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1 DEMO, Pedro. Educação pelo Avesso. ASSISTÊNCIA COMO DIREITO E COMO PROBLEMA. 2ª Ed. São Paulo: Cortez 1 – Assistência como Direito Pág.13 - O lado atraente e fundamental da assistência social é relembrar sempre que a relação de mercado não pode ser a mais importante na vida das pessoas e sociedades, em termos de fins. O que não significa que a relação de mercado seja dispensável ou necessariamente perversa, mas que é meio. O uso instrumentalizado que o mercado faz das pessoas, e que Marx captou classicamente na ideia do trabalho abstrato da sociedade da mercadoria, contraria frontalmente as noções de democracia e direitos humanos, transformando-as também em mercadoria. No capitalismo é impraticável o “pleno emprego”, por mais que a ideia tenha sido perseguida até mesmo por próceres do sistema como Keynes e executada tentativamente em alguns momentos, mas apenas no centro do sistema, porque primeiro não vêm as pessoas, mas o lucro, ou, na linguagem marxista, primeiro vem o valor de troca, não de uso 1 . Pág.14 – [...] Há que acentuar a importância pelo menos simbólica da assistência social como direito da cidadania, porque realça, antes de mais nada, a perspectiva da cidadania, não do emprego. Os direitos humanos são inalienáveis e devidos 1 KURZ, R. 1996. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro. Paz e Terra. KURZ, R. 1997. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes. DEMO, P. 1998. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.

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DEMO, Pedro. Educação pelo Avesso. ASSISTÊNCIA COMO DIREITO E COMO

PROBLEMA. 2ª Ed. São Paulo: Cortez

1 – Assistência como Direito

Pág.13 - O lado atraente e fundamental da assistência social é relembrar sempre que a

relação de mercado não pode ser a mais importante na vida das pessoas e sociedades, em

termos de fins. O que não significa que a relação de mercado seja dispensável ou

necessariamente perversa, mas que é meio. O uso instrumentalizado que o mercado faz das

pessoas, e que Marx captou classicamente na ideia do trabalho abstrato da sociedade da

mercadoria, contraria frontalmente as noções de democracia e direitos humanos,

transformando-as também em mercadoria. No capitalismo é impraticável o “pleno emprego”,

por mais que a ideia tenha sido perseguida até mesmo por próceres do sistema como Keynes e

executada tentativamente em alguns momentos, mas apenas no centro do sistema, porque

primeiro não vêm as pessoas, mas o lucro, ou, na linguagem marxista, primeiro vem o valor

de troca, não de uso1.

Pág.14 – [...] Há que acentuar a importância pelo menos simbólica da assistência

social como direito da cidadania, porque realça, antes de mais nada, a perspectiva da

cidadania, não do emprego. Os direitos humanos são inalienáveis e devidos por natureza.

Deveriam ser garantidos para além de qualquer condição que não seja o simples fato de ser

humano.

Pág.15 – Olvida-se que a qualidade do Estado não está nele, mas no controle

democrático, ou seja, na cidadania. Não é o Estado que garante a qualidade da cidadania, mas

é esta que pode garantir Estado mais qualitativo. Na visão da Comuna de Paris, aposta-se

muito mais no associativismo dos trabalhadores do que em qualquer pretensa disponibilidade

do Estado, que é tomado como tendencialmente mancomunado com a burguesia. Pág.16 –

Assim, uma coisa é evitar afirmações extremas de que o Estado somente serve à burguesia,

outra é reconhecer que sua tendência mais visível é servir à burguesia. Como concentração de

força que o Estado certamente é, sua tendência mais natural não será postar-se do lado dos

pobres, mas dos ricos. Estes o ocupam muito mais facilmente que aqueles. Exatamente por

conta disso, a assistência tende a tornar-se residual, pois é com resíduos que se trata a

1 KURZ, R. 1996. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro. Paz e Terra. KURZ, R. 1997. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes. DEMO, P. 1998. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.

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população também considerada resíduo. Em nossa realidade sobretudo, é muito difícil

encontrar qualquer política de assistência social que não revele tal pecha1.

Ainda creio que é muito mais importante saber dispensar a assistência do que dela

depender, a não ser quando indispensável. Encontrar-se nessa situação de dependência não é

necessariamente algo infame, mas imposto por vicissitudes da história ou da natureza, como

nascer portador de necessidades especiais. Além disso, as pessoas podem, no decurso da vida,

passar por tais situações, de modo natural ou eventual – por exemplo, ser gestante vulnerável

– ou de modo social – por exemplo, ser obrigado a migrar para lugar desconhecido e em

condições de extrema precariedade. Esta consideração leva a distinguir dois tipos mais

notórios de assistência: aquela devida de modo permanente, para os segmentos que não

podem se auto-sustentar caracteristicamente; e aquela devida de modo provisório, para as

pessoas que sofrem de vulnerabilidade intermitente ou ocasional. Em nosso contexto, fazemos

mal as duas vertentes: assistimos muito precariamente as pessoas que necessitam de

assistência de modo permanente e transformamos facilmente situações provisórias em

definitivas, implantando dependência irreversível.

Pág.17 – Mas o abuso não tolhe o uso. É certo que assistência não é política

emancipatória, porque se volta para a sobrevivência e nisto se realiza plenamente. Isto mostra

que tem espaço próprio e que sua justificativa não carece de qualquer outra apelação. Aí

reside sua radicalidade própria e é nisto, somente, que é condição prévia para as outras

políticas sociais. A ideia comum entre assistentes sociais de que assistência é a “rainha” das

políticas sociais, apenas trai sua decadência no assistencialismo, porque, mesmo à revelia,

passa a dispensar a vinculação emancipatória ou a mantém apenas no discurso. A assistência é

direito radical da cidadania, mas não “faz” cidadania. É efeito, não causa. Se quisermos

chegar aos patamares da emancipação, será mister apelar para outras políticas sociais que

trabalham melhor a autonomia das pessoas ou a isto especificamente se dirigem, como é

educação2.

Pág.18 – O superdimensionamento da assistência revela, também, pouca sensibilidade

pela pobreza política, neste caso seguindo pegada marxista considerada ultrapassada: a base

material como mais essencial que as outras. A necessidade material, geralmente, é mais

imediata e pode matar rapidamente. Mas daí não segue que seja mais importante. Mais

1 Veja dissertação de mestrado de Maria Raquel Lino de FREITAS, 1999. “LOAS – À luz do enfoque integrado – Uma visão crítica”. Brasília, Departamento de Serviço Social, UnB.2 TORRES, C.A. 1998. Democracy, education, and multiculturalism – Dilemmas of citizenship in a global world. Nova York, Rowman & Littlefield Publishers. MORROW, R. A. & TORRES, C.A. 1999. “The State, social movements, and educational reform”. In: ARNOVE, R.F. & TORRES, C. A. (ed). 1999. Comparative education – The dialectic of the global and the local. Nova York, Rowman & Littlefield Publischers, p. 91-113.

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importante será aquilo que mais condiciona o todo, não apenas certas partes. Passar fome é

grande miséria, mas miséria ainda mais comprometedora é não saber que a fome é imposta,

inventada, cultivada e que aqueles que passam fome sustentam o esbanjamento dos ricos.

Dentro do sistema neoliberal, um mínimo de consciência crítica vai reconhecer que, quando

renda mínima se torna política do sistema, já significa que foi aceita porque permite cultivar o

problema. O sistema se beneficia da renda mínima muito mais que os pobres. Mas mesmo em

situação idealizada, na qual a renda mínima é bem aplicada, deveria ser concebida como

passagem necessária para superá-la. Este tipo de assistência só é coerente se souber extinguir-

se intrinsecamente. Pág.19 – É necessário distinguir acuradamente entre fazer assistência por

direito da cidadania e acabar com a cidadania ao fazer assistência. Em nosso ambiente

predomina a segunda parte abusivamente.

O correto seria dizer que a assistência cumpre a cidadania. E isto é fundamental. É

toda a dignidade da assistência. Pág.20 – [...] é possível recuperar presos da cadeia, mas não

será pela via preferencial da assistência. Jamais. Em certa medida, a cadeia é a escola do

crime, pois confia em excesso na assistência, sem falar que estamos chamando de assistência

o que nem sequer seria caricatura dela. Garantir o direito de sobrevivência é fundamental, mas

é só o primeiro passo. Ninguém quer apenas sobreviver.

Entretanto, há assistências mais próximas da emancipação, quando se conjugam com

outros esforços orquestrados e estratégicos, como é o caso da “bolsa-escola”, por exemplo, ou

quando tem caráter preventivo, como pode ser o cuidado com crianças na primeira infância,

tendo em vista poderem crescer em condições mais favoráveis.

2 – Assistência como problema

Pág.23 – Assistência como problema tem tradição liberal, facilmente visível em país

como os Estados Unidos, onde pobre é em primeiro lugar figura suspeita e desprezível. A

cidadania assistida é, como regra, problemática, porque tende a definir a pessoa como

beneficiária, não como cidadã, à revelia de discursos altissonantes, além de atrelá-la a auxílios

estatais residuais e intermitentes. A cidadania tutelada submete a pessoa ao mercado,

transformando este como parâmetro definitivo, inclusive da sobrevivência. Cidadania tutelada

é contradição nos termos, já que cidadania significa sempre libertação da tutela, apontando

para a gestação da capacidade de autonomia. Na prática, porém, é o que mais comumente

ocorre, no sentido de que a cidadania é trocada pela tutela, usando-se nesta transação

sobretudo formas de assistencialismos. Na cidadania tutelada predomina a falsificação da

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cidadania, porque é destruída na própria tutela. Na cidadania assistida predomina a farsa,

porque se usa a cidadania como isca, para, logo a seguir, reduzi-la aos trapos dos auxílios

oficiais. Nesta também se pede submissão – traduzida quase sempre no voto e na ordem -,

mas existe lastro concreto de direito. Por isso, não nega propriamente a cidadania, mas é

capciosa, à medida que retira pela direita o que dá pela esquerda.

