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FICHA TÉCNICA Título original: The Death of Truth: Notes on Falsehood in the Age of Trump Autora: Michiko Kakutani Copyright © Michiko Kakutani 2018 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Tradução: Alberto Gomes Revisão: Caligrama Produção Editorial/Editorial Presença Imagem da capa: Shutterstock Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 445 829/18 1.ª edição, Lisboa, outubro, 2018 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: The Death of Truth: Notes on Falsehood in the Age of TrumpAutora: Michiko KakutaniCopyright © Michiko Kakutani 2018 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Tradução: Alberto GomesRevisão: Caligrama Produção Editorial/Editorial PresençaImagem da capa: ShutterstockCapa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.º 445 829/181.ª edição, Lisboa, outubro, 2018

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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ÍNDICE

Introdução ........................................................................................ 11

1. O declínio e a queda da razão ...................................................... 19

2. As novas guerras culturais ............................................................ 34

3. O culto do «eu» e a ascensão da subjetividade ............................. 46

4. A dissipação da realidade ............................................................. 57

5. A apropriação da linguagem ........................................................ 65

6. Filtros, silos e tribos .................................................................... 75

7. Défice de atenção ......................................................................... 85

8. «Uma enxurrada de falsidades»: propaganda e notícias falsas ....... 96

9. A alegria perversa dos trolls da Internet ....................................... 106

Epílogo ............................................................................................ 115

Notas finais ...................................................................................... 121

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Capítulo Um

O DECLÍNIO E A QUEDA DA RAzãO

Isto é uma maçã. Algumas pessoas poderão tentar dizer-lhe que isto é uma banana. Poderão mesmo gritar «Banana! Banana! Banana!» vezes sem conta. Poderão até escrever BANANA em maiúsculas. E você poderia inclusive começar a acreditar que isto é uma banana. Mas não é. Isto é uma maçã.

Anúncio comercial da CNN mostrando a fotografia de uma maçã

No seu discurso proferido em 1838, no Liceu da Juventude de Springfield, o jovem Abraham Lincoln veiculou a sua preocupação de que, enquanto as memórias da revolução se perdiam na neblina do passado, a liberdade da nação estava ameaçada por um desprezo pelas instituições governamentais, que protegem as liberdades civis e religiosas legadas à posteridade pelos Pais Fundadores. De forma a preservar o Estado de Direito e a impedir a ascensão de um potencial tirano «entre nós», a «razão fria, calculada e desprovida de paixão deve fornecer a todos a matéria‑prima para o nosso futuro sustento e a nossa futura defesa. Permitamos que essa matéria‑prima seja moldada numa inteligência generalizada, numa moralidade firme e, especialmente, na reverência à Constituição e às leis».

Como Lincoln bem sabia, os Pais Fundadores da América tinham instaurado a jovem república com base nos princípios iluministas da razão, da liberdade, do progresso e da tolerância religiosa. E a

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arquitetura constitucional que criaram baseava‑se num sistema racio‑nal de salvaguardas e contramedidas para proteger a nação da possi‑bilidade, nas palavras de Alexander Hamilton [o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos], de um dia surgir «um homem sem princípios na vida privada» e de «temperamento arrojado» que pudesse «apoiar‑se no populismo» e «encantar‑se e concordar com todos os disparates dos fanáticos da sua época» de modo a embaraçar o governo e «semear a confusão para depois poder “aproveitar a tem‑pestade e direcionar o furacão”».

O sistema estava longe de ser perfeito, mas perdurou durante mais de dois séculos graças à sua resiliência e capacidade de adaptação a mudanças essenciais. Líderes como Abraham Lincoln, Martin Luther King Jr. e Barack Obama encaravam a América como um trabalho em progresso, como um país num processo de se aperfeiçoar. E tentaram acelerar esse trabalho, conscientes de que, nas palavras de King, «o progresso não é automático nem inevitável» mas requer uma dedi‑cação e uma luta contínuas. Aquilo que tinha sido alcançado desde a Guerra da Secessão, e depois com o movimento dos direitos civis, era um lembrete de todo o trabalho ainda por fazer, mas também um testemunho da fé do ex‑presidente Barack Obama de que os norte‑‑americanos «podem readaptar‑se constantemente para alcançarem os [seus] maiores sonhos», bem como da fé naquilo a que George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos, chamava a grande «experiência confiada ao povo americano».

