FERNÃO MENDES PINTO, CRONISTA DE VIAGEM · que vê ironia e crítica à hipocrisia do mundo...

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1 | 1 | Cid Seixas FERNÃO MENDES PINTO, CRONISTA DE VIAGEM OU PROSADOR DE FICÇÃO? As leituras da obra de Mendes Pinto giram em torno de duas vertentes: uma que vê ironia e crítica à hipocrisia do mundo cristão; outra que a identifica como expressão do pensamento vigente. A revisão crítica da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto pelos estudiosos da segunda metade do século XX teve, a princípio, a tendência de emprestar a esse livro ainda mais deslumbramento que o olhar do viajante experimentou. Se a escrita já sugere lances de ironia e de fina percepção dos equívocos e des- varios da sociedade portuguesa quinhen- tista, estudiosos como Rebecca Catz (1978, 1981, 1983) ou Antonio José Saraiva (1971) desentranharam das suas

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Cid Seixas

FERNÃO MENDES PINTO,CRONISTA DE VIAGEM

OU PROSADOR DE FICÇÃO?

As leituras da obra de Mendes Pintogiram em torno de duas vertentes: umaque vê ironia e crítica à hipocrisia domundo cristão; outra que a identificacomo expressão do pensamento vigente.

A revisão crítica da Peregrinação deFernão Mendes Pinto pelos estudiososda segunda metade do século XX teve,a princípio, a tendência de emprestar aesse livro ainda mais deslumbramentoque o olhar do viajante experimentou.Se a escrita já sugere lances de ironia ede fina percepção dos equívocos e des-varios da sociedade portuguesa quinhen-tista, estudiosos como Rebecca Catz(1978, 1981, 1983) ou Antonio JoséSaraiva (1971) desentranharam das suas

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leituras ainda mais vislumbres de iro-nia e consciência crítica.

Opondo-se à tese até então aceitasegundo a qual a Peregrinação é umasátira impiedosa das práticas de provei-to e hipocrisia do cristianismo portu-guês quinhentista, perfilam-se estudio-sos como Aníbal Pinto de Castro, emPortugal, e, mais recentemente, Fran-cisco Ferreira de Lima, no Brasil.

A direção apontada por RebeccaCatz, ao afirmar que Mendes Pinto nãotinha o cristianismo como modelo, érefutada com veemência, especialmen-te quando essa estudiosa, apesar da pre-cariedade das provas arroladas, concluique o autor da Peregrinação era judeu e,como tal, teria desenvolvido nuances decrítica e de ironia que somente uma lei-tura fina como a sua desvendaria, sécu-los mais tarde. Ela acreditava ler aquiloque o autor pretendia que se lesse.

O excesso de deslumbramento noolhar de um ou de outro estudioso sus-citou a revisão dos pontos de vista tra-dicionalmente aceitos. Hoje, na esteirada refutação dos pressupostos mais

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fantasiosos, especialmente os de Katz,a evidente natureza polissêmica da es-critura de Mendes Pinto é obscurecida,ou negligenciada, pelos estudos que pre-tendem devolver ao texto a sua “verda-deira dimensão”. O propósito de evitaros excessos de deslumbre exigiu umaanálise pertinente e rigorosa do contex-to social quinhentista, onde a Peregri-nação é considerada principalmentecomo documento. O documento de vi-agem que sempre pareceu aos leitoresdos séculos passados.

Numa tal perspectiva, aqui chama-da de revisionista, essa obra não veriamais do que a sua época costumava ver.Ela não seria a sátira impie­dosa nem acrítica irônica dos valores religiosos eéticos então vigentes. Aquilo que que-remos ler, quando lemos o texto deMendes Pinto, não pertenceria a ele,mas à nossa ideologia de leitores. Ain-da segundo esse ponto de vista, a dife-rença de perspectiva imposta pelas ideiasdo nosso século estaria interferindo nosentido da obra estudada.

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Mas será que isso é indesejável? Seráque o significado de uma obra é apenasconstituído pelo momento da sua pro-dução? E não, também, pelo da sua re-cepção?

O que importa numa obra literáriaé a intenção do autor ou aquilo que otexto diz, mesmo sem intenção de di-zer?

A permanência e a atualidade da Pe-regrinação são devidas, principalmente,a sua falta de sinceridade. Isto é, à suanatureza ficcional, onde os fatos vivi-dos por um personagem real chamadoFernão Mendes Pinto, mais os fatossonhados e inventados, e os fatos vivi-dos por outros viajantes, são todos reu-nidos num mesmo personagem ficci-onal chamado também de Fernão Men-des Pinto.

