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FICHA TÉCNICA Título original: The Paris Architect Autor: Charles Belfoure Copyright © 2013 by Charles Belfoure Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Vasco Gato Imagem da capa: Arcangel Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição: Miguel Trindade Impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 397 808/15 1.ª edição, Lisboa, outubro, 2015 EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

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FICHA TÉCNICA

Título original: The Paris ArchitectAutor: Charles BelfoureCopyright © 2013 by Charles Belfoure Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Vasco GatoImagem da capa: ArcangelCapa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição: Miguel TrindadeImpressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.º 397 808/151.ª edição, Lisboa, outubro, 2015

EDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

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CAPÍTULO UM

No momento em que Lucien Bernard dobrava a esquina da Rue la Boétie, um homem que vinha a correr em sentido contrá-rio quase chocou contra ele. Aproximou-se de tal forma que, ao cruzarem-se, Lucien conseguiu sentir o cheiro do seu perfume.

No exato segundo em que se apercebeu de que ele próprio e o homem usavam a mesma fragrância, L’Eau d’Aunay, Lucien ouviu um forte estampido. Virou-se. A meros dois metros de distância, o homem jazia de barriga para baixo no passeio, com o sangue a escorrer-lhe na nuca da cabeça calva, como se den-tro do seu crânio alguém tivesse aberto uma torneira. O escuro líquido carmim ia fluindo velozmente pelo pescoço abaixo, atingindo o colarinho branco engomado e passando para a camisa azul-marinho de fino corte, alterando a sua cor para um roxo-vivo.

Tinham sido vários os homicídios em Paris nos dois anos após o início da ocupação alemã em 1940, mas até ao momento Lucien nunca vira realmente um corpo morto. Ficou estranhamente hipnotizado, não pelo corpo morto, mas por essa nova cor que o sangue fizera surgir na camisa. Na escola, numa aula de expressão artística, tivera de pintar exercícios enfadonhos com círculos cro-máticos. Diante de si estava agora a prova bizarra de que o azul e o vermelho misturados davam de facto roxo.

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— Quieto!Um oficial alemão com uma Luger azul-metalizada apareceu a

correr ao seu lado, seguido de dois soldados altos com metralhado-ras, as quais apontaram de imediato a Lucien.

— Não te mexas, canalha, ou vais dormir para junto do teu amigo — disse o oficial.

Lucien não conseguiria mexer-se mesmo que quisesse; estava transido de medo.

O oficial aproximou-se do corpo, depois virou-se e veio calma-mente até junto de Lucien como se lhe fosse pedir um isqueiro. Com cerca de trinta anos, o tipo tinha um nariz fino e aquilino e olhos castanhos escuríssimos e nada arianos, que fitavam agora profundamente os olhos azul-acinzentados de Lucien. Este estava enervado. Pouco depois de os alemães terem assumido o controlo da cidade, vários panfletos tinham sido escritos por franceses sobre como lidar com os ocupantes. Manter a dignidade e a dis-tância, não falar com eles e, sobretudo, evitar o contacto visual. No mundo animal, o contacto visual direto constituía um desafio e uma forma de agressão. Porém, Lucien não conseguiu evitar quebrar essa regra tendo os olhos do alemão a meros dez centí-metros dos seus.

— Ele não é meu amigo — disse Lucien em voz baixa.O rosto do alemão desfez-se num sorriso rasgado.— Este judeu já não é amigo de ninguém — disse o oficial,

cujo uniforme indicava tratar-se de um major das Waffen-SS. Os dois soldados riram-se.

Embora assustado ao ponto de achar que se mijara, Lucien percebeu que teria de agir rapidamente ou poderia ser o próximo a acabar morto no chão. A custo, Lucien conseguiu fazer uma ins-piração superficial para se fortalecer e para pensar. Um dos aspetos mais estranhos da Ocupação era o modo agradável e educado como os alemães tratavam os seus súbditos franceses derrotados. Até cediam o seu lugar no metro aos mais velhos.

Lucien experimentou a mesma estratégia.— A bala que está ali alojada no crânio daquele cavalheiro é

sua? — perguntou.

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— É, pois. Um único tiro — disse o major. — Embora não seja assim tão impressionante. Os judeus não são lá muito atléticos. São tão lentos a correr que nunca é um grande desafio.

O major pôs-se a vasculhar os bolsos do homem, retirando papéis e uma bela carteira de crocodilo, que colocou no bolso late-ral da sua túnica preta e verde. Lançou um sorriso irónico a Lucien.

— Mas muito obrigado por admirar a minha pontaria.Uma onda de alívio inundou Lucien: hoje não era o dia em que

iria morrer.— Não tem de quê, major.O oficial ficou parado. — Pode seguir caminho, mas sugiro

que vá primeiro à casa de banho dos homens — disse numa voz solícita, apontando com a luva cinzenta para o ombro direito do fato cinzento de Lucien.

— Salpiquei-o, infelizmente. As costas do seu fato, que acho impecável, estão cheias desta porcaria. Quem é o seu alfaiate?

Esticando o pescoço para a direita, Lucien vislumbrou pontos vermelhos no ombro. O oficial puxou de uma caneta e de um pequeno caderno castanho.

— Monsieur. O seu alfaiate?— Millet. Na Rue de Mogador. — Lucien sempre ouvira dizer

que os alemães eram meticulosos a registar coisas.O alemão anotou cuidadosamente a informação e guardou o

caderno na algibeira das calças.— Muito obrigado. Não há ninguém no mundo que supere a

mestria dos alfaiates franceses, nem mesmo os britânicos. Sabe, os franceses bateram-nos em todas as artes, infelizmente. Até mesmo nós, os alemães, aceitamos que a cultura gaulesa é largamente superior à teutónica, em tudo exceto na guerra, quero eu dizer. — O alemão riu-se da sua própria observação, tal como os dois soldados.