Pág.24 – Com isto pretendo dizer, ademais, que focar a assistência como problema não

implica negar seu substrato de cidadania.

Pág.25 – Existiria incompatibilidade entre assistência e emancipação? De modo

algum. Mas existe, isto sim, relação dialética tipicamente contrária e complexa. Não é difícil

mostrar que todo processo emancipatório necessita de apoio externo, como é o caso notório da

criança que nasce em situação de total desamparo social e necessita, para tudo, do cuidado dos

outros. Em termos concretos, todo processo emancipatório, sendo social, realiza-se junto e em

confronto com os outros. Todo carinho paterno também cerceia, mas, tendo consciência disso,

procura reduzir o cerceamento e aumentar a autonomia. Normalmente, a família sabe bem

disso: criam-se os filhos para o mundo. Crescendo, precisam desenvolver o senso pela

autonomia, a ponto de deixar a família dos pais, para constituir família própria. Se o filho

permanecer na família dos pais, algo saiu errado no processo educativo: a tutela prevaleceu

sobre a libertação.

Esta mesma lógica dialética carece ser aplicada à assistência. Existe aquela que abafa,

apequena, humilha, e existe outra que eleva, edifica, motiva. Esta é peregrina, raríssima,

muito exigente. A outra é comum, quase a regra. É muito difícil estabelecer limite visível

entre uma e outra, pois nas bordas se mesclam e se confundem. Por exemplo, quando damos

esmola – digamos, recolhemos roupa usada para dar aos pobres -, podemos estar fazendo boa

ação, impelidos pelo sentimento de que é mister fazer alguma coisa. Mas este é o nosso lado.

Pág.26 – Do lado dos pobres, o que sucede é, primeiro, ter de conformar-se com os restos da

parte nobre, e, segundo, ficar à mercê da caridade alheia. O “bem” que se faz aos pobres pode

não compensar o estigma cada vez mais definitivo, não no sentido neoliberal do receio de que

os pobres se tornem mal-acostumados, mas no sentido social de cassação da cidadania. Este

tipo de assistência pode sepultar de vez o horizonte de alternativas que poderia ser

descortinado, caso o pobre descobrisse que, se houver salvação, dependerá principalmente

dele. Sobretudo em situações extremas, torna-se difícil – praticamente impossível – esperar

que o pobre “filosofe” sobre emancipação. Mas é nesses casos que o doador, se não possuir

consciência crítica, principalmente autocrítica, produz, dialeticamente falando, o contrário do

que se propõe. A doação mais facilmente confirma a pobreza do que a combate.

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Esta é a dialética do benefício: é melhor para o beneficente, porque dele não precisa;

pode ser péssimo para o beneficiário, porque dele passa a depender. E este é o drama da

assistência: fabrica beneficiários ou pelo menos confirma a situação de beneficiário. Na

dialética contrária e complexa entre assistência e emancipação, esta começa a surgir quando

se consegue dispensar a ajuda. Assim, ninguém se emancipa sem ajuda, mas emancipar-se é

especificamente saber dispensar ajuda.

Pág.27 – Marx falava, de ditadura do proletariado, querendo significar que o

proletário não pede assistência pública ou privada, mas quer tomar as rédeas da sociedade, ou

seja, do Estado e da economia.

Pág.28 – Parece-me impressionante e suspeita a confiança que certa esquerda deposita

no Estado. Num passe de mágica, esquece-se que se trata de Estado capitalista liberal, que

também na assistência reaparece sempre a relação de classe, que a dialética do poder é a da

usurpação, sobretudo que a qualidade do Estado não pode estar nele mesmo, mas em seu

controle popular ferrenho. Por certo, Marx alimentava a visão anarquista do Estado, tendia a

ver nele quase que exclusivamente a relação de exploração, pregava sua redução ao mínimo

dos mínimos, como se fosse, no máximo, mal necessário. Esta perspectiva não cabe mais.

Mas continua de pé, mais do que nunca, que toda visão genuinamente democrática é

insistentemente crítica do Estado e dos governos, mesmo que não seja inspirada no marxismo.

3 – Emancipação e Pobreza Política

Pp. 31-32-33-34 – No espaço do poder não existe “terra devoluta”, porque está toda

ocupada, usurpada. Qualquer privilégio é feito à custa dos outros. Não é possível inventar

privilégio que não lese os outros. Neste sentido, para reduzir os privilégios usurpados é mister

contrapor-se frontalmente, impor-se, conquistar.

Precisamente é este o desafio de redistribuir renda. Quando apenas se distribui renda,

deixa-se a desigualdade tal qual está, porque tomamos em conta apenas recursos devolutos,

resíduos disponíveis. Passamos para os pobres as sobras do sistema, esperando que se

“amansem”. Já redistribuir significa tomar de quem tem em excesso, partindo-se do ponto de

vista de que a concentração de renda é fenômeno que agride os direitos humanos e

democracia. Podemos visualizar tal distinção claramente no MST, sem com isto

necessariamente apadrinhar tudo o que este movimento inventa: não se contenta com

distribuição de terra, como sempre foi, porque se restringe a terras devolutas, mal localizadas,

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improdutivas, sobrantes; pretende apropriar-se de terra produtiva, forçando a rever todo o

processo de apropriação da terra.

O MST, como todo movimento complexo de cidadania, nem sempre tem controle de

iniciativas localizadas, além de gerar facilmente invasores profissionais, que passam a

manipular privilégios pessoais e grupais. Afinal de contas, como mostra qualquer sociologia,

igualmente na favela existe estratificação social. Lá também há “pobres” que sabem viver da

pobreza dos outros. Mesmo assim, este movimento sinaliza uma direção inovadora ao

postular a redistribuição das terras, tocando no pilar sagrado liberal que é a propriedade

privada. Aí está sua força e seu susto. O liberalismo teima em transformar a apropriação

privilegiada em mérito. Não se apropria apenas das terras. Apropria-se também do Estado,

Esbulha-o ostensivamente. Privatiza-o em nome do mercado. Este é o “sangue-frio” desta

elite perversa: considerar normal, mérito histórico, que 10% das pessoas concentrem em suas

mãos por volta da metade da renda nacional. Diante disso, é inevitável a pergunta: como

desconcentrar renda? Dificilmente pela via da solidariedade... Impossível pela via da

assistência... Não quer dizer que o caminho violento seja o único, porque a história mostra

outras iniciativas possíveis, ainda que “radicais”. Radicais não no sentido da violência, mas

no sentido de tocar as mais profundas raízes da concentração da renda. No Welfare State este

intento foi logrado, pelo menos em parte, sob a ação concertada dos sindicatos e governos

social-democráticos. No Plano Real também ocorreu algum efeito de redistribuição de renda,

sob o impacto de certa tecnocracia esclarecida e de governo mais ligado a causas populares.

Mas como não foi resultado de processo histórico popular de conquista, acabou servindo

muito mais para a reeleição do presidente do que para refazer a estrutura da desigualdade.

No pano de fundo desta discussão está a questão da pobreza política, reconhecida hoje

até mesmo em ambientes neoliberais como a questão social mais dura. Garantir a

sobrevivência das pessoas é direito radical decisivo, mas ainda mais relevante que isso é

gestar a competência política de saber garantir a sobrevivência com as próprias mãos.

Porquanto, excluído irremediável é aquele que nem sequer consegue e é coibido de saber que

é excluído. Por isso pobreza política indica a condição de “massa de manobra”, objeto de

manipulação, subalternidade permanente. Pobre, mais que tudo, não é quem é destituído de

“ter”, mas de “ser”. De certa maneira, a obra de Mark destinou-se a mostrar ao proletário, por

todas as vias imagináveis, que o resultado de seu trabalho só poderia ser dele e que o processo

de mais-valia invertia a situação, ao permitir ao dono dos meios de produção apropriar-se do

valor gerado pelos outros. No fundo, Marx desenhava os traços básicos da “alienação”, no

sentido do trabalho indevidamente apropriado e do trabalhador tornado massa de manobra.

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Pág. 36-37-38-39 – Ser humano ignorante é aquele que ainda não foi capaz de descobrir que

as oportunidades podem ser feitas, inventadas, criadas, pelo menos até certo ponto. Sobretudo,

não descobriu que pode fazer-SE oportunidade. Não sabe o que é autonomia, ou a tem como

algo concedido, controlado. Não vislumbra o que poderia ser e fazer, desde que tenha

iniciativa, saiba se organizar, saiba pensar. Por isso, entrega seu destino a mãos estranhas e

hostis. Espera que outros resolvam seu problema. Observando deste modo, emancipação

apresenta um processo de extrema complexidade dialética, podendo-se ressaltar:

a) Num primeiro momento, emancipação sinaliza a necessidade de consciência

crítica, sobretudo autocrítica, pela qual a opressão é percebida como imposta e

injusta.

b) Como regra, processos emancipatórios precisam de “intelectuais orgânicos”, que

seriam gente mais consciente capaz de ativar a consciência crítica dos outros. Esta

dialética é de complexidade extrema, como vimos, mas corresponde ao processo

social de gestação da autonomia: precisa de ajuda e precisa também dispensar a

ajuda. Os intelectuais orgânicos são “orientadores” ou “facilitadores” dos

processos emancipatórios, não os donos; por isso, faz também parte da vida deles

ser dispensados pelos orientados, se é que estes chegam um dia a ter autonomia

plena.

c) Num segundo momento, o oprimido, sabendo da opressão, pode conceber

alternativas. Este fenômeno coloca à prova, desde logo, a qualidade de sua

consciência crítica e autocrítica: se continuar esperando a solução por parte dos

outros apenas, a autonomia ainda é incompleta ou mesmo farsante; se conseguir já

vislumbrar que é a peça-chave de qualquer solução, por mais que deva contar com

apoios externos, a autonomia começa a ser gestada adequadamente. Não é o caso

de desprezar apoios externos, mas de vê-los criticamente, ou seja, como apoios

supletivos. A assistência, vista deste modo, não faz mal; ao contrário, pode ser

empurrão fundamental. O conceito de alternativa não pode, de modo algum,

encerrar-se em propostas assistenciais, porque a assistência não é política de

alternativas.

d) A ideia de alternativa não implica necessariamente rompimento violento, mas

certamente radical, no sentido de inverter a relação de poder: passar da condição

de massa de manobra para a da capacidade de reagir como sujeito.