Ora, se o autor pressentia, ou mes-mo, se tinha uma certa consciência deque estava fazendo ficção – para falarcom mais propriedade de uma realida-de que não cabia nos estreitos limitesda realidade estabelecida –, ele bem quepoderia não ser sincero nas suas ingê-

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nuas genuflexões diante de uma práticaimpiedosa que correspondia ao discur-so cristão mais piedoso da sua época.

Tratamos aqui, portanto, da ques-tão da intenção do autor, apesar do sen-tido da obra não ser um servo fiel dasua intenção consciente. Como a críti-ca revisionista trabalha no nível dessaconsciência cristã do século XVI, a sualeitura da Peregrinação pode não ser amesma do leitor comum dos nossosdias, que estaria mais próximo do en-tusiasmo; mesmo do entusiasmo deRebecca Katz.

Observe-se que o critério de objeti-vidade presente na abordagemrevisionista se, por um lado, é capaz derecuperar e reconstituir o quadro dasideias do século XVI, por outro lado,pode implicar uma leitura menospolissêmica, menos literária, portanto;e mais científica. Isto é: uma leitura doponto de vista de uma sociologia dasideias, de uma teoria das ideologias, oude uma sociologia do conhecimento.

Pergunto então: essa leitura metodo-logicamente estruturada visando com-

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preender a verdade do viajante não ne-garia, não desconheceria, a natureza li-terária do texto? O texto literário nãoseria, quase sempre, uma dissimulação?Por que então aceitá-lo como confissãoverdadeira?

Aquele trapacear com a linguagemdo qual o velho Barthes (1951, 1972)fala com muita propriedade não estaráexcluído da Peregrinação, se ela for lidacomo um texto que testemunha e dá féde uma verdade?

O que restará desse texto – o textoque Mendes Pinto escreveu e que nóslemos como literário – sem as suas pos-síveis dissimulações?

Enfim: é legítimo analisar um tex-to, considerado pela tradição como li-terário, a partir de critérios capazes dedescarnar os sentidos circundantes, ade-rentes ao sentido por acaso previsto –ou imprevisto – pelo autor?

Desde a sua publicação, em 1614,que essa obra, deslocada do contextodocumental das narrativas de viajantes,passou a ser vista como um dos tantos

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relatos de viagem. Por isso, a ingênuaglosa do seu nome:

– Fernão, Mentes?– Minto.Fernão Mendes Pinto era tomado

como uma testemunha ocular e infiel.Mas quando nos colocamos diante deuma escolha: continuar lendo a Peregri-nação como simples relato de viagemou passar a lê-la como prosa de ficção,como obra de arte verbal, portanto, oscritérios de análise precisam ser revis-tos. E isso faz diferença. Se aceitarmosque o Fernão Mendes Pinto que apare-ce como narrador de tantas maravilhas,ao contrário de toda a expectativa dosseus leitores dos séculos anteriores, nãoé o mesmo sujeito civil que escreveu olivro, mas um personagem de ficção li-terária e, como queria Aristóteles, uni-versal, resultado de muitas experiênci-as de muitos sujeitos, as consideraçõesa respeito do seu compromisso com oideal cristão requerem outro tom deabordagem e outro modo de compre-ensão.

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Veja-se que no episódio da Ilha dosLadrões, Mendes Pinto e seus compa-nheiros portugueses roubam uma em-barcação e depois celebram o crime agra-decendo a Deus por mais uma graça.Um menino tomado prisioneiro, umnão-cristão, portanto, faz uma severacrítica àqueles que atribuem a um mila-gre de Deus o bem-sucedido roubo.

Ao se incluir entre aqueles que sãocensurados pelo menino, cabem aquiduas conjecturas, o personagem-narrador Fernão Mendes Pinto seria auniversalização, no sentido aristotélico,de todo viajante, e esse menino seria aconsciência crítica do autor e de todocristão que conseguisse ultrapassar aética da conveniência.

