FILOSOFIA 10 - SUMÁRIOS DESENVOLVIDOS 2011-2014 - JCA.docx

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José Carlos S. de Almeida Filosofia – 10º ano Sumários desenvolvidos

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José Carlos S. de Almeida

Filosofia – 10º ano

Sumários desenvolvidos

Ano letivo de 2011/2012Alterado e aumentado em 2013

FILOSOFIA – 10º ano

Programa / Conteúdos

- Abordagem introdutória à Filosofia e ao filosofar

- A ação humana: análise e compreensão do agir

- Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa

- Dimensões da ação humana e dos valores: a Ética e a Política

- Dimensões da ação humana e dos valores: a Estética

- Temas / problemas do mundo contemporâneo

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Índice

Capítulo 1 - O que é a Filosofia? O que é filosofar?§1. A definição de Filosofia§1. –A. Somos todos filósofos?§1 – B. O valor da Filosofia§2. O que nos diz a etimologia da palavra ‘filosofia’§3. – A. Do mito aos primeiros filósofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de descrição e explicação quase racional do real§3. A Filosofia é filha da polis§4. O filósofo, distraído ou preocupado?§5. A alegoria da caverna de Platão e a atitude filosófica§5. A - Características da atitude filosófica§6. Historicidade§7. Radicalidade§7-A. Universalidade§8. Autonomia em relação à ciência e à religião§9. O carácter discursivo do trabalho filosófico§10. Filosofar é argumentar§11. Áreas e temas abrangidos pela Filosofia

Capítulo 2 - O homem construindo-se através da ação§12. O que leva o homem a agir§13. Sentidos usados na linguagem quotidiana que não deverão ser considerados neste âmbito§14. A ação humana constitui uma intervenção planeada e pensada§14-A. Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ação da reação§15. A consciência e a vontade são elementos que caracterizam necessariamente a ação humana§16. A importância da presença dos elementos consciência e vontade no agir do homem§17. Movimento / acontecimento e ação§18. A rede conceptual da ação: ação intencionada e ação causada§19. Perspetiva determinista e perspetiva baseada na ação intencionada§20. Combinando causas e intenções; o homem é simultaneamente livre e determinado§21. Ações voluntárias, atos involuntários e reflexos§22. O agente da ação e a relação causal§23. O estabelecimento de um motivo responde ao porquê e explica e legitima a ação§24. Intenção e motivo

§25. O trabalho humano e a atividade dos animais§26. O trabalho enquanto forma particular de ação. Trabalho e projeto

§27. Ação livre e responsabilidade§28. A culpa§29. Algumas notas sobre o existencialismo§30. Classificação das várias condicionantes da ação humana§31. Diversos tipos de determinismo§31 – A. A crença no destino como forma de determinismo§32. Consciência, vontade e responsabilidade

Capítulo 3 - O mundo não é indiferente ao homem: os valores§33. O que são os valores§34. O percurso da ação aos valores

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§35. Não há ações gratuitas, isto é, sem a presença dos valores§36. Características dos valores

Capítulo 4 - A experiência ética e política da vida e do mundo§37. Os valores morais e o relativismo cultural§38. Relativismo moral e relativismo cultural e tolerância§39. A dimensão da ética e da moral§39 – A. Distinguir ética e moral§39 – B. Distinguir moral e religião§40. Intenção e norma§41. Distinção conceptual entre moral e ética – quadro-resumo§42. Dimensão pessoal e social – o si mesmo, o outro e as instituições

§43. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva deontológica de Kant §44. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva consequencialista de Stuart Mill§44 – A. Confronto entre as teorias deontológicas e as teorias consequencialistas§45. A relação entre a ética, o direito e a política§46. O Estado enquanto problema da filosofia política§47. O homem e o Estado: a perspetiva clássica: Aristóteles§48. O homem e o Estado: a perspetiva contratualista moderna: John Locke – do estado de natureza à natureza do Estado§49. A teoria da justiça de John Rawls§49 – A. Conflito e cooperação nas sociedades contemporâneas; a relação entre a liberdade e a igualdade §49 – B. Rawls critica o utilitarismo§49 – C. A escolha racional dos princípios da justiça

Capítulo 5 - A experiência estética da vida e do mundo§50. A experiência estética§50 – A. Quando um acontecimento se torna numa experiência para o sujeito§50 – B. Caraterização da experiência estética§50 – C. Atitude e sensibilidade estéticas§50 – D. Objetivismo e subjetivismo na experiência estética§50 – E. Teorias acerca da natureza da Arte e da obra de arte

NotaEstes sumários desenvolvidos constituem um determinado momento no nosso trabalho que passa também pela nossa investigação e reflexão e pelo diálogo mais ou menos frutuoso com os alunos. Enquanto representam um momento desse trabalho, estarão sempre sujeitos a serem revistos e substituídos por outros textos considerados mais ajustados ao fim em vista. Trata-se de um texto em permanente reelaboração e reconstrução, mas não é esse o destino de qualquer texto de cariz ensaístico?1

1 Sobre a natureza do ensaio, ver Fernando Savater, ***** e Eduardo Prado Coelho, ******.

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Capítulo 1 - O que é a Filosofia? O que é filosofar?

§1.

A definição da Filosofia

O início da aventura filosófica é sempre marcado por uma pergunta fatal: o

que é a Filosofia? Ninguém gosta de embarcar numa viagem sem saber para onde

vai, sem saber o que vai encontrar. De qualquer modo, perguntar sobre o que é a

Filosofia sempre é uma questão mais interessante que perguntar, como também

acontece habitualmente, sobre para que é que serve a Filosofia. Há, de facto, quem

faça essa pergunta sobre a utilidade da Filosofia, mas com a ideia preconcebida de

que a Filosofia não lhe servirá para nada. Ora, quando soubermos o que é a

Filosofia, também chegaremos à resposta sobre a sua utilidade. O que não

podemos fazer é condicionar a pergunta sobre o que é à pergunta para que é que

serve. O problema da utilidade da Filosofia não se situa no mesmo plano que

perguntar pela utilidade dum chapéu-de-chuva ou duma estrada. Ninguém tem

dúvidas sobre a utilidade dum chapéu-de-chuva, porque todos estão seguros sobre

o que é um chapéu-de-chuva. Porém, sobre a Filosofia, não estamos todos de

acordo sobre o que seja. Nesse sentido, a questão sobre a sua utilidade sai

prejudicada.

Há quem considere que o primeiro problema da Filosofia é a questão da

definição de Filosofia. E o problema adensa-se porque não existe uma resposta

única a esta questão, como também poderíamos dizer que esta questão não tem

sentido no caso da Filosofia. Saber o que é a Filosofia é um dos seus primeiros

problemas. Existem várias respostas a esta questão, respostas que têm variado de

filósofo para filósofo, de época para época. De tal maneira que seria mais rigoroso

falar de Filosofias do que de Filosofia. Perguntar sobre o que é a Filosofia deixa,

assim, de ter sentido e alcance, porque a Filosofia não existe.

Contudo, apesar dessa variação e variedade em torno da resposta à

pergunta sobre o que é a Filosofia, variação e variedade que também existe acerca

do valor da Filosofia, podemos avançar com algumas ideias muito gerais sobre o

que possa ser a Filosofia, sendo certo que cada um irá construindo a sua visão

pessoal do que é a Filosofia.

Assim, poderíamos dizer, em primeiro lugar, que a Filosofia constitui-se

como uma reflexão racional e crítica sobre os problemas fundamentais da condição

humana considerada em si mesma e do homem face aos seus semelhantes e à

realidade. Uma reflexão sobre o homem na sua universalidade, mesmo que

partindo duma situação concreta e particular em que sempre se encontra. Trata-se

de uma definição que é proposta neste momento, suficientemente vaga e

provisória, para que cada um a vá enriquecendo ao longo deste caminho. É que, por

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outro lado, como dizia o poeta espanhol António Machado, não existem caminhos,

fazem-se a caminhar.

Tentemos, num primeiro momento, aproximarmo-nos dos elementos que

constituem aquela primeira tentativa de definição.

Para já, a Filosofia surge como uma reflexão; uma reflexão enquanto

atividade racional e crítica. Trata-se, então, de uma atividade da razão, das nossas

faculdades racionais exigindo uma postura crítica. Como veremos mais adiante, faz

parte da atitude filosófica o não aceitar passivamente (acriticamente) tudo o que

observa e lhe é comunicado. Por outro lado, essa reflexão incide sobre problemas.

Que problemas? Aqueles que dizem respeito à condição humana, às condições

através das quais o Homem assegura a sua existência; e isto, na medida em que

essas condições têm a ver com a sua relação com os outros e com o meio que o

rodeia, implicam a Sociedade e a Natureza. Mas, vejamos, como exemplo, um

desses problemas ditos fundamentais.

Todos nós já passámos pela experiência da morte de alguém próximo, um

familiar ou um amigo. Esse momento traumático atingiu-nos, certamente, de uma

forma profunda. Nessa ocasião chorámos, com lágrimas ou sem elas, essa perda

definitiva. Doeu-nos, a uns mais do que a outros, o facto de nunca mais podermos

contar com o convívio dessa pessoa junto de nós. A morte foi experimentada de

diversas formas, mas apesar dessa diversidade, ela constituiu para todos um

momento de profunda tristeza, vivida solitariamente ou partilhada com os outros.