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e) Num terceiro momento, o oprimido pode descobrir as vantagens da cidadania

coletivamente organizada, aperfeiçoando sobremaneira a competência política; a

cidadania individual já é muito importante, porque corresponde à constituição

inicial do sujeito individual. Mas efetiva é sobretudo a coletiva, aquela que faz

volume, preenche os espaços, pode ser vista claramente, exerce influência e pode

definir a história. Porquanto, uma coisa é o trabalhador crítico e autocrítico, outra é

o sindicalizado que enche praça, fecha empresa, encurrala autoridades. Neste

sentido, todo processo emancipatório supõe o associativismo, fenômeno social de

extrema profundidade pelo qual as pessoas deixam de ser sujeitos isolados, para

tornarem-se sujeitos coletivos; é questão essencial de competência política, dentro

da pretensão de fazer história própria. Por sua vez, o associativismo coloca, de

novo, à prova a qualidade da cidadania, porque exige envolvimento político

profundo, que podemos chamar de militância. Como regra, as associações são

farsantes, porque só contam com os chefes e que foram muitas vezes gerados em

processos não democráticos, nas assembléias não comparece quase ninguém, não

se auto-sustentam1. Quando se ligam a órgãos públicos, tendem fortemente a

conceber-se como táticas de obtenção de assistência, pela qual pagam com

crescente subalternidade.

f) A cidadania coletivamente organizada precisa coincidir com a cidadania

emancipada, dotada de satisfatória competência política para poder ser sujeito de

suas próprias soluções. Quem tem o mínimo de consciência crítica e autocrítica

sabe sobretudo de seus vazios e precariedades; não toca trombeta na esquina, mas

sabe medir suas forças, buscar alianças, fazer parecerias, sempre sob o signo do

sujeito, não do objeto.

4 – Defender e Limitar a Assistência

Pp.43-44 – Para o mercado, pessoas improdutivas – ou, mais propriamente, incapazes

de gerar mais-valia – não interessam. Sobretudo a globalização competitiva descarta a força

de trabalho incapaz de acompanhar o ritmo da produção. É muito difícil divisar na assistência

qualquer “lucro” para o mercado, ainda que, com alguma boa vontade, se possa indicar que

trabalhador mais satisfeito, cuidado, protegido, pode produzir mais e melhor. Por esta e por

1 Veja critérios de qualidade associativa em DEMO, P. 1998a. Avaliação qualitativa. Campinas, Autores Associados.

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outras razões, a assistência sempre detém posição suspeita para o mercado, quando menos

porque é gasto improdutivo. Acrescem ainda dois motes importantes: dentro do teorema

social liberal, quanto maiores as necessidades sociais, menores são os recursos disponíveis, e

a assistência tende a viciar os pobres, despertando o parasitismo social. Dentro da lógica do

mercado, assistência pode ser feita somente em condições de pobreza residual e de afluência

econômica, que permitem gastar sobras para dar conta da questão. Crê-se que pobreza é

resíduo do funcionamento do mercado, não questão que possa acometer maiorias. Pobreza

para além de certo montante residual já soa a mau costume, inépcia, incompetência,

parasitismo. O Welfare State teria caído nesta arapuca e, agora, tem dificuldade de sair dela.

Em parte, o desmonte das políticas de proteção percorre esta rota, inclusive o apelo crescente

ao voluntariado. Em alguma medida, o assim dito “terceiro setor” alimenta a alternativa de

fazer o que o mercado não pode ou não quer fazer em política social1.

A crítica que aqui faço às políticas superdimensionadas de assistência nada tem a ver

com este pano de fundo. O que critico frontalmente é a tendência facílima de fazer da

assistência cultivo da ignorância popular, coibindo a possibilidade de emancipação encoberta

pela cidadania assistida. Critico também que, enquanto se busca, com retórica absurdamente

vazia, a assistência universal, nem sequer se garante a assistência permanente de que

segmentos fundamentais da população precisam. Não há como contestar a necessidade deste

tipo de assistência permanente, que só pode ser justificada por compromisso com a

democracia e com os direitos humanos. [...] na prática, nenhuma política de assistência social

– nem mesmo estas – poderia ser apresentada como pelo menos satisfatória. A mesma

brincadeira que a direita faz com a pobreza – tutelando-a de maneira clientelista – foi feita, até

certo ponto, pela LOAS e parte da esquerda que a defende, quando abraçou a pobreza inteira

como seu espaço de atuação. Dificilmente poder-se-ia imaginar superdimensionamento maior.

É, ao mesmo tempo, absurdamente ingênuo e incorreto. Ingênuo, porque nenhuma política

isolada poderia meter-se a dar conta da pobreza inteira, muito menos assistência, sem falar

que se trata de declaração meramente verbal, pior que as promessas eleitoreiras da direita.

Incorreto, porque a lei de assistência não é lugar indicado para desenhar proposta de combate

à pobreza, garantindo-se aí que se trata de coisa totalmente residual e bagatelizada. O combate

à pobreza precisa ser política tipicamente estratégica, envolvendo todos os setores, inclusive

os econômicos. Entretanto, deste truque já sabemos há muito tempo: o Congresso deixa passar

1 FERNANDES, R. C. 1994. Privado porém público, o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.

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leis com retórica de esquerda, desde que se neguem os recursos e seu campo de atuação seja

considerado residual. Não é outro o destino do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Pág.45 – Ao lado desta defesa aberta que faço das assistências permanentes, é mister

defender também as assistências provisórias, sempre que necessárias, mas em nome da

emancipação. Vale aí que saber dispensar a ajuda é muito mais importante do que dela

precisar e sobretudo depender. A maioria das políticas de assistência vive sob este signo: nos

casos em que deveriam ser permanentes, são mantidas como provisórias, prevalecendo a

expectativa de doações graciosas por parte do sistema; nos casos em que deveriam ser

provisórias, tendem a motivar a expectativa de ajuda permanente, com o objetivo de manter o

vínculo de dependência. Daí não segue, em hipótese alguma, que a assistência deveria ser

descartada. Ao contrário, deveria ser bem-feita. Assistência bem-feita obedece aos parâmetros

da democracia e dos direitos humanos:

a) É direito líquido e certo que populações incapazes de se auto-sustentarem ou que

não deveriam preocupar-se com isso têm direito à assistência permanente,

independentemente de qualquer condição de mercado. Sociedade que não cuida de

suas crianças pobres, não monta rede abrangente de atendimento a excepcionais e

portadores de necessidades especiais, não trata bem seus idosos, revela que

mantém democracia farsante, hipócrita, perversa. Entretanto, porque está na lei,

alguma coisa se faz, mas apenas alguma coisa, cá e lá, sempre insuficiente e

insatisfatória.

b) Pág.46 – Pior que o problema de cobertura inadequada é sua falta total de

qualidade no atendimento. Basta olhar para as instituições que deveriam cuidar de

adolescentes infratores ou para as prisões, onde as rebeliões já se tornaram rotina:

falta tudo, espaço mínimo físico, cuidados educativos e assistenciais, programas

ostensivos de recuperação, ambiente humanizado, pessoal especializado, e assim

por diante. Fazem exatamente o contrário: são escola aperfeiçoada do crime.

c) Se o desacerto é desta magnitude nas políticas permanentes, nas outras é ainda

maior, constituindo-se no espaço preferencial do cultivo da massa da manobra.

Recriam a miséria ciclicamente, alimentando a ignorância sistematicamente.

d) Dentro dos parâmetros da democracia e dos direitos humanos, a assistência

precisa, pois, de adequada cobertura e qualidade, seja na versão permanente, seja

na provisória; precisa fazer parte do orçamento estruturadamente e ser considerada

verba intocável, como são intocáveis os direitos humanos. Entretanto, funciona

aqui outra face do mesmo teorema social liberal: quanto mais pobre a pessoa,

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menos condições tem de reagir; pode ser facilmente enganada, manipulada,

vilipendiada.

e) Regra fundamental de toda política social é não se propor como algo isolado e

setorial

f) Pág.47 – Regra ainda mais fundamental é o controle democrático popular, fonte

verdadeira da qualidade das políticas públicas. Aqui, porém, aparece o motivo

maior desta regra: o sistema não teme população com fome, mas teme população

que sabe pensar. Muitas vezes, assistir é feito para evitar o saber pensar ou para

cultivar a ignorância.

Ao lado de defender, também é mister limitar a assistência. Tenho três boas razões

para limitar a assistência:

a) A primeira refere-se à necessidade de gerar assistência que não prejudique o

processo emancipatório, criando no assistido vínculo irreversível de dependência.