Ao reunir num personagem traçosgerais, universalizando-o, portanto, oautor da Peregrinação estaria plenamen-te no território da ficção. É o que se dácom Antonio de Faria, representaçãocoletiva de todo português que empre-ende a viagem e os saques dessa “cava-laria marítima” (conforme a expressãocunhada por Francisco Ferreira de Lima

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(1998) e legitimada por MassaudMoisés). O destino desse personagemseria assim uma advertência e uma crí-tica aos contemporâneos. Não importatenha existido ou não um Antonio deFaria real. O que importa é o Antoniode Faria universal, construído pelo tex-to ficcional para servir de objeto da suacrítica.

Entendido desse modo, como umpersonagem de ficção que universalizaas ações de vários viajantes portugue-ses, o protagonista Fernão Mendes Pin-to seria também um Antonio de Faria,como querem alguns estudiosos. Ouainda, os personagens Fernão MendesPinto e Antonio de Faria seriam des-dobramentos ficcionais de um mesmosujeito real; ou, por outro lado, seriamuma bipartição de vários tipos e sujei-tos da sociedade da época.

No trecho da Peregrinação em queo viajante destaca a perfeição da justiçachinesa pelo fato dela se sustentar emjuízes independentes, bons e justos, eleconclui que pobres e ricos, ilustres oudesconhecidos são julgados com isen-

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ção. Como o autor desse livro de via-gens no país das maravilhas pertencia àclasse dos novos servos (não mais daterra e sim do capital), esse “testemu-nho verdadeiro” nos mostra como ocondão do discurso ficcional realiza umdesejo das classes subalternas da Euro-pa do século XVI.

Assim entendido, como personagemficcional, Fernão Mendes Pinto podelegitimamente figurar entre os primei-ros portugueses a desembarcar no Ja-pão, não obstante o sujeito civil que es-creveu a Peregrinação não figure entreesses. Assim ele pode sobreviver a to-dos os naufrágios e se fazer presenteaos mais insólitos acontecimentos.Acontecimentos cuja recorrência e cujadinâmica dificilmente cobririam a vidade um homem. É um excesso de fatos,é um excesso de atos, é um excesso dereal para os limites de uma única vida.Somente recriada através da arte, da fic-ção, uma vida conteria tanto real.

Mas a Peregrinação tanto vem sen-do lida como um verdadeiro relato deviagem, quanto como sendo uma obra

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de ficção que finge fazer um relato ver-dadeiro. Lida a obra como um relato(assim liam aqueles que acusavam oautor de mentiroso), a hipótese de otexto conter ironia ou crítica à ideolo-gia das cruzadas transplantadas para aaventura marítima pode ser contesta-da. Observe-se bem: lida a obra comoum relato, a hipótese do texto conterironia e crítica severa à moral cristã doexpansionismo pode ser contestada. Maslida a Peregrinação como uma obra dearte literária, todo sentido possível deser atribuído deve ser visto como pos-sível; e não como impossível.

Os investigadores que procuram onome de Fernão Mendes Pinto entre osmarinheiros portugueses que pisarampela primeira vez no Japão se inscrevementre aqueles que tomam esse livroemblemático como um mero relato deviagem, sem levar em conta a passagemdo documento à criação ficcional ope-rada pela escritura do autor. Num mo-mento de constituição plena do fazerliterário e de redefinição dos gêneros,como o século XVI, um grande núme-

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ro de obras situa-se no território da pro-sa doutrinária, conceitual, informativaetc., sendo importante observar os mo-mentos de ruptura entre o verdadeiro eo verossímil. Entre a prosa de forma-ção (ou mesmo de informação) e a pro-sa de ficção.

A partir de tal perspectiva, compre-ende-se, inclusive, a ambivalência dassituações apresentadas na Peregrinação.Mesmo sendo um cristão, um portu-guês do século XVI, o narrador-perso-nagem dirige a sua crítica contundenteà moral do proveito. Ao tempo em queo exemplo dado pelo outro desnuda osvícios que condimentam a ética cristãde então, a possibilidade do proveitojustifica tais vícios e estabelece o círcu-lo imaginário de pecado e de expiação.

Por isso, o depoimento mordaz eirrespondível contido nas situações ediálogos da Peregrinação. Enquanto tan-tas outras narrativas de viagem dão re-levo à estranheza do outro, sem que issoimplique o desnudamento dos vícios doconquistador, essa obra vale-se do con-fronto para sublinhar o que está em de-

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sacordo com o bom senso não apenasno outro mas, principalmente, no mes-mo – isto é, no cristão, no europeu, noportuguês.

