Festival Thiaroye 44 - Senegal
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O Festival Thiaroye 44, no Senegal: reconstruções da memória
Introdução: Patrícia dos Santos Pinheiro
Termo de referência: Comissão de organização do Festival Thiaroye 441
Algo pouco abordado na história das grandes guerras mundiais foi a participação de africanos
nesses conflitos, com destaque para os combatentes recrutados na antiga África Ocidental Francesa
(AOF). Diante desse “esquecimento”, atualmente ainda é reivindicada a memória e o
reconhecimento da contribuição dos chamados Tirailleurs Sénégalais, os Fuzileiros Senegalenses,
genericamente associados a esses país por serem agrupados nesse local, apesar de serem oriundos
de diversos países.
Esses soldados atuaram entre 1857 e 1960 nos conflitos que envolviam a França tanto na
Europa quanto no Oriente. Com recrutamentos que não eram necessariamente voluntários, somente
entre 1914 e 1918, o grupo era composto de 161.250 combatentes negros, segundo o Ministério da
Defesa francês . Já na Segunda Guerra, até 1º de abril de 1940 foram recrutados mais de 179.000
soldados africanos pela França.
Contando com apoio intelectual, as narrativas oficiais sobre esses conflitos mundiais foram
cristalizadas ao longo do tempo em afirmações consideradas inquestionáveis e que tendem a ignorar
participações dessas populações colonizadas e não problematizam a forma como foi conduzido o
processo pelos Aliados. Das grandes guerras, ficou uma narrativa idealizada, em que eles foram as
vítimas, os bons, os heróis, versus o Eixo do Mal, os vilões.
Nessa imagem, não há espaço para o incidente conhecido como Thiaroye 44. Thiaroye é onde
se localiza um campo militar, no Senegal, onde foram enviados cerca de 1300 soldados africanos
em 1944, após terem lutado na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados, muitos
ex-prisioneiros de guerra. Esses soldados se negaram a retornar a seus países sem antes receber seus
prometidos soldos e prêmios de guerra. Como não tiveram suas demandas atendidas, acabaram se
insurgindo e fazendo um oficial francês de refém, libertado em seguida na negociação, com a
promessa de pagamento dos soldados. Mas, no lugar do pagamento, os soldados, provavelmente
desarmados, receberam da França o fuzilamento, graves agressões e a condenação dos
sobreviventes à prisão por desobediência. O número oficial de mortos seria de 35, mas as
testemunhas que sobreviveram ao episódio argumentam que foram muitos mais, enterrados em
valas comuns para esconder o número oficial. Além disso, o Exército francês inicialmente fez fortes
difamações dos Fuzileiros, com argumentos já refutados por historiadores contemporâneos.
Com um olhar crítico, o Festival Thiaroye 44 procura trazer esse episódio para o debate. O
evento é organizado por um grupo composto por intelectuais, professores e outras pessoas que
acompanharam o final da Segunda Guerra, todos moradores do bairro popular de Thiaroye e das
proximidades, no Senegal, que sentem até hoje a força da injustiça de ter negada parte de sua
história. E aí se encontra uma das potências do Festival: é possível dar voz àqueles que viveram ou
ouviram outra história que não a oficial. Um exemplo é a participação, nesse grupo, do responsável
pelo cemitério onde estão enterradas as vítimas do conflito: segundo seu relato, no cemitério é
possível encontrar túmulos de mais de 150 pessoas em função do conflito, fora a .
Em sua terceira edição, o Festival traz o debate sobre a necessidade de reparação histórica e a
disponibilização dos arquivos militares franceses sobre o caso, o que seria remexer em feridas que
nunca foram curadas. Os presidentes franceses, quando questionados sobre o assunto, reagem de
maneira muito questionável, como Nicolas Sarkozy, que disse que “o problema com a Africa é que
ela vive na nostalgia de um paraíso perdido na infância” . Outros, com mais diplomacia, como
François Hollande, prometem liberar os arquivos, mas até o momento nada foi feito. O fato é que o
número de mortos é incerto e a reparação histórica uma urgência.
Segue abaixo o documento escrito pelos organizadores da terceira edição do Festival, que
ocorrerá nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2014, em Thiaroye e outras localidades de
Dakar, com a sua visão sobre a sua história. O intuito, com isso, é mostrar a atualidade de uma
perspectiva crítica sobre a história oficial e a importância de grupos locais assumirem o
protagonismo sobre as suas trajetórias.
Thiaroye 44, 70 anos depois – Termo de referência
Na Segunda Guerra Mundial, os soldados africanos foram novamente recrutados pela França,
a metrópole, na luta contra a Alemanha nazista. Esses são os "Fuzileiros Senegaleses", o nome
genérico, que desde 1857, é usado para designar os combatentes oriundos das colônias francesas na
África (da AOF, ou seja, do Daomé - atual Benin -, Togo, Costa do Marfim , Alta Volta - atual
Burkina Faso -, Senegal, Sudão Francês, Guiné Conakry, da AEF, ou seja, do Chade, Oubangui
Chari - atual República Centroafricana -, Congo, Gabão).
