FERREIRA, Lúcio Menezes_Arqueologia Do Sul Do Brasil e Política Colonial

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Anos 90, Porto Alegre, v. 12, n. 21/22, p.415-436, jan./dez. 2005 Arqueologia do Sul do Brasil e política colonial em Hermann von Ihering 1 Lúcio Menezes Ferreira * A marcha ascendente de nossa cultura está em perigo; é preciso pôr cobro a esta anormalidade que a ameaça. Protejam-se os índios pacíficos, mas garantam-se ao mesmo tempo aos colonos a vida e a propriedade contra assaltos de índios bravios. Hermann von Ihering (1911, p.113) Resumo. Este artigo analisa as pesquisas arqueológicas de Hermann von Ihering em suas relações com a construção de uma política colonial. Palavras-chave: Arqueologia. Museu Paulista. Sul do Brasil. Política colonial. * Mestre e Doutorando em História Cultural pela UNICAMP. Bolsista FAPESP. Núcleo de Estudos Estratégicos/Unicamp.

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    Arqueologia do Sul do Brasil

    e poltica colonial

    em Hermann von Ihering1

    Lcio Menezes Ferreira*

    A marcha ascendente de nossa cultura est em perigo; preciso pr cobro a estaanormalidade que a ameaa. Protejam-se os ndios pacficos, mas garantam-seao mesmo tempo aos colonos a vida e a propriedade contra assaltos de ndiosbravios.

    Hermann von Ihering (1911, p.113)

    Resumo. Este artigo analisa as pesquisas arqueolgicas de Hermann von Iheringem suas relaes com a construo de uma poltica colonial.Palavras-chave: Arqueologia. Museu Paulista. Sul do Brasil.Poltica colonial.

    * Mestre e Doutorando em Histria Cultural pela UNICAMP. Bolsista FAPESP.Ncleo de Estudos Estratgicos/Unicamp.

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    A formao acadmica de Hermann von Ihering (1850-1930)deu-se em Gettigen, onde ele obteve PhD em Medicina, em 1873,e em Filosofia, em 1876. Tornou-se, em 1878, Privatdozent emZoologia da Universidade de Leipzig. Partiu para os trpicos em1880, para trabalhar como naturalista viajante do Museu Nacio-nal, adquirindo em 1882 cidadania brasileira (Losano, 1992). Seusestudos abrangeram diversas reas da Histria Natural; porm,dedicou-se principalmente, desde a sua tese de doutorado, Zoo-logia e Paleozoologia dos Moluscos, sendo considerado um not-vel malacologista. A pesquisa que o projetou internacionalmente,em 1907, versou sobre os antigos continentes Archelenis e Archinotis,que lhe permitiram elaborar a teoria das pontes continentais,fundada em seus estudos relativos aos moluscos do sudeste sul-americano.

    Suas pesquisas sempre tiveram uma dimenso continental.Ao entronizar-se como Diretor do Museu Paulista, cargo que ocu-pou por vinte e dois anos (1894-1915), realizou, baseando-se nascolees angariadas em expedies, por compra e intercmbio commuseus e institutos de pesquisa internacionais, uma srie de tra-balhos comparativos em Histria Natural. Como nos mostraMargaret Lopes (1997, p.265-291), von Ihering sempre acalentouo sonho de fundar um museu sul-americano. Da seus trabalhoscomparativos, marcadamente de carter biogeogrfico ezoogeogrfico, paleontolgicos e geolgicos, se acercarem das re-gies limtrofes ao Rio da Prata. Aos seus domnios cientficos,contudo, von Ihering inclua, tambm, a Arqueologia. Em suaspesquisas sobre a cincia da cultura material, notam-se as mesmaspreocupaes comparativas, a mesma ambio cientfica de pro-duzir snteses regionais.

    A regio privilegiada por von Ihering para suas pesquisascomparativas em Arqueologia foi o Sul do Brasil. Mesmo antes dedirigir o Museu Paulista, von Ihering, tendo vivido por alguns anosno Rio Grande do Sul, sobretudo s margens da Lagoa dos Patos

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    (von Ihering, 1907a), j publicara, em alemo e ingls, trabalhosarqueolgicos sobre o Sul do Brasil. Neles, concebeu uma outraponte continental, desta vez no apenas paleogeolgica, mastambm arqueolgica; entre os Andes, as regies do Rio da Prata eo sul do Brasil, von Ihering circunscreveu uma dispora de artefa-tos e de grupos pr-histricos; delimitou um conjunto de relaesculturais, cujo ponto limiar seria o Sul do Brasil.

