Fernando Peixoto

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AS AVENTURAS DO TIO PATINHAS São Paulo, setembro 1968 Paris, dezembro 1983

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  • AS AVENTURAS DO TIO PATINHASSo Paulo, setembro 1968 Paris, dezembro 1983

  • E QUEM PAGA O PATO? Fernando Peixoto

    O esquerdismo o remdio doena senil do comunismo!, afirma com apaixonada convico um estudante radical num plenrio de assemblia da categoria, respondendo a um colega que citou Lnin dizendo que o esquerdismo a doena infantil do comunismo. Estamos sem dvida em 1968. E nas pginas divertidas mas tambm sofridas de As Aventuras do Tio Patinhas, texto de Boal j encenado em muitos pases mas ainda indito no Brasil.1968: as entusisticas revoltas estudantis contestam a estrutura capitalista num inesperado estopim em cadeia que percorre os principais pases do mundo ocidental, feito de generosa e anrquica entrega, despertando em setores da juventude sobretudo de classe mdia e logo desfeita a iluso de que, embalados no utpico sonho de se constiturem numa nova vanguarda poltica revolucionria, margem do desenvolvimento clssico do processo de luta de classes, a eles estaria reservada a tarefa histrica de condutores de uma definitiva ao libertria.1968: a imaginao no poder fo i a palavra de ordem do movimento que se projetava, grvido do fascnio pela redes- coberta do iderio anarquista, tambm como questionamento do chamado socialismo real e das formulaes, ento declaradas superadas e mesmo reacionrias, dos partidos comunistas tradicionais. Foi certamente a inesperada irrupo de um protesto talvez ingnuo mas vigoroso que penetrou no comportamento poltico da direita e da esquerda, obrigando seus dirigentes a uma menos ou mais disfarada reviso alguns de seus postulados tticos e estratgicos, diante do irre-121

  • versvel quadro da sociedade capitalista convulsionada e condenada nas ruas pelos seus mais diletos filhos, agredida pela juventude que estava sendo preparada para ser sua tranqila continuao.Os desdobramentos foram os mais contraditrios: em quase todos os pases o movimento se restringiu apenas ao nvel estudantil, facilmente sufocado pela enrgica represso policial e pela desconfiana da classe mdia e mesmo da classe operria; na Frana, onde os combates de maio surpreenderam, depois de dias de at prudente hesitao alguns dos mais combativos setores da classe operria, inclusive o PCF, acabaram aderindo revolta quase generalizada e quase incon- trolvel, ainda que conscientes dos limites dos possveis resultados e procurando ao menos control-los, mas provocando como triste conseqncia um fortalecimento da direita no poder, representada pelo governo De Gaulle; no Brasil, que comemorava quatro anos de ditadura militar, o ano fo i razoavelmente agitado, com artistas e intelectuais protestando nas ruas ao lado (ou atrs) dos estudantes, o teatro tambm radicalizado acompanhando aquele que afinal era depois de 1964 seu pblico mais fiel e constante, espetculos apresentados sob ameaa violenta inclusive de grupos paramilitares de extrema direita e garantidos por forte esquema de segurana at armada, e acabou com uma grave crise poltica instaurada dentro do prprio Congresso e em dezembro aconteceu o golpe dentro do golpe, com a promulgao do A to Institucional Nmero Cinco, destruindo o pouco que ainda restava de liberdades democrticas e consolidando um poder fascista.1968: fo i tambm um ano de contestao do imperialismo norte-americano, desmascarado como anjo da guarda das foras polticas e econmicas que sustentam o capitalismo monopolista.As Aventuras do Tio Patinhas nasceu neste clima: um documento que revela e exemplifica, movido por um esprito irnico e gil de stira mordaz, uma advertncia que ainda permanece: o poder burgus nacional, ameaado, encontra elementos de identificao e unio e proteo fora do pas, socorrido pela fora capitalista internacional e especialmente norte-americana, agrupando energias para instaurar um122