Trata-se da tarefa heróica de ajudar de tal forma que o ajudado perceba ser mister

dispensar a ajuda. Esta dialética é talvez uma das mais sensíveis do ser humano,

porque é a maneira que a história conhece de fabricar a autonomia, sempre

arriscada, complicada e facilmente deturpável. Do ponto de vista do intelectual

orgânico, é mister aguda consciência crítica para perceber se a ajuda já está

abafando a autonomia do ajudado, e do ponto de vista do ajudado é necessária

sábia autocrítica para perceber se já está facilitando a condição de massa de

manobra, em vez de despertar para autêntica autonomia.

b) Pág.48 – A segunda limitação da assistência refere-se à necessidade rígida de

enfocamento das políticas, o que já indica não ser o caso fazer dela princípio

universal. Geralmente, as políticas públicas são de má qualidade, não interessando

aos ricos; mas, quando ocorre alguma de boa qualidade, invariavelmente seu

acesso se afunila em favor dos privilegiados, como é o caso notório das

universidades públicas de ponta ou do Hospital Sara Kubitschek. Aparece aqui

disjuntiva muito complicada entre fazer políticas públicas de baixa qualidade

tipicamente para os pobres – coisa pobre para o pobre – e fazer políticas públicas

de alta qualidade tipicamente para os ricos. Daí segue duplo desafio: fazer políticas

de qualidade para os pobres e evitar que os ricos se apropriem delas. Para tanto, é

mister colocar em ação um duplo movimento: o mais importante é gerar a

capacidade dos pobres de garantir seu espaço, fazendo uso da discriminação

positiva; a seguir, é fundamental encontrar democracias que sejam capazes de

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implantar esta direção, por exemplo, garantir escola pública de boa qualidade para

as periferias. A ideia de limitar a assistência aqui não significa negá-la, mas, ao

contrário, potenciar seu efeito por meio do devido enfocamento.

c) Pág.49 – A terceira limitação da assistência se refere à necessidade de evitar sua

setorialização, tanto no sentido de agir sozinha quanto no de querer fazer tudo

sozinha. A LOAS pretende fazer tudo sozinha, aceitando – alegremente! – a

pobreza inteira, caracteristicamente se recursos ao menos adequados e condições

institucionais de articulação. [...] o saber pensar só se engrandece se souber

ancorar-se em devida e adequada assistência.

Pág.50 – A dádiva maquiavélica corrói o sujeito, enquanto a dádiva solidária pode

promover a libertação. No pano de fundo desta interpretação, estou manejando a dialética do

conflito social, sobretudo de olho na relação de classe.

5 – Abusos Corporativistas do Estado

Pp.51-52-53 – Seria ocioso apontar no Congresso a representação dos interesses da

elite econômica e política, muito mais do que dos interesses populares. Estes são lembrados

no momento do voto, comprados com incríveis migalhas eventuais, sobretudo com ofertas

assistenciais. Já estamos também acostumados a que partidos de direita, principalmente ditos

liberais, se apresentem como peritos em reforma do Estado e moralização pública, enquanto

fazem do Congresso a banca de negociatas sem fim e sem pudor. Não há voto que não tenha

seu custo.

Entretanto, pode nos surpreender que, sendo o poder mais maquiavélico do que

capitalista, parte da esquerda também se dedique a espoliar o Estado. À medida que o

funcionalismo público, cansado do descaso geral, sobretudo em alguns setores onde a

discriminação é descomunal, como no professorado básico, descobriu que poderia encontrar

no Estado espaço privatizável, evita o confronto direto com o mercado, para especializar-se

em alargar espaços públicos corporativistas1. Muitas bandeiras são nobres, ainda que os

resultados pífios, como por exemplo, a bandeira da eleição dos reitores de universidades e dos

diretores de escola. Estas conquistas também são nobres e dificilmente teriam acontecido sem

a organização política adequada, mas propendem para a proteção de benesses escusas, ainda

que, por vezes, pouco significativas. Perdeu-se, entre outras coisas, a relação com o bem

1 BOSCHI, R. R. (org). 1991. Corporativismo e desigualdade. A construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro, Rio Fundo Editora.

Page 13: Fichamento - Educação pelo Avesso

13

comum e evita-se, de qualquer modo, o controle popular. Trata-se de assistencialismo que

começa em casa: primeiro para os funcionários do Estado, depois, se sobrar, para a população.

Todavia, antes de avançar neste tipo de análise, convém relembrar o processo de

concentração de renda vigente no Brasil, considerado um dos mais perversos no mundo. [...] o

país representa mais ou menos a décima economia mundial, mas no ranking aparece por volta

do 60º lugar. É sempre muito enfático o reconhecimento de que a América Latina é “a região

que maior desigualdade registra em todo o mundo” (BID, 1998:V). “Na média, os países da

região se vêem afetados pela maior desigualdade do mundo em matéria de ingressos: no

Brasil e na Guatemala, os 10% superiores da população absorvem quase 50% do ingresso

nacional, enquanto os 50% inferiores da escala ganham apenas algo mais do que 10%.” E

acrescenta pateticamente: “Maior importância tem o fato de que o problema não mostra sinais

claros de melhoria. As melhores mensurações de que dispomos indicam que a distribuição do

ingresso melhorou nos anos setenta, registrou considerável deterioração nos oitenta e tem

permanecido estancada em elevados níveis nos anos noventa. (...) Segue que esta

desigualdade parece ser fenômeno perdurável e de raízes profundas” (BID:1).

As grandes diferenças salariais, porém, não se devem apenas à distinção entre

capitalistas e trabalhadores, mas às distâncias salariais entre os próprios trabalhadores. No

decil1 superior só 14% seriam empregadores, quer dizer, a concentração de ingressos se

realiza também pela distribuição extremamente desigual entre as pessoas que vivem de

salário. Aparece aqui marca típica de países muito desiguais: a desigualdade de ingressos é

mais forte na comparação entre capitalistas e assalariados, mas pode ser também espetacular

no seio dos próprios assalariados, quando pequena parcela deles passa a ganhar rendimentos

tão elevados que mais os aproxima dos capitalistas que dos assalariados.

Pág.57-58 – Os chefes de domicílio dos 10% mais ricos se caracterizariam por quatro

marcas mais ostensivas: nível de educação, tipos de emprego/trabalho, zona de residência e

número de filhos. Na média, possuem por volta de 11,3 anos de escolaridade. “As distâncias

educacionais mais pronunciadas entre os decis mais ricos se encontram no Brasil, México e

Honduras, onde são superiores a três anos, e somente no Peru são menores que dois anos”

(BID, 1998:22). [...] passou o tempo em que os “trabalhadores” eram – todos – categoria

explorada. Cada vez mais aparecem trabalhadores que estão francamente ao lado dos

detentores dos meios de produção, alojando-se no decil superior, onde, segundo o relatório,

1 As comparações são feitas, como regra, por decis, ou seja, dividindo a população em blocos correspondentes a 10%, em dez decis. Decil superior significa, então, o décimo decil, ou aqueles 10% que estão no topo da escala de ingressos, assim como decil inferior há de representar o primeiro decil, ou aqueles 10% que estão na base da escala, percebendo os menores rendimentos.

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somente 14% seriam empregadores. Há assalariados que estão também na causa da

concentração da renda, quando se distanciam em demasia das bases. Tanto na empresa

privada como no setor público existem camadas de assalariados absolutamente privilegiadas,

chamando a atenção sobretudo assalariados públicos que, estando dentro da máquina estatal,

souberam cercar-se de benesses duvidosas, sem que estas possam um dia chegar à maioria da

população. Esta “cultura” do privilégio instalou profunda desordem salarial, que já não

obedece a padrões mínimos de relação com produtividade, importância social e econômica,

escolaridade, mas funda-se em trambiques ostensivos, seja pela manipulação da lei (agregação

de vantagens salariais, pensões e aposentadorias absurdas, confusão entre direito adquirido e

usurpação), seja pela reserva de poder (salários de deputados e similares ou de juízes), seja

pelo apadrinhamento político e acumulação de salários.

Por isso, deve-se afirmar que a desconcentração da renda é sobretudo fenômeno

político de conquista histórica. A cidadania ainda é a cláusula central da equidade.

Pág.59 – Caricaturando as coisas, o projeto inclui que 90% da sociedade “se esfole”

para manter os privilégios de 10%.

Pp.60-61 – À medida que o funcionalismo foi se organizando, fenômeno necessário

dentro de grupo dotado de suficiente educação, por saber da importância da cidadania

organizada, soube moldar legislação propícia, que sacralizou alguns princípios de auto-defesa,

como a isonomia e a estabilidade, além da aposentadoria integral, para falarmos apenas em

três bastiões centrais. Em determinadas carreiras, a estabilidade é necessária para seu

exercício desimpedido, bem como seria de esperar que, pelo mesmo serviço, se possa ganhar

salário similar. Quanto à aposentadoria integral, é mais difícil de defender, porque representa,

para salários altos, espoliação inqualificável da sociedade. É sempre o caso distinguir entre

salários muito altos e aqueles tidos como normais ou baixos, para os quais talvez fosse

possível defender aposentadorias integrais, porque não precisariam estar acima ou pelo menos

muito acima daquelas privadas. Estando a aposentadoria privada de maior valor algo acima

dos R$ 1.000,00, torna-se afrontoso imaginar que qualquer salário público possa gerar

aposentadoria integral sem limite.