    Suas pesquisas arqueolgicas foram, sem dvida, reconheci-das internacionalmente, sendo freqentemente citadas em peri-dicos estrangeiros, como por exemplo, na prestigiosa AmericanAnthropologist (Chamberlain, 1912; Haseman, 1912; Saville, 1913).Nesse artigo, contudo, meu objetivo no s o de avaliar como odiapaso de suas interpretaes em Arqueologia se afinava pelostons da cincia internacional, mas sobretudo, o de mostrar comode suas hipteses sobre o povoamento pr-histrico do Sul doBrasil deriva um projeto poltico; suas pesquisas arqueolgicasencerram, com efeito, uma poltica colonial.

    O mtodo

    De fato, as pesquisas arqueolgicas de von Ihering inseri-ram-se no contexto internacional. Ele tinha convivncia crticacom a literatura antropolgica, arqueolgica e lingstica de suaquadra histrica; de seus textos pululam citaes de arquelogos,antroplogos e lingistas que lhe foram coetneos. Estava beminteirado sobre o discurso acadmico de seu tempo, especialmen-te no que diz respeito s teorias cientficas de esteio racista, cujasproposies afirmavam o carter racialmente hereditrio da inteli-gncia e do comportamento e explicitavam teses eugnicas, comoas de Francis Galton (1822-1911).

    Ademais, se se quisesse, facilmente poderamos enquadr-lono modelo histrico-cultural em Arqueologia modelo que, como

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    se sabe, continua vivo e atuante na Arqueologia contempornea(cf., por ex., Shennan, 2000). Herdeiro do nacionalismo do sculoXIX, o modelo histrico-cultural em Arqueologia parte do pressu-posto de que cada nao compor-se-ia de um povo, um grupo t-nico definido biologicamente, um territrio delimitado e uma cul-tura, pensada em termos de lngua e tradies sociais. Tais ele-mentos, uma vez isolados em homologias e tipologias, formariamo conceito de cultura arqueolgica: um conjunto de artefatos se-melhantes, datados num perodo especfico, representantes de umpovo, de uma cultura, de um territrio.

    Do mesmo modo, facilmente o classificaramos como umdifusionista. Sua sntese arqueolgica do Sul do Brasil, com defi-nio de reas culturais e migrao de povos e artefatos, equipara-se s interpretaes arqueolgicas e etnolgicas de Friedrich Ratzel(o qual ele cita) e Franz Boas. Esses modelos, efetivamente, noesto ausentes nos textos de von Ihering; preciso, entretanto, l-los tambm com outras lentes, foc-los sob uma outra perspecti-va, atinente ao fundamento espacial de sua epistemologia arqueol-gica. Em von Ihering, a questo territorial era central. Mais do queconstituir identidades no tempo histrico, sem contudo desdenh-lo, na Geografia que von Ihering marca e demarca a etnognesedos grupos indgenas. Princpio geoestratgico, e no somente his-trico estratgias de ocupao do espao, das distribuiesterritoriais, dos deslocamentos regionais, das imigraes de gru-pos pr-histricos e de artefatos.

    Tal fundamento espacial da Arqueologia resulta, em vonIhering, de sua formao como naturalista. Ele participou do mo-vimento que se convencionou designar mas que o ndice deuma regulao metodolgica generalizada como cinciahumboldtiana. Parafraseando Bruno Latour, Martin Rudwick (2000,p.51), historiador da Paleontologia, recentemente afirmou que,comparadas vida social dos laboratrios, as cincias de camposo, para a historiografia especializada, terra semi-incgnita. Contu-

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    do, ainda assim sabemos, por pesquisas modernas, como as deMichael Dettelbach (1997) e Janet Browne (1997), que a Fsica daTerra de Alexander von Humboldt (1769-1859) reverteu a Hist-ria Natural como cincia da coleta. Tornou-a uma nova topografiada terra, ancorada nos exames de preciso de medidas dos moder-nos instrumentos o barmetro, o cronmetro, o quadrante, osextante, o teodolito, o higrmetro, os compassos, as agulhas mag-nticas etc.

    O uso de mtodos grficos e linhas isomtricas serviu paracartografar um largo espectro de variveis: meios de temperatura,nivelamento e presso baromtrica, proliferando o uso dos mapaspara os estudos em Histria Natural. A Biogeografia, as pesquisassobre a distribuio geogrfica das plantas e animais sobre o glo-bo, tornou-se, ademais, uma taxionomia das diferenas. Fizeram-se pesquisas sobre as distribuies geogrficas, formularam-se asontologias identitrias das diferentes regies, classificaram-se asespecificidades da natureza dos continentes. A nova topografia daterra, com seus instrumentos de medida, mapas e mtodos aritm-ticos, lastrou as teorias de distribuio das espcies e a anlise doconjunto das colees. As tcnicas numricas fornecidas pela Es-tatstica e pela Demografia foram largamente utilizadas paracontabilizar e definir as naes e provncias de plantas e ani-mais de uma regio.