Paralelamente a esta visão otimista da América como uma nação que podia tornar‑se uma reluzente «cidade sobre uma colina», também emergiu um contratema sombrio e irracional na história norte‑americana, que em tempos recentes se tem reafirmado com bastante intensidade — ao ponto de a razão ser não só debilitada mas também, aparentemente, atirada pela janela, juntamente com factos, debate informado e decisões políticas deliberativas. A ciência está sob ataque, bem como o conhecimento especializado de toda a espé‑cie — seja conhecimento especializado em política externa, segurança nacional, economia ou educação.

O escritor Philip Roth chamou a esta contranarrativa «a primi‑tiva raiva americana» e o historiador Richard Hofstadter descreveu‑a como «o estilo paranoico», um ponto de vista animado pelo

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«exagero exaltado, pela suspeita e por fantasias conspiratórias» e concentrado em possíveis ameaças a «uma nação, uma cultura, um estilo de vida». O ensaio de Hofstadter, publicado em 1964, foi instigado pela campanha do senador republicano Barry Goldwater e pelo movimento de direita que apoiou a sua candidatura à presi‑dência, assim como o seu livro Anti-intellectualism in American Life [Anti‑Intelectualismo na Vida Americana], editado em 1963, foi concebido como uma resposta à famigerada caça às bruxas promovida pelo senador Joseph McCarthy e ao contexto político e social mais amplo da década de 1950.

Barry Goldwater saiu derrotado nas eleições presidenciais de 1964 e o macarthismo autoasfixiou‑se depois de Joseph Welch, um advo‑gado do exército norte‑americano, ter tido a coragem de enfrentar McCarthy, perguntando‑lhe: «Não tem um mínimo de sentido de decência que seja, senhor? Já não lhe resta um mínimo de sentido de decência?»

O virulento McCarthy, que lançou acusações de deslealdade contra Washington inteira («o Departamento de Estado alberga um ninho de comunistas e simpatizantes de comunistas», advertiu ele o pre‑sidente Harry S. Truman em 1950), foi censurado pelo Senado em 1954. E com o lançamento do satélite russo Sputnik em 1957, o ameaçador antirracionalismo dessa época começou a retroceder, sendo substituído pela corrida espacial e por um esforço concertado para melhorar os programas de ciências da nação.

Richard Hofstadter referiu que o estilo paranoico tende a ocorrer em «vagas episódicas». O Partido Know‑Nothing, anticatólico e hostil aos imigrantes, alcançou o seu auge em 1885, com quarenta e três membros do Congresso a confessarem abertamente a sua lealdade a esse movimento. O seu poder começou a dissipar‑se rapidamente no ano seguinte, depois de o partido se ter fracionado segundo linhas divisórias, embora a intolerância que personificava viesse a perdurar, como um vírus, no sistema político, à espera de ressurgir um dia.

Quanto ao caso da ala direita moderna, Hofstadter argumentou que tendia a ser mobilizada por um sentimento de agravo e de expro‑priação. «A América foi em grande medida retirada das mãos deles», escreveu, e talvez sintam que «não têm acesso às negociações políticas ou à tomada de decisões».

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No caso da América do novo milénio (e também de grande parte da Europa Ocidental), tratava‑se de agravos exacerbados pelas mudanças demográficas e pelas alterações dos costumes sociais, ao ponto de alguns membros da classe trabalhadora branca se sentirem cada vez mais marginalizados pelas crescentes desigualdades de ren‑dimento aceleradas pela crise financeira de 2008 e por forças como a globalização e a tecnologia, que estavam a roubar postos de trabalho no setor industrial e a injetar uma nova incerteza e angústia existen‑cial na vida quotidiana.