Como também foi ocasião de pensarmos, de forma mais profunda e sem paralelo

com o que pensamos no dia-a-dia, sobre o que aconteceu e sobre a natureza da

morte e o sentido da vida. De certeza, que pensámos e nos interrogámos sobre a

morte enquanto fim, nomeadamente, interrogámo-nos sobre se a morte representa

um fim absoluto ou apenas uma passagem para outra fase que ainda

desconhecemos. Eventualmente, também nos interrogámos sobre o sentido da

nossa vida, a razão de ser de tudo o que fazemos, porque confrontados com a

fragilidade da vida. Possivelmente, mais desesperados, chegámos a pôr em causa o

que fazemos e o que somos. No meio de todas as questões que colocámos nesse

momento de dor, o que pretendíamos era obter algumas respostas que minorassem

o nosso sofrimento. Sabemos que alguns de nós encontram essas respostas nas

religiões e, dessa maneira, atenuam a sua experiência dolorosa; mas outros não

aceitam esse tipo de respostas e procuram um entendimento mais racional sobre

essas matérias. As reflexões, eventualmente desordenadas que nesse momento

produzimos aproximam-se da Filosofia, tal como a vimos aqui entendendo. Nesse

sentido, podemos até dizer que todos nós somos filósofos.

§1. –A. Somos todos filósofos?

Com efeito, há quem assim pense.

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“Creio que todos os seres humanos são filósofos, ainda que alguns mais que

outros. Todo o homem desenvolve determinados pontos de vista filosóficos -

ainda que geralmente acríticos -, filosofias boas ou menos boas. As

expetativas, o que a vida deve oferecer, o que se pode alcançar na vida são,

no fundo, pontos de vista filosóficos perante a vida. (…)

Compete ao filósofo profissional investigar criticamente as coisas que muitos

outros têm na conta de óbvias, pois muitos dos pontos de vista, não passam

de preconceitos que são aceites acriticamente (…). E para denunciar isso, é

necessário, talvez, alguém como um filósofo profissional, que dedica todo o

seu tempo à reflexão crítica.” (Karl Popper, Sociedade aberta, Universo

aberto, Lisboa, Publicações Dom Quixote)

§1 – B.

O valor da Filosofia

Para que nos erve a Filosofia? O que é vale a Filosofia? Será que nos ajuda a

explicar porque é não somos mais felizes ou porque é que existem tantas mulheres

e homens e crianças, em muitas zonas do globo, que passam fome e sofrem a

violência da guerra? Será que podemos compreender melhor com a Filosofia por

que razão é negado um futuro digno a tantos seres perfeitamente iguais a nós? A

Filosofia, aparentemente, formula mais questões que respostas e muitas das

questões que adianta acabam por ficar sem uma resposta definitiva. Ora, torna-se

legítimo e compreensível perguntar, então, o que é que serve uma disciplina com

essas caraterísticas.

Perguntar, levantar questões, mesmo sem obter uma resposta imediata,

exprime uma atitude positiva e valiosa. Desde que nascemos que nos dão respostas

quase pré-fabricadas e desde essa tenra idade que vamos construindo uma visão

do mundo assente no que os nossos pais e os nossos professores nos dizem. Vamos

vivendo e resolvendo os mais variados problemas recorrendo a esse repertório de

respostas e regras. Durante muitos anos, o mundo está mais ou menos composto

com base nesse manancial de respostas. Tudo vai correndo em harmonia e sem

angústias de maior. A nossa maneira habitual de pensar (e responder) vai-se

consolidando na nossa maneira de ser. Tudo isso é muito natural e não se vê razão

porque é que há-de ser posto em causa tudo o que nos foi ensinado e que

constituiu uma espécie de concha onde nos abrigávamos quando as tempestades

nos ameaçavam. Essa muralha protetora punha-nos a salvo de todos os perigos. De

todos?... Bem, de todos talvez não, e os perigos mais ameaçadores não nos

surgiram sob essa forma.

O valor da Filosofia não deve ser procurado nas respostas que nos dá. A

começar, porque não abundam as repostas na Filosofia. E depois, as respostas que

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a Filosofia nos dá, não põem cobro a novas perguntas. Então, talvez seja de aceitar

o que Bertrand Russel nos diz sobre o valor da Filosofia:

“O valor da Filosofia, em grande parte, deve ser buscado na sua mesma

incerteza. Quem não tem umas tintas de Filosofia é homem que caminha

pela vida fora sempre agrilhoado a preconceitos que derivaram do senso

comum, das crenças habituais do seu tempo e do seu país, das convicções

que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de

uma razão deliberada.”2

§2.

O que nos diz a etimologia da palavra Filosofia

Uma das maneiras de esclarecermos o significado duma palavra ou dum

conceito é compreendermos a origem e evolução dessa palavra. A etimologia da

palavra Filosofia diz-nos que Filosofia significa, originalmente, amor da sabedoria

(filos + sofia). Repare-se que não se diz que tipo de sabedoria é, nem que a

Filosofia consiste na posse do saber. O que a etimologia nos diz é que a Filosofia é,

sobretudo, amor ou amizade pelo saber3, movimento ou trânsito para o saber,

caminhar na direção do saber e não propriamente um instalar-se no seio do próprio

saber, isto é, possuir o saber. O amor pela sabedoria não exprime posse da

sabedoria, nem faz disso um requisito para o saber; o amor da sabedoria exprime,

antes, uma relação com o saber, um cuidado ou uma atenção em relação ao saber.

Sublinha-se, deste modo, o caminho ou o processo, a aventura em direção ao saber,

e não tanto o resultado ou ponto de chegada. E não será a desmesurada ânsia por

chegar a qualquer lado uma forma de nos desinteressarmos ou não estarmos

atentos às maravilhas do caminho? Se ao empreendermos uma viagem estivermos

obcecados pelo ponto de chegada, pelo destino, não teremos olhos para as

paisagens que acompanharão a viagem, para a viagem em si mesma4.

Portanto, filósofo é aquele que ama a sabedoria, que mantém com a

sabedoria essa relação intensa e de proximidade, própria de alguém que,

insatisfeito, constantemente vai reatando (atando de novo) essa ligação com o

saber.

“A palavra grega filósofo (philosophus) é formada por contraposição a

sophos, e designa o que ama o saber, por oposição ao possuidor de

2 Bertrand Russell, Os problemas da Filosofia3 O amor ou amizade deve ser entendido no contexto da cultura grega antiga.4 Vale a pena, a este propósito, ler o poema Ítaca de Constantin Cavafy. Estabelecendo um paralelo entre a Ítaca e a Filosofia, poderemos dizer que, se no fim da viagem, achares pobre a Filosofia, deverás contudo compreender que foi graças à Filosofia que te puseste a caminho e assim adquiriste as riquezas que foste encontrando e comerciando nos portos que visitaste. A pobre Filosofia ter-te-á dado a maior riqueza: a viagem com tudo o que vai acontecendo no caminho e que só poderemos fruir se não partirmos com ideias preconcebidas sobre o que iremos encontrar.

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conhecimentos, designado por sábio. Este sentido da palavra manteve-se até

hoje: é a demanda da verdade, e não a sua posse, que constitui a essência

da Filosofia, muito embora ela tenha sido frequentemente traída pelo

dogmatismo, isto é, por um saber expresso em dogmas definitivos, perfeitos

e doutrinais. Filosofar significa estar a caminho.” (Karl Jaspers, Iniciação

Filosófica, Guimarães Editora)

§3 – A.

Do mito aos primeiros filósofos. O mito enquanto primeiro ensaio

duma tentativa de descrição e explicação quase racional do real

Todos nós já passámos pela ocasião fascinante de, numa noite límpida de

luar, admirarmos o céu estrelado e nos interrogarmos sobre a possibilidade de

existência de outros mundo como o nosso, de sistemas solares semelhantes ao

nosso, de planetas como o nosso, com iguais condições propícias à vida humana.

De certeza que nos interrogámos sobre a existência de outros seres idênticos a nós;

e de como poderia naquele preciso momento existir outro ser humano a milhões de

quilómetros, contemplando a nossa galáxia, admitindo que estivesse outro ser

semelhante com o mesmo tipo de interrogações. O mundo sempre foi fonte de

curiosidade e inquietação e ai daquele que não consegue sentir esse

estremecimento que naturalmente ressoa em nós quando contemplamos o mundo

à nossa volta, visível e invisível. Olhando à sua volta, são muitas as perguntas que

surgem no espírito do homem. Uma dessas perguntas prende-se com a origem e

funcionamento da realidade.

Desde muito cedo que o homem se interrogou sobre como tudo teria

começado. Observando a realidade, as coisas vivas que nascem e morrem, desde

logo conclui que tudo tem um início, que as coisas evoluem, vão ganhando novas

formas. Também deverá ter sido assim com o meio envolvente. Por isso, desde

muito cedo que os homens procuraram explicar a realidade, fornecer um sentido

aos múltiplos acontecimentos que ocorriam à sua volta. O nascimento das plantas e

o surgimento dos frutos, o nascimento e a morte, a sucessão do dia e da noite, os

astros celestes e o seu movimento, os rios e os mares. Desde muito cedo que

existia toda uma série de eventos e seres que despertaram a curiosidade do

homem e que o levaram a tentar formular hipóteses de resposta. As condições

rudimentares dessas primeiras tentativas de resposta, conduziram os homens a

fazer intervir nesses ensaios explicativos seres fabulosos, dotados de capacidades

extraordinárias e mágicas. Nas primeiras explicações do mundo, os homens

recorrem aos feitos fabulosos dos deuses e aos atos criadores dos heróis, de figuras

sobre-humanas, dotadas de poderes sobre-humanos. As primeiras explicações que

o homem formulou não eram explicações de natureza racional, mas antes mágica,

pois eram forças mágicas e fantásticas que explicavam os acontecimentos. Os

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mitos eram, precisamente, narrativas em que se tentava explicar a origem quer do

mundo (mitos cosmogónicos, de cosmogonia, isto é cosmos (ordem) + gonia,

génese (nascimento)), quer de outras formas particulares de existência, mas de

importância vital para a comunidade, como por exemplo, a origem do homem,

duma aldeia, dum rio, duma montanha, da chuva. Essas tentativas de descrição e

explicação têm de particular a intervenção de seres fabulosos. As explicações

rudimentares que o homem conseguia formular estavam longe de constituir

explicações racionais e muito menos possuíam a aparência de científicas. O

pensamento mágico dos primeiros homens possuía a sua lógica, mas não era ainda

uma lógica racional.