    A metodologia da cincia humboldtiana organiza, de fato, ostextos arqueolgicos de von Ihering. Acostumado sistemtica,s lides classificatrias das espcies, ele exibe-nos um extremo apuroe percia na descrio e anlise da cultura material indgena. As-sim, no somente interpretou as sobrevivncias dos artefatos pr-histricos entre os pescadores do litoral paulista e catarinense (vonIhering, 1905, 1907b, p.243-244); realizou tambm exerccios deArqueologia experimental, conforme se v em Os Machados de Pedrados ndios do Brasil e o seu emprego nas derrubadas de mato (1907c).Inspirando-se nos trabalhos de arquelogos dinamarqueses, von

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    Ihering, ao lado de Ernesto Garbe (naturalista viajante do MuseuPaulista) e Matias Wacket (colecionador do Alto da Serra),manuseia, numa mata prxima caixa de gua do Alto da Serra doMar (SP), machados lticos da coleo do Museu Paulista, visandoobservar-lhes a eficcia na preparao do solo para a agricultura.

    Concluiu pela presteza dos machados; foram eles bem fabri-cados para o fim a que se destinavam, isto , a derrubada de rvo-res de porte mdio. Para assim concluir, von Ihering cronometrouas horas de trabalho e, sobretudo, analisou detidamente os macha-dos, num padro descritivo que conceituo como geometria dos arte-fatos. Padro que, na Arqueologia brasileira, inaugura-se a partirdos anos 1870, particularmente nos trabalhos de Charles F. Hartt(1840-1878) (1876a, 1876b). Tratava-se assim, para von Ihering,de conhecer as propriedades, formas, medidas, modelos e funesdos artefatos; tratava-se de pes-los, medi-los, de descrev-los re-correndo a metforas geomtricas, de deduzir, a partir da geome-tria, o clculo racional dos artefatos, sua preciso tecnolgica, es-mero esttico e funcionalidade.

    A essa preocupao com a preciso de medidas e clculosgeomtricos corresponde uma outra tarefa; no s uma geometriados artefatos, mas tambm uma geografia dos artefatos. Em todos ostextos arqueolgicos e antropolgicos de von Ihering h a anlisecartogrfica da distribuio territorial, da imigrao, das trocas edo comrcio dos artefatos. H tambm uma imbricaometodolgica entre geometria e geografia dos artefatos. Tome-se,por exemplo, o ensaio A Civilizao Pr-Histrica do Brasil Meridio-nal (1895), publicado no volume inaugural da Revista do MuseuPaulista. Nele, v-se que ambos os padres descritivos, uma vezarticulados metodologicamente, implicam fazer-se no s umatipologia dos artefatos, no s interpret-los em seus significadosfuncionais e rigor tecnolgico, mas tambm em traar-se parale-los etnogrficos (von Ihering, 1895, p.73) e estudos comparati-

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    vos de artefatos anlogos (idem). Com isto, chega-se a umaetnognese, ao valor etnolgico dos artefatos (idem).

    Fazendo a geometria e geografia dos artefatos, von Iheringisola etnias, inferidas por meio de procedimentos comparativos,busca regularidades culturais, motivos semelhantes, correspondn-cias temticas de um modo muito parecido ao que Ginzburg(1989, p.143-180) conceituou como paradigma indicirio. Hem seus textos uma hermenutica dos sinais grafados nos artefa-tos, uma leitura das marcas e emblemas timbrados pela imigraodos grupos pr-histricos, pelas influncias culturais externas ourecprocas. Decifrando esses sinais, von Ihering procura entendera distribuio geogrfica deles sobre o continente sul-americanoe as concluses que permitem a respeito da extenso e imigraodos povos que os fizeram (von Ihering, 1895, p.150).

    O Brasil andino

    Da aplicao desse mtodo surge a sntese de von Iheringsobre a Pr-Histria do Sul do Brasil. Obviamente, como nuncase escreve sobre pginas em branco, von Ihering teve, atrs de si,os resultados de algumas escavaes arqueolgicas de sambaquisde Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, efetuadas durante oImprio pelo Conde de La Hure (1865), Ladislau Neto (1876) eCharles Wiener (1876). Do mesmo modo, von Ihering no foi oprimeiro a produzir snteses de alcance global; Ladislau Neto (1838-1894), em 1885, j publicara suas Investigaes sobre a ArqueologiaBrasileira (1885), tentando balizar hipteses sobre a ocupao pr-histrica do Brasil.

    Contudo, escrevendo dez anos depois de Ladislau Neto, vonIhering, no ensaio A Civilizao Pr-Histrica do Brasil Meridional(1895), compulsou um universo emprico mais alargado do que aque-le examinado pelo Diretor do Museu Nacional em suas Investigaes.

