em algumas regiões do Brasil, como os senhores de engenho ou "barões" do café. Ora, o declínio de uma elite aris- tocratizante — declínio enquanto estilo aristocratizante de vida — parece ter o condão de estimular o espírito crítico,6

e este parece ser o caso do clã Silva Pra- do, como se pode acompanhar no livro do brasilianista D. Levi. A "decadên- cia", eis um fator de radicalização inte- lectual, a ser acrescido aos já analisados por Míchael Lowy. E mais uma vez, no caso de Caio Prado Jr., a condição de classe associa-se tanto à radicalização de suas posições como ao espírito crítico que lhe garante a independência de espí- rito.

As condições sociais, se permitem um certo equacionamento, nunca esgotam a compreensão de uma obra, que envolve sempre a marca pessoal do autor. Nem pretendemos, com as observações ante- riores, uma análise das condições sociais da produção historiográfica de Caio Pra- do Jr.; apenas procuramos indicar al- guns aspectos, mais ligados à configura- ção das obras, isto é, aos temas aborda- dos, à linha de interpretação, e ao estilo do discurso. Iniciada, em 1933, como indicamos, prossegue com Formação do Brasil Contemporâneo (1942), e Histó- ria econômica do Brasil (1945), reto- mando-se depois com A Revolução bra- sileira (1966) e História e Desenvolvi- mento (1968). Quase todos os livros de Caio Prado Jr. têm várias edições. A partir de 1946 Evolução política do Bra- sil é reeditado com outros estudos, de grande interesse.7 Trata-se de merecido êxito intelectual. Em seus pontos altos há consenso no reconhecimento de que se trata de um marco em nossa historio- grafia e nos estudos brasileiros em geral. Quando do aparecimento de Formação do Brasil Contemporâneo (1942), em amplo comentário, escrevia José Honó- rio Rodrigues que "esse livro marca uma fase crítica na história de nossa histó- ria."8 E recentemente, em seu movi-

5 Cf. Michael Lowy. Para uma sociologia dos intelec- tuais revolucionários, trad. port., São Paulo, 1979, espe- cialmente pp. IX a XV e 1 a 9.

6 Chamou-me a atenção para a relação entre "declínio aris- tocrático" e espírito crítico a socióloga Maria Arminda Nascimento Arruda; retornei o tema com Armem Mamigo- nian, geógrafo, numa viagem pelo interior de Santa Ca- tarina.

3 Cf. Francisco Iglésias. "Um historiador revolucionário". introdução a Caio Prado Jú- nior, história, introdução e seleção de textos por F. Iglé- sias. São Paulo. 1982, pp. 7-47. Coleção "Grandes Cien- tistas Sociais", coordenada por Florestan Fernandes. 4 Cf. Darrel Levi. A família Prado, trad. Port, São Pau- lo, 1977.

7 Bibliografia de Caio Prado Jr.: Evolução política do Bra- sil, 1933. URSS, um novo mundo, 1934 (2.ª ed. 1935). Formação do Brasil contem- porâneo, 1942 (17.ª ed. 1981). História econômica do Brasil, 1945 (28.ª ed. 1983). Evolu- ção política do Brasil e ou- tros estudos, 1946 (12.ª ed. 1980). Dialética do conheci- mento, 1952 (6.ª ed. 1980). Diretrizes para uma política econômica brasileira, 1954. Esboço dos fundamentos da teoria econômica, 1957 (5.a ed. 1969). Introdução à lógi- ca dialética, 1959 (4.ª ed. 1979). O mundo do socialis- mo, 1962 (3.a ed. 1967). A revolução brasileira, 1966 (6.ª ed. 1978). História e desen- volvimento, 1968 ( 3 . ª ed. 1978). Estruturalismo de Le- vi-Strauss, marxismo de Al- thusser, 1971. A questão agrária no Brasil, 1979 (3.ª ed. 1981). 8 José Honório Rodrigues. Notícia de vária história, Rio de Janeiro, 1959, p. 92. A resenha saíra no suplemento literário de O Jornal.