No caso dos mitos cosmogónicos, o que aí se tentava descrever e explicar era a

origem do mundo que, em muitos casos, era o resultado duma luta primordial entre

as forças do mal e as forças do bem, entre o caos e cosmos, a desordem e a ordem.

A descrição da origem do mundo que é feita no Livro do Génesis do Velho

Testamento é um bom exemplo dum mito cosmogónico.

Essas explicações fantásticas eram perfeitamente assumidas e vividas, na

medida em que descreviam a vitória da ordem, isto é, do cosmos. E o mundo, o

cosmos, estava ali para demonstrar a vitória dos deuses e de um mundo ordenado

e harmonioso. Qualquer ameaça a essa ordem, qualquer acontecimento que viesse

destruir essa ordem, representavam um perigo para a segurança da existência

humana. Era necessário, então, restaurar a ordem, o que se conseguia através da

ritualização dos acontecimentos descritos no mito.

§3.

A Filosofia é filha da polis

A Filosofia, segundo a generalidade dos autores e pensando no mundo

ocidental, nasceu na Grécia Antiga por volta dos séculos VII – VI a.C.. Ora, isto deve-

nos colocar a seguinte questão: porquê na Grécia e não noutro lugar da Europa? O

que há assim de especial com a Grécia daquele tempo que fez com que nesse sítio,

num determinado momento, se começasse a produzir uma reflexão que

consideramos ser a origem da Filosofia, quando não já a própria Filosofia?

Vários fatores contribuíram para isso, desde condições políticas e culturais,

até fatores geográficos. O extraordinário florescimento cultural que ocorreu durante

a época que corresponde àquilo que ficou conhecido como o ‘milagre grego’, o

extraordinário desenvolvimento da literatura, da cultura e arquitetura e do teatro, o

fim da guerra com os Persas instituindo um duradouro período de paz social e o

desenvolvimento da democracia, regime político que, apesar das suas limitações,

favorece a expressão e a troca de ideias.

A situação geográfica da Grécia também favoreceu o desenvolvimento da

Filosofia. E aqui devemos salientar dois aspetos: a montanha e o mar.

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A Grécia é constituída por um território extremamente montanhoso. Por todo

o lado encontramos esse terreno assaz acidentado, que não dá descanso aos

homens que se vêm obrigados a todo o momento a terem que trepar em

ziguezague por carreiros estreitos. A montanha divide e obriga os homens a

instalarem-se em locais que achassem favoráveis, entalados entre a montanha e o

mar, mas que dificilmente comunicavam com outros lugares povoados. Esta

disposição orográfica acidentada irá favorecer o estabelecimento de cidades

independentes, suficientemente perto e prudentemente distantes do mar5.

Se o Mediterrâneo era o ‘umbigo’ do mundo, a Grécia, ou o Mar Egeu,

ocupava um lugar central nesse mesmo umbigo, situando-se no cruzamento de

rotas comerciais oriundas do norte de África, Próximo Oriente e Península Ibérica,

ligando três continentes. O grego esteve pois, desde sempre, em contacto com

outras comunidades, outras culturas, outras ideias. O comércio das coisas também

significou o comércio das ideias. O contacto com outros povos e outros costumes

tornou-o mais aberto para a diferença e mais flexível em relação àqueles que eram

diferentes e pensavam de modo diferente, com os seus hábitos e costumes

próprios. Este contacto com a diferença também deve ter espicaçado a sua

curiosidade e a sua vontade de refletir sobre esse mundo novo.

O mar está presente por todo o território grego. A extensíssima linha de

costa faz com que nenhum ponto do interior do território grego esteja a mais de

cem quilómetros do mar! Por outro lado, uma extensa linha de costa, um território

completamente exposto ao mar e virado para fora, onde o homem era, por

natureza, um ser dado à comunicação, iluminado por uma luz solar que favorecia o

desenvolvimento da racionalidade, tudo estes fatores geográficos e climáticos

também favoreceram o eclodir dum pensar curioso, crítico e racional6. Todos nós,

uma vez ou outra, devemos ter sentido esse apelo do mar para a reflexão. Diante

do mar, contemplando o movimento das suas ondas, essa eterna impermanência e

diferenciação constante que é ao mesmo tempo identidade e diferença, uma

continuidade diferenciante, uma identidade que se mantém através da sua

presença simultaneamente diferente e igual, é impossível que o Grego se

mantivesse indiferente e não sentisse o aguilhão da curiosidade e o impulso para

pensar. Diante da extensa linha do horizonte, contemplando o mar e essa longínqua

linha, cujo espaço para lá dessa linha interpela o homem curioso, somos levados a

pensar no que está e existe para lá do que é visível.

5 Cf. André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Parténon, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, pp. 23-246 Para alguns autores, o surgimento duma cultura predominantemente ligada à escrita também é determinante para o eclodir do pensamento racional filosófico. As culturas marcadas pela predominância da oralidade, não conseguem estabelecer uma distância suficiente entre o texto e as condições da sua enunciação, estando assim demasiado marcado afetivamente pelas circunstâncias que rodearam a sua enunciação. Cf. a este propósito, Pierre LÉVY, As tecnologias da inteligência, Lisboa, Instituto Piaget, pp. 118-119.

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Essa presença do mar e o seu apelo fazem do mar um elemento muito

marcante da cultura grega. Daí a conclusão fundamental de que “o mar civilizou os

Gregos”7.

Finalmente, a polis, a cidade, verdadeiro espaço emancipador, criou e

alargou os espaços públicos de discussão e deliberação democráticos, onde se

refletia sobre a essência do homem e da comunidade, os seus problemas, o seu

futuro e o que, nesse sentido, se devia fazer, determinando o surgimento duma

nova atitude racional e crítica e dum novo saber que se foi delineando como

filosófico.

Há quem fale dum «milagre grego» para explicar todo esta produção

maravilhosa no campo da cultura e da política e que seriam determinantes para a

formação da Europa e do espírito europeu. Também se falaria dum «milagre grego»

para explicar (?) o surgimento da Filosofia. Contudo, talvez se deva antes falar da

conjugação favorável de vários fatores e do aproveitamento oportuno dessa

conjuntura propícia por parte dos Gregos. Assim, para tentar explicar o despontar

da cultura grega não seria mais aconselhável recorrer a esse elemento do milagre

que acabaria por “substituir uma explicação por pontos de exclamação”8.

§4.

O filósofo, distraído ou preocupado?

Num dos textos da Grécia Antiga onde pela primeira vez se refere a

Filosofia9, descrevem-se umas festas tradicionais, onde apareciam uns homens que

vinham vender mercadorias, outros que vinham comprar e, finalmente, havia uma

terceira classe de indivíduos que não vinham fazer nem uma coisa, nem outra:

estes eram os filósofos. Deste modo, caracterizam-se os filósofos como alguém

desinteressado, que não está preocupado com os interesses materiais. A ideia que

relaciona a Filosofia e a sua gratuitidade com um certo desinteresse em relação às

preocupações materiais está também, de certa maneira, presente numa anedota

que se contava acerca de um dos primeiros filósofos, Tales de Mileto10. Contava-se

que este sábio, andando tão distraído com certos problemas que o levavam a

caminhar de cabeça no ar, não reparou num poço que estava diante de si e acabou

por cair lá. Queria-se, com essa história, dizer que o filósofo era um indivíduo tão

distraído com problemas transcendentes que nem reparava num elementar

obstáculo colocado aos seus pés. Não contestamos esta interpretação, porque

acerca do mesmo Tales de Mileto também se contou que, observando

7 André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Pártenon, p. 28.8 André Bonnard, op. cit., p. 34.9 Trata-se um texto de origem pitagórica.10 Tales de Mileto é considerado um dos sete sábios da Grécia Antiga. Nasceu em Mileto, na Ásia Menor, por volta de 624 ou 625 a.C. e faleceu em 556 ou 558 a.C. Tales de Mileto considerava que tudo tinha origem na água. Era este elemento primordial que explicava quer a origem do Cosmos como servia de princípio explicativo para todas as mudanças que ocorriam na Natureza.

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constantemente os astros celestes (chegou a prever um eclipse), conseguiu

antecipar um ano de extraordinária produção de azeitona, pelo que procedeu ao

aluguer de todos os lagares de azeite da cidade. Aquando da colheita das azeitonas

e tendo-se verificado esse extraordinário aumento da produção, os agricultores

foram ter com Tales para que este lhes subalugasse os lagares de azeite, onde

iriam colocar essa produção. Deste modo, Tales acabou por ganhar muito dinheiro.

Ora, daqui também se pode concluir que, de facto e aos olhos dos outros, talvez

parecesse que Tales andasse distraído ao olhar para o céu; o problema é que os

outros não conseguiram ver o que ele via e por isso não conseguiram prever esse

bom ano agrícola. Enquanto Tales fazia previsões acertadas, os seus

contemporâneos só conseguiam ver que ele andava distraído!11 Ou então, como se

afirma num provérbio chinês, enquanto o sábio com o dedo para a Lua, o tolo

apenas olha para a ponta do dedo. Tales olhava para a Lua, mas os seus

conterrâneos, que se julgavam muito espertos, apenas viam nisso um

comportamento bizarro.

