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FIGURAÇÃO DA PROSTITUTA NO ROMANCE CONTEMPORÂNEO
DE MARIA VALÉRIA REZENDE
Mateus Savaris Panizzon (Unespar/Campo Mourão)
Wilma dos Santos Coqueiro (Unespar/Campo Mourão)
Resumo Este trabalho tem por objetivo analisar o tema da prostituição feminina no romance O voo da guará vermelha (2014), de Maria Valéria Rezende, buscando refletir sobre a marginalização infligida às denominadas “prostitutas de rua”, como é o caso de Irene. A obra, além de expor a trajetória de dor, abusos e desamparo existencial da protagonista, doente e esquecida nas vielas da sociedade, também traz o papel catártico e humanizador que a literatura confere às personagens principais, Irene e Rosálio. Esta pesquisa embasa-se nos aportes teóricos dos estudos de Roberts (1998), Muzart (2011), Candido (2011), Bourdieu (2015), dentre outros. Palavras-chave: Ficção de autoria feminina; O voo da guará vermelha; Prostituição.
Introdução
A luta por um espaço que seja totalmente igualitário nas sociedades não vem
de hoje. Muito se fez para que tantas mulheres pudessem exercer do direito a fala.
Esta luta é constante, e pensar literatura de autoria feminina é pensar na existência
e busca pelos direitos femininos, trabalho que ainda caminha para a aceitação e o
rompimento dos preconceitos de uma sociedade que sempre viveu sobre a atuação
do patriarcado. Silenciadas por séculos e ainda hoje vítimas dessa violência, o que
elas querem é ter voz. Bourdieu (2018) em sua Dominação Masculina, explica essa
“violência do silêncio”, que pode acarretar em violência doméstica. Tal prática
reprovatória diante da imagem do feminino, é vista aos olhos de Bourdieu como
prática da violência simbólica, ou seja, a violência da fala, do ato não físico, mas que
dependendo do grau a que se acomete dentro de um espaço, pode vir a se tornar
ainda mais prejudicial à vida das mulheres.
São muitas as conquistas ao qual hoje muitas mulheres têm acesso aos
diferentes tipos de espaço, como na política, no trabalho e até mesmo no campo
literário, como afirma Zolin (2009). Para isso é que se tem hoje estudos voltados à
prática do entendimento de gênero e suas diversidades, buscando uma ruptura do
cânone imposto, visto que tudo o que se tem no campo da escrita são nomes de
homens que construíram a história literária. O que de fato tais pesquisadores/as
querem mostrar é que, de fato, existiram tanto homens quanto mulheres que
contribuíram para a história cultural da humanidade. A problemática está, como dito
anteriormente, nas vozes caladas das mesmas e no esquecimento delas.
Por mais que fossem “excluídas e marginalizadas do sistema de poder, essas
escritoras outorgaram voz aos desvalidos e excluídos, questionando as relações
inter-raciais e de classe” (MUZART, 2011, p.18), não se calaram, disfarçavam suas
práticas de escrita com pseudônimos para que seus trabalhos fossem aceitos. Essas
rupturas em relação ao cânone têm se acentuado na literatura de autoria feminina
contemporânea, pois o que tanto as escritoras consagradas, quanto as apagadas
pelo sistema, queriam/querem é “o respeito não como senhoras distintas, mas como
distintas escritoras” (MUZART, 2011, p. 19).
A representação da imagem da prostituta em O voo da guará vermelha
Conhecida por ser um dos ofícios mais antigos do mundo, tal profissão
carrega preconceitos, reprovação moral e riscos de vida. Definida, geralmente, como
o comércio sexual das mulheres para a satisfação dos desejos masculinos, e
marcada pela degradação física e moral, a profissão leva à segregação social e, não
raro, ao tráfico e à escravidão a que estão sujeitas muitas mulheres no mundo todo.
Tudo o que se sabe em relação a este mundo que hoje é visto de maneira
negativa e criminalizada, começou a partir da Pré-História, mais precisamente na
Idade da Pedra. Nickie Roberts (1998), na obra As prostitutas na história, faz um
estudo panorâmico da história das chamadas atualmente prostitutas de rua.
Segundo a autora, antes das civilizações sob o domínio masculino, eram as
mulheres as detentoras de atividades voltadas à agricultura e aos serviços gerais
nas sociedades pré-históricas. Essas mulheres eram seguidoras da imagem da
Grande Deusa, também feminina, da qual acreditavam-se terem surgido. Possuíam
o poder de dominar suas sexualidades e, desse poder, mantinham o costume de
cultuar a deusa por meio de prostituição sagrada em templos à essa divindade para,
enfim, garantir a fertilidade agrícola e populacional. Com o tempo, a dominação
masculina fez-se presente nessas sociedades matriarcais, e essas mulheres que
antes ocupavam-se da prostituição como sagrada e detinham grande poder
espiritual, foram tidas como indesejadas e rotuladas como pecadoras.