Lucien acompanhou-os e riu-se também ele com vontade.Quando as gargalhadas esmoreceram, o major bateu uma brusca

continência a Lucien. — Não lhe tomarei mais tempo, monsieur.Lucien assentiu e afastou-se. Já longe do alcance do ouvido,

murmurou entredentes «alemão de merda» e prosseguiu a um

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ritmo quase descontraído. Correr pelas ruas de Paris tornara-se um impulso suicida, tal como descobrira o desgraçado que jazia de barriga para baixo na rua. Lucien apercebeu-se de que, embora ver um homem a ser assassinado o tivesse assustado, não estava propriamente transtornado com a morte do homem. A única coisa que interessava era que ele próprio não morrera. Incomodava-o sentir tão pouca compaixão pelo seu igual.

Mas não era de admirar: ele crescera numa família em que a compaixão não existia.

O seu pai, um geólogo de formação universitária com um certo reconhecimento, tinha a mesma visão da vida do «salve-se quem puder» que o campónio mais ignorante. No que respeitava ao infor-túnio alheio, a sua filosofia era temos pena, antes ele do que eu. O falecido professor Jean-Baptiste Bernard não parecia ter noção de que os seres humanos, incluindo a sua mulher e os seus filhos, tinham sentimentos. O seu amor e o seu afeto tinham-se cumulado sobre objetos inanimados — as rochas e os minerais de França e das suas colónias — e ele exigia que os seus dois filhos os amassem também. Antes de a maioria das crianças saber ler, já Lucien e o seu irmão mais velho, Mathieu, tinham aprendido os nomes de cada rocha sedimentar, ígnea e metamórfica de todas as nove províncias geológicas de França.

O pai testava-os à hora do jantar, dispondo rochas sobre a mesa para que eles as nomeassem. Era implacável se cometessem um erro que fosse, como da vez em que Lucien não soube identificar a bertrandita, pertencente à família dos silicatos, e o seu pai lhe orde-nou que pusesse a rocha na boca para que nunca mais a esquecesse. Até hoje, ele recordava-se do sabor amargo da bertrandita.

Ele odiara o pai, embora se interrogasse agora se não seria mais parecido com o pai do que desejaria admitir.

À medida que ia avançando no calor flagrante da tarde de julho, Lucien espiava os prédios revestidos de calcário (uma rocha sedi-mentar da família dos carbonatos de cálcio), com as suas belas e rústicas partes inferiores, as janelas altas debruadas a acabamentos de alvenaria e as varandas com motivos minuciosos de ferro forjado apoiados em consolas de pedra trabalhada. Algumas das enormes portas duplas dos blocos de apartamentos estavam abertas, e ele

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via crianças a brincarem nos pátios interiores, tal como fizera em pequeno. Passou por uma janela ao nível da rua da qual um gato preto e branco lhe lançou um olhar sonolento.

Lucien adorava todos os prédios de Paris — cidade do seu nasci-mento, a cidade mais bonita que havia. Na sua juventude, vagueara por Paris inteira, explorando os seus monumentos, as suas avenidas grandiosas, bem como as suas ruas e becos mais sujos dos bairros mais pobres. Era capaz de ler a história da cidade nas paredes desses prédios. Se a pontaria do cabrão daquele boche tivesse sido ao lado, nunca mais veria estes prédios maravilhosos, nunca mais percorreria estas ruas empedradas, nem inspiraria o aroma delicioso do pão a cozer nas padarias.

Mais abaixo na Rue la Boétie, viu os lojistas afastados das vidra-ças das montras: suficientemente longe para evitarem ser detetados da rua, embora suficientemente perto para terem visto o tiroteio. Um homem gordíssimo fez-lhe sinal da entrada do Café d’Été. Ao chegar à porta, o homem, que parecia ser o proprietário, passou-lhe uma toalha de bar húmida.

— A casa de banho fica nas traseiras — disse.Lucien agradeceu-lhe e dirigiu-se aos fundos do café. Era

um café tipicamente parisiense, escuro e estreito, com um chão de mosaicos pretos e brancos e mesinhas ao longo de uma das paredes, e do lado de lá um bar pauperrimamente abastecido. A Ocupação fizera o impensável em Paris: cortara os bens essen-ciais mais básicos para um francês — cigarros e vinho. Porém, o café era uma parte de tal forma arraigada da sua existência que ele continuava a ir lá diariamente para fumar cigarros falsos, feitos de erva e ervas aromáticas, e para beber aquela zurrapa diluída que passava por vinho. Os clientes do Café d’Été, que teriam visto o que sucedera, pararam de falar e puseram-se a olhar para os copos à passagem de Lucien, comportando-se como se ele tivesse sido contaminado pelo seu contacto com os alemães. Isto fê-lo lembrar-se da vez em que estava num café quando cinco praças alemães entraram aos tropeções. O sítio caiu num silêncio completo, como se alguém tivesse desligado um botão de rádio. Os soldados saíram imediatamente.

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Na casa de banho imunda, Lucien despiu o casaco do fato para dar início às limpezas. Umas quantas gotas de sangue do tamanho de ervilhas pontuavam as costas do casaco, e havia uma na manga. Ele molhou a toalha em água fria e tentou remover o sangue do judeu, mas restaram umas manchas sumidas. Lucien ficou irritado: só tinha um bom fato completo. Sendo um homem alto e bem--parecido, com uma farta cabeleira castanha e ondulada, tinha muito cuidado com as suas roupas. Celeste, a sua mulher, era no entanto hábil em questões práticas. Talvez conseguisse tirar as manchas de sangue do casaco. Ele recuou e olhou-se no espelho por cima do lavatório para se certificar de que não tinha sangue na cara nem no cabelo, olhando então de repente para o relógio e apercebendo-se de que a sua reunião era daí por dez minutos. Voltou a vestir o casaco e atirou a toalha suja para o lavatório.

Já na rua, não resistiu a olhar para trás, para a esquina em que tivera lugar o tiroteio. Os alemães e o corpo tinham desaparecido; apenas uma grande poça de sangue assinalava o local do tiroteio. Os alemães eram pessoas de uma eficiência terrível. Os franceses teriam ficado à volta do cadáver, à conversa e a fumar cigarros. A rigidez cadavérica ter-se-ia instalado por completo quando o levassem. Lucien quase desatou a correr, mas abrandou o passo para uma caminhada viva. Embora detestasse chegar atrasado, não estava para levar com um tiro na nuca por causa da sua obsessão com a pontualidade. O Monsieur Manet haveria de compreender. Ainda assim, esta reunião encerrava a possibilidade de um trabalho, e Lucien não pretendia causar uma má primeira impressão.