Estarrece que se queira usar para aposentadorias integrais elevadas – típicas do decil

superior – o argumento do “direito adquirido”, pois privilégios desta ordem são claras

usurpações, obrigam a sociedade inteira a sustentá-los, privatizam o setor público. Mesmo

alcançadas “dentro da lei”, não é aceitável “roubar” a população dentro da lei. Se assim fosse,

não teríamos argumentos para reclamar da direita, quando mostra extrema perícia em

“roubar” dentro da lei. Ademais, recursos públicos não podem gerar direito adquirido, pela

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razão de que não são disponíveis diretamente. Por sua vez, a estabilidade foi o consolo para

salários baixos, que, acompanhada da aposentadoria integral, ainda mantém algum interesse

em carreiras públicas mesmo decaídas. Todavia, o movimento de autodefesa corporativista

passou a superar, com frequencia maior, o compromisso com o serviço público. Embora a

imagem que a sociedade tem do funcionalismo público seja em grande parte equivocada e

injusta, porque encobre – por força da detração liberal sobretudo – em muitos lugares relações

indignas de trabalho, detém alguma razão de ser. Não se pode esquecer, hoje, que a maioria

do funcionalismo não tem aumento há mais de quatro anos.

Todavia, a luta renhida em torno das remunerações, em particular no Judiciário, sem

falar no Legislativo e em menor escala no Executivo, escancara o abuso do Estado por parte

de segmento público [...]. Não é, pois, diferente dos ideais da burguesia, que os partidos

pretenderiam combater. Com certeza, o magistrado que alimenta tal expectativa salarial não

pode ter noção adequada de justiça, nem o congressista pode estar vinculado às causas

populares e o governante interessado em redistribuir renda. Esta situação bizarra lembra a

crítica acerba feita ao Banco Mundial: tem por meta promover o desenvolvimento, sobretudo,

de regiões pobres, mas angariou para si a condição de instituição extremamente privilegiada,

em particular para seus técnicos. Estes mostram, com total perícia, que sabem melhor cuidar

de si do que dos pobres.

Pp. 62-63 – A discussão atual em torno da reforma da Previdência nos parece

característica. Segundo a experiência da maioria dos países desenvolvidos, aposentadorias

integrais são impraticáveis, porque impõem ao Tesouro nacional peso desmedido, que terá de

ser dividido com a sociedade como um todo. A direita, tradicionalmente, saqueou o Estado,

sobretudo pela apropriação privada dos gastos orçamentários mais importantes, bem como

através de trambiques legais com respeito a indenizações, dispensas fiscais, acessos

facilitados a financiamentos. Este jeito de agir como o Estado é tradicional, e marcou nosso

entendimento comum de que o Estado é feito para ser saqueado. Governantes que não fazem

isso são ingênuos, despreparados, incompetentes. O melhor que já conseguimos em nossa

história é governante que “rouba, mas faz”.

É certo que ultimamente tivemos a experiência de governos da esquerda que, a par de

naturais fracassos, também souberam mostrar que é possível governar sem roubar. As três

gestões sucessivas do PT na Prefeitura de Porto Alegre nos parecem exemplares. Mas isto

ainda é história peregrina.

Pág.64 – Enquanto isso, os trabalhadores do setor privado observam, perplexos, esta

farra pública, porque, além de serem a origem básica dos tributos, são condenados a migalhas

Page 16: Fichamento - Educação pelo Avesso

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de oferta pública inaceitável, como é o atendimento hospitalar, previdenciário, escolar,

assistencial.

Pp.65-66-67 – Para nossa discussão aqui, este “assistencialismo caseiro” revela como

a assistência vem sendo entendida, não só pela direita, mas também por certa esquerda

instalada no funcionalismo público de modo corporativista.

Exemplo flagrante é a universidade pública gratuita. Se levarmos em conta que por

volta de 40% dos alunos não completam o ensino fundamental, já poderíamos afirmar que os

pobres de verdade jamais estudarão de graça na universidade pública. O argumento da

gratuidade é feito em nome dos pobres, mas serve aos ricos.

Política social redistributiva exige desfazer privilégios ostensivamente. Por isso, é sua

função central desprivilegiar claramente os mais ricos. Seria necessário fazê-los pagar,

precisamente para que os pobres não precisem pagar.

A gratuidade universal somente poderia funcionar, de alguma maneira, se a sociedade

não fosse tão desigual. Não se pode aceitar o argumento de que todos já pagam impostos e

que, por isso, a universidade não é propriamente gratuita, porque isto é estritamente comum.

Precisamos ir muito além disso e saber obrigar os ricos a pagarem a conta. O

superdimensionamento da assistência dentro do Estado é muitas vezes alimentado pelo

próprio Estado, o que revelaria que sua tendência mais fácil não é proteger os pobres, mas

praticar o assistencialismo.

6 – Para Combater a Pobreza

Pág. 69 – Assistência social não é política social diretamente vinculada a combater a

pobreza, porque sua função central é garantir o direito à sobrevivência. Porém, pode

contribuir para o combate da pobreza, aliando-se a outras políticas, entre as quais não pode

faltar o compromisso econômico.

Pág.70-71-72 – Primeiro, deixa-se de perceber que o combate à pobreza no Welfare

State não foi obra da assistência social, mas resultado de percurso histórico complexo de

conquista popular, secundada certamente por florescimento econômico considerável. Neste

percurso, descobriu-se sobretudo que a renda não pode ser apenas distribuída. Se assim fosse,

bastaria assistência. Para atingir o nível específico da redistribuição da renda, toda a

sociedade e toda a economia precisam ser mobilizadas e isto somente pode ocorrer –

principalmente no capitalismo – com extraordinário controle popular, que, por sua vez, supõe

cidadania ativa e organizada, além da universalização da educação básica. Segundo, esta não

Page 17: Fichamento - Educação pelo Avesso

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é toda a história. Trágico mais que tudo é ter de reconhecer que o Welfare State já é canto da

sereia: durou apenas trinta anos e somente no centro. A tese marxista do trabalho abstrato e da

sociedade da mercadoria – mais que a tese da relação de classes possivelmente – mostra-se

profundamente correta, porque assinala que no contexto capitalista o combate à pobreza só

pode ocorrer de modo intermitente e seletivo, como são, para a maioria das pessoas,

intermitentes e seletivos bons salários. O Estado já não tem recursos para tais políticas

consideradas apenas eventuais. Estranhamente, também é aceita a tese de que jamais tivemos

sociedade tão rica e afluente, extremamente produtiva e competitiva, cada vez mais

globalizada. Os pobres, de novo, já não são detentores de direitos, mas sobretudo ineptos

economicamente. Sua focalização será sobretudo negativa, estigmatizante, também para

forçá-los a voltar ao mercado.

A combinação entre mercado e justiça social foi perseguida com afinco1, também por

vastos setores da direita, não tanto por convicção, mas por temor diante da “ditadura do

proletariado”. Berlim Ocidental, encravada na Alemanha Oriental, foi um dos signos mais

potentes desta luta também ideológica: pretendia-se mostrar o quanto o sistema capitalista

seria superior ao socialista. Ironicamente, porém, com a derrocada do socialismo real ao final

da década de 80, completa-se também a derrocada do Welfare State, cujo indicador mais claro

parece ser o estilo de globalização que vivenciamos hoje: trata-se de centralização violenta no

dinamismo econômico dos Estados Unidos, único país que se mostrou menos afetado pela

crise. Longe de ser fenômeno alvissareiro de redistribuição das chances de desenvolvimento,

ocorre forte “americanização” do mundo, processo sustentado por duas forças decisivas no

mercado atual: a competitividade produtiva e sua base na intensividade do conhecimento2.

Pág.73 – Não se trata de desconhecer o brilho histórico do Welfare State, tendo em

vista que algumas populações tiveram dele proveito notável, mas de apontar que jamais foi

capaz de reverter a concentração da renda e do poder. No capitalismo é impossível colocar

democracia e direitos humanos acima do mercado. Não é o lugar da democracia e dos direitos

humanos, embora precise deles para maquiar-se.

Pág.75 – Para combater a pobreza, no concerto dos fatores, o mais estratégico tende a

ser a cidadania, porque esta é claramente fim, juntamente com conceitos fundamentais como

1 KONRAD-ADENAUER-STIFTUNG. 1992. Desenvolvimento econômico com justiça social: A economia social de mercado. São Paulo. Traduções 3, Centros de Estudos. KONRAD-ADENAUER-STIFTUNG. 1992. Economia social de mercado: um modelo transferível? São Paulo, Traduções 4, Centro de Estudos. KONRAD-ADENAUER-STIFTUNG. 1995. O difícil caminho para a justiça social. São Paulo, Debates 7.2 PRZEWORSKI, A. 1989. Capitalismo e social-democracia. São Paulo, Companhia das Letras. PRZEWORSKI, A. 1994. Democracia e mercado no Leste europeu e na América Latina. Rio de Janeiro, Relume-Dumará. PRZEWORSKI, A. 1995. Estado e economia no capitalismo. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.

Page 18: Fichamento - Educação pelo Avesso

18

democracia e direitos humanos. Volta-se sobretudo à superação da pobreza política, pois esta

expressa mais a pobreza dos fins do que dos meios. A cidadania implica, antes de mais nada,

sujeitos capazes de história própria, individual e coletiva, politicamente competentes para

organizar-se de forma adequada em torno dos fins e também em torno dos meios. [...] o

primeiro passo do combate à pobreza é desfazer a massa de manobra, se quisermos ir além da

simples sobrevivência. Esta visão indica, ademais, que é impraticável combater a pobreza sem

ter o pobre como figura central. Tê-lo como cidadão é absolutamente mais decisivo do que tê-

lo como beneficiário. Assistência social malconduzida pode obter efeito contrário, à medida

que agrava a ignorância do pobre, tornando-o ainda mais dependente dos próprios algozes.