Isto deve-nos levar a uma ideia importante sobre a Filosofia. É que esta,

mesmo que nos pareça estranha12, tem a ver com a realidade e, sobretudo, com a

nossa vida. Apesar da sua estranheza, convenhamos que uma fórmula matemática,

com os seus símbolos esquisitos, é bem mais estranha. Só não o achamos, porque

sabemos que com a matemática se podem construir pontes e casas. Essa utilidade

imediata afasta imediatamente qualquer ideia sobre o caráter estranho e abstrato

da matemática. Ora, a Filosofia não tem a ver com pontes e casas, mas com as

pessoas que habitam as casas e passam nas pontes. E, de certo modo, também

poderemos dizer que a Filosofia também tem a ver com pontes, a Filosofia permite

lançar pontes entre o passado e o futuro, entre o oriente e o ocidente, entre o

indivíduo concreto e o Homem na sua universalidade. Pontes bem importantes, por

sinal!

§5.

A alegoria da caverna de Platão e a atitude filosófica

Recordemos o que nos conta Platão e que ficou conhecido como a alegoria

da caverna no livro VII da República. Em primeiro lugar, deparamos com um grupo

de homens agrilhoados no fundo de uma caverna, habituados a contemplar as

sombras que iam sendo projetadas na parede de fundo para a qual estavam virados

desde sempre. Esses homens, os prisioneiros da caverna, viviam numa situação

ilusória, pois tomavam essas sombras como a única autêntica realidade existente.

No entanto, as sombras eram o reflexo da realidade exterior à caverna, de homens

e mulheres que passavam no exterior. As sombras eram imagens, representações

11 Como recordava Goethe, ninguém consegue ser herói para o seu criado de quarto!12 Também se poderia dizer sobre a Filosofia que primeiro estranha-se, depois entranha-se!

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empobrecidas (não eram a cores, não possuíam densidade) da verdadeira

realidade. Os prisioneiros viviam iludidos, enganados quanto à verdadeira natureza

da realidade. Consideravam que era real o que era apenas reflexo do real. Até que

um desses prisioneiros se liberta.

O prisioneiro liberta-se quer dos grilhões que o acorrentavam permitindo que

ele iniciasse a caminhada difícil para o exterior, como também se vai libertando,

agora num ritmo mais demorado, da ilusão em que vivia, simbolizado pelo mundo

semi-obscuro em que estava(m) mergulhado(s). A sua libertação é uma caminhada

em direção à verdadeira realidade, o mundo exterior à caverna, que irão

proporcionar um conhecimento verdadeiro. À realidade autêntica corresponde um

conhecimento verdadeiro, tal como à realidade ilusória correspondia um

conhecimento iludido. É uma caminhada para a luz, de tal modo que terá, no início,

dificuldade em enfrentar a luz. Platão quer-nos assim chamar a atenção para as

naturais dificuldades que residem na via do saber; conhecer é uma tarefa árdua,

porque neste caso corresponde também a enfrentar e a superar as ilusões com que

se tinha desde sempre vivido. É muito complicado ter que abandonar as nossas

certezas e convicções que se tinha sobre o mundo em que se vivia.

No entanto, o prisioneiro que se liberta e ascende ao mundo exterior

contempla com admiração e gozo a verdadeira realidade. Até o seu próprio rosto é

contemplado pela primeira vez. A célebre divisa de Sócrates, conhece-te a ti

mesmo, é aqui evocada através desse momento original em que o prisioneiro vê,

pela primeira vez, a si mesmo, descobre a figura do seu rosto. Este prisioneiro que

chega ao verdadeiro mundo e ao verdadeiro conhecimento representa a figura do

filósofo, tal como Platão a entende. Ele é um indivíduo excecional, que se libertou

da condição em que vive a maioria das pessoas, presos nos seus dogmas e

convicções. O prisioneiro enfim libertado, o filósofo, chega pois ao verdadeiro

mundo, bem distante do mundo de trevas e ignorância em que se encontrava antes

de proceder a esta ascensão.

Apesar da beleza do mundo que descobre e da alegria que isso provoca, o

prisioneiro recém-libertado não se esquece dos seus antigos companheiros de

jornada. E decide regressar ao interior da caverna a fim de lhes transmitir a sua

experiência e os convencer a acompanharem-no para o exterior. No entanto, a

generosidade do filósofo não é recompensada; antes pelo contrário, os seus

anteriores colegas, perante o que ele lhes transmite, vão julgar que ele está doido,

vão ficar transtornados ou indispostos com o que ele lhes conta e vão mesmo

chegar a vias de facto e tentarão eliminá-lo. Platão sabe, pelo que aconteceu a

Sócrates, o seu querido mestre condenado à morte pelo poder político de Atenas,

que o filósofo corre sempre o sério perigo de ser incompreendido, de os outros não

aceitarem o que ele lhes diz porque vai pôr em causa as suas convicções e certezas

de sempre, que tinham formatado a sua mente e a sua maneira de ser e estar. No

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14

entanto, o filósofo tem responsabilidade para com os outros, sente que existe uma

missão e um compromisso da Filosofia para com a comunidade humana. E por isso

tenta reiteradamente fazer passar a sua mensagem libertadora. Mas há saberes

que não podem ser transmitidos pelo discurso. Há saberes que são tão essenciais

que apenas podem ser adquiridos através da própria experiência. A libertação do

Homem não é um efeito do discurso, por mais belo que o discurso seja. Aqueles

prisioneiros, os homens que nós somos, só se libertarão libertando-se. Uma verdade

simples, uma evidência diante dos nossos olhos, mas que mesmo assim nos escapa

na maioria das vezes.

Ora, uma das lições da alegoria da caverna de Platão é que a libertação do

homem passou por uma nova maneira de estar, em que ele próprio construiu o seu

caminho, traduzindo-se esse esforço numa conversão do olhar. Os outros

continuaram prisioneiros na medida em que o seu olhar continuou dirigido para o

mesmo lado; o seu olhar permaneceu igual ao que sempre foi desde o início da sua

vida. O que verdadeiramente os prende não são os grilhões e as cadeias, mas um

olhar que se fixou, que cristalizou, que foi incapaz de acompanhar o movimento

subtil da realidade.

A atitude filosófica é, se bem interpretamos o texto de Platão, uma mudança

de perspetiva, o adquirir de uma nova maneira de olhar e analisar e criticar a

realidade.

§5. A –

Caraterísticas da atitude filosófica

Com a expressão ‘atitude filosófica’ pretende-se referir não um discurso ou

um saber estruturado, mas antes uma maneira de estar e de olhar a realidade e os

outros. Neste parágrafo é nossa intenção descobrir o que há de específico e próprio

na atitude filosófica e que a distingue de outros saberes e olhares.

Vejamos, então, algumas das características da atitude filosófica.

§6.

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15

Historicidade

Esta característica tem a ver com o facto de a Filosofia, ou filosofias, serem

determinadas, isto é, condicionadas, pela época que as viu surgir. Como qualquer

produto cultural, também a Filosofia se relaciona com os problemas próprios de

cada época, com as necessidades e anseios da sociedade. Se há problemas que são

perenes, que chegaram até nós vindos dos Gregos, o modo como são formulados

tem sofrido modificações. O problema da existência ou não de vida para além da

morte e o problema da imortalidade da alma, tem sofrido alterações no modo como

tem sido colocado pelas diferentes épocas históricas e, consequentemente, pelos

diferentes sistemas filosóficos. Por outro lado, há outros problemas que são próprios

das diferentes épocas históricas. O problema da liberdade nunca se colocou aos

Gregos, enquanto na época que antecedeu a Revolução Francesa, a questão da

liberdade era uma questão central. Hoje, os problemas éticos que a manipulação

genética da vida humana coloca constituem uma área nova de problemas que

nenhuma outra época colocou. Noutro sentido, a historicidade é uma característica

da atitude filosófica porque o homem que é objeto da sua reflexão é um homem

situado, que só pode ser entendido enquanto ser rodeado de circunstâncias

próprias. O homem é um ser de circunstância, ou como dizia Ortega y Gasset, eu

sou eu e as minhas circunstâncias, querendo dizer com isso que o homem só se

entende na relação que estabelece com o mundo que o rodeia. Dizia Marx13 que os

filósofos não nascem como os cogumelos. Para o filósofo alemão, os filósofos não

são um produto espontâneo, mas sim o produto determinado da sua época. Cada

Filosofia respira o ar do seu tempo, está impregnada pelo espírito do seu tempo,

bem como recolhe das Filosofias que a antecederam, a experiência e a riqueza da

reflexão acumulada. É nesse sentido que a historicidade constitui também o seu

modo de ser.

§7.

Radicalidade

Com esta característica pretende-se salientar o facto de a Filosofia não se

estruturar como uma visão superficial e acrítica da realidade, tal como é o senso

comum. Ao contrário desta visão comum e empírica da realidade, a Filosofia é uma

reflexão aprofundada e racional da realidade, que não se contenta com os aspetos

superficiais que a constituem. Como a palavra indica, a Filosofia vai até à raiz dos

problemas, investigando a primeira causa, o último porquê, não se contentando

com respostas imediatas e superficiais. Partindo do pressuposto que a essência das

coisas não reside na sua aparência, mesmo que esta a constitua, o conhecimento

da verdade implica uma atenção e vigilância constantes, bem como uma postura

13 Karl Marx foi um pensador, teórico da política, historiador e economista, que nasceu em 1818 e morreu em 1883. O corpo dos conhecimentos produzidos, conjuntamente com a produção intelectual do seu companheiro de sempre Friedrich Engels, constituem a base daquilo que ficou conhecido como a teoria marxista.