Lucien cedo aprendera na sua carreira que a arquitetura era tanto um negócio quanto uma arte, e que não se deveria encarar um primeiro trabalho vindo de um novo cliente como um acordo único mas como a primeira de uma série de encomendas. E esta era promissora. O homem com quem se iria encontrar, Auguste Manet, era dono de uma fábrica que, até à guerra, fazia motores para a Citroën e outros fabricantes automóveis. Antes de uma reunião inicial com um cliente, Lucien investigava sempre o seu historial para ver se ele tinha dinheiro, e o Monsieur Manet tinha decididamente dinheiro. Dinheiro que já vinha de trás, de uma

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distinta família com várias gerações. Manet experimentara a indústria, algo que era visto com maus olhos pela sua classe social. A riqueza oriunda dos negócios era considerada suja, pouco digna. Porém, ele multiplicara a fortuna da família por cem, ao tirar partido da febre dos automóveis, especializando-se em motores.

Manet encontrava-se em excelente posição para conseguir contratos alemães durante a Ocupação. Antes mesmo da invasão alemã em maio de 1940, tivera início um êxodo em massa, com milhões de pessoas a fugirem do Norte do país para o Sul, onde se julgavam a salvo. Muitos industriais tinham tentado sem sucesso deslocar as suas fábricas inteiras, incluindo os trabalhadores, para sul. Contudo, Manet mantivera a calma no meio do pânico e não se mexera, ficando com todas as suas fábricas intactas.

Normalmente, a economia de um país derrotado parava por completo, mas a Alemanha estava empenhada na guerra. Precisava de armas para combater os russos na Frente Oriental, tendo sido concedidos contratos a empresas francesas capacitadas para a pro-dução de material de guerra. Ao início, os empresários franceses tinham visto na cooperação com a Alemanha uma traição, mas perante a escolha entre ver os seus negócios a serem apropriados pelos alemães sem lugar a indemnização ou aceitar os contratos, o pragmático francês optara pela última hipótese. Lucien estava apostado em que Manet fosse um homem pragmático e que fosse produzir armas para a Luftwaffe e para a Wehrmacht. Tal implica-ria um novo espaço fabril, que Lucien poderia desenhar-lhe.

Antes da guerra, sempre que Lucien ia a caminho de se reunir com um cliente pela primeira vez, na sua imaginação fervilhavam visões de sucesso — sobretudo quando sabia que o cliente era rico. Agora, tentava refrear a imaginação, dizendo a si mesmo para ser pessimista. Hoje em dia, sempre que se enchia de esperança, esta acabava feita em fanicos. Como em 1938, quando estava prestes a começar uma loja na Rue de la Tour-d’Auvergne e o cliente foi à falência por causa de um divórcio. Ou aquela grande quinta em Orleães cujo proprietário foi preso por desvio de fundos. Ele dizia a si mesmo para agradecer qualquer migalha de trabalho que pudesse arranjar em tempo de guerra.

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Tendo já quase esquecido o incidente com o judeu, a cabeça de Lucien pôs-se a formular um desenho genérico de uma fábrica que fosse bastante apropriada para qualquer tipo de produção bélica. Ao virar para a Avenue Marceau, sorriu como sempre fazia ao pensar num novo projeto.

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CAPÍTULO DOIS

Lucien consultou o relógio ao abrir a porta maciça de madeira do número 28 da Rue Galilée. Chegar um minuto mais cedo ao seu encontro era um enorme motivo de satisfação. Quem mais conse-guiria atravessar daquela forma a cidade, quase ser abatido por um alemão, limpar do casaco o sangue de um homem morto e aparecer a horas? A experiência viera reforçar a sua crença de que devemos sempre guardar uns quinze minutos adicionais para chegar a uma reunião com um cliente. O seu estimado relógio Cartier, oferecido pelos seus pais quando se licenciou, indicava as duas da tarde, que era aliás a hora alemã. O primeiro ato oficial dos alemães tinha sido impor o fuso horário do Reich na França ocupada. Na verdade, era uma da tarde na hora francesa. Após dois anos de ocupação, a mudança forçada da hora ainda irritava Lucien, muito mais do que as suásticas e as horríveis tabuletas em letras góticas que os alemães tinham afixado em todos os pontos de referência da cidade.

Ao entrar, sentiu-se aliviado por se achar na sombra escura e fresca do átrio de entrada. Lucien adorava estes prédios, criados pelo barão Haussmann quando na década de 1850 arrasou a Paris medieval para reformular a cidade. Lucien admirava a cantaria e as fortes linhas horizontais criadas pelas fileiras de janelas e suas varandas metálicas. Ele vivia num prédio na Rue du Caire que era parecido com este.

De 1931 para cá, Lucien abandonara todas as referências históri-cas e clássicas no seu trabalho para se tornar um arquiteto puramente

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modernista, adotando a estética da Bauhaus, o estilo criado pelo arquiteto alemão Walter Gropius, que desbravou o caminho da arquitetura e do design modernos (o único exemplo em que o gosto teutónico triunfava definitivamente sobre o gaulês). Ainda assim, Lucien admirava estes prédios imponentes que Napoleão III apoiara. A sua admiração aprofundara-se ao visitar o seu irmão em Nova Iorque antes da guerra. Os prédios de lá eram lixo quando comparados com os de Paris.

Lucien foi até ao apartamento da porteira, situado diretamente à esquerda da entrada. A porta de vidro abriu com um bocejo e sentada a uma mesa coberta com uma toalha berrante às flores amarelas estava uma velhota a fumar um cigarro. Lucien aclarou a garganta, e ela disse, sem mexer um músculo e sempre a olhar para o infinito: — É o 3B... e o elevador está avariado.

Enquanto Lucien subia as escadas curvas e ornamentadas até ao terceiro piso, o seu coração desatou aos pulos, não apenas por estar fora de forma, mas também por estar tão ansioso. Teria Manet um projeto a sério para si ou esta reunião não iria dar em nada? E, caso fosse um projeto, seria uma oportunidade para demonstrar o seu talento?