    triunfo que acaba, como na pea, com cadveres pendurados pelos ps, pelos braos, pelos pescoos. E com o pas amordaado e militarizado. Nosso 68, ainda mais que nosso 64.Mas o teatro um espao indomvel e imprevisvel que permite o humor, a inveno, a brincadeira: Boal inventa uma espcie de pardia ou alegoria construda com fantasia e realidade, misturando personagens de came-e-osso de fico, num esforo de denncia. O feitio contra o feiticeiro: o imperialismo nos acostumou com os poderes ilimitados dos su- per-heris justiceiros das histrias em quadrinhos, como Su- per-Homem, Batman e Robin, Mandrake e Lothar, Tio Patinhas e outros; e tambm nos fez engolir personagens submissos e colonizados, quando no abertamente traidores de seus povos, transformando-os em simpticos e envolventes heris dos filmes de Hollywood, como Gunga Din, Zorba ou Saki- ni. Foram estes sempre os imortais combatentes de um poderoso exrcito que ainda atua diariamente, amplamente amparado e divulgado pelo controle imperialista dos meios de comunicao de massa: constituem a tropa de choque da invaso ideolgica que, com suave inocncia penetra bem fundo sobretudo no crebro dos mais jovens, deformando valores morais e ticos e polticos principalmente no delicado perodo deformao da conscincia e da personalidade. Uma constante lavagem cerebral para anestesiar os povos que lutam pela libertao nacional ou pela verdadeira justia social. O texto de Boal procura desmistificar e inverter o processo. E outros escritores latino-americanos buscaram depois o mesmo caminho: basta lembrar, por exemplo, o admirvel ensaio- panfleto de Ariel Dorfman eArmand Mattelart sobre o significado da ideologia dos produtos de Walt Disney, Para Ler o Pato Donald (1971), e ainda Super-Homem e Seus Amigos do Peito (1973) do mesmo Dorfman com Manuel Jofr; ou a novela de aventuras polticas Batman no Chile de Enrico Lihn, que em 1973 trouxe o Homem Morcego para executar uma tarefa contra-revolucionria da CIA contra o governo de Allende; ou ainda mais recentemente um dos ltimos textos para teatro do guatemalteco Manuel Galich, escrito em Havana em 1977, Operacin Perico.Em As Aventuras do Tio Patinhas os estudantes de 68 ameaam a tranqilidade da classe dominante de um pas123

  • imaginrio (por que no cham-lo Brazil?) mas os monoplios acabam triunfando com o desembarque de seus super- heris, salvaguardando a explorao contra o povo e. os mltiplos e imensurveis monoplios do gracioso Tio Patinhas. Propondo ao encenador e aos intrpretes um exerccio de linguagem criativa e lcida, mostra que o teatro, sem perder sua fora vital de alegria e humor, e mesmo sem pretender ser demasiadamente profundo, pode ser um sadio instrumento de luta. Descendente de algumas das obras produzidas alguns anos antes pelo Centro Popular de Cultura, valendo-se da farsa e da caricatura, As Aventuras do Tio Patinhas vai, sem cerimnia, misturando estudantes e polticos, comdia e tragdia, patos e super-homens (alguns inclusive em crise existencial ou sentimental). Pode ser ainda vigorosamente recuperado, apesar da distncia que nos separa de 68: afinal, em todos os nveis, continuamos pagando o mesmo pato.

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    Esta pea pode ser feita com cada ator representando um personagem diferente, como pode tambm utilizar o sistema coringa, em que nenhum personagem representado pelo mesmo ator em duas cenas sucessivas. Neste caso, so necessrios apenas dez ou doze atores. Pode-se ainda optar por uma soluo intermediria: os personagens mais caractersticos podem ser representados sempre por um mesmo ator e todos os demais em rodzio.O teatro pode ter o palco italiano convencional (como aconteceu na produo argentina), ou a forma de arena (como na Colmbia) ou ainda um espao fragmentado (Itlia) com interpenetrao de espaos para espectadores e personagens.O importante que as idias passem, e que o faam da forma mais bonita e mais eficaz possvel.