É verdade que o sujeito que contaas desaventuras assume o discurso docristão português lançado aos marestemperados pela defesa da fé. É verda-de também que a ambição é justificadapela legitimidade do proveito decorren-te das missões destinadas a expandir asfronteiras da cristandade. E que todaconquista unia a espada à cruz.

Mas o narrador não oculta nemminimiza os fatos que contradizem ospiedosos e frágeis propósitos. A cobi-ça, o desrespeito, o desamor e a desle-aldade são evidenciados na sua ação ena dos seus companheiros, em flagran-te contraste com a boa fé do outro. Ooutro, quase sempre, é pretexto paracorrigir os costumes do mesmo.

Quando, em 1726, Jonathan Swift,em Gulliver’s travels, se vale dos ma-nuscritos que lhe foram confiados porum incerto Sr. Lemuel Gulliver paracolocar a nu, para desvestir a máscara

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que cobria os gestos insensatos dos seusconcidadãos, ele estaria retomando umaestratégia já usada na Peregrinação desublinhar as virtudes do outro comoforma de evidenciar os próprios defei-tos.

A presença de um capitão portugu-ês, Dom Pedro de Mendes, fechando asviagens de Gulliver – e, graças ao en-tendimento e aos modos desse capitãoMendes, reconduzindo Lemuel Gulliverà convivência dos homens – seria umindício de que Swift teria lido a Peregri-nação como uma sátira e uma crítica aosvícios da cristandade. O próprio Jana-than Swift, doutor em Teologia, tornou-se cônego para não viver na miséria, edepois, deão da Catedral de São Patrício,na Irlanda, não obstante tenha dedica-do uma das suas obras ao ataque fron-tal ao desregramento da vida religiosa.

Partindo de quem não via com ge-nerosidade a espécie humana, a referên-cia generosa a esse capitão Mendes, fei-ta por Swift, seria uma simples coinci-dência, ou fruto da identidade entre doisautores?

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Um, no século XVI, partindo deuma narrativa de viagem real para che-gar à ficção, como de fato chegou, eoutro, no século XVIII, valendo-se daficção para criar a realidade de um ve-rossímil viajante inglês.

Curioso ainda é o temor queGulliver manifesta à Inquisição, quan-do da sua estadia em Lisboa. Essaemblemática presença do capitão Men-des no desfecho das viagens do capitãoGulliver sugere o tráfico de idéias co-muns. Sugere mais ainda: analogamente,o possível risco que o autor-persona-gem da Peregrinação corria perante aInquisição portuguesa; risco aqui tra-duzido no temor de Lemuel Gulliver.

De volta ao texto de Fernão Men-des Pinto, observe-se que o episódioocorrido em Formosa, então conhecidacomo Ilha dos Léquios, mostra comoos portugueses, acusados e tornadosprisioneiros, são tratados com respeitopor aqueles que o irão julgar. O gover-nador inicia o interrogatório pedindodesculpas pela sua obrigação de levar oprocesso adiante e, movido pela com-

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paixão, afirma que preferia estar no lu-gar dos prisioneiros. O interrogatório,feito por aqueles que – conforme a óti-ca cristã – desconhecem a palavra divi-na, é uma eloquente lição de humildadee de sentimento cristão. A miséria dosprisioneiros portugueses compadece detal modo os léquios que foram recolhi-das esmolas suficientes que torná-losprovidos “de todo o necessario em tantaabastança, que não ouue nenhum de nósque não trouxesse de cem cruzados paracima”. (Pinto, 1614, p. 131)

Libertados com generosidade e tra-tados como amigos, o narrador e seuscompanheiros opõem a fidalguia dosléquios, desvalidos da palavra de Cris-to, à vilania dos portugueses, piedososcristãos:

“Desta breue informação que te-nho dado destes Lequios se podeenteder, & assi o cuydo eu pelo quevy, que com quaisquer dous milhomes se tomara e senhoreara estailha com todas as mais destesacipelagos, donde resultara muyto

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mayor proueito q o que se tira daIndia. (Pinto, 1614, p. 223)

A oposição gritante entre o espíritoelevado dos léquios e a astuta mesqui-nharia dos cristãos não pode ser casual.Ao por na boca do narrador falas apa-rentemente “inocentes” que denunciama mais absoluta ausência de ética, Men-des Pinto quer, de fato, se valer da iro-nia para criticar a moral da sua gente. Amesma moral que lhe constitui comosujeito e lhe contamina. Daí, a ambi-valência.