Donald Trump e líderes nacionalistas e hostis aos imigrantes como Marine Le Pen em França, Geert Wilders na Holanda e Matteo Salvini na Itália inflamaram estes sentimentos de medo, raiva e priva‑ção de direitos, oferecendo bodes expiatórios em vez de soluções. Por sua vez, os liberais e os conservadores, preocupados com a ascensão do nativismo [sentimento de hostilidade contra tudo o que é estran‑geiro] e da política do preconceito, avisaram que as instituições democráticas estavam a sofrer uma ameaça crescente. O poema «The Second Coming» [A Segunda Vinda] do escritor anglo‑irlandês William Butler Yeats, escrito em 1919, no meio dos escombros da destruição causada pela Primeira Guerra Mundial, foi alvo de um enorme revivalismo em 2016: foi citado mais vezes em notícias na primeira metade desse ano do que nas três décadas anteriores, com comentadores de todas as convicções políticas a invocarem os seus famosos versos: «Tudo se desmorona; o centro cede; / A mera anarquia abate‑se sobre o mundo.»

O assalto à verdade e à razão, que atingiu o ponto culminante na América durante o primeiro ano da presidência de Trump, andava há anos a ser incubado na ala da direita marginal. Detratores de Hillary Clinton que andaram a forjar acusações disparatadas sobre a morte de Vince Foster na década de 1990 e paranoicos do movi‑mento do Tea Party que reivindicavam que os ambientalistas queriam controlar a temperatura dos lares e as cores dos automóveis que os cidadãos americanos podiam comprar juntaram‑se a bloguistas do site noticioso da extrema‑direita Breitbart News e a trolls da direita alternativa durante a campanha presidencial de 2016. E com a vitória de Trump na nomeação como candidato pelo Partido Republicano e posterior conquista da presidência, os pontos de vista extremistas dos

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seus apoiantes mais radicais tornaram‑se a tendência dominante: into‑lerância racial e religiosa, aversão ao governo, adoção de pensamentos conspiratórios e de má informação.

Segundo uma sondagem de 2017 realizada pelo jornal The Washington Post, 47% dos republicanos acreditam erroneamente que Trump conquistou o voto popular, 68% acreditam que milhões de imigrantes ilegais votaram nas eleições presidenciais de 2016 e mais de metade dos republicanos dizem que não veem problemas em adiar as eleições presidenciais de 2020 até esses problemas de votação ilegal poderem ser resolvidos. Um outro estudo, conduzido por analistas políticos da Universidade de Chicago, revelou que 25% dos norte‑americanos acreditam que o colapso financeiro de 2008 foi orquestrado em segredo por uma pequena cabala de banqueiros, que 19% acreditam que o governo norte‑americano esteve implicado nos ataques terroristas do 11 de Setembro e que 11% acreditam inclusi‑vamente numa teoria inventada pelos próprios autores do estudo: que as lâmpadas fluorescentes compactas fazem parte de uma conspiração do governo para tornar as pessoas mais passivas e fáceis de controlar.

Trump, que lançou a sua carreira política promovendo desavergo‑nhadamente o birtherism [inelegibilidade de Barack Obama para pre‑sidente dos Estados Unidos] e falou de forma abonatória do defensor de teorias da conspiração e radialista polémico Alex Jones, presidiu a uma administração que, no seu primeiro ano em funções, se tornou a própria personificação de princípios anti‑iluministas, repudiando os valores do racionalismo, da tolerância e do empirismo, tanto nas suas políticas como no seu modo de operar — um reflexo do estilo decisório errático e impulsivo do comandante‑chefe, baseado não no conhecimento mas no instinto, no capricho e em noções preconcebi‑das (e muitas vezes fantasiosas) de como o mundo funciona.