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    Alm da literatura arqueolgico-etnogrfica ento disponvel, eleabarcou as ricas colees arqueolgicas e etnogrficas do acervodo Coronel Joaquim Sertrio, ncleo original do Museu Paulista, etambm aquelas reunidas pelas expedies da Comisso Geogr-fica e Geolgica de So Paulo, dirigida por Orville A. Derby (1854-1918). Utilizou, ainda, as colees de outros museus brasileiros,europeus e norte-americanos; aproveitou os freqentes contatoscientficos que mantinha com os diretores de museus argentinos,tais como Francisco P. Moreno (1852-1919), Florentino Ameghino(1853-1911) e Juan B. Ambrosetti (1865-1917), para ampliar suasfontes, literrias e materiais, sobre a Arqueologia do noroeste ar-gentino e das regies adjacentes ao Rio da Prata. Assim, ele pdesublinhar com maior nitidez os contornos cartogrficos do povoa-mento pr-histrico do Sul do Brasil. Em seus textos arqueolgi-cos e etnogrficos subseqentes, todos eles de flego, von Iheringsempre retomou o ensaio de 1895, reiterando suas hipteses deimigrao e definies de enclaves arqueolgico-regionais.

    A sntese de von Ihering, em seus traos fundamentais apre-sentada na ltima parte de seu ensaio, dedicada s comparaesentre o Rio Grande do Sul, So Paulo e os Estados do Rio daPrata (von Ihering, 1895, p.105-155). O argumento principal dacomparao a demonstrao emprica da existncia de um Brasilandino. Desde o princpio do ensaio, von Ihering anuncia que es-crever uma Histria comparativa dos materiais arqueolgicos doSul do Brasil. Ou, para ser mais exato, o objetivo de von Ihering o de abordar comparativamente tradies histricas (von Ihering,1895, p.47-60) segundo elas se postulam na historiografia, nascrnicas coloniais e relatos de viagens cientficas e tradiesarqueolgicas (von Ihering, 1895, p.60-101) segundo os regis-tros da cultura material por ele estudados. Assim, von Ihering des-creve a dispora de uma cultura superior em solo brasileiro (vonIhering, 1895, p.105-106).

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    O Diretor do Museu Paulista rastreia os caminhos por quepercorreram os artefatos de influncia incaica; mostra que, ao lon-go dos Andes e em direo ao Norte, nota-se a influncia crescen-te dos Incas, espargindo os seus vestgios por meio de trocas eco-nmicas e culturais, por todas as partes do Rio Grande do Sul e daArgentina, at a embocadura do Amazonas (von Ihering, 1895,p.131). Uma srie de vestgios arqueolgicos comprovaria, paravon Ihering, os contatos dos Incas para alm de seu territrio ime-diato: o cultivo de plantas muito especficas, como a coca, o mi-lho, a mandioca, o feijo e o algodo, encontradas na Venezuela,no Paraguai, na Argentina setentrional e no Rio Grande do Sul; osmachados de cobre e motivos pictogrficos da arte rupestre daArgentina setentrional, sobretudo os da cidade de Catamarca, se-riam semelhantes aos do Rio Grande do Sul (von Ihering, 1895,p.153-154).

    Hermann von Ihering, em seguida, define duas regies ar-queolgicas, ou, como ele preferiu diz-lo, uma sntese de duasregies transitrias (von Ihering, 1895, p.151). Haveria dois ter-ritrios arqueolgicos de um Brasil andino. De um lado, Catamarcaligar-se-ia Ilha de Maraj, pois as refinadas urnas funerrias, l eacol, apresentariam figuraes simblicas semelhantes. Assim,uma primeira regio arqueolgica formou-se numa zona de conta-to entre os grupos incaicos assentados no Noroeste argentino e oshabitantes da Ilha de Maraj. As cermicas incas, e aqui von Iheringfala hipoteticamente, teriam descido o Amazonas e aportado naIlha de Maraj, onde se transfiguraram num novo estilo cultural(von Ihering, 1895, p.152). De Catamarca irradiaram tambm astrocas culturais que originaram algumas tradies arqueolgicasGuaranis. O grupo pr-histrico que teria servido de intermedi-rio entre os Guaranis e os Incas seria o dos Calchaquis de Catamarca(von Ihering, 1895, p.126).

    Essa segunda regio transitria, no interior das fronteirasdo Brasil, formaria um paredo natural, uma esfera isolante, pois a

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    influncia andina, propagando-se em crculos ondulatrios, depa-rara-se ante as determinaes da Geografia Botnica e Zoolgicado Rio Grande do Sul (von Ihering, 1895, p.155). O Sul do Brasil,em termos paleontolgicos, paleobotnicos, geolgicos e arqueo-lgicos, configuraria uma regio singular. Aqui, principalmente omalacologista quem fala: von Ihering, que sempre exultou das ri-cas colees de conchas tercirias e ps-tercirias do Museu Paulista(von Ihering, 1898, p.14), classificou os moluscos da Costa daArgentina como similares quelas do Rio Grande do Sul (vonIhering, 1897). Todo o sul do Brasil formaria um tecido nico,natural e arqueolgico, a demarcar uma diferena ontolgica comas outras regies brasileiras.

