Filmes Que Se Prolongam No Tempo

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Filmes que se prolongam no tempo Fábio Ramalho Quando assisti pela primeira vez a Les roseaux sauvages (Los juncos salvajes, 1994), de André Téchiné, há mais ou menos quinze anos atrás, fiquei intrigado com uma canção que era assobiada logo no começo, compondo a abertura do filme junto às letras coloridas e de traço infantil dos créditos iniciais. Além do efeito muito difícil de explicar, havia o fato de que eu sabia – tinha que saber, segundo as convenções que regem a espectatorialidade – que aquela música era importante, já que ela não apenas abria como também encerrava o filme, cobrindo o último plano antes de dar passagem aos créditos finais e, com eles, a outra canção que também causaria uma forte impressão em mim (sendo esta última, por outro lado, imediatamente reconhecível: Runaway, de Del Shannon). O fato de que aquela melodia – da qual eu desconhecia letra, origem e significado – pudesse me causar um efeito tão forte era, embora não elaborasse nesses termos, um atestado precoce do entendimento de que a matéria estética prescinde de qualquer interpretação ou sentido inteligível. A curiosidade, no entanto, persistia: tinha que haver algum significado possível. Na época, pensei que poderia ser uma antiga música nacional, hino ou evocação patriótica, ligada como parecia estar – indiretamente e ainda segundo as convenções dos filmes narrativos que, como espectadores, muitas vezes presumimos – ao fato da guerra, evento que orientava todo o filme. Por algum motivo, apenas muitos anos depois, ao revê-lo, percebi a ocorrência da canção em outro momento. Ainda na primeira sequência do filme, os convidados de um casamento começam a cantá-la, estáticos em meio ao campo aberto onde acontece uma festa dada em celebração à cerimônia recém-concluída. Os convidados estão voltados em direção à mulher que puxa a canção – uma espécie de matrona gorda e de voz chorosa –, mas numa composição tal que parecem interpelar também a própria câmera. Essa cena estranha e relevante atua como um sublinhado, mobilizando seus recursos em favor do canto que é seu elemento central. Se essa lacuna persistiu durante tanto tempo, perdurando mesmo

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Sobre Les roseaux sauvages, de André Téchiné

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Filmes que se prolongam no tempo

Fbio Ramalho

Quando assisti pela primeira vez a Les roseaux sauvages (Los juncos salvajes, 1994), de Andr Tchin, h mais ou menos quinze anos atrs, fiquei intrigado com uma cano que era assobiada logo no comeo, compondo a abertura do filme junto s letras coloridas e de trao infantil dos crditos iniciais. Alm do efeito muito difcil de explicar, havia o fato de que eu sabia tinha que saber, segundo as convenes que regem a espectatorialidade que aquela msica era importante, j que ela no apenas abria como tambm encerrava o filme, cobrindo o ltimo plano antes de dar passagem aos crditos finais e, com eles, a outra cano que tambm causaria uma forte impresso em mim (sendo esta ltima, por outro lado, imediatamente reconhecvel: Runaway, de Del Shannon). O fato de que aquela melodia da qual eu desconhecia letra, origem e significado pudesse me causar um efeito to forte era, embora no elaborasse nesses termos, um atestado precoce do entendimento de que a matria esttica prescinde de qualquer interpretao ou sentido inteligvel.

A curiosidade, no entanto, persistia: tinha que haver algum significado possvel. Na poca, pensei que poderia ser uma antiga msica nacional, hino ou evocao patritica, ligada como parecia estar indiretamente e ainda segundo as convenes dos filmes narrativos que, como espectadores, muitas vezes presumimos ao fato da guerra, evento que orientava todo o filme. Por algum motivo, apenas muitos anos depois, ao rev-lo, percebi a ocorrncia da cano em outro momento. Ainda na primeira sequncia do filme, os convidados de um casamento comeam a cant-la, estticos em meio ao campo aberto onde acontece uma festa dada em celebrao cerimnia recm-concluda. Os convidados esto voltados em direo mulher que puxa a cano uma espcie de matrona gorda e de voz chorosa , mas numa composio tal que parecem interpelar tambm a prpria cmera. Essa cena estranha e relevante atua como um sublinhado, mobilizando seus recursos em favor do canto que seu elemento central.

Se essa lacuna persistiu durante tanto tempo, perdurando mesmo aps algumas revises, devo dizer que foi devido a uma conjuno de fatores muito especfica: primeiro, pelo fato de que meu primeiro contato com o filme se deu numa era pr-google. Mesmo depois, a ausncia de uma letra (no caso do trecho assobiado) ou o seu contedo verbal indiscernvel para mim (no caso da cena do casamento) inviabilizou o recurso tcnica ancestral e precria (hoje talvez superada) de memorizar um trecho e fazer uma busca bsica na internet. Some-se a tais fatores a ausncia de referncias a essa cano, especificamente, nos crditos da trilha sonora talvez porque estes so motivados quase sempre por questes de direitos autorais ou, por fim, a escassez de textos crticos e de reviso acessveis e mais aprofundados fontes que tantas vezes nos ajudam a esclarecer essas e outras dvidas sobre aquilo que no pegamos em um filme.