Trump não envidou nenhum esforço para retificar a sua ignorância sobre política interna e externa quando ocupou a Casa Branca. Steve Bannon, o seu estratego‑chefe até ser demitido desse cargo ao fim de sete meses, declarou que Trump só «lê para reforçar» e que o pre‑sidente continuou determinado a negar, a diminuir ou a minimizar as informações dos serviços secretos sobre a interferência dos russos nas eleições presidenciais de 2016. Como as menções a essas matérias tendem a provocar‑lhe ira e podem desestabilizar as suas reuniões

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com os serviços secretos, representantes do governo declararam ao jornal The Washington Post que, por vezes, só incluíam esse material em versões escritas do resumo diário destinado ao presidente, o qual, ao que parece, ele raramente, ou nunca, lia.

Em vez disso, o presidente parece preferir manter‑se informado através do canal noticioso da Fox News — sobretudo através do baju‑lador programa matinal noticioso e de tertúlia Fox & Friends — e de fontes como o site noticioso da extrema‑direita Breitbart News e o tabloide National Enquirer. Passa alegadamente um máximo de oito horas por dia a ver televisão, um hábito que levou inevitavelmente muitos leitores a recordarem‑se da personagem Chauncey Gardiner, o jardineiro viciado em televisão que se torna uma celebridade e estrela política em ascensão no romance Chance, de Jerzy Kosinski, publicado em 1970. O canal noticioso Vice News também relatou que Trump recebia um dossiê, duas vezes ao dia, repleto de recortes lisonjeado‑res que incluíam «tweets de admiradores, transcrições de entrevistas televisivas aduladoras, notícias repletas de elogios e, por vezes, apenas imagens de Trump na TV com um aspeto poderoso».

Detalhes absurdos como estes são inquietantes, e não meramente cómicos, porque não se trata de um simples caso de um fantasista — que parece ter saído diretamente da série televisiva de ficção científica A Quinta Dimensão — a viver numa enorme casa branca em Washington, D.C. A propensão de Trump para o caos não foi contida por aqueles que o rodeiam, acabando por infetar toda a sua administração. O presidente afirma «Sou a única pessoa que importa» no que respeita ao processo decisório e, considerando o seu desprezo pelo conhecimento institucional, ignora com frequência os conselhos dos membros do seu gabinete e de agências governamentais, quando não os exclui por completo do processo.

Ironicamente, a disfunção que estes hábitos alimentam tende a ratificar a desconfiança dos seus apoiantes em relação a Washington (uma das principais razões pelas quais votaram em Trump), criando uma espécie de profecia autorrealizável, a qual, por sua vez, produz mais cinismo e uma relutância em participar no processo político. Um crescente número de eleitores sente que existe um flagrante desfasamento entre os seus pontos de vista e as políticas governa‑mentais. Medidas políticas sensatas como a verificação obrigatória

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dos antecedentes criminais na compra de armas de fogo, apoiadas por mais de nove em cada dez norte‑americanos, foram boicotadas pelo Congresso, que está repleto de membros que dependem de donativos da National Rifle Association [o maior grupo de lóbi pró‑‑armas dos Estados Unidos]. 87% dos norte‑americanos disseram numa sondagem realizada em 2018 que acreditam que os Dreamers deveriam ser autorizados a permanecerem nos Estados Unidos e, no entanto, o programa DACA (Ação Diferida para a Chegada de Jovens Imigrantes) tem continuado a ser um joguete político. E 83% dos norte‑americanos (incluindo 75% de republicanos) responderam que apoiam a neutralidade da rede, a qual foi anulada pela FCC de Trump, a autoridade reguladora americana para as comunicações.