Lucien sabia que tinha talento. Isso mesmo lhe tinha sido dito por uns quantos arquitetos conhecidos, com os quais trabalhara em Paris após concluir a faculdade. Com poucos anos de experiência e acreditando nas suas capacidades, passou então a trabalhar por conta própria. Era difícil montar um ateliê, duplamente difícil por ser modernista e a arquitetura moderna estar a começar a ser aceite. A maior parte dos clientes ainda pretendia algo tradicional. Apesar disso, conseguia retirar um rendimento constante. Mas, da mesma forma que um ator precisa de um papel decisivo para se tornar uma estrela, um arquiteto precisa de um projeto que lance uma carreira. E Lucien, já com trinta e cinco anos, ainda não conseguira esse projeto de suma importância. Estivera perto disso apenas uma vez, quando foi finalista no concurso para uma nova biblioteca pública, tendo sido batido por Henri Devereaux, cujo cunhado do tio era vice-ministro da Cultura. Não bastava ter capacidade; era preciso ter os contactos certos como Devereaux parecia sempre ter — isso e sorte.

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Lucien olhou para os sapatos que riscavam o piso de mármore da esplêndida escadaria. Eram os seus sapatos para clientes, o único par bom que ele usava em reuniões. Um pouco desgasta-dos, embora conservassem ainda um aspeto reluzente e elegante e as solas estivessem em bom estado. Dada a escassez do couro, assim que os sapatos franceses se gastavam ele recorria a solas de madeira ou de papel prensado, que no inverno não se saíam tão bem. Lucien estava contente por ainda ter um par de sapatos com sola de couro. Odiava o som das solas de madeira a estrepi-tar pelas ruas de Paris e que lhe lembravam os tamancos usados pelos camponeses.

Lucien teve um sobressalto ao erguer os olhos e deparar-se com um par de sapatos castanho-escuros caríssimos no patamar do terceiro piso, mesmo à frente da sua cara. O olhar de Lucien foi trepando as pernas daquelas calças acentuadamente vincadas até ao casaco de um fato e depois até ao rosto de Auguste Manet.

— Monsieur Bernard, prazer em conhecê-lo.Antes que Lucien chegasse ao degrau cimeiro, Manet estendeu-

-lhe a mão.Lucien guindou-se pelo corrimão até se encontrar junto de

um homem magro de cabelo branco dos seus setenta anos, com maçãs do rosto que pareciam ter sido esculpidas na pedra. E alto. Manet destacava-se em relação a Lucien. Parecia ser mais alto do que De Gaulle até.

— O prazer é todo meu, monsieur.— O Monsieur Gaston passava a vida a incensar o prédio de

escritórios que lhe fez, de maneira que tive de ir ver com os meus próprios olhos. Uma bela obra. — O aperto de mão do velhote era forte e confiante, o que seria de esperar num homem que ga- nhava milhões.

Tinha sido um excelente início, pensou Lucien, que simpatizou de imediato com aquele empresário idoso e aristocrata. Em 1937, fizera um prédio na Rue Servan para Charles Gaston, o proprietá-rio de uma companhia de seguros. Quatro pisos de calcário com uma torre de escadas curva e envidraçada. Lucien achava que era a melhor coisa que ele já desenhara.

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— O Monsieur Gaston teve a extrema amabilidade de lhe indicar a minha pessoa. Em que posso ser-lhe útil? — A maior parte das vezes, Lucien estava disposto a ter a habitual conversa de circunstância antes de ir ao assunto. No entanto, estava nervoso e queria ver se daqui resultaria um trabalho propriamente dito.

Manet virou-se para as portas abertas do 3B e Lucien foi atrás. Até as costas do Monsieur Manet eram impressionantes. Tinha uma postura direita como um pau, e o fato, dispendioso, assentava-lhe na perfeição: o major alemão haveria de querer o nome do seu alfaiate.

— Ora bem, Monsieur Bernard, deixe-me dizer-lhe qual é a minha ideia. Tenho um hóspede que vai passar aqui uma tempo-rada, e gostaria de fazer algumas modificações especiais ao aparta-mento para o receber — disse Manet enquanto percorriam devagar o local.

Lucien não conseguia imaginar o que pretenderia o velhote. O apartamento vazio era lindíssimo, com tetos elevados e janelas altas, lambrins de madeira trabalhados, colunas enormes a emol-durar as amplas entradas para as divisões principais, belas lareiras rodeadas de mármore e soalhos de parqué. Para além de que todas as casas de banho e a cozinha pareciam estar atualizadas, com lava-tórios esmaltados e banheiras com acessórios cromados. O imóvel era grande para a norma parisiense, tendo pelo menos o dobro da área de um apartamento normal.

Manet parou e encarou Lucien.— Disseram-me que um arquiteto olha para um espaço de

uma forma diferente da nossa. Uma pessoa normal vê uma divisão tal como ela é, mas o arquiteto vislumbra instintivamente como poderia ser melhorada. Será verdade?

— Absolutamente — respondeu Lucien com orgulho. — Qual-quer pessoa consideraria um apartamento degradado e antiquado como muito pouco apelativo, ao passo que um arquiteto, na sua imaginação, remodelaria o espaço de maneira a conferir-lhe elegân-cia. — Lucien estava a ficar entusiasmado. Talvez o velhote quisesse que ele refizesse aquele sítio de alto a baixo.

— Estou a ver. Diga-me, monsieur, gosta de desafios? De resolver problemas excecionais?

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— Claro que sim, adoro encontrar soluções para qualquer problema arquitetónico — disse Lucien — e, quanto maior for o desafio, melhor. — Tinha a esperança de estar a dizer a Manet o que este pretendia ouvir. Se Manet lhe pedisse para enfiar o Arco do Triunfo aqui dentro, ele dir-lhe-ia que não havia problema. Não se recusa trabalho em tempo de guerra. Qualquer idiota sabe isso.

— Ótimo. — Manet atravessou o salão e pousou a mão no ombro de Lucien de um modo paternal. — Julgo que está na altura de lhe falar um pouco mais deste projeto, mas discutamos primeiro os seus honorários. Trago um número na cabeça: doze mil francos.