Ao pintar o quadro com tintas car-regadas e finalizar a pintura louvando aDeus pelo ocorrido, quando o ocorridodesafia a bondade divina, não estariaMendes Pinto satirizando?

Para Francisco Ferreira de Lima, umdos mais abalizados representantes des-sa nova corrente de releitura da Pere-grinação, a frequência com que o nar-rador apela a “Cristo”, a “Jesus”, a“Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao “filhode Deus que morreu na Cruz” neutrali-za a presença de ironia. Seu argumente

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parte do pressuposto segundo o qual,sendo um bom cristão, o autor não as-sumiria um discurso de arremedo doscacoetes da sua época. (Lima, 1988, p.89)

Pode-se, contrariamente, afirmarque tal frequência, inclusive nas situa-ções mais absurdas e descabidas, con-firma a ironia. A repetição, a constân-cia, a recorrência, a redundância é umaforma de caricatura. E a caricatura doprocedimento do cristão português re-alça suas contradições e dá sustentaçãoà ironia.

É evidente que Mendes Pinto – querseja cristão novo, ou não – incorpora aética cristã do proveito; mas o seu tex-to é um contundente libelo contra essamesma ética.

O que se vê nas viagens, ou se ima-gina e inventa, tem por fim criticar etentar melhorar a realidade do mundoportuguês, do mundo cristão. Assim,as virtudes dos gentios – percebidas atémesmo por um protagonista que sepinta como tão insensível quanto aque-

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les a quem critica – as virtudes dos gen-tios são, em si mesmas, uma crítica aocomportamento europeu. Obviamente,a crítica é ao mau cristão, ou seja, comoconvém emendar: a todos os portugue-ses da época que empreenderam a aven-tura da conquista. Restringir a críticaseria crer que o universo dos criticáveistambém fosse restrito.

Há uma passagem na Peregrinaçãoonde o pretexto seria a crítica à religiãodo outro. Vejamos: “Desta sua cegueyra& incredulidade lhe nacen os grandesdesatinos, & a grande confusão de su-perstições que tem entre sy”. Façamosum corte e vejamos outra passagem dotexto, mais adiante, onde entre tais de-satinos e superstições destacam-se as –usemos uma expressão em alta – pro-pinas “que dão aos seus sacerdotes, por-que [ou: para que estes] lhes seguremgrandes bees nesta vida, & na outra ri-quezas de ouro infinitas, os quais sa-cerdotes lhe dão para isso huus escritoscomo letras de cambio.” (Pinto, 1614,p. 251)

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A coincidência com os hábitos cris-tãos e, especialmente, com a venda deindulgência pela igreja de Roma impõeao leitor alguma reflexão em torno daironia.

Há, de fato, um parentesco entre aescritura de Fernão Mendes Pinto e ade Jonathan Swift. Esse último, mes-mo vivendo da atividade religiosa, nãodeixa de ver as mazelas da sua grei.

Dizer que a Peregrinação está emperfeita sintonia com o cristianismo doséculo XVI, como querem alguns estu-diosos (revisionistas), é reduzir essaescrita literária, polissêmica e aberta àatualização do possível leitor de qual-quer tempo, a mera condição de um “di-ário de bordo”.

Conforme se sabe, o texto de Men-des Pinto foi escrito muitos anos de-pois das suas viagens, não obstante orelato, rico em pormenores e sugestivode emoções recém-vividas, dê a impres-são que muitas passagens foram escri-tas ao calor dos acontecimentos. Essepoder de sugestão é típico do texto li-terário, onde a ficcionalidade constrói

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os detalhes, onde a realidade do sujeitopreenche o vazio – ou a ausência – darealidade objetiva.

Mas se a Peregrinação não contém“cousa algua contra a nossa santa Fé”,conforme a leitura do censor do SantoOfício – esse sim perfeitamente inte-grado ao sistema de valores do cristia-nismo do século XVI e incapaz, por-tanto, de ler as evidências dos fatos –,se a Peregrinação não contém nada con-tra as convicções e os interesses ditoscristãos, por que Mendes Pinto temia?Se é que temia. O temor, em tais cir-cunstâncias sugere que se veja mais doque o censor alcançava – ao ver.

Quando os valores religiosos entramem cena na Peregrinação, o narrador-personagem procura se manter imuneao encantamento e à sedução do desco-nhecido. Nessas circunstâncias, o ouvi-dor atento não ouve, o voyer contumaznão vê.