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mentado balanço da cultura brasileira contemporânea, Carlos Guilherme Mota destaca que "com as interpretações de Caio Prado Jr., as classes emergem pela primeira vez nos horizontes de explica- ção da realidade social brasileira — en- quanto categoria analítica."9

Enquanto José Honório refere-se a Formação do Brasil Contemporâneo, Carlos Guilherme reporta-se a Evolução política do Brasil. São livros de índole inteiramente diversa, mas ambos de grande penetração; daí o juízo altamen- te positivo dos críticos. O mais antigo (Evolução política, 1933) é um ensaio, navegando nas grandes linhas; Forma- ção do Brasil (1942) é uma pesquisa em profundidade, um corte num "momento decisivo" de nossa história. O primeiro funda-se mais na bibliografia anteceden- te, questionando-lhe as visões; o segun- do sem ignorar a historiografia, baseia- se essencialmente nas fontes coesas, —- correspondência de autoridades, memó- rias, viajantes etc. E o fato de o autor desempenhar-se excelentemente nos dois estilos de trabalho já nos ajuda a com- preender seu êxito intelectual, o impac- to da obra no conjunto. E isto nos re- mete para um outro traço, característico de seus trabalhos: eles se estruturam sempre em torno de um eixo básico, e se desdobram por veredas laterais, sem- pre muito sugestivas de novos caminhos de pesquisa. Há, assim, no conjunto e em cada obra, esse núcleo recorrente de concentração, e os desdobramentos que se vão dispersando. Trata-se, desde logo, da perseguição permanente à mesma pro- blemática básica (a identidade nacional, as possibilidades de mudança inscritas no processo histórico), e da sua retoma- da de vários ângulos e direções.

etenhamo-nos, portanto, nes- tes pontos centrais, à procura de seus procedimentos meto- dológicos. A estrutura analíti-

ca de Formação do Brasil Contemporâ- neo, ponto mais alto da obra historio- gráfica, oferece, a nosso ver, o caminho mais seguro de acesso a esse núcleo mais decisivo de sua contribuição, ou seja, os temas visados, a formulação da proble- mática, as categorias através das quais se procede à reconstrução da realidade. É curioso notar que, embora o livro tenha sido saudado desde o início, e venha sendo citado e estudado constan- temente, não se tenha destacado essa articulação mais geral que o caracteriza.

Até certo ponto pode-se dizer que a sua utilização tem sido antes tópica, seja in- corporando elementos de sua exposição, seja aprofundando temas laterais por ele suscitados. Não quero dizer que o livro não tenha sido compreendido, mas que não se tomou como tema a discussão e o aprofundamento de sua linha de aná- lise. Em certos casos, efetivamente, essa atitude empobreceu o aproveitamento da obra.

À simples leitura, percebe-se que, de- pois de indicar o tema (Introdução), o autor procura definir o que chamou de "sentido da colonização"; segue-se a análise dos vários setores da realidade histórica agrupados em três conjuntos: "Povoamento", "Vida material" e "Vi- da Social", cada um deles subdivididos em capítulos. Nota-se que as conside- rações iniciais ("sentido"), voltam ao final de cada capítulo, sendo por isso consideradas "chave" para a compreen- são; esse texto, — a Introdução — sem- pre citado, tornou-se "clássico". Uma indagação mais profunda revela o mo- vimento do discurso: recorte do objeto, apreensão de seu sentido, reconstrução do real a partir desse "sentido". E o seu travejamento dialético vai transparecen- do: o sentido, isto é, a essência do fenô- meno, explica as suas manifestações, e ao mesmo tempo explica-se por elas. Não se trata, portanto, na constante re- corrência ao ponto inicial, de simples recurso de ênfase; uma vez fixada a es- sência do fenômeno, dispõe-se da cate- goria explicativa básica para a recons- trução da realidade, dando-lhe inteligibi- lidade: daí, a volta permanente ao pon- to de partida. É, em suma, essa catego- ria que explica os vários segmentos (dá- lhes "sentido"), ao mesmo tempo em que por eles se explica, isto é, a análise dos vários segmentos vai eriquecendo e comprovando a categoria fundamental.

Recortado o objeto, a análise desdo- bra-se, portanto, em dois movimentos: da aparência para a essência, e da essên- cia para a realidade. E isto nos remete diretamente para o Marx do post-facio da Contribuição à crítica da economia política,10 onde esses dois movimentos são claramente indicados, e o livro de Caio Prado Jr. começa a aparecer como um exemplo bem-sucedído na prática da dialética. Por isso, entendê-lo como um exemplo de interpretação econômica da história, ou mesmo como manifestação de economicismo, — como tantas vezes tem ocorrido — parece uma leitura aca-

9 Carlos Guilherme Mota. Ideologia da cultura brasilei- ra , São Paulo , 1977, p . 28 . 10 Cf. K. Marx — Contribui- ção à critica da economia po- lítica, trad. de Florestan Fernandes, São Paulo, 1946, pp. 219-231.