    O Sul do Brasil seria o lugar dos resqucios incaicos; estariaembebido, nos tempos pr-histricos, pelas influncias de umacultura superior. Afora o Sul, somente uma pequena ilha doNorte fora afortunada pelos contatos com os Incas, recebendo,por trocas comerciais, cermicas civilizadas. Haveria, por fim,marcas incaicas muito tnues, esmaecidas, apenas alguns macha-dos de cobre encontrveis entre os Guaranis do territrio de SoPaulo. O Sul do Brasil seria, pois, a nica regio a apresentar dura-douras relaes culturais com os territrios vizinhos do Rio Pra-ta, pelas quais se indicam influncias de uma cultura superior pro-cedida dos Andes, mais especificamente, proveniente, como jse disse, do Noroeste argentino (von Ihering, 1895, p.154-155).Porm, o Sul do Brasil encadear-se-ia, tambm, com a culturaprimitiva das outras regies do Sudeste brasileiro o que, inevi-tavelmente, abriu-lhe os flancos para contatos culturais esprios,que macularam a pureza original dos Guaranis, rebaixando-os (vonIhering, 1895, p.156).

    O Diretor do Museu Paulista, pois, concebe os territriosarqueolgicos do Brasil como heterogneos. A influncia culturaldos Incas, por meio dos contatos com os Guaranis, no se fez sen-tir por todo o litoral do Brasil; ainda que os Guaranis ocupassem

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    todo o litoral, a rea limite por onde se lanaram crculosondulatrios de civilizao foi o Sul do Brasil. As inmeras dife-renas entre as arqueologias do Rio Grande do Sul e So Paulo,por si mesmas, j demonstrariam que a difuso de uma culturasuperior chegou ao Sul do Brasil e em toda a Amrica do Sul,com exceo da Patagnia. E, assim, von Ihering descreve outrosvestgios e documentos que provariam empiricamente a inserode traos andinos numa poro do Brasil: os machados perclusose de cobre, as chapinhas de prata encontradas em sambaquis dolitoral gacho, as crnicas histricas que fazem meno ao uso deouro e prata pelos Guaranis tudo isso, para von Ihering, mostra-ria a concordncia da tradio arqueolgica com a histrica, for-maria uma base slida para discutir a histria primitiva da partemeridional do Brasil (von Ihering, 1895, p.155).

    Em seus outros textos arqueolgicos e antropolgicos, vonIhering pouco modificou essa base slida sobre a Arqueologiado Sul do Brasil. Em A Etnologia do Brasil Meridional (1906), porexemplo, ele reproduz a mesma tese sobre a singularidade pr-histrica do Sul do Brasil, arrolando a mesma dispora de artefa-tos, que provaria antigas relaes entre os Incas da regio sub-andina da Argentina e os Guaranis. Para ele, haveria fatos de or-dem arqueolgica que

    demonstram a influncia que a cultura dos povos sub-andinos da Argentina exercia sobre o Brasil [...] Objetos demetal, particularmente chapinhas de prata e machados decobre, foram tambm introduzidos da mesma regio andinapara o Paraguai e at no Brasil meridional (von Ihering,1906, p.236).

    Entre 1901 e 1904, o Museu Paulista recebeu por intercm-bio, angariou em expedies e comprou diversas colees arqueo-lgicas: a dos irmos Berbedo, que foram objeto de um artigo,publicado por Paldaof (1900), bem como a de Karl Kosertiz, ambas

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    do Rio Grande do Sul; por fim, a enviada por Cristvo Barreto,arquelogo amador da regio de Amargosa, na Bahia (vonIhering, 1904b; Rodolfo von Ihering, 1907). Essas colees servi-ram escrita de A Arqueologia Comparativa do Brasil (1904a). Nesseensaio, contudo, tambm no h mudanas substanciais em suasteses acerca das relaes dos Andes com a Ilha de Maraj e, prin-cipalmente, com o Sul do Brasil. Do mesmo modo, em A Antropo-logia do Estado de So Paulo (1907b), von Ihering, uma vez mais,reafirma sua tese, agora acrescendo metfora geomtrica doscrculos ondulatrios uma metfora geogrfica, longitudinal:

    Como j demonstrei, podemos provar no Estado do RioGrande do Sul a existncia de utenslios introduzidos pelosndios dos Pampas; encontram-se tambm outros instru-mentos, que os ndios do Rio Grande do Sul ganharampelas suas relaes com os Calchaquis e outras tribos decivilizao mais adiantada, habitantes da regio andina daArgentina, [e] a influncia dos povos andinos mais fortesobre os das regies mais prximas desta zona e tanto maisenfraquece quanto maior a distncia (von Ihering, 1907b,p.246-247).