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16

inquieta e insatisfeita, que a leve constantemente a ultrapassar esse plano imediato

da aparência. Como afirmava Heraclito, a essência das coisas gosta de jogar, no

sentido de um permanente ocultar-se. A radicalidade enquanto característica da

atitude filosófica significa, igualmente, que a Filosofia se opõe ao senso comum,

não se prendendo às informações imediatas dos sentidos. É que para captarmos a

verdadeira essência das coisas não podemos ficar pela aparência que é dada aos

sentidos, mas devemos fazer uso da razão crítica. Como afirmava o provérbio

chinês já citado, existe uma diferença essencial de perspetiva de encarar a

realidade, quando comparamos a atividade dos sentidos e a atividade da razão.

§7-A.

Universalidade

A Filosofia ajuda-nos a desenvolver uma visão do mundo, uma conceção do

mundo. Uma visão que ultrapassa a nossa vivência quotidiana e a perspetiva

imediata que daí decorre.

A visão do mundo que desenvolvemos reflete sobre o homem enquanto ser

universal, reflete sobre a condição humana. Mesmo que se parta dum homem

concreto e situado e do seu viver circunstancial, a Filosofia eleva-se ao universal ao

refletir sobre a condição humana – no homem particular que vive, sofre e se

emociona, a Filosofia vê a Humanidade viva, sofredora e emocionada. A Filosofia e

a sua reflexão, através duma perspetiva totalizadora, elevam-nos ao universal.

§8.

Autonomia em relação à ciência e à religião

A Filosofia apresenta-se como um saber distinto da ciência e da religião. É

com base nesta distinção que podemos falar de autonomia da atitude filosófica. A

Filosofia não é uma ciência, distingue-se da ciência por possuir um método e um

objeto que são distintos dos métodos e objeto das ciências. Em relação ao método,

verificamos que as ciências se foram constituindo enquanto saberes específicos na

medida em que construíram métodos próprios, baseados no método experimental.

A Filosofia é um saber específico que não pode recorrer à experiência; a Filosofia,

em termos gerais, baseia-se no método reflexivo — a reflexão racional e crítica é o

seu método. Também ao nível do método a reflexão filosófica exibe a sua

especificidade. Enquanto que cada ciência foi delimitando um objeto próprio e

específico e que correspondia a uma zona delimitada do real, a reflexão filosófica

faz da totalidade, o ser enquanto ser, a realidade em si mesma, a condição

humana, o seu objeto. Diz-se que o todo é o objeto da Filosofia, enquanto que cada

ciência tem como objeto uma determinada parcela do real.

Mas a atitude filosófica também se constitui autonomamente em relação à

religião. As religiões, monoteístas ou politeístas, sempre fizeram da fé a

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17

característica essencial da postura do homem religioso. Uma fé que lhe permite

relacionar-se com uma entidade que lhe é apresentada dogmaticamente. Ora, a

atitude filosófica não apela à fé, mas antes baseia-se num exame livre e racional

dos seus postulados. E estes postulados estarão sempre sujeitos ao livre exame.

§9.

O carácter discursivo do trabalho filosófico

A Filosofia não pode deixar de trabalhar com a palavra e com os textos que

corporizam a(s) palavra(s). Por isso nos referimos ao carácter discursivo da Filosofia

e do trabalho filosófico.

A Filosofia vive de textos. É assim que os filósofos expõem as suas ideias,

discutem as ideias dos outros, tomam posição sobre os problemas. Oral ou escrito,

o texto filosófico é essencial para a reflexão. E, através dos textos, os filósofos

argumentam, justificam e adiantam razões que apoiam as ideias (as teses) que

defendem.

O carácter discursivo da Filosofia implica uma definição tão rigorosa quanto

possível das palavras e dos conceitos que utiliza, bem como coerência na

articulação entre os conceitos.

§10.

Filosofar é argumentar

O que é argumentar? Argumentar é apresentar razões em defesa de uma

determinada tese, duma determinada posição [ver Posições de L. Althusser].

O texto filosófico é por essa razão, um texto eminentemente argumentativo,

que avança argumentos. Na Filosofia, porque não estamos diante duma ciência

exata, as posições que se tomam não são evidentes, nem podem ser demonstradas

matematicamente. Portanto, temos que argumentar. Ora, o que é um argumento?

Basicamente, um raciocínio que encadeia premissas e conclusões, onde as

conclusões se retiram das premissas apresentadas, ou onde, uma vez aceites

determinadas premissas, somos conduzidos pela força mais ou menos persuasiva

da ligação (concatenação) estabelecida entre as premissas e as conclusões.

Quando argumentamos em Filosofia, estamos a defender uma determinada

posição, elencando argumentos a favor da tese defendida. Ao pretendermos fazer

com que o outro acompanhe, aceite ou assuma as teses que defendemos, temos

que selecionar os argumentos em função desse objetivo, ou estruturando o discurso

para que ele ganhe capacidade de persuasão através da sua estrutura.

§11.

Áreas e temas abrangidos pela Filosofia

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18

Tendo a totalidade como objeto da sua reflexão, logo é possível constatar

que são múltiplos os assuntos e os temas que cabem na discussão filosófica,

originando-se, por essa razão, disciplinas filosóficas, também elas variadas para

darem conta dessas variadas problemáticas.

No campo da reflexão sobre o homem enquanto membro de um grupo e

vivendo numa dada sociedade14, podemos indicar algumas disciplinas filosóficas

que serão aí pertinentes: a Axiologia que se dedica ao estudo dos valores, a Ética

que estabelece e conduz à reflexão sobre os princípios que deverão orientar a ação

humana e a Filosofia Política, que perspetivará o homem como um animal político

refletindo sobre o futuro da comunidade humana.

Já no campo da reflexão sobre a linguagem, a sua origem e natureza ocupa

um espaço próprio na reflexão filosófica. Aí vê-se delimitar algumas disciplinas

filosóficas como sejam a Filosofia da Linguagem, a Filosofia Analítica e a

Hermenêutica.

No campo do conhecimento vemos discutir-se desde a natureza do

conhecimento, à existência ou não de uma rutura entre o conhecimento do senso

comum ou conhecimento vulgar e o conhecimento científico (e as suas implicações

éticas) e o problema da verdade. Esta constelação de problemas gerou o

surgimento de várias disciplinas filosóficas como sejam a gnoseologia,

epistemologia e a teoria do conhecimento.

A experiência humana, enquanto conjunto de acontecimentos humanos

significativos, é também objeto da Filosofia. A experiência política, do homem

enquanto cidadão, habitante da cidade (polis), a experiência estética, do homem

enquanto produtor e espetador do belo artístico e a experiência religiosa, do

homem relacionando-se com a transcendência, afirmando-a ou negando-a, também

geram disciplinas no seio da Filosofia: Ética, Estética e Filosofia da Religião.

Finalmente, cabe também à Filosofia a reflexão sobre a natureza e estatuto

de entidades que se situam para além do mundo físico, que é o do nosso viver

diário. Disciplinas como a Metafísica e a Ontologia movem-se precisamente

nesse mundo inteligível.

14 Já Fichte afirmava que “o homem só é homem entre os homens” – Das man ist nür ein man unter den Menschen.

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19

Capítulo 2 - O homem construindo-se através da ação

§12.

O que leva o homem a agir?

Segundo Fernando SAVATER, o perpétuo inacabamento da realidade humana

é a essência da nossa condição humana; a inquietude é o coração do nosso coração

e ser humano consiste em procurar constantemente a fórmula da vida humana15. O

homem, ao contrário dos outros animais, nasceu cedo demais, antes de estar

desenvolvido e preparado para enfrentar o mundo. Ao fim de dois anos, qualquer

bebé é incapaz de sobreviver sozinho; qualquer outro animal, ao fim do primeiro

mês já sobreviveria. A sua intervenção, desde muito cedo, no meio que o rodeia

intenta colmatar essas insuficiências que o homem traz consigo, esse

inacabamento, esse ser-em-vias-de. A imperfeição inicial obriga o homem a agir.

Por isso, o homem é também projeto, ser que se lança para diante ou

permanentemente lançado para diante, para o seu futuro.

O homem, desde sempre, que tentou construir um mundo mais habitável, à

medida das suas necessidades, dos seus desejos e projetos. O meio que ele

encontra no início, nem sempre está disposto da forma mais favorável aos seus

intentos. A hostilidade do meio leva o homem a ter que agir. Por isso, ele tem que

transformá-lo de acordo com as suas necessidades, tem que torná-lo mais

amigável, mais habitável tem de agir. A cultura representa esse esforço

incessante que resulta do confronto do homem com a Natureza e o resultado dessa

ação transformadora. Esse esforço traduz-se no trabalho, num conjunto de

atividades tendentes a transformar a Natureza, produzindo coisas novas e

transformando as já existentes. O homem age, produz o seu próprio mundo,

trabalha e por toda a parte deixa marcas da sua atividade. O mundo é a sua casa,

mas o homem tem de vencer a hostilidade inicial desse mesmo mundo.

§13.