Pp.76-77 – Por conta dos respingos do Welfare State, predomina entre nós a

expectativa do Estado como dono absoluto das políticas sociais, a ponto de fazê-lo redentor

das massas excluídas. Na verdade, o Estado realiza as políticas sociais que lhe foram

cometidas pela cidadania, não o contrário, e só as faz bem sob estrito controle democrático.

Quando se instala a ideia de que o Estado cuida dos pobres, sendo estes, ademais, segmentos

expressivos, por vezes majoritários, da população, o assistencialismo se torna regra, dentro da

contradição flagrante de tratar como resíduo social e econômico o que, na verdade, é a

representação mais legítima da respectiva sociedade.

Tomando como fulcro o conceito de emancipação, parece cada dia mais claro que a

política mais fundamental é a política social do conhecimento, porque, com base na

aprendizagem reconstrutiva de teor político, está mais próxima da formação da competência

política. [...] põe-se o grande desafio de ser autônomo solidariamente, combinando os direitos

próprios com os dos outros. Não se trata da noção dominante de solidariedade, manejada

capciosamente para aquietar os excluídos, mas da solidariedade a partir dos excluídos, de

acordo com a standpoint epistemology: saber ver a realidade não apenas a partir de nós

mesmos ou dos donos do conhecimento, mas sobretudo a partir dos excluídos do

conhecimento e do poder1. Mesmo que todo mercado seja seletivo, porque afunila as

carências, não é mister permanecer em sua versão capitalista. Mesmo que a renda não possa

ser igualmente distribuída, pode ser sempre redistribuída de acordo com critérios mais

equânimes.

Assim, o critério fundamental do combate à pobreza será conseguir que o pobre se

faça sujeito de suas próprias soluções.

1 HARDING, S. 1998. Is science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and epistemologies. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press.

Page 19: Fichamento - Educação pelo Avesso

19

Pág.78 – O segundo fator mais fundamental do combate à pobreza é a adequada

inserção econômica no mercado de trabalho. Uma das maiores ingenuidades da assistência

social, sobretudo quando apregoada como universal, é a de “passar por cima” do mercado,

inclusive de seu financiamento. Por certo a assistência é devida acima do mercado, mas isto

permanece letra morta sem a devida cidadania, como é o caso notório no Brasil. É letra morta,

nada mais. Sendo a relação liberal de muito mais que “belas palavras” para colhermos algum

efeito social. A confiança excessiva no Estado, sobretudo a fantasia de recursos infinitos de

preferência disponíveis para os pobres, é apenas outra ingenuidade gritante, que somente

favorece a posição residual das políticas assistenciais. O confronto com o mercado é parte

substancial do combate à pobreza.

Pág.79 – Um dos grandes problemas é o crescimento sem emprego, por conta da

intensividade do conhecimento: é possível produzir mais e melhor com redução da mão-de-

obra. O mercado, deixado a si mesmo, exacerba a exclusão social, ao mesmo tempo que pode

avançar, de modo espetacular, no campo da produtividade1. Esta contradição não será

resolvida pelo próprio mercado, como imagina o neoliberalismo. A presença da cidadania se

fará cada vez mais decisiva, já que a competência econômica precisa ser monitorada pela

competência política. Porém, como no capitalismo é impossível colocar os direitos humanos

acima do mercado, estamos diante de disjuntiva radical, buscando superar a sociedade da

mercadoria. Por falta de concorrente, o neoliberalismo se imagina senhor absoluto da

situação, mas surgem cada vez mais vozes contrárias, que vão desde o assim dito terceiro

setor, até os temores de degradação ambiental irreversível, passando pelo mundo das drogas

como alternativa de renda. Sabemos fazer riqueza, mas ainda não sabemos redistribuí-la.

Continua faltando mais competência política do que econômica.

Pág.80 – E o terceiro fator no combate à pobreza é assistência social, quer na versão

permanente, como expressão da democracia e dos direitos humanos, quer na provisória, como

expressão de salvaguarda da emancipação. Qualquer mínima concepção de dignidade

histórica vai aceitar que pessoas improdutivas, por não representarem interesse para o

mercado, não podem ser abandonadas à sua sorte, porquanto algumas são improdutivas por

razões permanentes ou porque não devem ou podem preocupar-se com isso, enquanto outras o

são porque o mercado não as incorpora. Esta função da assistência é algo que poderíamos

chamar de “sagrado”, como é sagrado o direito à sobrevivência. Entretanto, não combate a

pobreza a assistência que alimenta a pobreza política dos excluídos. Esta tem predominado de

1 RIFKIN, J. 1995. O fim dos empregos. O declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Rio de Janeiro, Makron Books.

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modo insistente nas políticas do Welfare State, sobretudo quando é apenas imitado

canhestramente. Não é por outra razão que a direita já adotou este tipo de assistência, até

mesmo a renda mínima, porque se apercebeu de seu efeito desmobilizador. Gasta-se pouco e

consegue-se mais facilmente o voto.

Todavia, o abuso não tolhe o uso. Será sempre fundamental manter a rede institucional

pública de atendimento assistencial adequado a segmentos populacionais mais expostos [...].

Pág.81 – O combate à pobreza implica, ademais, mudança cultural radical, a começar

por superar as “bagatelizações” comuns, inclusive na assistência, de que algumas sobras dão

conta do problema.

7 – Desenvolvimento Como Oportunidade e Liberdade

Recordando a notória postura marxista, o fato de o modo de produção capitalista ser

tão adverso aos trabalhadores não impediu que Marx reconhecesse seu traço revolucionário,

porque, pelo menos teoricamente falando, toda passagem de modo de produção acarreta

processo revolucionário, pois muda a relação infra-estrutural.

Pp.84-84 – Atualmente, outra discussão similar está em campo [...]. Trata-se da ideia

de Sen de definir desenvolvimento como liberdade1, no contexto de defesa bem articulada da

distinção dentre fins e meios. O mercado passa para a condição de meio, por mais

fundamental que possa/deva ser considerado, tornando-se fim o que o autor chama de

capability, ou seja, competência política. Reconhece que vivemos hoje com opulência sem

precedentes, dentro de um mundo caracterizado também por mudanças marcantes além da

esfera econômica. A democracia tornou-se forma predominante de governo, e conceitos de

direitos humanos e liberdade política fazem parte da retórica prevalecente. A expectativa

média de vida ampliou-se consideravelmente. O fenômeno da globalização liga regiões

diferentes do planeta, por conta não só dos negócios, comércio e comunicação, mas

igualmente em termos de pensamentos interativos e ideais. Todavia, reconhece igualmente

que vivemos em um mundo com privação, destituição e opressão marcantes. Há muitos novos

e velhos problemas, incluindo a persistência da pobreza e o atendimento precário das

necessidades elementares, ocorrência de fome e vasta carência nutricional, violação das

liberdades políticas e básicas, negligência extensiva dos interesses e organizações das

mulheres, atentados crescentes ao ambiente e à sustentabilidade da economia. A confiança no

mercado está se esgotando, embora o discurso neoliberal tenha sido conclamado para

1 SEN, A. 1999. Development as freedom. Nova York, Alfred A. Knopf.

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21

recuperar as virtudes esquecidas do livre mercado, como verdadeira “superstição”, no dizer de

Sen. Desenvolvimento significa superar todos esses problemas.

P.p86-87 – Desenvolvimento pode ser visto como processo de expansão das liberdades

reais que as pessoas desfrutam. Focar sobre as liberdades humanas contrasta com visões mais

estreitas do desenvolvimento, tais como identificar o desenvolvimento com o crescimento do

produto nacional bruto, ou com o aumento da renda pessoal, ou com industrialização, ou com

avanço tecnológico, ou com modernização social. Crescimento do produto nacional bruto ou

das rendas individuais podem, por certo, ser muito importantes como meio para expandir as

liberdades desfrutadas pelos membros da sociedade. Mas as liberdades dependem também de

outros determinantes, como arranjos sociais e econômicos (por exemplo, facilidades para

educação e cuidado com saúde), bem como direitos políticos e civis (por exemplo, a

liberdadede participar em discussão e questionamento público” (p.3). Trata-se de voltar a

atenção para os fins, mais do que para os meios, expressando a reação contra a tendência

liberal marcante de fazer dos seres humanos instrumento do mercado.

“Liberdade é central para o processo de desenvolvimento por duas razões distintas: a)

razão avaliativa: a avaliação do progresso deve ser feita primariamente em termos se as

liberdades que as pessoas têm são aumentadas; b) a razaão da efetividade: o desempenho do

desenvolvimento é profundamente dependente da iniciativa livre das pessoas” (p.4). Assim,

para decidir se existe ou não desenvolvimento, o critério mais fundamental é apreciar se as

liberdades das pessoas estão sendo incrementadas, e, a seguir, constatar a congruência entre

desenvolvimento e iniciativa livre dos indivíduos, porque a expectativa é que o

desenvolvimento decorra da liberdade. “A habilidade do mercado como mecanismo para

contribuir com crescimento econômico elevado e com progresso econômico em geral tem

sido largamente – e corretamente – reconhecida na literatura contemporânea sobre

desenvolvimento. Mas seria equívoco entender o lugar do mecanismo do mercado só em

termos derivativos. Como Adam Smith observou, liberdade de troca e transação é parte e

parceira das liberdades básicas que as pessoas têm razão de valorizar” (p.6). O laivo

neoliberal reponta facilmente na expectativa de que com regra é possível combinar mercado

capitalista e liberdade, seja pela via da suposição de que o mercado capitalista é o modelo

universal, seja porque deve ser o mercado mais aproximável das liberdades individuais. “É

difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa ser feito sem uso

extensivo de mercados, mas isto não exclui o papel do suporte social, regulação pública, ou

presença do Estado quando podem enriquecer – mais do que empobrecer – as vidas humanas”

(p.7).