    Poltica colonial

    V-se, assim, como von Ihering, ao circunscrever territ-rios arqueolgicos primitivos, delimitou identidades histrico-geogrficas. Delimitaes que, a bem dizer, possuem significadospolticos. Qualquer definio de identidade sempre poltica. Osvalores etnolgicos dos artefatos findam sendo marcadores deregies arqueolgicas, indicadores de disporas, ndices deregionalidades culturais, de hegemonias dispersas no continentebrasileiro, porm isoladas em paredes naturais, paleontolgicose zoolgicos, influenciadas por imigraes de artefatos que trans-cendem as raias geopolticas. As determinaes espaciais e polti-

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    cas da epistemologia arqueolgica de von Ihering revelam umagramtica da pertena. Os artefatos, como portadores de uma lingua-gem, expressam identidades scio-cartogrficas, so sinais a se-rem decompostos por uma hermenutica, so a semiologia da cul-tura material, so os significantes dos significados regionais.

    Uma gramtica da pertena que funciona como um conjuntode regras responsveis pela seleo de substantivaes eadjetivaes: culturas superiores e inferiores. Uma gramtica dapertena que declina as conjugaes psicossociais e os comporta-mentos culturais dos bravos e dos mansos, dos civilizados eincivilizados, dos perfectveis e imperfectveis, cujos predicadosanunciam sujeitos estigmatizados por esteretipos coloniais. As-sim, von Ihering, no ensaio de 1895, descreve os ndios Pampasda Argentina, ndios que seriam culturalmente semelhantes aosBotocudos, os quais, de acordo com o naturalista, sempre manti-veram contato. No se poderia compactuar politicamente com osPampas. Afinal, j no Perodo Colonial, eles incendiavam navios eedifcios, apanhavam com lao e flecha o veado de suas vastasplancies cujo sangue chupavam ainda quente, como at hoje fa-zem os ndios do sul da Repblica Argentina (von Ihering, 1895,p.128).

    Esteretipos coloniais, seguindo-se defesa da guerra justa.O Diretor do Museu Paulista colecionava avidamente no s arte-fatos, mas tambm artigos de jornais que narravam os assaltosde ndios aos sertanejos do Brasil. Os Botocudos e suas destrui-es em fazendas e cidades das colnias alems de Santa Catarinaso freqentemente citados por von Ihering; e, neste sentido, elelegitima a ao do Estado do Rio Grande do Sul que, ao descobrircampos de bugre, declarou-lhes guerra (von Ihering, 1895, p.39).Vencida a guerra, nas palavras do Diretor, os progressos da civi-lizao no se interromperam mais no Rio Grande do Sul, enquan-to que em Santa Catarina os Botocudos continuam a causar desas-tres (von Ihering, 1895, 40). Longes da influncia imediata do

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    crculo andino, os Botocudos, de to primitivos, s possueminteresse etnolgico bastante limitado (von Ihering, 1895, p.46).

    A tendncia das interpretaes arqueolgicas de von Iheringfoi a de formular, nessas regies transitrias, uma dicotomiabsica: de um lado, os Guaranis que beberam das fontes incaicas;de outro, uma cultura primitiva, que teria originalmente habitadoos sambaquis (von Ihering, 1903). A esses primitivos, von Ihering,em mais de um texto, uniformiza numa mesma etnia, ligando-a aotronco lingstico J (cf., por ex., von Ihering, 1904c, 1906). Etniaque sempre cometeu, conforme von Ihering afirma em A Antropo-logia do Estado de So Paulo (1907b), uma srie de crimes e assassi-natos no vale do Paranapanema. O naturalista, nesse texto, faz acrnica desses assaltos, que ocorriam, inclusive, no momentoem que ele redigia o ensaio. E, aps interpretar os dados antropo-lgicos e arqueolgicos do Estado de So Paulo, ele concluiu pelapobreza cultural dos indgenas paulistas, o que lhe autorizou asentenciar o extermnio dos Kaingangs que resistiam ao avanodos cafeicultores do Oeste Paulista (von Ihering, 1907b, 215).

    So bem conhecidos os debates ocasionados por essas de-claraes de von Ihering, relacionados com a criao, no interiordo Museu Nacional e com o beneplcito do Governo Federal, doServio Nacional de Proteo ao ndio (SPI), no qual as correntesde pensamento positivista tiveram papel atuante (cf., por ex.,Gagliardi, 1989; Lima, 1995). No o meu propsito, aqui, rese-nhar esses debates; mas deter-me naquilo que entendo ser a polti-ca colonial de von Ihering, arquitetada em A Questo dos ndios doBrasil (1911), texto escrito em resposta criao do SPI e s crti-cas e diatribes que brotaram dos jornais cariocas e paulistas. Nes-se texto, o naturalista afirma que o SPI, em sua inspiraopositivista, no passa de uma sobrevivncia anacrnica do roman-tismo, de uma tupimania e filoindianismo epidmico (vonIhering, 1911, p.127). E assim ele articula, em contrapartida a essaepidemia tupi-manaca, um programa de civilizao composto pordez itens.