Sentidos da palavra ação usados na linguagem quotidiana e que não

deverão ser considerados neste âmbito

Quando falamos aqui de ação estamos a referir-nos a ação humana. No

entanto, no dia-a-dia, referimo-nos também à ação dos animais e à ação dos

elementos. Trata-se dum uso impróprio. Como veremos mais adiante (§15), a ação

humana corresponde a algo que fazemos de forma consciente e voluntária. Isso não

está presente no comportamento dos animais. O cão que abana a cauda, não o faz

porque isso resulte duma decisão do cão ao ver o dono – trata-se não duma ação,

mas antes duma reação do animal. Do mesmo modo, podemos falar da ação da

15 Cf. Fernando SAVATER, A coragem de escolher, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004, p. 30.

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20

chuva ou da ação erosiva do vento. Porém, nem a chuva nem o vente agem: não

atuam segundo a sua vontade nem muito menos têm disso consciência.

§14.

A ação humana constitui uma intervenção planeada e pensada

Ao contrário do animal que age por instinto, irrefletidamente e de acordo

com a sua memória genética, o homem age refletidamente, analisa, pondera e

decide de acordo com a avaliação que faz do meio que o rodeia, das oportunidades

e obstáculos, bem como das suas capacidades e instrumentos postos à sua

disposição.

A ação humana, em sentido lato, significa a produção de efeitos, o que

implica que algo é modificado ou transformado. Com efeito, agir tem como

consequência, na maioria das vezes, uma modificação da realidade que cerca o

sujeito. Nesse sentido, a ação humana constitui uma interferência do homem no

decurso dos acontecimentos, a produção e provocação de efeitos na realidade que

o cerca. A ação humana, neste sentido, modifica a realidade. Foi através da ação

dos homens que o mundo se foi tornando num lugar mais acolhedor, de acordo com

as suas necessidades, desejos e projetos.

No entanto, devemos entender que a ação não se caracteriza apenas pela

produção de efeitos externos. Por exemplo, podemos falar duma ação interior, do

sujeito sobre si mesmo. Por outro lado, a ação, enquanto algo de exterior e visível

corresponde à exteriorização e concretização do pensamento. Embora possamos

dizer que há pessoas que em determinados momentos agem sem pensar, tal

afirmação não é rigorosa; o que se deveria dizer é que o pensamento que

antecedeu a ação foi insuficiente ou desadequado em relação à realidade onde

pretendia intervir. Na maioria dos casos, o homem antecipa o que pretende fazer e

tenta agir de acordo com o que planeou. Se as coisas não correm como planeado,

tal deve-se a diversos fatores, desde uma insuficiente ou desajustada análise e

ponderação até à intervenção de causas inesperadas ou imponderáveis.

§14. - A

Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ação

da reação

No sentido de percebermos o que é a ação, devemos proceder a algumas

distinções e esclarecer melhor o que é o agir. Na nossa vida são muitas as coisas

que nos acontecem. Por exemplo, ficarmos constipados ou cair-nos uma bola na

cabeça. Isso são acontecimentos, não são ações do sujeito, mas algo que aconteceu

ao sujeito. Também acontece que nalgumas situações temos reações automáticas,

instintivas. Por exemplo, quando algo nos passa inesperadamente diante dos olhos

e, automaticamente, os fechamos, como defesa. Trata-se, não de uma ação, mas

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21

de uma reação, algo que fizemos sem pensar ou planear. Se tivéssemos que pensar

e planear a nossa resposta perante o inseto voador que se dirigia para o nosso

rosto, acabaríamos por não responder convenientemente a essa ameaça. Pensemos

também, a título de exemplo, nas reações que podemos ter quando andamos de

bicicleta e um obstáculo surge inesperadamente à nossa frente: nós reagimos

automaticamente, desviando-nos desse obstáculo ou travando como uma reação

por instinto. Se pensássemos na resposta que devíamos dar perante o surgimento

do obstáculo, perdíamos o tempo útil de resposta e acabaríamos por não conseguir

evitar o choque. Do mesmo modo que distinguimos o plano do agir do plano do

acontecer, também devemos distinguir o que é uma ação do que é uma reação.

“Por ação (…) entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor,

votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no

emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar.”16

§15.

A consciência e a vontade são elementos que caracterizam

necessariamente a ação humana; o agir pressupõe uma atividade

consciente e voluntária

As nossas ações são algumas das coisas que nós fazemos. Nem tudo o que

fazemos constitui uma ação. O fazer abrange um campo de atividades e

acontecimentos mais amplo que aquele que é designado pelo agir. Tudo quanto

realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma

ação. Fazer coisas é um aspeto de que se reveste a ação, mas não a esgota.

Realizamos coisas inconscientemente, enquanto dormimos; não temos consciência

de que as realizamos isto não são ações. Por outro lado, há coisas que fazemos,

mas que não correspondem a uma deliberação da nossa vontade. Há coisas que

fazemos conscientemente, mas sem intenção, ex.: tiques nervosos, atos reflexos

realizamos isso involuntariamente, apesar de termos disso consciência,

constatamos isso enquanto espectadores e não enquanto agentes. O que fazemos

involuntariamente também não constituem ações. Reservamos o termo ‘ação’ para

as coisas que realizamos consciente e voluntariamente e que, nalguns casos

mobiliza um saber e um poder técnicos. A consciência e a vontade são elementos

integrantes e caracterizadores da ação. Só devemos chamar ações aos aspetos da

nossa conduta de que damos conta (de que temos consciência, que fazemos

conscientemente) e que efetuamos intencionalmente, isto é, com intenção, ou seja,

voluntariamente.

Portanto, as ações correspondem àquilo que realizamos consciente e

voluntariamente, não sendo ação do homem o que este realiza estando apenas

16 John Searle, Mente, Cérebro e Ciência,

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presente uma daquelas características. Atos do homem são aquilo que realizamos

ou sem termos consciência disso ou sem que isso corresponda à nossa intenção ou

vontade. As ações humanas têm que ser, simultaneamente, conscientes e

voluntárias. Conscientes, isto é, quando o sujeito age, ele tem de saber que está a

agir e que a sua ação corresponde ao que projetou e desejou. Voluntárias, isto é, as

suas ações deverão ser a concretização da sua vontade, da sua intenção, fazendo

aquilo que quis ou desejou.

Diz-me o que fazes e dir-te-ei quem és…Quando escolho o curso ou a profissão que quero seguir, não sou apenas o autor das ações que se seguirão em função dessa escolha, como me irei definindo através dessas ações. Aquilo que farei irá contribuir para o desenvolvimento da minha identidade. Eu não sou apenas aquilo que faço e que é escrutinado pelos outros, mas também a soma dos meus desejos e projetos, bem como das minhas frustrações, daquilo que tentei fazer e não consegui. A minha identidade, o que eu sou, é um processo, um permanente movimento, onde as minhas ações constituem elementos determinantes para essa construção da identidade.

§16.

A importância da presença da consciência e da vontade no agir do

homem

Qual é a importância da presença dos elementos consciência e vontade na

ação humana? Para responder a esta pergunta vamos analisar as três situações

seguintes, partindo do princípio que te caberá a ti avaliar e julgar o comportamento

dos sujeitos implicados. Imagina, por exemplo, que és o juiz destes processos e eras

que proferir uma sentença…

§17.

Movimento / acontecimento e ação

“Dizer: «estico o braço para mostrar que dou uma volta» é produzir um

enunciado que não pode situar-se na mesma categoria que o enunciado «o braço

levanta-se»: este descreve um movimento, aquele uma ação; este descreve um

movimento que é observado por um espectador, o segundo descreve uma ação do

ponto de vista do agente que a fez.”17

Movimento e ação não são o mesmo. Dum ponto de vista dinâmico, no

movimento está implicada a noção de causa com um sentido meramente mecânico,

enquanto que na ação está presente a noção de motivo. Do mesmo modo, como já

vimos, a ação não é um acontecimento, isto é, algo que acontece. O que acontece é

um movimento enquanto observável, desprovido de intenção ou motivo. Se o

17 Paul RICOEUR, O Discurso da Ação, p.13

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homem surge aí implicado não o é enquanto agente, entidade ativa, mas enquanto

sujeito passivo. Conduzir um automóvel corresponde a uma ação que eu realizo. Ter

um furo é algo que me acontece, é um acontecimento para o qual eu não tive

nenhum contributo, onde não se manifesta a minha intenção. Matar uma galinha

corresponde a uma ação. A galinha morrer constitui um acontecimento, um facto.

§18.

A rede conceptual da ação: ação intencionada e ação causada

Uma ação intencionada será uma ação que é desenhada de acordo com a

nossa intenção. Com os fins que desejamos atingir e com a nossa vontade ao

serviço da concretização desses mesmos fins.

Uma ação intencionada é uma ação onde está presente a consciência do

indivíduo, a ponderação de opções, onde existe uma escolha entre diferentes vias,

uma decisão que se associa igualmente à nossa vontade, intenção e motivações.

Como afirma William JAMES, “a procura de fins futuros e a escolha dos meios

próprios para o alcançar são, assim, a marca e o critério da presença da

mentalidade num fenómeno.”

Diferente é o caso de uma ação causada. Esta é uma ação explicada por

determinantes — genéticas, ambientais, histórico-culturais ou outras —, onde o

elemento intencional, racional e ético não é visível, ou se encontra diminuído ou

eliminado face ao peso e influência daquelas determinantes.

Consoante o peso que atribuímos à influência daquelas determinantes ou à

influência da nossa vontade, assim se formaram duas perspetivas opostas acerca

da dependência da nossa ação em relação às causas exteriores ou em relação à

deliberação da nossa vontade.

§19.