Esses soldados, mobilizados desde 1938, destacaram-se em diferentes cenários de guerra,
primeiro em maio-junho 1940, diante dos tanques alemães antes da grande derrota francesa, em
seguida nas batalhas do deserto na África, no interior das Forças Francesas Livres, do general
Leclerc, que liberaram completamente a África do Norte. Finalmente, nas vitórias dos Aliados, eles
contribuíram significativamente na ocupação da Itália, nos grandes desembarques da Normandia,
em 06 de junho de 1944, e de Provence, em 15 de agosto do mesmo ano. Alguns, menos
afortunados, foram baleados ou capturados nos Frontstalags2, onde permaneceram até o final do
conflito.
A maioria desses soldados, especialmente os sobreviventes dos campos de concentração
nazistas, foram enviados para a sede da AOF, em Dakar (Senegal), não sem exigir duas vezes
seguidas, em Paris e em Casablanca, receber seu pecúlio de guerra. Em novembro de 1944, 1.280
deles foram reunidos em um campo de trânsito a cerca de 15 quilômetros de Dakar. Recusando-se à
embarcar em um trem para Bamako, eles se rebelaram e tomaram como refém o general Dagnan,
que foi liberado diante de uma promessa de pagamento dos seus soldos.
Da intervenção enérgica do exército francês e a sangrenta batalha que se seguiu, foram
contadas 35 mortes e feridos graves, outros soldados foram julgados e presos.
São esses combatentes africanos traídos e posteriormente esquecidos, que um Comitê de
personalidades senegalesas, da localidade de Thiaroye e arredores, deseja homenagear através de
um Festival anual. Essa 3ª edição do Festival se justifica amplamente pelo fato de que esse episódio
doloroso da história colonial ainda não é de amplo conhecimento dos senegaleses, dos africanos da
diáspora e dos homens e mulheres apreciadores da paz e da justiça.
Em acréscimo, desde o fim desse conflito, na metrópole e nas capitais das antigas colônias da
África Francesa, é celebrada a memória de alguns acontecimentos relevantes: as assinaturas do
armistício de Rethondes, de 11 de novembro de 1918, e do armistício de 08 de maio de 1945, e
igualmente os desembarques na Normandia e em Provence, destacando-se não somente o sangue
derramado de soldados de diferentes nacionalidades (canadenses, franceses, americanos, ingleses,
russos etc.) mas, sobretudo, a comunhão das pessoas que ajudaram a acabar com os abusos do
nacional-socialismo de Hitler.
Cada vez mais, pesquisadores e historiadores franceses efetuam detalhadas investigações
sobre o cotidiano e a história dos Fuzileiros, para permitir reconstruir mais claramente a trama
desses eventos. Pesquisadores como Armelle Mabon e Julien Fargettas3 lembraram recentemente ao
Presidente francês, François Hollande sua promessa feita em sua última visita ao Senegal, de
disponibilizar todos os arquivos relativos à esse trágico acontecimento; eles propuseram a criação
de um Comitê de Historiadores franco-africanos para trabalhar nesse tema. Em 1998, nossos
compatriotas Ousmane Sembene e Thierno Faty Sow, através de uma realização magnífica, Camp
de Thiaroye, realizaram uma vibrante homenagem, antes ainda do filme de Rachid Bouchareb,
L'ami y'a bon (2005).
As manifestações que o Comitê de Organização procurou organizar no quadro desse Festival
terão sobretudo uma marca popular, mas serão também momentos de reflexão sobre o sentido
desses episódios, para dizer não à injustiça e abrir novas perspectivas para construir um mundo de
paz e de conciliação.
1 O texto tem duas partes: a primeira é uma introdução ao tema e a segunda é o termo de referência doFestival, elaborado pela sua Comissão de Organização, composta por: Alpha Yaya Diallo, Abou Sow,Babacar Diop, Bakary Dabo, Salimata Soumare, Moussa Diouf e M. Bassel. Tradução do Termo dereferência: Patrícia dos Santos Pinheiro.2 Eram campos de prisioneiros do Exército alemão situados principalmente na França, na zona ocupada nasegunda Gerra Mundial, usados por medo de doenças tropicais ou de afetar à “pureza do sangue ariano”.3 Armelle Mabon é professora pesquisadora da Universidade da Bretanha do Sul, membro do Centro depesquisas históricas do Ocidente (Cerhio, UMR CNRS 6258). É autora do documentário Esquecidos eTraídos: os prisioneiros de guerra coloniais e norte africanos (Grenade Produções, 2003). Julien Fargettas édoutor em História, dedicou sua tese aos Fuzileiros Senegaleses da Segunda Guerra Mundial (Instituto deEstudos Políticos de Aix-en-Provence /Universidade de Provence).