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nhada, que não vai às últimas dimensões do texto. Diga-se, de passagem, que al- gumas passagens menos felizes podem levar a essa visão. Mas, insistimos, não é um ou outro trecho destacado que im- porta, mas o movimento conjunto da análise. Entre o sentido da colonização e o povoamento, produção, comércio, classes sociais etc., o que existe não é relação causal, mas conexões de sentido, Diríamos mesmo que os segmentos (po- voamento, vida material, vida social) poderiam ser descritos e analisados em qualquer seqüência, pois guardam a mesma relação com a categoria explica- tiva. A segmentação aliás visa apenas a facilitar a exposição, sendo que se pode notar a interpenetração entre eles. É o tipo de análise que permite ultrapassar a visão segmentária e economicista.

ma outra questão liga-se a essas considerações: a mesma visão, a nosso ver, já estava presente em Evolução política

(e, posteriormente, em História econô- mica), mas a exposição cronológica, não seguindo os passos da análise, dificulta a compreensão do procedimento meto- dológico. Os pontos centrais da análise porém, são os mesmos, em função da mesma problemática: a constituição da nação a partir da colônia, "colonial" e "nacional" como as categorias que expli- citam um determinado processo históri- co específico. Assim, parece legítimo in- ferir que a ordem da exposição pode ou não coincidir com os passos da análise. Esses passos, contudo, envolvem proble- mas teóricos altamente complexos: so- bretudo o "primeiro movimento", isto é, o que, na realidade aparente, identifi- ca as categorias essenciais — parece de difícil formulação. Não pretendemos dis- cutir este problema, apenas anotar que, na obra que estamos analisando, esse primeiro movimento consiste na inser- ção do fenômeno analisado num contex- to mais amplo. Assim, no clássico "sen- tido da colonização", Caio Prado Jr. in- tegra a colonização (isto é, povoamento, economia, sociedade) de uma determi- nada área no contexto da expansão co- mercial européia, e é dessa maneira que apreende o seu "sentido". Isto, é cla- ro, resolve apenas parcialmente o pro- blema, para certo tipo de análise; pois quando é o próprio "contexto mais am- plo" que se questiona, a dificuldade reaparece em toda sua força.

E aqui vamos nos aproximando das

possíveis limitações, que mesmo as obras mais penetrantes acabam por re- velar. Se buscamos uma integração críti- ca da contribuição de Caio Prado Jr., que assimile seus avanços procurando ao mesmo tempo ultrapassá-los, temos que questionar este núcleo de sua aná- lise, e não apenas seus aspectos laterais. Nesta linha, talvez se possa argüir que, no movimento de inserção no conjunto, isto é, no esforço por apreender a cate- goria básica, a análise se deteve a meio caminho. Trata-se de definir com preci- são o que deve ser inserido em que; e talvez o Brasil na expansão marítima européia seja um recorte que apanhe apenas algumas dimensões da realidade, não levando a análise até a linha do ho- rizonte. "Brasil", é claro, não existia, a não ser enquanto colônia, e é da colônia portuguesa que trata Caio Prado Jr.: a questão é saber se não seria preciso o conjunto do mundo colonial. Expansão comercial européia é a face mercantil de um processo mais profundo, a formação do capitalismo moderno; e a questão consiste em saber se não seria preciso procurar as articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudal-capitalista. Assim, a análise, em- bora centrada numa determinada região, seria sempre a análise do movimento em seu conjunto, buscando permanentemen- te articular o particular e o geral. A aná- lise das formas de acumulação primitiva na gestação do capitalismo parece ser, por outro lado, o caminho para explici- tar essas conexões estruturais. O que levaria à reformulação das unhas gerais, e da própria visão do conjunto. Mas, in- sistimos, é essa uma crítica que parte da análise de Caio Prado Jr., e a incorpora.

e toda maneira, a compreensão desse núcleo central parece-nos indispensável para compreen- der a obra nos seus desdobra-

mentos. É por aí que se apreende sua extraordinária coerência. Trata-se de compreender a nação a partir da colônia e por oposição a ela, e indagar as possi- bilidades de transformação inscritas nes- se processo. Já em Evolução política a problemática e as categorias básicas de análise estavam esboçadas, e o estudo incidiu particularmente sobre o processo de emancipação; e não será demais lem- brar que o enfoque geral ali esboçado para a análise da independência como um processo mais abrangente resiste até hoje, como o que de melhor dispomos

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para o estudo do problema. Inserido no contexto da formação do estado nacio- nal, a emancipação política ganhou sen- tido e ultrapassou a visão dos lances mais pitorescos ou mesmo dramáticos. Assim, Caio Prado Jr. insistiu na impor- tância de levar o processo até as lutas da regência, dando início a estudos no capítulo que dedicou a essas lutas, um dos pontos mais altos do livro. Ele mes- mo retomaria o tema, na introdução à edição do Tamoio, ou no estudo sobre Cipriano Barata. Outros autores aprofun- dariam o estudo dessas rebeliões.