Perspetiva determinista e perspetiva baseada na ação intencionada

Segundo a perspetiva determinista nós somos determinados por causas,

somos o produto de causas; toda a ação humana é explicada e é determinada por

fatores que têm a ver com a nossa natureza animal, com os nossos genes, com a

nossa biologia, por um lado; e com fatores que têm a ver com a sociedade, a época,

a educação ou ainda com fatores externos de diversos tipos e que nos ultrapassam

(acasos, acontecimentos, obrigações ditadas por outras pessoas, etç.). A nossa

liberdade está assim condicionada por esses fatores que acabam por funcionar

como os verdadeiros autores daquilo que fazemos e das nossas ações. O sujeito

como que se apaga diante desses fatores.

Pelo contrário, quanto à perspetiva baseada na ação intencionada, há dentro

de nós e nas nossas ações fatores racionais, graus de liberdade, elementos que

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ultrapassam as causas em si mesmas; há projetos e há intenções; logo, o indivíduo

está acima das condicionantes ambientais, biológicas ou outras, escapa desses

fatores e como que age exclusivamente partindo da sua vontade imune a esses

fatores e ao meio onde o sujeito está.

§20.

Combinando causas e intenções; o homem é simultaneamente livre

e determinado

Somos, por um lado, produtos de genes e produtos da educação e de uma

época, logo, seres sujeitos a essas condicionantes. A nossa inteligência, as nossas

capacidades racionais têm limites. E isso permite ultrapassar, de certa maneira e a

alguns níveis, as causalidades de base, as determinantes e condicionantes. Temos

também livre-arbítrio, ou seja, capacidade de optar entre o bem e o mal. Em

conclusão, há, simultaneamente, causalidade e intencionalidade nas nossas ações.

Somos livres sem o poder ser de uma forma absoluta. Não podemos ou não

conseguimos realizar tudo o que projetamos ou idealizamos. Por várias razões. A

começar, o nosso corpo é, de certa maneira, um limite e uma limitação dos planos

da nossa vontade. O meu corpo é um limite à minha liberdade, apesar de ser,

igualmente, um instrumento e o meio através do qual eu posso realizar a minha

liberdade.

Mas a realidade que me rodeia também constitui uma limitação à minha

liberdade e, portanto, para a minha ação. Por mais vontade que eu tenha de ser

pescador, se viver no interior, longe do mar ou de um lago ou de um curso de água,

o meu projeto de vir a ser pescador está fortemente condicionado. O meio, para

além de poder ser um manancial de oportunidades, é também uma fonte de

obstáculos e dificuldades. [a continuar]

§21.

Ações voluntárias, atos involuntários e reflexos

As ações intencionadas são ações voluntárias, ou seja, assentes no nosso

querer, na nossa razão, no pensamento. Nisso distinguem-se das ações

involuntárias e das ações reflexas. Parte dos nossos atos é comandada por impulsos

e desejos porventura divergentes e difíceis de gerir. As nossas pulsões agressivas e

as nossas pulsões sexuais são exemplos disso. Os atos que se associam aos nossos

instintos, aos nossos reflexos, à nossa natureza animal, ao nosso lado irracional e

emocional, ou que nos são impostas por terceiros ou pelas autoridades, são atos

involuntários. Ao contrário, as ações intencionadas são voluntárias.

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25

§22.

O agente da ação e a relação causal

Toda a ação depende de um sujeito, isto é, de um agente, tal como toda a

intenção é sempre intenção de alguém. Do mesmo modo, procurar os motivos de

uma acção leva-nos a interrogações que nos conduzem ao agente. O agente é,

assim, uma espécie de causa da ação. Por isso, afirma RICOEUR que “atribuir uma

ação a alguém é, em primeiro lugar, identificar o sujeito da ação”.18 Trata-se de

saber a quem pertence tal e tal ação. A atribuição de um autor a uma ação pode ser

uma tarefa simples, mas também pode ser uma tarefa complicada. Por exemplo,

quando consideramos as consequências longínquas de uma determinada ação.

Vejamos este exemplo:

O António está conduzindo um automóvel a toda a velocidade para o Hospital da cidade, porque a sua mulher entrou em trabalho de parto. Entretanto, Manuel, que estava à janela, vê o automóvel aproximar-se a toda a velocidade, ao mesmo tempo que em frente ao seu prédio dois miúdos jogam à bola. Tenta avisá-los e debruça-se da janela, caindo. Felizmente que Manuel cai em cima do toldo da mercearia e não lhe acontece nada. O seu velho tio, que estava na sala, assiste à queda de seu sobrinho Manuel. Como está numa cadeira de rodas e não se pode deslocar não chega a saber que está tudo bem com Manuel, apenas uns estragos no toldo da mercearia do Sr. José. Graças à queda, os miúdos param de jogar à bola e o automóvel de António passa a toda a velocidade, sem acontecer nada. O mesmo não se pode dizer do pobre tio do Manuel. Ao ver o seu querido sobrinho cair da janela, teve um ataque de coração que foi fatal. Quando Manuel regressou a casa, encontrou o seu tio já sem vida.

Será que podemos atribuir a António, que despoletou este processo

conduzindo a alta velocidade, as consequências do mesmo, incluindo aí a queda do

Manuel e a trágica morte do seu tio. A quem é que o senhor José da mercearia pode

pedir que lhe paguem um novo toldo. À esposa de António? E porque não ao seu

futuro filho que se lembrou de acelerar o seu nascimento? E poderemos acusá-lo de

homicídio involuntário, ainda não tendo nascido?

É evidente que esta situação é uma caricatura. Mas dá para ver as

dificuldades que poderão existir na identificação de um agente da ação, bem como

da importância dessa mesma identificação, como neste caso de apuramento de

responsabilidades. A tarefa pode ser complexa, mas há casos em que pode ser

fundamental. Imagine-se um choque em cadeia em que entrem vários automóveis...

Ou pensemos em situações em que um crime é cometido em regime de co-autoria,

isto é, onde vários agentes concorreram para o cometimento da mesma ação e

onde poderão existir meros cúmplices. É fundamental saber quem são os autores

da ação e determinar o grau de participação na ação de cada um deles de forma a

18 RICOEUR, Paul, op. cit., p. 61

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26

poder, no caso do crime comparticipado, estabelecer a pena ajustada que será

necessariamente diferente para cada um deles.

§23.

Estabelecer um motivo é responder ao porquê e explicar e legitimar

a ação

O estabelecimento de um autor para uma ação leva-nos a uma outra noção

fundamental na estrutura da ação. Trata-se da relação causal, a relação entre dois

acontecimentos, onde um é causa do outro, e este é efeito. Mas identificar a relação

causal não é o mesmo que estabelecer o motivo da ação, já que neste caso

estamos diante de uma ligação mais íntima e/ou interior na ação que vem justificá-

la, torná-la legítima, necessária. O motivo, ao responder à questão do porquê

esclarece a ação, torna-a inteligível. Entre os modos de tornar inteligível uma ação

é relacioná-la com normas. A razão de ser de uma ação não apenas a explica,

como a legitima.

É nesse sentido que vai o texto de RICOEUR:

“ [...] a relação causal é uma relação contingente no sentido de que a causa e o efeito podem identificar-se separadamente e que a causa pode compreender-se sem que se mencione a sua capacidade de produzir tal ou tal efeito. Um motivo, pelo contrário, é um motivo de: a íntima conexão constituída pela motivação é exclusiva da conexão externa e contingente da causalidade.”19

§24. Intenção e motivo

“Intenção e motivo são noções conexas; o motivo é motivo de uma intenção. [...] A relação é tão estreita que, em certos contextos, motivos e intenções são indiscerníveis, em particular quando a intenção é explícita. [...] pode, no entanto, dizer-se que, inclusive, nos casos de extrema proximidade, intenção e motivo se distinguem em virtude de não responderem à mesma pergunta: a intenção responde à pergunta quê, que fazes? Serve, pois, para identificar, para nomear, para denotar a ação (o que se chama ordinariamente o seu objeto, o seu projeto); o motivo responde à questão porquê? Tem, portanto, uma função de explicação; mas a explicação, já vimos, pelo menos nos contextos em que motivo significa razão, consiste em esclarecer, em tornar inteligível, em fazer compreender.” (Paul RICOEUR, O Discurso da Ação, pp. 50-51)

§25.

O trabalho humano e a atividade dos animais

O que distingue o pior dos arquitetos da abelha mais habilidosa?

19 Paul RICOEUR, O Discurso da Ação, p. 51

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27

O que distingue a ação humana da atividade dos animais?

No homem nós temos presente a consciência da sua ação, bem como dos

resultados da mesma. O resultado da ação humana pré-existe idealmente, na

cabeça do agente, à exteriorização da mesma. O homem planeia a sua atividade e

prevê os seus resultados; existe no sujeito humano um trabalho de conceção

mental que é prévio à sua execução. Pelo contrário, o animal age instintivamente,

obedece aos seus instintos e atua no plano do imediato. O animal não ultrapassa o

momento imediato, situa-se no plano do aqui e agora. O animal não age, antes

reage. O homem não é dominado pelos instintos, antes concebe e aplica um plano:

o que a sua mão realiza foi concebido previamente pelo cérebro. O trabalho

manifesta a inteligência criadora do homem sobre a realidade envolvente. Neste

sentido, apesar de tudo, existe uma superioridade do arquiteto mais desastrado

sobre a abelha mais capaz.

Afirmava PROUDHON em Création de l’ordre dans l’humanité: “O trabalho é

a ação inteligente do homem sobre a matéria. O trabalho é o que distingue (...) o

homem dos animais; aprender a trabalhar é o nosso objetivo sobre a terra.”

§26.O trabalho enquanto forma particular de ação. Trabalho e projeto.