Page 22: Fichamento - Educação pelo Avesso

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Pág.88 – Toma como exemplo a questão do emprego e do desemprego, vista quase

sempre como mera relação de mercado. “Desemprego não é apenas deficiência de renda que

pode ser corrigida por transferências feitas pelo Estado; é também fonte de efeitos

debilitadores de muito longo alcance sobre a liberdade individual, iniciativa e habilidade.

Entre os múltiplos efeitos, o desemprego contribui para a ‘exclusão social’ de alguns grupos,

e leva a perdas de auto-sustentação, autoconfiança, e saúde psicológica e física (p.21).

Preocuparia mais, assim, a falta de oportunidade na vida do que a falta de recursos materiais.

Pág.89 – Prevalecem, comumente, duas visões de desenvolvimento: uma o vê como

processo selvagem ou de dura disciplina; outra como processo amigável. Sen tende para a

segunda postura, pois as finalidades da vida não podem esgotar-se em procedimentos

instrumentais.

Pág.90 – O que a perspectiva da competência política faz na análise da pobreza é

aprimorar o entendimento da natureza e causas da pobreza e da privação, empurrando a

atenção primária além dos meios (em particular daquele mais superdimensionado, que é

renda) para os fins que as pessoas têm razão de perseguir, e, correspondentemente, para as

liberdades de ser capaz de satisfazer a tais fins” (p.90). Esta argumentação parece clara no

plano lógico, já que a noção de meios se coloca em patamar mais elevado que a de meio,

ainda que os fins não justifiquem os meios. Menos ainda, porém, os meios podem tornar-se

fins. Neste sentido, o mercado é claramente meio e deve estar a serviço dos fins, que Sen

define como liberdade ou competência política.

Pág.91 – “Educação básica melhor e cuidado de saúde aprimoram a qualidade de vida

diretamente; também incrementam a habilidade das pessoas de ganhar renda e de estar livres

da pobreza de renda igualmente” (p. 90). Dá o exemplo de Kerala (estado da Índia), marcado

por baixa renda per capita, mas boa redistribuição, onde se confia mais na expansão da

educação básica, cuidado de saúde e distribuição equânime da terra do que no acesso à renda.

“Só a redução da pobreza de renda sozinha não pode ser possivelmente a motivação última de

política antipobreza.” Não se pode confundir meios e fins, como se a importância da educação

fosse apenas de melhorar a renda. “As conexões instrumentais, mesmo sendo importantes, não

substituem a necessidade de entendimento básico da natureza e características da pobreza”

(p.92).

Pp. 93-94 – Acredita que é possível combinar democracia e crescimento, começando

por constatar que o autoritarismo não funciona bem como se imagina por vezes. Argumentos

empíricos não sustentariam a tese do conflito inevitável... “Direitos políticos e civis,

especialmente aqueles relacionados em garantir clima aberto de discussão, debate, crítica e

Page 23: Fichamento - Educação pelo Avesso

23

dissensão, são centrais para o processo de geração de escolhas informadas e reflexivas”

(p.153). Democracia não é algo automático, mas é fundamental para o desenvolvimento. Por

fim, mostra que é mister superar a visão do “capital humano” em favor da competência

humana, já que o primeiro volta-se para a produtividade, enquanto o segundo para a liberdade.

Pág.95 – A referência fundamental, para nosso ponto de vista aqui, é que pobreza

política é mais preocupante que a pobreza material e a superação daquela é mais estratégica

que desta, embora não se trate de “duas” pobrezas, mas de faces do mesmo processo de

exclusão social.

8 – Contradições da Ajuda

Pág.97 – Assim como o discurso sobre solidariedade tende a ser daqueles que a

obstaculizam, também o da ajuda tende a ser daqueles que a usam para dominar. Dizia já que,

na lógica dialética da emancipação, ninguém, em condições normais, realiza seu processo de

libertação sem a ajuda de outros, ainda que o processo implique, mais que qualquer coisa,

saber libertar-se também desta dependência. Emancipação total é quimera e, no fundo,

prepotência pelo avesso. Trata-se, assim, de buscar certo meio termo, capaz de equilibrar a

necessidade de ajuda com a prevalência da emancipação.

Pp.98-99 – Toda relação humana implica pelo menos outra pessoa e, como somos

constituídos para viver em sociedade, “necessitamos” destas relações, o que já implica alguma

dependência. É claro que existe também autêntica generosidade, onde prevalece o altruísmo.

Em termos dialéticos, procura-se entender que a dinâmica desta relação se deve a sua

polarização histórica e estrutural. Relações iguais seriam paralelas ou a mesma coisa. As

pessoas, em si, são iguais – perante a lei, por exemplo –, mas na prática, quando se

relacionam, também se medem, confrontam, discriminam. Se as pessoas fossem, de fato, na

prática, iguais, não precisaríamos da lei. A necessidade de leis, digamos, dos direitos

humanos, expressa, mais que tudo, a prática da discriminação.

Na expectativa funcionalista, a sociedade é sobretudo sistema integrador,

complementar, adaptativo, predominando o consenso sobre a dissensão. Na postura dialética,

predomina o conflito, não no sentido negativo destrutivo, mas no sentido construtivo da

unidade de contrários, tipicamente dinâmica porque polarizada. O que une ou aproxima as

pessoas não é apenas atração somatória, mas relação contrária, em parte sempre divergente,

inconfundivelmente individual, na qual as diferenças se tornam também desigualdades. As

relações sociais não são reprodutivas, no sentido da mera repetição, mas produtivas, no

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sentido da mudança como algo estrutural, além de histórico. Podemos colocar isto também no

contexto do poder: o fenômeno do poder é intrinsecamente constituído de desigualdade, não

apenas de diferença, porque se não existir um lado que predomina e outro que se submete, não

comparece o fenômeno, sobretudo sua dinâmica. Em teoria, as culturas, por exemplo, são

apenas diferentes, nunca inferiores ou superiores. Na prática, quando se relacionam, o

confronto surge de forma natural, porque a dinâmica dialética imediatamente se instala e

comanda o intercâmbio1.

Pág.100 – Cita frase dura de Przeworski:

“A ideologia neoliberal, emanando dos Estados Unidos e de várias agências internacionais, prega que a

escolha é óbvia: existe apenas um caminho para o desenvolvimento, e deve ser seguido... Todavia, se

um marciano fosse indagado a apontar os sistemas econômicos mais eficientes e humanos na Terra,

certamente não escolheria os países que confiam mais nos mercados. Os Estados Unidos são economia

estagnada, na qual os salários reais estão constantes por mais de uma década e o ingresso real dos 40%

mais pobres da população declinou. É sociedade desumana na qual 11.5% da população – por volta de

28 milhões de pessoas, incluindo 20% de crianças – vivem na pobreza. É a mais velha das democracias

na Terra, mas tem uma das mais baixas participações de voto no mundo democrático e a maior

população per capita na prisão do mundo” (p.57).

A subserviência ao mercado liberal aparece sobretudo na ideia obsessiva da educação

como investimento, à luz do capital humano, considerada teoria perfeita. Como víamos, Sen

se opõe a isto, por conta de sua definição de desenvolvimento como liberdade. Aprender

deixa de ser meta prioritária, priorizando-se simples frequencia. Não se promove o lado

crítico da educação, apenas a eficiência. Sobretudo ocorre redução da aprendizagem à

instrução bancária, no contexto reprodutivo mais frontal.

Pág.101 – “A retórica apaixonada de McNamara criou a impressão de que o Banco estava se

concentrando em combater a pobreza, mas suas estatísticas mostram outra coisa. A maior parte dos US$

77 bilhões de empréstimos feitos durante seu reinado sustentou a industrialização através de projetos de

infra-estrutura tradicional: estradas, represas, oleodutos, portos, facilidades de transporte, e coisas do

gênero. Menos de 10% foram para educação, saúde, planejamento familiar, suprimento de água, e

outros programas que poderiam ajudar o pobre diretamente. Nesta categoria, além do mais, a maior

parte dos recursos foram gastos em construção e na importação de equipamento de alta tecnologia, não

em provisão de serviços” (p.106).

1 FOX, C. 1999. “The question of identity from a comparative education perspective”. In: ARNOVE, R. F. & TORRES, C. A. (Ed.).1999. Comparative education. The dialectic of the global and the local. Nova York, Rowman & Littlefield Publishers, p. 135-147.

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Pp. 103-104 – E conclui Caufield:

“O meio século passado de desenvolvimento não favoreceu as pessoas mais pobres, nem os países mais

pobres. Antes, pagaram caro – e seus descendentes continuarão a pagar caro – pelos benefícios

desproporcionadamente pequenos que receberam. Por outro lado, há muita gente que se aproveitou do

desenvolvimento. Certamente, o Banco como burocracia prosperou, bem como as burocracias -

nacionais e internacionais – com as quais fizeram negócios. Muitos chefes de governo, especialmente

aqueles que governam sem suporte da população, puderam contar com o Banco para suprir os fundos

que não teriam encontrado em outro lugar” (p.338).