Por outro lado, a análise das caracte- rísticas da economia colonial, esboçada no primeiro livro, assume no segundo seu pleno desenvolvimento. A discrimi- nação de seus setores, sua forma de arti- culação e desenvolvimento etc., permiti- ram caminhar para a configuração do que seria a economia nacional, isto é, voltada para dentro, centrada no merca- do interno, — em processo de constitui- ção. Esta linha seria desenvolvida na História econômica, e retomada em Di- retrizes para uma política econômica (1954). Aqui, para além da análise do processo histórico, mas a partir dela, se transita para as potencialidades nele ins- critas, caminhando-se no sentido da atua- ção política efetiva. Como que se recom- põe de novo coerência da obra no con- junto. É essa última dimensão que se enfatiza em A Revolução brasileira (1965) e A questão agrária no Brasil (1979). Por todas essas obras, o autor foi semeando pistas e sugerindo temas, alguns tratados por novos pesquisadores, outros ainda não abordados, à espera dos estudiosos. Esse caráter seminal é outra marca das grandes obras.

Grande obra, no seu conjunto, tiveram razão os críticos ao considerá-la um mar- co em nossa história intelectual. Talvez valha a pena meditar um pouco sobre o significado dessa avaliação. Pois quando dizemos que uma obra é um "marco" convém explicar em que "série". Neste sentido, três ângulos de análise se abrem, altamente sugestivos, para uma avaliação crítica da obra historiográfica de Caio Prado Jr. Ela pode, obviamente, ser vis- ta no quadro da historiografia brasileira, e é isto que vimos esboçando, com essas notas preliminares. Não pode haver dú- vida quanto ao seu significado preemi- nente nesse campo, não somente pela contribuição efetiva como pela fermen- tação que vem provocando.

Mas Caio Prado Jr. historiador pode

ainda ser visto no quadro do marxismo latino-americano. E aqui sua posição (ao lado da de J. C. Mariátegui, que começa a ser estudado entre nós) parece ser ex- cepcional. Durante muito tempo o que caracterizou o marxismo latino-americano foi um extremado esquematismo: a reno- vação, em curso, parece ligar-se à crítica do pensamento cepalino, ou noutros ter- mos, é criticando os esquemas da cha- mada economia política cepalina que o marxismo entre nós adquire força de in- terpretação, ultrapassando esquemas sim- plificadores. Caio Prado Jr. (como Ma- riátegui), escrevendo suas principais obras no período anterior a essa renova- ção, tem as características do segundo período. Basta lembrar a ausência, nas suas obras, das citações rituais caracte- rísticas da ortodoxia estéril. Essas cons- tatações importam para uma futura his- tória do pensamento marxista na Amé- rica Latina.

inalmente, caberia discutir o interior da "geração de 30", com que iniciamos estas notas. E isso levaria à comparação

com as obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Sérgio Buarque, de mais difícil assédio, formula mais expli- citamente a questão da identidade na- cional, que acompanha a obra dos três, os quais, na procura dessa identidade, formularam diferentes "interpretações". Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre formam um curioso contraponto. Ambos se ligam às classes dominantes, de duas regiões que entretanto evoluem de forma diver- gente. Se, em São Paulo, pode-se pensar num declínio de estilo aristocratizante de uma elite da camada dominante, esta como um todo está em franca ascenção econômica; no Nordeste, ao contrário, a decadência econômica faz declinar inexo- ravelmente o peso de suas elites no con- junto da nação. Gilberto Freyre talvez por isso, analisa sempre o Brasil a par- tir de seu passado, isto é, daquilo que deixou de ser; Caio Prado Jr., ao con- trário, pensa sempre o país pelas suas potencialidades, isto é, pelo que ele pode vir a ser. Se esta visão talvez possa con- siderar-se utópica, a primeira é segura- mente nostálgica.

Fernando Novais é historiador e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, 2, p. 66-70, jul. 83

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