— Dois mil francos é deveras generoso, monsieur.— Não, eu disse doze mil.Silêncio. Os algarismos foram ganhando forma no pensamento

de Lucien como se um professor estivesse metodicamente a escrevê--los num quadro: primeiro um um, depois um dois, um espaço, e três zeros. Após verificar mentalmente o número, Lucien disse: — Monsieur, isso... isso é mais do que generoso, isso é absurdo!

— Não se a sua vida depender disso.Lucien achou que se trataria de um comentário divertido que

o obrigou a soltar a sua grande gargalhada de barriga, a mesma que irritava a sua mulher mas que sempre encantava a sua amante. Manet, todavia, não se riu. O seu rosto não deixava transparecer a mais pequena emoção.

— Antes de lhe fornecer mais informações acerca do projeto, deixe-me fazer-lhe uma pergunta pessoal — disse Manet.

— Tem toda a minha atenção, Monsieur Manet.— Qual é a sua opinião em relação aos judeus?Lucien ficou surpreendido. Mas que raio de pergunta era aquela?

No entanto, antes de dar a Manet a sua resposta visceral — que eram uns ladrões obcecados pelo dinheiro —, respirou fundo. Não queria dizer nada que ofendesse Manet — e perder o trabalho.

— Julgo que são seres humanos como qualquer outra pessoa — retorquiu frouxamente.

Lucien crescera num lar bastante antissemítico. A palavra judeu sempre tinha sido precedida de cabrão. O seu avô e o seu

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pai tinham-se convencido de que o capitão Alfred Dreyfus, um oficial judeu que pertencia ao estado-maior do quartel-general do exército francês na década de 1890, era um traidor, apesar das provas de que tinha sido um camarada chamado Esterhazy a vender segredos aos alemães. O avô de Lucien sempre jurara que os judeus tinham sido responsáveis pela humilhante derrota imposta à França pelos alemães na Guerra Franco-Prussiana de 1870, embora nunca tivesse conseguido fornecer provas reais que suportassem a sua acusação. Quer os odiássemos por traição à pátria, por terem matado Cristo ou por nos lixarem num negócio, os restantes franceses eram de alguma forma todos antissemitas, certo?, pensou Lucien. Assim tinha sido sempre.

Lucien fixou os olhos de Manet e deu graças por ter reservado para si os seus verdadeiros sentimentos.

Viu um fervor que o assustou.— É provável que tenha reparado que de maio para cá todos

os judeus com mais de seis anos passaram a ter de envergar uma estrela de David amarela — disse Manet.

— Reparei, monsieur.Lucien tinha plena consciência de que os judeus tinham de

envergar uma estrela de feltro. Não lhe parecia nada de mais, embora muitos parisienses estivessem indignados. Havia gentios que tinham começado a envergar estrelas amarelas ou flores ou lenços amarelos como forma de protesto. Ele até ouvira falar de uma mulher que prendera uma estrela amarela ao cão.

— No dia 16 de julho — disse Manet —, quase trinta mil judeus foram arrebanhados em Paris e enviados para Drancy, dos quais nove mil eram mulheres e crianças.

Lucien estava a par de Drancy. Tratava-se de um quarteirão inacabado de prédios de habitação perto do Aeroporto Le Bourget no qual trabalhara um seu amigo arquiteto, Maurice Pappon. Um ano antes, tornara-se o principal campo de detenção da região de Paris, embora não estivesse servido de água, eletricidade ou esgotos. Pappon dissera-lhe que os prisioneiros de Drancy eram obrigados a embarcar em comboios para serem transferidos algu-res para leste.

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— Houve cem pessoas que se mataram em vez de serem levadas. Houve mães com bebés nos braços a saltar de janelas. Sabia disso, monsieur?

Lucien reparou na agitação crescente de Manet. Havia que redirecionar a conversa do homem para o projeto e para os doze mil francos.

— É uma tragédia, monsieur. Mas estava a pensar em que tipo de modificações?

Manet, contudo, prosseguiu como se não tivesse ouvido uma palavra.

— Já bastava as lojas dos judeus terem sido confiscadas e as contas bancárias congeladas, mas entretanto foram banidos de restaurantes, cafés, teatros, cinemas e parques. Não são apenas os judeus imigrantes, mas também os judeus de ascendência fran-cesa, cujos antepassados combateram por França, que estão a ser tratados desta forma. E o pior — prosseguiu — é que Vichy e a polícia francesa são quem está a realizar a maior parte das deten-ções, e não os alemães.

Lucien tinha consciência disso. Os alemães usavam os franceses contra os franceses. Quando batiam à porta de um francês a meio da noite, costumava ser um gendarme enviado pela Gestapo.

— Os parisienses têm sofrido todos sob a alçada dos alemães, monsieur — começou por dizer Lucien. — Até há gentios a serem presos todos os dias. Olhe, quando vinha ter consigo, um... — Parou a meio da frase ao lembrar-se de que o homem morto era judeu. Lucien viu que Manet estava a olhá-lo fixamente, o que o deixou desconfortável. Lucien baixou os olhos para o belo soalho de parqué e para os sapatos do seu cliente.

— Monsieur Bernard, o Gaston, que já o conhece há bastante tempo, diz-me que você é um homem cheio de integridade e honra. Um homem que ama o seu país, e um homem de palavra — dis- se Manet.

Lucien sentia-se agora completamente confuso. De que raio estava o homem a falar? Na verdade, Gaston não o conhecia de todo, apenas a um nível profissional. Não eram amigos. Gaston não fazia ideia do tipo de pessoa que Lucien era na realidade.

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Bem que poderia ser um assassino ou um prostituto que Gaston jamais teria sabido.

Manet abeirou-se de uma das enormes janelas que davam para a Rue Galilée e ficou uns segundos a espiar a rua. Depois virou-se para encarar Lucien, que ficou surpreendido com a expressão já grave no rosto do velhote.