O papel decrescente do discurso racional — e o papel reduzido do bom senso e de uma política baseada nos factos — não foi iniciado por Donald J. Trump. No entanto, Trump representa a culminação de tendências diagnosticadas em livros prescientes da autoria de escrito‑res como Al Gore, Farhad Manjoo e Susan Jacoby, publicados quase uma década antes de ele ocupar a Casa Branca no número 1600 de Pennsylvania Avenue. Entre as causas deste declínio, Susan Jacoby, no seu livro intitulado The Age of American Unreason [A Era da Des‑Razão na América], publicado em 2008, referia a «viciação em entretenimento informativo», a força contínua do fundamentalismo religioso, «a equiparação popular do intelectualismo com um libera‑lismo supostamente em contradição com os valores tradicionais norte‑‑americanos» e um sistema educativo que «faz um péssimo trabalho no ensino não só das competências básicas mas também da lógica subjacente a essas competências».

Quanto a Al Gore, no seu livro O Ataque à Razão, de 2007, subli‑nhava o mau estado da América como uma democracia participativa (reduzida afluência às urnas, um eleitorado mal informado, cam‑panhas dominadas pelo dinheiro e pela manipulação dos meios de comunicação) e «a persistente e prolongada dependência de falsidades como a base da política, inclusive face a abundantes provas sólidas do contrário».

Na primeira linha do pensamento de Al Gore estava a desastrosa decisão da administração Bush de invadir o Iraque e a sua cínica

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campanha de promoção dessa guerra junto do público, distorcendo «a realidade política dos Estados Unidos ao criar em relação ao Iraque um novo medo que era incrivelmente desproporcional ao perigo real» representado por um país que não tinha atacado os Estados Unidos nos atentados do 11 de Setembro e que não possuía as aterradoras armas de destruição maciça tão apregoadas pelos partidários de uma intervenção militar com o intuito de assustar o público e conseguir assim o seu apoio.

De facto, a guerra do Iraque continua a ser uma lição sobre as cala‑midades que podem resultar quando decisões marcantes que afetam o mundo inteiro não são tomadas através de um processo decisório racional, de uma ponderação judiciosa e de uma análise especializada, sendo antes instigadas por certezas ideológicas e por uma seleção discriminatória de informações dos serviços secretos para sustentar ideias fixas e preconcebidas.

Desde o início que os partidários de uma intervenção militar no seio da administração Bush, liderados pelo vice‑presidente Dick Cheney e por Donald Rumsfeld, fizeram pressão para que os serviços de inteli‑gência adotassem uma «postura agressiva» que os ajudasse a defender a necessidade de uma intervenção militar. Uma operação obscura cha‑mada Office of Special Plans [Gabinete de Planos Especiais] foi criada no Departamento de Defesa: a sua missão, segundo um assessor do Pentágono citado pelo jornalista de investigação Seymour M. Hersh da The New Yorker, consistia em descobrir provas daquilo que Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa dos Estados Unidos, e o seu vice‑‑secretário Paul Wolfowitz, já acreditavam ser a verdade — que Saddam Hussein tinha ligações à Al‑Qaeda e que o Iraque possuía um enorme arsenal de armas biológicas e químicas e possivelmente também armas nucleares.

Por sua vez, o planeamento para uma guerra no terreno ignorou as sóbrias advertências de peritos, como as do chefe de estado‑maior do exército Eric K. Shinseki, que afirmou publicamente que seria necessária uma força de ocupação «na ordem das várias centenas de milhares de soldados» para estabilizar o Iraque do pós‑guerra. A sua recomendação foi rapidamente rebatida, assim como rela‑tórios da RAND Corporation e do Army War College [Escola de Guerra do Exército], duas instituições que também advertiram

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que a segurança e a reconstrução do Iraque no pós‑guerra iriam exigir um grande número de tropas durante um extenso período de tempo. Estas avaliações foram ignoradas — com consequências fatídicas — porque não se enquadravam nas promessas delibe‑radamente otimistas da administração de que o povo iraquiano acolheria as tropas norte‑americanas como libertadores e que a resistência no terreno seria limitada. «É canja», como declarou um aliado de Rumsfeld.