E quem nunca padeceu de uma dessas pequenas obsesses, tentando desvendar os detalhes de uma referncia, uma imagem ou uma msica que, integrando o universo daquelas obras de que gostamos, so investidas de um carter incomumente relevante e at mesmo urgente? Apenas no incio deste ano, quando tive acesso ao livro de Bill Marshall, um dos poucos trabalhos monogrficos sobre o cinema de Techin outro o de Alain Philippon, editado pela Cahiers du Cinma em 1988, bem antes portanto da realizao de Les Roseaux Sauvages , pude enfim desvendar a origem da cano. Trata-se, como esclarece Marshall, de uma antiga cano tradicional da regio da Occitnia, Se canto. Por mais besta que isso possa soar, devo dizer que a obteno dessa informao surtiu um efeito semelhante ao do encontro com um documento que revela conexes insuspeitas e abre todo um novo campo de referncias com as quais travar conexes de imaginao e sentido.

Existe uma definio bastante simples segundo a qual um clssico seria aquela obra que resiste assimilao total por qualquer leitura contingente. Ele traria em si uma complexidade formal e uma densidade semntica que permitem que ele no se esgote nos contextos mais imediatos de realizao e recepo, fazendo persistir algo como um resto, um resduo. Assim, segundo essa definio corrente mas tambm limitada, frente ao carter polissmico do termo , um filme, como um romance da literatura, seria clssico na medida em que resiste prova do tempo; na medida em que continua a suscitar renovados olhares, leituras, modos de apropriao e relaes comparativas, e em tanto que revela, a cada vez que revisitado, algo diferente acerca de sua prpria feitura, das especificidades do seu meio de expresso e das vicissitudes do campo ao qual pertence.

No me interessa aqui remoer os critrios que definem um cnone, qualquer que seja, mas assinalar que h outros modos pelos quais um filme se prolonga no tempo. H obras cujo maior interesse est fundado justamente na contingncia da relao que estabelecemos com elas. Sinto-me tentado a dizer que estes so muitas vezes filmes mdios bons, porm no necessariamente excepcionais mas isso implicaria recorrer ainda a uma hierarquia que diz bem pouco sobre o lugar que ocupam. Mais interessante seria reconhecer na nossa relao com tais filmes um vnculo para o qual a qualidade que, no mais, no duvido de que estaramos dispostos a defender uma noo quando muito secundria frente historicidade da relao casual e contingente que estabelecemos com os mesmos. Como documentos de uma relao espectatorial e dos movimentos subsequentes de atualizao dos vnculos da resultantes, eles so, para ns, inseparveis da temporalidade que marca nosso encontro com os mesmos.

como se tais filmes se prestassem mais facilmente ao uso. O valor que lhes atribumos est vinculado ao seu potencial para servir de mediao para um momento, seja este uma fase da vida, um humor ligeiro que nos acomete, uma tarde arrastada. Eles catalisam uma afeco e, com o passar do tempo, viram o emblema desse estado transitrio que tentaremos, com ou sem sucesso, acessar novamente ou mesmo reinventar. Em Les roseaux sauvages, tal sentimento se encontra para mim desde sempre associado intuio de certas correspondncias entre a juventude como momento de passagem e uma experincia intensificada do tempo. Quando ouvimos a melodia uma ltima vez, junto derradeira imagem do filme um giro da cmera que, ao completar-se, reencontra os protagonistas em sua caminhada , o que ganha relevo a articulao apontada por Marshall entre as narrativas da histria coletiva e o desejo individual (87).

The panoramic shot is valedictory, and therefore looks backward in time from the point of view of the present; but the shot of the three protagonists from behind, accompanied by optimistic whistling from Serge, means that they enter into a future we cannot as spectators fully know (94).

Um contexto no uma afronta autonomia da imagem nem s suas especificidades. uma possibilidade de relao, um convite criao e no necessariamente um recurso explicativo. Ele no subtrai, soma. E se esse filme, em especial, acena ainda para novas redes de associaes no futuro, isso se deve tambm minha ignorncia. Pouco sei sobre a Occitnia, de modo que muitas das leituras potenciais suscitadas por tal contexto permanecem em aberto. Desde j, no entanto, experimento esse novo dado como outro elemento a ser acrescentado intrincada rede macropoltica que se arma em torno dos conflitos mais aparentes que so colocados em cena. A msica em questo pode, de fato, funcionar como uma espcie de hino ou canto de contornos nacionalistas, mas seus sentidos tm um alcance muito maior do que eu teria a princpio suspeitado: no a exortao dos soldados guerra ou o motivo patritico que embala a marcha; ela vem, pelo contrrio, colocar em questo a diferena irreconcilivel entre (e no interior de) regies e, em ltima instncia, evoca a no-correspondncia entre naes e Estado esse mesmo pelo qual a vida do irmo de Serge perdida. O canto remete a expresses tradicionais e formas de reconhecimento que se estabelecem muitas vezes em conflito com o oficialismo e cujos desdobramentos esto implicados nos movimentos da Histria. Ele lana ainda uma nova luz sobre Serge, esse personagem de origem camponesa, margem das expectativas implicadas pela instituio escolar; presena arredia que em algum momento atravessa a vida de Mait e Franois para, junto a eles, cumprir um rito de passagem. Por fim, a prpria multiplicidade de que se revestem os versos em seu nvel mais literal, um lamento por algum que est distante aponta para o acmulo que o destino de todo artefato cultural. Esse canto eu pude enfim confirmar, embora desde sempre intusse um canto de amor.

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Sobre as conexes entre juventude, nostalgia, amor e poltica no filme de Andre Tchin, ver um ensaio do mesmo autor, publicado pela Revista Crtica Cultural, da Universidade do Sul de Santa catarina, Brasil.

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