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    Atenho-me ao ltimo item, para mim o crucial, em que oDiretor do Museu Paulista compara o trabalho de educao dosindgenas aos empreendimentos coloniais da Europa. Como nascolnias europias, no Brasil seria necessrio arregimentar tcni-cos e especialistas, lingistas e antroplogos, bem como um corpode funcionrios auxiliares, treinados pelo Estado, que garantissem,a um s tempo, a cidadania brasileira aos ndios mansos e a pro-priedade capitalista da terra (von Ihering, 1911, p.119). Sem alijaros missionrios de sua empreitada colonial, que unicamente seincumbiriam do ministrio da moral crist, von Ihering, contudo,enfatiza que o problema fundamental dos indgenas de educa-o, e no de catequese. Os funcionrios do Estado, portanto, se-riam majoritariamente amealhados entre cientistas e tcnicos.

    Assim, a civilizao seria conduzida pelas mos da Cincia,uma razo tcnica, instrumental, detentora de um conhecimentoespecializado, implantada no aparelho de Estado. Neste sentido,von Ihering sugere que o Governo organize expedies a fim de secolherem os materiais para a formulao de um saber cientficosobre os indgenas:

    em Viena e na Alemanha que se encontram as coleesmais valiosas para o estudo da cultura indgena. No Brasilfizeram-se colees de objetos reunidos ao acaso, que notem a unidade e a mincia daquelas colees providas detodas as informaes. Alm das modestas expedies doMuseu Paulista, no se realizou expedio alguma organiza-da pelo governo do Brasil, com a inteno de estudar oproblema. Dever servir de modelo ao Brasil oEthnographical Bureau da Amrica do Norte; tudo depen-de nesse caso da competncia dos exploradores [...]. (vonIhering, 1911, p.134).

    Hermann von Ihering, pois, pensa uma poltica colonial fun-dada na razo de Estado e na defesa da propriedade privada. Umapoltica colonial respaldada num saber tcnico e cientfico que ele,

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    como Diretor do Museu Paulista, praticava. Em diversos relat-rios administrativos, von Ihering gabou-se das colees arqueol-gicas e etnogrficas do Museu Paulista, colees capazes de fazerfrente quelas dos Museus de Viena e da Alemanha, que ele, comose v pela citao acima, tinha como preciosas. Em seu texto depoltica colonial ele voltou carga, referendando, alm disso, seutrabalho como cientista: examinei e medi ndios de vrias tribos,e consegui reunir valiosa coleo antropolgica e arqueolgica noMuseu Paulista. Frutificaram os meus esforos em grande nmerode publicaes (von Ihering, 1911, p.114).

    sintomtico que von Ihering tenha invocado, como mode-lo de seu plano de colonizao, justamente o Bureau of EthnologicalResearch, a instituio responsvel, conforme lembra-nos Bruce G.Trigger (1990, p.125-126), pela elaborao e fundamentao an-tropolgica das polticas colonialistas dos Estados Unidos. De suaparte, no interior do Museu Paulista von Ihering no somente apa-relhou expedies arqueolgicas e antropolgicas, em fins de 1909e 1910, para explorar grutas calcrias do Vale do Ribeira e contataros ltimos Xavantes (Hermann e Rodolfo von Ihering, 1911); mastambm acionou a cincia humboldtiana, que sempre foi ativadana construo dos Imprios europeus (MacLeod, 2001), para con-feccionar mapas de distribuio dos grupos indgenas do sul doBrasil. Um deles figurando os ndios mortos, que viveram pocada colonizao portuguesa, outro retratando os ndios de carne eosso, que ainda viviam e assaltavam as fazendas de caf.

    Mapas que ele estampou em A Antropologia do Estado de SoPaulo (von Ihering, 1907b) e reproduziu em A Questo dos Indios noBrasil (1911), classificando-os como pertinentes s tarefas admi-nistrativas:

    Organizei mapas indispensveis sobre a distribuio doscampos e matas do Brasil, e sobre a distribuio geogrficados ndios na poca da descoberta e na atualidade. Relati-vamente a este assunto no h porventura pessoa alguma

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    com mais experincia do que eu, mas as questes aqui estu-dadas ultrapassam em parte a minha competncia. Trata-sede assunto de carter administrativo-social, nos quais evi-dentemente as questes divergem. (von Ihering, 1911, p.138).