Como busquei mostrar em outros momentos, a pobreza tem indisfarçável charme para

esta tecnocracia desvairada, tendo se tornado refinado negócio de privilégios1. O pobre, como

sempre, fica de fora, é sobretudo massa de manobra. Se isto ocorre em instituição dotada de

grande reconhecimento público e, mais ou menos, visível à sociedade, o que não ocorre por

baixo dos panos em propostas de ajuda manejadas pelos donos do poder em nossas

sociedades! Parece-me claro que se a direita começa a interessar-se por coisas como renda

mínima, solidariedade e outras bijuterias sociais, é porque algo mais que suspeito está por

trás. O que menos está em jogo é combater a pobreza. São táticas sibilinas e efetivas de

cultivo da pobreza política. Com certeza, existem assistências sociais que cultivam a pobreza

política, e diria que predominam no cenário brasileiro. Muitos cursos de Serviço Social

produzem discursos excitados em torno da cidadania popular, por vezes com tons marxistas

mais ou menos perceptíveis, mas, na prática, realiza-se a assistência que mais convém ao

sistema, não aos excluídos. É muito difícil indigitar alguma política social que seria autêntica

minimamente no campo estatal, mesmo aquelas decorrentes das determinações

constitucionais como da LOAS ou do ECA. Tudo é miseravelmente pequeno, irregular, mal

organizado, residual, caricatural. O apelo emancipatório apenas enfeita o discurso,

prevalecendo no dia-a-dia a assistência como mau-trato do pobre.

Alguns traços desta imbecialização são:

a) Promessas para além das reais possibilidades, como é comum nas campanhas

políticas, mas igualmente nos programas estatais; abuso de iniciativas assistenciais

nas campanhas e programas como tática de propaganda, aliciamento, atrelamento.

b) Cidadania assistida prevalecente, no sentido de que é garantida e dada pelo

Estado, em particular por intermédio de seus agentes mais diretos, que são 1 DEMO, P. 1980. Pobreza sócio-econômica e política. Florianópolis, Ed. UFSC. DEMO, P. 1998. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.

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geralmente os assistentes sociais, implicando para o pobre o desarme do controle

democrático. A mesma ingenuidade dos agentes estatais, que imaginam servir à

população servindo ao Estado ou ao sistema, é repassada para os pobres, à medida

que se solidifica neles a acomodação extremamente perversa na condição de

eternamente assistido;

c) Pág.105 - Assistencialismos de toda ordem, que não só não dão conta das

necessidades materiais mais urgentes dos excluídos, como, sobretudo, se tornam o

engodo corriqueiro para evitar qualquer tipo de confronto.

d) Ideologias alienantes, como a da solidariedade, pacto social, consenso nacional,

ordem e progresso, temperadas com farelos assistenciais, repassando a ideia fátua,

no fundo perversa, que tamanha exclusão social se arruma com os mais variados

“jeitinhos” distributivos e que servem, sobretudo, para evitar a necessidade

inelutável de redistribuição da renda e do poder de sentido radical;

e) Linguagens de esquerda no contexto da direita, como é o caso notório da LOAS e

do ECA, e que, no fundo, tendem a enfeitar a direita, deixando os pobres onde

sempre estiveram, ou seja, tutelados como massa de manobra. A valorização

constante de “avanços verbais” nas leis faz também parte do arsenal de maldades

públicas da direita, que sabe engenhosamente combinar avanços verbais com total

falta de recursos financeiros;

f) Superdimensionamento do Estado como patrono da cidadania popular, esquecendo

que se trata de Estado capitalista e que jamais tivemos algo similar ao Welfare

State, sem falar que, com o advento do neoliberalismo, o Estado assumiu, com

ostensiva verve, os traços capitalistas mais duros, apenas em parte adocicados pelo

Welfare State;

g) Parasitismo estatal, não no sentido neoliberal, mas no sentido marxista do Estado

privilegiado à custa da sociedade, tendo como um dos efeitos mais típicos a oferta

pobre para o pobre, ou, quando qualitativa, apropriada pelos ricos; se temos de

criticar o parasitismo do Banco Mundial, que encontrou na pobreza via promissora

para arrecadar privilégios monumentais, não há por que não vituperar este mesmo

efeito nos planejadores e gestores das políticas assistenciais.

Pág.106 – Muita assistência, enquanto dá pedaço ridículo de pão passado, mofado,

mata a consciência do pobre.

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9 – Assistência e Educação

Pp.107-108 – Do ponto de vista da cidadania emancipada, a assistência é parte

integrante como direito radical à sobrevivência. Será inútil procurar dicotomia entre ambas,

pois uma necessita da outra naturalmente, como vimos. Entretanto, permanece entre elas uma

relação tipicamente dialética e complexa, tal qual a relação sempre problemática entre ajuda e

autonomia.

Um dos programas importantes em que a relação entre educação e assistência se

tornou bem visível foi o da “bolsa-escola”. De modo geral, dizia-se que o centro da proposta

estava na educação e que os aspectos assistenciais seriam complementares, ainda que muito

importantes. Nesta maneira de ver já aparecia o erro comum de considerar a assistência

apenas como algo “complementar”, enquanto, na verdade, é parte integrante fundamental da

política social. Para famílias muito pobres, este tipo de “renda mínima” pode sempre ser

justificado como direito de sobrevivência, portanto necessário no programa. Outro problema é

que as famílias acabam valorizando mais a assistência que a educação, pela razão corrente de

que as premências materiais são percebidas como mais imediatas. O que deveríamos dizer é

que o contexto mais abrangente do programa era educativo como estratégia de fundo,

incluindo naturalmente – pela própria integridade do programa – o cuidado com a assistência.

Os efeitos da assistência são, por sua vez, mais visíveis, controláveis, razão pela qual podem

ser melhor tratados e percebidos. As expectativas educacionais – consideradas mais

estratégicas – aparecem apenas a longo prazo, embora possam ser extremamente favorecidas

por iniciativas assistenciais bem conduzidas.

Pp.109-110 – Chamamos de “contradição performativa”, na linguagem de Habermas e

Apel, aquela que faz exatamente o contrário do que prega o discurso1. O pedagogo facilmente

declara-se adepto da “educação transformadora”, à sombra de Gramsci e Freire, mas, na

prática, facilmente “imbeciliza” os estudantes. Da mesma forma, muitos assistentes sociais se

dizem comprometidos com a cidadania dos excluídos, mas nada mais ou muito pouco fazem

do que contribuir para o status quo. É muito difícil não ter de aceitar que, por exemplo, nas

entidades que tratam de adolescentes infratores, não se “imbecilizem” os excluídos, com a

agravante de que saem delas ainda mais “preparados” para a vida do crime. Neste caso, temos

o concurso perverso dos dois lados: da assistência assistencialista e da pedagogia

imbecilizante.

1 HABERMAS, J. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

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Entretanto, tenho de reconhecer que isto é fácil de criticar, muito difícil de consertar,

sobretudo tomando-se em conta o contexto do capitalismo neoliberal. Trabalhar em entidades

assistenciais e educacionais implica, em termos de política social emancipatória, aceitar o

desafio de confrontar-se com o sistema. Este confronto pode assumir níveis variados, de

acordo com a ideologia, convicção, militância do “intelectual orgânico”, cabendo à

consciência histórica de cada um decidir até onde quer ou pode ir. Por exemplo, a falta

crônica de recursos nas entidades de assistência precisa ser claramente denunciada, as

autoridades questionadas, os programas revistos, o que sempre implica risco de desemprego,

para dizer o mínimo. Até certo ponto é preciso decidir se estamos a serviço da população ou

da primeira-dama. Não se trata de “moralismo”, até porque as convicções merecem respeito,

desde que não sejam extremistas. Mas é incongruente manter discurso plantado na cidadania e

praticar o assistencialismo friamente.

Pág.111 – Seria equívoco enorme imaginar que assistentes sociais e pedagogos sejam

os principais responsáveis pelo efeito contraditório dos programas sociais respectivos. Mas

estamos envolvidos na trama. Precisamos saber disso autocriticamente, sobretudo saber

reagir. Ou, pelo menos, mudar o discurso, para que a contradição performativa não seja tão

flagrante.

Como regra, todo processo emancipatório precisa de assistência, mas precisa

sobretudo da competência política de manejar esta assistência, principalmente de a dispensar

em nome da autonomia. Emancipar, por isso, é bem mais decisivo que assistir.

Pp.112-113 – Assim como, em educação, apenas alfabetizar não basta1, também

porque é sempre possível “imbecilizar”, na assistência ocorre o mesmo: dar benefício pode

ser muito prejudicial ao pobre. “Ajudar o pobre” é menos simples assistência do que ato

político complexo e contraditório, que pode tanto engrandecer o pobre e o assistente social,

bem como denegrir por completo a ambos. No exemplo da “bolsa-escola”, esta foi uma

lacuna comprometedora, pois os resultados históricos poderiam insinuar que, enquanto as

mães obtiveram ajudas materiais consideráveis, muito pouco “aprenderam” para a vida.

Por fim, é importante investir na cidadania do pobre como “educador”, ou seja,

facilitador, motivador, orientador, não como preceptor. Instituições de assistência se

notabilizam pela tendência de dar as coisas na mão, chegando a organizar as comunidades de

fora para dentro. Em educação é comum que ter filho na escola pública faz dos pais

automaticamente membros da associação de pais e mestres. Esta “cidadania automática” é

1 KICKLING-HUDSON, A. 1999. “Beyond schooling: adult education”. In: ARNOVE, R. F. & TORRES, C. A. (ED.). 1999. Comparative education. The dialectic of the global and the local. Nova York, Rowman & Littlefield Publishers, p. 233-255

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ridícula e serve apenas para a fachada pretensamente democrática das escolas. O critério mais

fundamental sempre é a autonomia do excluído, inclusive diante do assistente social, o que

significa dizer remar contra a corrente oficial de atrelamento das associações, sem falar nas

dificuldades de qualidade organizativa, militância sempre renovada, controle democrático. Eis

o desafio maior do “intelectual orgânico”: ser autêntico a ponto de fomentar o controle

democrático também sobre si mesmo. É também a beleza e a dificuldade da democracia.