Para fugir ao rigor da censura ou aosistema de terror instaurado pela Igre-ja, o texto da Peregrinação assume o dis-curso piedoso mais absurdo, justifican-

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do todas as atrocidades em nome deCristo, do mesmo modo que faziam osinquisidores. Dessa forma, o narradorcerca-se de cacoetes clericais, usando onome de Deus a toda hora e evitandocríticas diretas aos hábitos portugueses.

São as evidências e os fatos objeti-vados que substituem a crítica aparen-te, como faz, na atualidade, o chamadojornalismo objetivo. Mesmo sem co-mentar a notícia, a mídia seleciona fa-tos que conduzem o leitor a um deter-minado posicionamento. O jornalismo‘objetivo’ apenas edita o dito.

A crítica velada, disfarçada pela cui-dadosa escolha dos episódios mostra-dos, tanto é usada nos nossos dias quan-to foi experimentada no século XVI porFernão Mendes Pinto. Afinal de con-tas, é a arte, a literatura, que descobrenovos modos de dizer o indizível, ouaquilo que não pode ser dito.

Quando a crítica aparece na Peregri-nação, ela é alegorizada em forma decrítica ao outro, ao gentio. Ou apareceem forma de louvor ao contra-senso,

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quando depois de roubar pessoas inde-fesas, os portugueses agradecem à gra-ça de Deus, pela proteção.

É a exposição crua dos fatos, vistossem constrangimento, e contrapostosàs piedosas expressões de beatice, quefunciona como crítica; uma crítica quenão aparece nas palavras do texto maseclode no ato da leitura.

Excluída a possível natureza contes-tatória do livro, como querem os revi-sionistas, continuaria inexplicado o lon-go tempo decorrido entre a finalizaçãodo texto e sua impressão. Somente vin-te anos depois da morte do autor a obraveio a lume.

O temor de Mendes Pinto à reper-cussão da sua obra ganha sentido a par-tir daí, da sua consciência crítica, cons-ciência dos recursos usados pela sua es-critura. Lida a Peregrinação como umcanto de louvor sincero ao cristianismodo século XVI, o autor não teria moti-vos de temor ao Santo Ofício. Mas eletemia; é o que os fatos indicam. Destaforma, a presença da ironia, da avalia-

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ção judicativa, ou mesmo da paródiacomo forma de crítica ao parodiado,continua como proposta sustentável. Efascinante.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland (1953, 1972). Novosensaios críticos seguidos de O grau zeroda escritura. São Paulo, Cultrix, 1974.

CASTRO, Aníbal Pinto de. De Montemor-o-Velho às Ilhas do Japão: A Peregrinação deFernão Mendes Pinto e o encontro deculturas. Coimbra, Comissão de Coorde-nação da Região Centro, 1993

CATZ, Rebeca. A sátira social de Fernão MendesPinto. Lisboa, Prelo, 1978.

CATZ, Rebecca, Fernão Mendes Pinto: Sátirae Anti-Cruzada na Peregrinação, 1.ª ed.,

Lisboa, Biblioteca Breve, 1981.CATZ, Rebecca. A Peregrinação é um livro de

filosofia moral e religiosa. Jornal de LetrasArtes e Ideias, nº 63, de 19 de Julho a 1 deAgosto de 1983.

LIMA, Francisco Ferreira de. O outro livro dasmaravilhas. A Peregrinação de FernãoMendes Pinto. Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1998.

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SEIXAS, Cid. Fernão Mendes Pinto: Cronis-ta de viagem ou prosador de ficção? Feirade Santana, A Cor das Letras, v. 18, n. 1,2017, p. 119-127.

PINTO, Fernão Mendes (1614). Peregrinação.Lisboa, Imprensa Nacional / Casa daMoeda, 1983. (Baseada na Edição deAdolfo Casais Monteiro, 1952-1953.)

PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação .Introdução de Aníbal Pinto de Castro.Porto, Lelo & Irmão, 1984.

PINTO, Fernão Mendes, Peregrinação (cote-jada com a 1.ª edição de 1614, leitura atu-alizada, introdução e anotações de NevesÁguas), Lisboa, Publicações Europa-América, 1996.

REBELO, Luís de Sousa. “Prefácio”. In:CATZ, Rebeca. A sátira social de FernãoMendes Pinto. Lisboa, Prelo, 1978.

SARAIVA, Antônio José. Fernão Mendes Pin-to. EuropaAmérica, 1971 (Col. Obras deA. J. S., 5).