    Os mapas de von Ihering, no obstante as divergncias ad-ministrativas que suscitariam, serviriam, de todo modo, para loca-lizar os indgenas no espao, aplainando o terreno, assim, para aefetivao de um colonialismo interno. Pois exatamente um pro-jeto de colonizao interna o que von Ihering evoca. Conforme oconceituam vrios ps-colonialistas (Loomba, 1998; Young, 2001;Brydon, 2000; Quayson, 2000), o colonialismo no somente umafora poltica externa que acomete um povo e seu territrio, domi-nando-os e governando-os; ele pode ser tambm fabricado por eli-tes locais, no interior mesmo de uma fronteira nacional, contantoque essa elite, empossada no Estado e em seus aparelhos, desen-cadeie e imagine projetos de colonizao e de conquista dos na-tivos e de espaos geogrficos, valendo-se dos aparatos do exr-cito ou da cincia, e contanto que ela legitime cientificamente,como diz Theo Goldberg, uma hierarquia poltica interna baseadano governo racial (racial rule) (Goldberg, 1999). Nos termos deGramsci, o colonialismo interno pode ser pensado como uma guerrade posies, uma ttica para a dominao de classe, para a com-posio das foras sociais em prol da obteno de uma hegemonia,uma guerra conduzida de forma lenta, contnua, envolvendo ma-nobras diversas e variveis.

    A prpria sntese arqueolgica de von Ihering sobre o Sul doBrasil funciona como uma arma para as guerras de posio, ins-trumento de defesa da hegemonia de uma elite e da propriedadeprivada. Ela estabelece um conhecimento positivo, um saber tc-nico, capaz de ajustar os mecanismos de um governo racial. Podeser lida, ainda, como uma alegoria para o presente de So Paulo edo Brasil republicano se no passado pr-histrico a proximidade

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    com os crculos ondulatrios dos Andes civilizou os ndios, nopresente estes se civilizaro apenas se se aproximarem do patronatode cientistas, que laboram planos de colonizao e fundam, comoo fez von Ihering em 1901, instituies ocupadas com a Etnografiae Civilizao dos ndios (von Ihering, 1911, p.122-123). queles queesto distantes da civilizao, aos que cometem assaltos e nopossuem qualquer interesse etnolgico, cabe-lhes a poltica dafora, a poltica de extermnio, que , afinal de contas, tambm elauma poltica colonial.

    Estudar o pensamento arqueolgico de von Ihering , de al-gum modo, confrontar o nosso prprio pensamento. Pois, com efeito,afirma-se com freqncia que a Arqueologia no se livrou do passa-do colonial, que ele continua rondando como um espectro deHamlet a cabea dos arquelogos e as relaes sociais e polticascontemporneas, neste mundo marcado pelos desequilbrios e guer-ras globais e por hbitos de pensamento ainda aprisionados a este-retipos coloniais (Gosden, 2002). Representaes coloniais ain-da povoam, como afirma o arquelogo sul-africano Martin Hall,as interpretaes contemporneas sobre a cultura material dospases perifricos (Hall, 2000). Conscientes dessas permann-cias hermenuticas, no World Archaeological Congress, realizado emWashington, em junho de 2003, Chris Gosden, Richard Hingley ePedro Paulo Abreu Funari organizaram uma sesso para discutiras relaes entre colonialismo, Arqueologia e formao de identi-dades. Em se tratando de Brasil, pode-se assim dizer que as inter-pretaes arqueolgicas de von Ihering no so um resduo arcai-co, mas sim, para usar a bela expresso de Lynn Meskell (Meskell,1998, p.4), um artefato herdado (inherited artifact). Fazer pesqui-sas arqueolgicas no Brasil, historiogrficas ou de campo, esca-vando textos ou stios, ainda tomar parte numa guerra de posi-es; numa sociedade desigual e em conflito como a nossa, a ques-to escolhermos de qual lado ficaremos.

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    Archeology of Southern Brazil and colonial politics in Hermann von Ihering

    Abstract. This paper aims at analyzing the archaeological studies by of the Hermannvon Ihering as a constitutive element of the colonial policy building.Keywords: Archaeology. Paulista Museum. South of Brazil. Colonial policy.

    Notas

    1 Este texto foi escrito para ser apresentado no IV Encontro do Ncleo Regional daSociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), ocorrido em Cricima (SC), entre 8 e 12de novembro de 2004. As discusses suscitadas durante a apresentao levaram-mea redigi-lo em alguns de seus pontos. Agradeo, pois, aos colegas pelos estimulan-tes questionamentos. Agradeo tambm a Pedro Paulo Abreu Funari e a FranciscoNoelli pelas crticas verso original; devo agradecer, ainda, a professora MargaretLopes, pelas conversas que tivemos sobre von Ihering, sem as quais seria muitomais difcil compreender os textos do Diretor do Museu Paulista. Por fim, meusagradecimentos FAPESP, que apia minhas pesquisas desde o Mestrado. A res-ponsabilidade pelas idias minha. O texto dedicado a Silvana e a Andr, amigosde todas as horas.

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    Recebido em 03/12/2004.Aprovado em 22/06/2005.