— Monsieur Bernard, esta modificação tem por intuito a cria-ção de um esconderijo para um judeu que está a ser perseguido pela Gestapo. Se por acaso vierem à procura dele, gostaria que ele pudesse esconder-se num espaço que seja indetetável, um espaço que a Gestapo jamais descobrirá. Para sua própria segurança, não lhe direi o nome dele. Mas o Reich deseja prendê-lo para descobrir qual o paradeiro da sua fortuna, a qual é considerável.

Lucien estava atónito. — Está doido? Vai esconder um judeu?Normalmente, Lucien jamais seria tão mal-educado para um

cliente, muito menos para um cliente podre de rico, só que Manet pisara território proibido. Ajudar judeus: os alemães chamavam-lhe Judenbegunstigung. Por mais abastado que fosse, Manet poderia ser preso e executado por esconder judeus. Era o único crime do qual um francês não podia livrar-se através do dinheiro. Envergar uma estúpida estrela amarela por compaixão era uma coisa, mas ajudar de facto um judeu procurado pela Gestapo era pura loucura. Em que raio se metera Lucien, ou melhor, em que é que aquele cabrão do Gaston o metera? Era preciso tomates para Manet lhe pedir para fazer isto por doze mil ou até mesmo doze milhões de francos.

— Está a pedir-me que me suicide; sabe disso, não sabe?— Com certeza que sei — disse Manet. — E também eu estou

a suicidar-me.— Então, por amor de Deus, porque é que está a fazer

isto? — exclamou Lucien.Manet não pareceu minimamente desconcertado com a pergunta

de Lucien. Quase parecia desejoso de lhe responder. O velhote sorriu a Lucien.

— Deixe-me explicar-lhe uma coisa, Monsieur Bernard. Em 1940, quando este inferno teve início, percebi que a minha pri-meira missão como cristão era superar o meu egocentrismo, que

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teria de me maçar quando um dos meus irmãos humanos estivesse em perigo, quem quer que ele fosse, ou quer tivesse nascido em França ou não. Decidi muito simplesmente não virar costas.

«Maçar-me» era de certa forma um eufemismo dadas as circuns-tâncias, pensou Lucien. Já quanto ao cristianismo, ele estava de acordo com o seu pai: tratava-se de um conjunto de crenças bem--intencionadas que nunca funcionavam na vida real.

— Portanto, Monsieur Bernard — prosseguiu Manet —, pagar--lhe-ei doze mil francos para que conceba um esconderijo invisível à vista desarmada. É esse o seu desafio arquitetónico. Embora disponha de excelentes operários para realizar a obra, eles não são arquitetos; não têm os seus olhos e não seriam capazes de engen-drar uma solução tão inteligente como a sua. É por isso que estou a pedir a sua... ajuda.

— Monsieur, recuso-me em absoluto. É um disparate. Não conte comigo.

— Tenho a esperança de que reconsidere a minha proposta, Monsieur Bernard. Julgo que poderá vir a ser um acordo benéfico para ambos. E será apenas uma vez.

— Jamais, monsieur. Eu jamais concordaria...— Sei que tomar uma decisão que poderá levar à nossa morte

é algo que não pode ser feito no momento. Peço-lhe encareci-damente que dedique algum tempo a ponderar esta proposta. No entanto, gostaria de ter notícias suas às seis da tarde de hoje, no Café du Monde. Tenho noção de que precisará de efetuar uma avaliação mais cuidada do apartamento para chegar a uma deci-são, fique por isso com esta chave e peço-lhe que tranque a porta quando terminar. E agora, monsieur, vou deixá-lo a sós.

Lucien assentiu e tentou dizer algo, mas não lhe saiu nada.— A propósito, amanhã, às nove da manhã, estarei a assinar

um contrato para a produção de motores para a Fábrica de Aviões Heinkel. As minhas instalações atuais são demasiado pequenas para dar conta de tamanha tarefa, pelo que estou a planear uma ampliação perto da minha fábrica em Chaville. Ando à procura de um arquiteto — disse Manet ao encaminhar-se para a porta. — Conhece algum?

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CAPÍTULO TRÊS

A sala começou a andar à roda e Lucien viu-se numa desorien-tação tal que não conseguia manter o equilíbrio. Sentou-se no chão e achou que iria vomitar.

— Apre, mas que dia! — murmurou.Normalmente, Lucien faria de tudo para conseguir um trabalho,

por mais desprezível que fosse. Como a vez em que dormiu com a mulher balofa de Gattier, o comerciante de vinhos, para que ela convencesse o marido a escolher Lucien para desenhar a sua nova loja de vinhos na Rue Vaneau. Correra maravilhosamente: nem uma alteração tinha sido feita ao seu projeto.

A conversa aqui era, contudo, completamente outra. Se era verdade que ele estava falido, valeriam doze mil francos e uma encomenda garantida o risco de morrer? O dinheiro não seria ajuda nenhuma se Lucien estivesse morto. Na realidade, o que o inco-modava não era a parte da morte. Era a tortura levada a cabo pela Gestapo que antecederia a morte. Lucien ouvira de fontes credíveis o que os alemães faziam àqueles que não colaborassem: dias de tra-tamento bárbaro antes da morte ou, se a Gestapo estivesse a sentir--se misericordiosa, o que era uma raridade, a detenção num campo.

Os parisienses depressa aprenderam que nem todos os soldados alemães eram iguais. Havia três tipos bastante diferentes. A sub-divisão maior, a Wehrmacht, era o exército normal que realizava a maior parte dos combates e possuía um certo sentido de decên-cia para com os franceses. Depois havia as Waffen-SS, a unidade

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especial de elite do exército do Partido Nazi, que participava nos combates mas que também era usada para apanhar os judeus. A última e absolutamente a pior era a Gestapo, a polícia secreta, que torturava, assassinava, mutilava e estropiava judeus, ou quem quer que fosse, incluindo compatriotas alemães, por crimes con-tra o Reich. Dizia-se que a crueldade da Gestapo estava para lá da imaginação.

As pessoas até tinham medo de usar a palavra Gestapo. Os pari-sienses costumavam dizer «Eles prenderam-no». O quartel-general da Gestapo, no número 11 da Rue des Saussaies, ficava ao virar da esquina em relação ao Palais de l’Élysée, a antiga residência do presidente francês. Toda a gente em Paris conhecia e temia essa morada.