Com a chegada do século XX, a imagem moralista ganha força, sobretudo no
período entre as guerras. Enquanto um grande número de homens se ocupavam
com lutas, as mulheres foram tomando poder no mercado de trabalho para
conseguir um sustento para elas e para seus filhos. Submetidas a salários
baixíssimos e com quase nenhum direito que lhes garantisse condições suficientes
estacionais no local onde trabalhavam, restava, por escolha de umas, necessidade
de outras, a prostituição, que mesmo sendo reprimida, com mais força durante a
Segunda Guerra Mundial, ainda assim acontecia sob condições desfavoráveis e
ilegais acarretando em prisão, como aconteceu com diversas mulheres.
Na Literatura Universal, o tema da prostituição foi bastante recorrente em
obras de autoria masculina, sendo A Dama das Camélias (1848), de Alexandre
Dumas, a obra paradigmática do tema. No Brasil, algumas obras mais
contemporâneas têm apresentado personagens prostitutas, mas sem discutir, muito
profundamente o tema. De acordo com Eurídice Figueiredo (2013), no sentido de
representação da figura da prostituta, há menos militância feminista, numa
perspectiva política. Segundo ela, em relação à literatura brasileira, “há uma
discrepância acentuada em relação à presença da figura da prostituta como
personagem na literatura escrita por mulheres” (FIGUEIREDO, 2013, p.107).
O romance O voo da guara vermelha, publicado em 2014, por Maria Valéria
Rezende, escritora que vem se destacando nessa segunda década do século XXI,
por possuir um olhar restrito e delicado à vida do humano no seu sentido mais
simplório, nos prova o poder da literatura e denuncia às condições sociais com Irene
e Rosálio, que protagonizam o romance. Rosálio, servente de pedreiro, acalenta um
sonho desde criança: aprender a ler e a escrever. Carrega consigo marcas de uma
vida sofrida e faz dessas marcas palco para contar histórias, seu maior dom. A
literatura tem papel principal na vida do personagem. Irene, personagem que
metaforiza a guará vermelha, é uma prostituta de meia idade portadora do vírus HIV,
bastante fragilizada por causa da doença que a acomete, além da vida miserável
que leva. A pobre mulher perdeu muito e por isso carrega dores imensuráveis,
traumas do passado impressos em sua memória, pois nunca ninguém ouviria o que
a uma prostituta tem a dizer da vida que teve e da vida que um dia sonhou em ter. É
por meio do improvável encontro entre esses dois personagens e da literatura que
Irene e Rosálio passam a ver a vida com mais cor. É por meio do grau de emoções
das histórias que Rosálio narra que Irene lembra do seu passado. Para cada
história, surge a esperança e vontades de se cuidar. Nesse sentido, “a literatura
aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os
tempos”, conforme nos ensina o crítico literário brasileiro Antonio Candido (2011, p.
176). Simples e humanos, esses personagens encaram a vida árdua imposta a eles
convivendo com o universo de fantasia e ficção proporcionado pela literatura. Um
romance ficcional, com personagens corriqueiros, que nos passam mensagens que
apenas quem tem um contato com a literatura pode ser capaz de sentir. A força da
palavra renovou a alma das personagens.
Considerações finais
O foco da reflexão proposta nesse trabalho é a marginalização advinda da
prostituição feminina, marcada pela incidência da miséria e da falta de perspectivas,
a sujeição aos frequentes abusos físicos e psicológicos, às doenças sexualmente
transmissíveis como a aids e à perversidade do preconceito social que a
personagem metaforizada como a “guará vermelha”, Irene, é acometida. Em suma,
o romance, além de discutir temas cruciais da sociedade contemporânea ainda
fortemente ancorada nos preceitos patriarcais, traz uma visão literária que incide na
crítica sobre a falta dela na vida das pessoas, assim como o sentimento de
completude aos que são por ela tocados. Referências BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhnner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brail, 2015. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. MUZART, Zahidé Lupenacci. A ascensão das mulheres no romance. In: ALVES, Aline. Et. Abid. A escritura do feminino: aproximações. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011. REZENDE, Maria Valéria. O voo da guará vermelha. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. ROBERTS, Nickie. As prostitutas na história. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.
ZOLIN, Lúcia Osana. A literatura de autoria feminina brasileira no contexto da pós-modernidade. Revista Ipotesi/Revista de Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora. Volume 13, jul./dez. 2009 [http://www.ufjf.br/revistaipotesi/]