O fracasso em enviar tropas suficientes para capturar e proteger o país e restaurar a lei e a ordem; a relegação para segundo plano do Projeto «Futuro do Iraque» pelo Departamento de Estado (devido a tensões com o Pentágono); a decisão atabalhoada de dissolver o exército iraquiano e banir todos os membros dirigentes do Partido Baath: estas trapalhadas desastrosas e evitáveis resultaram numa ocu‑pação desorganizada por parte dos Estados Unidos, ao ponto de um soldado, destacado para a Autoridade Provisória da Coligação, a ter descrito de forma memorável recorrendo à analogia de «colar penas de pato umas nas outras na esperança de sair um pato». Na verdade, a guerra do Iraque iria revelar‑se um dos acontecimentos mais catas‑tróficos deste novo século, fazendo explodir a geopolítica da região, dando azo ao nascimento do Daesh e desencadeando um conjunto de desastres que continuam a desenrolar‑se e a afetar o povo iraquiano e essa região do mundo.

Embora Trump tenha criticado frequentemente a decisão de inva‑dir o Iraque durante a sua campanha de 2016, a sua Casa Branca não havia aprendido nada com a gestão que a administração Bush fizera dessa guerra desnecessária e trágica. Em vez disso, reforçou a sua aposta na formulação de políticas assente num processo de engenharia reversa e na repudiação de peritos.

A título de exemplo, refira‑se que o Departamento de Estado foi enfraquecido na sequência do compromisso do estratego‑chefe Steve Bannon em lutar pela «desconstrução do Estado administrativo» e em resultado da desconfiança da Casa Branca em relação a pro‑fissionais do dito «Estado profundo» ou «governo sombra». Jared Kushner, genro do presidente e promotor imobiliário de trinta e seis anos sem qualquer experiência governativa, ficou encarregado

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da pasta do Médio Oriente, ao passo que o Departamento de Estado, em contínuo processo de subdimensionamento, era relegado para um plano cada vez mais secundário. Muitos cargos importantes continuaram por preencher no final do primeiro ano da presidência de Trump. Essa situação deveu‑se, em parte, à redução do aparelho estatal e à negligência do dever; e, em parte, a uma relutância em nomear diplomatas que expressavam reservas em relação às medidas políticas do presidente (como no caso do papel crucial do embaixador norte‑americano para a Coreia do Sul). Mas também se deveu em parte ao êxodo de talentos do serviço externo de uma agência que, sob uma nova administração, deixou de valorizar as suas competências diplomáticas, os seus conhecimentos em matéria política ou a sua experiência em regiões mundiais remotas. Segundo uma sondagem realizada pela agência Gallup em 2017, a subversão de alianças de longa data e de acordos comerciais por parte de Trump, juntamente com a sua determinação em debilitar os ideais democráticos e a negligência com que a sua administração tratou a política externa, levaram a uma queda drástica da confiança do mundo na liderança dos Estados Unidos, para um novo mínimo de 30% (abaixo da China e imediatamente acima da Rússia).

Em certos aspetos, o desdém da Casa Branca de Trump pelo conhe‑cimento especializado e pela experiência refletia atitudes mais amplas que permeavam a sociedade norte‑americana. No seu livro de 2007 intitulado The Cult of the Amateur [O Culto do Amador], Andrew Keen, empreendedor de Silicon Valley, advertia que a Internet não só havia democratizado a informação para além dos sonhos mais ousa‑dos das pessoas, como também estava a substituir o conhecimento genuíno pela «sabedoria da multidão», esbatendo perigosamente as linhas entre facto e opinião, entre argumentação informada e espe‑culação arrogante.

Uma década mais tarde, o académico norte‑americano Tom Nichols escreveu em A Morte da Competência que tinha surgido uma hostilidade obstinada em relação ao conhecimento especializado, tanto à direita como à esquerda, com as pessoas a argumentarem de forma agressiva que «toda a opinião sobre qualquer matéria é tão válida quanto qualquer outra». A ignorância havia‑se tornado uma tendência generalizada.

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