Não, por mais que precisasse do dinheiro e ansiasse por um novo projeto, o risco era incomensurável. Lucien nunca se iludira ao ponto de julgar ser do género heroico. Aprendera isso mesmo em 1939, ano em que, enquanto oficial convocado das reservas, foi destacado por oito meses para a Linha Maginot, a fiada de forta-lezas de betão que o governo francês garantia que iriam proteger a França da investida alemã. Uma vez que não houve combates em França após a queda da Polónia, ele ficou sentadinho a ler revistas de arquitetura que a mulher lhe enviara e a desenhar projetos ima-ginários. Um camarada que era professor universitário aproveitara o tempo para escrever uma história dos antigos etruscos.

Até que a 10 de maio de 1940 teve início a invasão dos alemães, que, em vez de atacarem a «invencível» Linha Maginot, contor-naram-na, entrando no Norte de França pela floresta das Ardenas. Entretanto, Lucien, que tinha sido destacado para uma casamata na Linha Maginot, nunca teve a oportunidade de enfrentar o inimigo. Secretamente, ficara contente, pois aterrorizava-o ter de combater os alemães, que pareciam super-homens e que tinham esmagado com incrível facilidade todos aqueles que invadiram: os polacos, os belgas e os holandeses, para além de terem expulsado os britânicos do continente em Dunkirk.

Após a assinatura do armistício em 22 de junho, Lucien foi dado como oficialmente derrotado e capturado, mas ele e outros oficiais

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não faziam tenções de serem levados para um campo de prisioneiros de guerra na Alemanha. O tio Albert, irmão da mãe de Lucien, passara quatro anos num campo de prisioneiros alemão durante a Primeira Guerra Mundial e, em consequência disso, passou o resto da vida destrambelhado, a fazer esquisitices como perseguir esquilos no parque como se fosse um cão. Lucien e muitos outros soldados franceses limitaram-se a despir as suas fardas, a destruir os seus documentos militares e a integrar-se na vida civil com documentos de desmobilização falsificados. Antes de a Wehrmacht ter alcançado as guarnições da Linha Maginot no final de junho, já Lucien estava de regresso para junto da sua mulher em Paris.

Aquilo que encontrou foi uma cidade-fantasma. Apesar de Paris ter sido declarada cidade aberta pelos britânicos, logo a salvo de bombardeamentos, mais de um milhão de pessoas — numa população de três milhões — fugiu. Lucien e a mulher decidiram ficar, acreditando que seria muito menos perigoso enfrentar os alemães do que os perigos da estrada a descoberto. Revelar-se-ia a decisão acertada: com milhões de franceses a fugirem para sul, as estradas tornaram-se intransitáveis e muitas pessoas desaparece-ram ou morreram de hipotermia. Este êxodo em massa e a célere rendição do exército aos alemães humilharam a França aos olhos do mundo. Lucien odiava os alemães do fundo do coração por aquilo que tinham feito ao seu país. Chorou no dia da rendição. Porém, o que realmente lhe interessava era ele e a sua mulher continuarem vivos.

Não, Lucien não era um herói, e não era de todo uma alma caridosa, um desses tipos que se insurgem em nome dos oprimidos. Manet tinha essa alma caridosa estampada na cara. E arriscar a vida para ajudar um judeu? O pai de Lucien teria desatado às gargalha-das na sua cara. Tendo crescido em Paris, Lucien passara a vida em contacto com judeus, pelo menos indiretamente. Ouvira dizer que havia perto de duzentos mil judeus a viver em Paris, embora nunca se tivesse cruzado com um judeu na École Spéciale d’Architecture, onde estudara. Quase não havia arquitetos judeus. Lucien sem-pre achara que os judeus possuíam um talento comercial inato, pelo que se dedicavam aos negócios e a profissões como direito e

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medicina que lhes proporcionassem carradas de dinheiro. A arqui-tetura, como depressa Lucien aprendeu, não era a via a seguir se o desejo fosse enriquecer.

Porém, Lucien achava que Manet estava certo em relação a uma coisa. Os judeus estavam a ser injustiçados. Os alemães chegavam a tirar-lhes os bens essenciais ao dia a dia: os telefones tinham sido cortados e as bicicletas confiscadas. E não apenas os judeus imi-grantes vindos da Polónia, Hungria e Rússia, que viviam sobretudo nos bairros orientais de Paris, como também os judeus autóctones, aqueles que não possuíam esse ar «de judeu». Profissionais como médicos, advogados e professores universitários sofriam. E pouco importava a fama que se tivesse. Henri Bergson, vencedor do Pré-mio Nobel, morrera de uma pneumonia que contraíra enquanto esperava na fila para se registar como judeu junto das autoridades francesas. Porém, aquilo que estava a acontecer aos judeus era uma questão política para lá do seu controlo, ainda que ele achasse a situação injusta.

Para um povo que supostamente seria inteligente, todavia, Lucien achava que os judeus tinham sido bastante estúpidos. Desde 1933 que corriam notícias nos jornais franceses relacionadas com o tratamento dispensado pelos nazis aos judeus na Alemanha. Será que não se tinham apercebido de que aqui os alemães os tratariam da mesma forma? Alguns tinham conseguido atravessar os Pirenéus para Espanha e Portugal, e outros tinham cruzado a fronteira suíça logo no início. Esses tinham sido espertos; aperceberam-se daquilo que lhes estava reservado e puseram-se a salvo.

Os judeus que tinham ficado estavam condenados. Após o ou- tono de 1940, a saída do país tornou-se-lhes impossível. Os judeus tinham inclusivamente sido proibidos de atravessar a linha de demarcação para a França desocupada. Tinham de fugir das cidades para evitar a prisão e a deportação pelos alemães. Deve haver milha-res escondidos no campo, pensou Lucien, famílias inteiras com crianças e avós. Os judeus que tão habituados estavam à boa vida tinham agora de se esconder em palheiros e sobreviver com poucos gramas de pão por dia. Comparado com um celeiro, o esconderijo de Manet iria ser um palácio.

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Lucien levantou-se e pôs-se a andar pelo apartamento.Era sem dúvida um suicídio envolver-se nesta história.Mas... usando da inteligência, talvez o judeu nunca viesse a

ser descoberto, ninguém saberia do seu envolvimento e, melhor ainda, Lucien faria uma batelada de dinheiro, a par de conseguir uma grande encomenda. Para além do mais, Manet era um homem muito astuto e bem-sucedido. Seria capaz de correr um risco cal-culado, mas não era imprudente. O velhote teria pensado tudo até ao mais ínfimo pormenor.

Até que lhe veio à ideia a imagem de estar amarrado a uma cadeira no número 11 da Rue des Saussaies, enquanto lhe esmur-ravam a cara, deixando-a num novelo vermelho e pastoso. Lucien virou-se para se encaminhar para a porta. Ainda assim, pensou, com algum engenho seria possível criar um sítio onde esconder um homem à vista desarmada. Levou a mão ao puxador da porta, depois olhou para trás, para o apartamento vazio. Abanando a cabeça e abrindo a grande porta de madeira uns centímetros para ver se estava lá alguém, Lucien saiu para o corredor.

Ao mesmo tempo, argumentou Lucien, só a encomenda já faria com que valesse a pena equacionar o risco. Conseguir desenhar um projeto de tamanha envergadura era uma oportunidade inacreditá-vel que antes da guerra jamais se atravessaria no seu caminho. E só Deus sabia quão desesperado ele estava de dinheiro; não trabalhava desde que a Ocupação tivera início. As suas poupanças tinham aca-bado havia muito, e o dinheiro de Celeste não duraria para sempre. Não haveria de fazer mal dar pelo menos uma espreitadela, pensou. Reentrando no apartamento, pôs-se a percorrer as divisões.

Lucien começou por excluir os esconderijos óbvios, tal como atrás das estantes — um lugar-comum dos filmes de suspense norte--americanos — ou num recanto ao fundo de um armário. Como se fossem a lente de uma câmara de cinema, os seus olhos sondaram todos os metros quadrados de cada divisão, absorvendo todos os pormenores. Ao mesmo tempo, Lucien ia analisando intuitiva-mente todas as superfícies, contemplando a construção do espaço atrás delas — como se estivesse a pensar com visão de raios X. Embora Lucien não soubesse qual a dimensão do «hóspede» de

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Manet, o seu pensamento colocou um homem imaginário de esta-tura média no interior de cada local possível para ver se haveria espaço suficiente. Lucien inspecionou os lambrins magníficos que corriam as paredes. Os largos painéis com reentrâncias poderiam ser retirados, abrindo um espaço suficiente para que lá coubesse um homem. Mas não seria um esconderijo demasiado óbvio? Provavel-mente. Seria necessário um estratagema. E se a pessoa tivesse de entrar pela abertura feita nos painéis e rastejar ao longo da parede para se esconder no interior de um outro compartimento oculto? Se os alemães descobrissem o painel amovível, atrás dele estaria apenas um espaço vazio. Infelizmente, à medida que ia intensificando a sua investigação, Lucien reparou que as paredes por trás dos lambrins não tinham fundura suficiente para o corpo de um homem.

De repente, Lucien reparou na altura invulgar dos rodapés que se prolongavam pelo chão. Recorrendo à pequena fita métrica que an- dava sempre consigo, confirmou que tinham quase quarenta cen-tímetros de altura. Talvez fosse possível instalar umas dobradiças, ao jeito da portinhola da ranhura de uma caixa do correio, permi-tindo que um homem levantasse o rodapé e deslizasse de barriga para baixo para o espaço oco. Essa poderia ter sido uma solução se a parede tivesse a profundidade certa. Que pena, os alemães jamais procurariam ali em baixo.

Lucien prosseguiu. Ao longo de um corredor havia uma parede que a meio curvava para fora, criando um nicho semicircular onde uma estatueta de bronze de Mercúrio repousava sobre uma base com um metro de altura. Seria possível a um homem ficar agachado no interior da base, a menos que fosse realmente alto. A estátua e o topo de madeira da base teriam de ser levantados e recolocados no sítio para que o homem se escondesse. Seria muito difícil de fazer. Mesmo que a estátua estivesse presa por baixo ao topo e este tivesse dobradiças a uni-lo à base, seria muito pesado. Lucien pegou na estátua e calculou que pesaria cerca de cinquenta quilos. Teria o hóspede de Manet força suficiente para abrir e fechar a parte de cima?

Lucien atravessou a divisão para ver melhor para o nicho. Acen-dendo um cigarro, encostou-se a uma das altíssimas colunas dóricas que emolduravam a abertura entre o salão e a zona de refeições.

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Olhou-a de cima a baixo e reparou que o seu fuste estriado con-sistia numa única peça de requintada nogueira. Se ao menos esti-vesse assente num pedestal alto, pensou, seria possível uma pessoa enfiar-se dentro do pedestal para se esconder. Foi então que Lucien reparou no diâmetro da coluna e mediu-o: cerca de cinquenta e seis centímetros. Invadiu-o uma incrível onda de euforia. Utili-zando os próprios ombros como guia, calculou que a coluna teria largura suficiente para que lá coubesse um homem de estatura normal na vertical, mesmo levando em linha de conta a grossura da parede da coluna.

Lucien ficou ébrio de entusiasmo. As duas colunas, que ele sabia que não eram estruturais mas meramente decorativas, seriam ocas. Com um sorriso, passou a mão pelo fuste da coluna; seria possível abrir uma porta estreita e articulada, disfarçando-se as juntas verticais nas estrias. Não poderiam ficar juntas horizontais à mostra, pelo que a junta de baixo teria de ser alinhada com a base. A junta de cima teria de ser alinhada com o capitel da coluna lá no alto. Embora o fuste da coluna tivesse quase quatro metros de altura, seria possível criar uma porta desse tamanho utilizando uma dobradiça de piano. Lucien desenhara em tempos uma porta de dobradiças normais com três metros de altura. Se o pessoal de Manet fosse tão bom como tinha sido alardeado, talvez resultasse.

Estava feito! Era uma solução brilhante, elegante e engenhosa.Lucien trocaria as voltas aos cabrões dos nazis.

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