“Tal é o trabalho humano: um plano que convida à realização, uma previsão que leva à efetivação, uma intenção que precede o ato, o interior do homem que se exterioriza e que, graças a essa exteriorização, se enriquece e se reconhece. O trabalho humano une a mão e o cérebro, o cérebro tem necessidade da mão para se manifestar enquanto a mão não pode agir sem que o espírito a dirija.”20

No âmbito da ação, o trabalho representa uma das suas formas particulares.

Decerto, a mais essencial e fundamental, tendo em conta a longa caminhada da

humanidade e o seu constante esforço no sentido de dominar a natureza e colocá-la

ao seu serviço.

Existe no homem a dimensão do projeto.

Só o homem existe na dimensão do projeto. Só o homem projeta. E

projetando-se, projeta-se, o homem projeta-se. E é porque se projeta que se pode

rever na obra produzida. Só há projetos para o futuro. O futuro é o tempo próprio do

projeto, mesmo quando este se formula no tempo presente.

Ele encontra-se vê-se a si mesmo na obra que realiza. O mundo à sua volta,

que é obra sua, é ainda o homem realizando-se. Quando olhamos para as coisas

que fazemos, vemos nelas um pouco da nossa história.

“A obra reflete a imagem do espírito que a concebeu. Essa imagem permanece confusa enquanto a obra serve apenas a

20 Henri ARVON, A filosofia do trabalho, p. 43.

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28

satisfação das necessidades vitais, torna-se nítida à medida que a obra se desembaraça de toda a necessidade exterior para atingir a «gratuitidade». É então que o trabalho, que é descoberta do homem por si próprio, cumpre totalmente a sua função.”21

O trabalho realiza o homem, exterioriza as suas expectativas, os seus

desejos, os seus projetos. Tal como a ação manifesta o homem. O resultado da sua

ação é o homem exteriorizado.

Ao agir, exteriorizo-me, manifesto a minha essência, isto é, aquilo que sou –

qualquer obra reflete o seu autor e isso é ainda mais evidente na criação artística.

Aqui, o agente criador, livre de toda a necessidade e pressão, possui toda a

disponibilidade para agir e criar de acordo com a sua vontade e imaginação, dando

largas à sua subjetividade. Nesse sentido, será ao nível da criação artística que a

obra melhor revela a essência do seu criador. A sinfonia nº 3 de Beethoven reflete

melhor a sua personalidade que o conjunto de listas de compras que ele tenha

elaborado durante toda a sua vida. A obra de arte é a obra que exprime melhor

aquilo que o seu autor é, pretende ser e / ou pretende que os outros vejam nele.

§27.

Ação livre e responsabilidade

Em que condições é que podemos falar de uma ação livre? Ora, a ação só é

livre quando o sujeito age de acordo com a sua vontade, consciente do que está a

fazer e das consequências que dessa ação resultem. O sujeito não age livremente

porque não existam limites ao seu agir; antes pelo contrário, o sujeito é livre e age

livremente porque reconhece as limitações e joga com elas, tira partido dessas

limitações. Ora, a partir do momento em que o sujeito age livremente, pode ser

responsabilizado pelo que aconteça. É responsável pelos seus atos e suas

consequências.

Só o sujeito que age livremente é que é responsável pelos seus atos e pelas

consequências dos seus atos. Só aquele que age voluntariamente está em

condições de assumir plenamente a autoria dos seus atos e só a esse sujeito é que

é possível exigir “responsabilidades”. Se a vontade do sujeito fosse manipulada ou

adulterada, então nunca poderia ser responsabilizado pela sua ação, mas seria sim

aquele que dominaria a vontade do sujeito.

Se apontam uma arma à cabeça do sujeito para que ele furte um sabonete

do supermercado, não pode ser totalmente responsabilizado por esse furto. Se a

sua vontade estava a ser condicionada dessa maneira, ao ponto desse sujeito agir

contra a sua vontade, não se lhe podem assacar responsabilidades pelo furto do

sabonete. A responsabilidade deve cair sobre quem apontava a arma.

21 Henri ARVON, A filosofia do trabalho, p. 41,

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29

Só um sujeito livre pode ser considerado responsável e responsabilizado. Ser

responsável ou ser responsabilizado significa que deve arcar com as consequências

da ação, isto é, do que acontece como consequência da ação.

Quando ele é responsabilizado, vai arcar com o peso da sua decisão. Por

isso, um sujeito que se sabe responsável, não decide de ânimo leve, de forma

imediata, não ponderada. Ele sabe que a sua ação inicia uma série de reações em

cadeia. Com o seu agir a realidade transforma-se e já não é mais igual ao que era. É

por isso que, em termos do direito, a responsabilidade assume-se repondo a

realidade tal como era antes da intervenção do agente. Só há lugar a indemnização

em dinheiro quando já não é possível a reposição da situação original22. Em termos

jurídicos (que segue de perto o significado filosófico) aquele que é responsável é

aquele que é autor da ação e que deve repor o estado de coisas anterior à

ocorrência da ação danosa. Por exemplo, se o meu automóvel destruir o muro do

vizinho e eu for responsabilizado por isso, então serei eu o responsável e quem

deve repor o muro tal qual ele existia antes do automóvel o ter destruído (ação

danosa). Portanto, ser responsável significa ter que, “aguentar” com as

consequências. No caso, reconstruir o muro ou indemnizar o dono do muro, dando-

lhe a quantia de dinheiro que compense o dono do muro do prejuízo que teve ou

possa ter enquanto o muro não for reconstruído23.

§28.

A culpa. Negligência e dolo.

Próximo da noção de responsabilidade temos a noção de culpa. A culpa é o

sentimento que o sujeito experimenta quando sabe que é responsável por

determinada ação. Associada à noção de culpa está a noção de intenção: o culpado

da situação x é aquele que teve a intenção de provocar a situação x. Isto quer dizer

que agiu com a vontade de provocar a situação x. Será, pois, culpado pela situação

x. No sistema penal português distinguem-se dois graus de culpa: negligência e

dolo.

Agiu com negligência aquele que agiu descuidadamente, possuindo o dever

de agir doutro modo, e nesse sentido é responsável pela situação criada.

Imaginemos a seguinte situação: Antonieta, funcionária do jardim-escola não

se apercebeu que uma criança que estava à sua guarda tinha corrido para a

estrada onde foi atropelada por um automóvel. Veio a provar-se que Antonieta,

22 Era o que aconteceria, por exemplo, se alguém destruísse um quadro pintado por um pintor famoso. Seria impossível repor a situação original.23 Imagine-se que, enquanto o muro está destruído e aproveitando esse facto, fogem-lhe da sua propriedade, o rebanho de ovelhas que ele possuía. Neste caso a indemnização deve contemplar este prejuízo. Como também pode contemplar os lucros que o dono do muro deixou de ganhar. Imagine-se que durante o tempo que o muro está destruído alguém vem adquirir essa propriedade por um valor inferior por causa do muro destruído.

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30

naquele momento, estava a mandar uma mensagem pelo telemóvel para a

namorada. Neste caso será culpada por negligência. O que não é o mesmo que agir

dolosamente. Neste caso, agiu com dolo aquele que agiu com a intenção de

provocar uma determinada situação.

Veja-se o caso de uma funcionária do jardim-escola, Belarmina, que dissesse

à criança (filha de um ex-namorado que ela detesta) para ir brincar para o meio da

estrada sabendo que assim iria ocorrer um acidente. Nas duas situações existe

culpa, mas em graus diferentes: Antonieta foi negligente, mas Belarmina atuou

dolosamente. É por isso que na atribuição de uma pena o juiz irá distinguir se o

arguido agiu negligentemente ou dolosamente. A negligência é uma forma de culpa

menos censurada ou penalizada que o dolo24.

§29.

Algumas notas sobre o existencialismo

O existencialismo é uma Filosofia à qual está ligado o nome de Jean-Paul

Sartre, como seu principal representante. As principais obras deste autor vieram a

lume na segunda metade do século vinte.

Para aquele filósofo distingue-se a essência da existência. No mundo das

coisas, a essência é anterior à existência. Uma cadeira é definida previamente na

cabeça do carpinteiro que a projeta e só depois é a passa a existir. No caso da

cadeira, primeiro esta é (na cabeça e nos planos do carpinteiro) e só depois é que

existe. A existência da cadeira está condicionada e limitada por aquilo que o seu

criador planeou previamente. No caso do homem, passa-se algo completamente

diferente. Segundo Sartre existe no homem uma anterioridade da existência sobre

a essência. Isto quer dizer que o homem primeiro existe e só depois é que é, quer

dizer, só depois é que se vai definindo, construindo as suas qualidades. Para Sartre,

Deus não existe e, portanto, não existe nenhum ser que criou o homem. Ninguém

criou o homem. É ele que se cria a si mesmo. Para isso, primeiro existe e só depois

é que é — a existência é anterior à essência. No caso do homem, ele não está

limitado por nenhum plano prévio. O homem não tem que conformar a sua vida

segundo o projeto de um Deus qualquer. Porque Deus não existe, o homem é

radicalmente livre, é ele que se inventa a si mesmo, é ele que cria a sua essência, é

ele que constrói o que quer ser. O homem não encontra nenhum sinal, nem

nenhuma indicação a mostrar-lhe o caminho que deve seguir. Segundo o

Existencialismo, cada homem é livre para seguir o que quiser. Mais, como dizia o

poeta espanhol Antonio Machado, “não existem caminhos, fazem-se a caminhar”.

Se Deus existisse, o homem não era livre, pois a sua existência estava determinada

24 Para o nosso Código Penal existem até atuações que só serão crimes em caso de dolo; a negligência não é penalizada do ponto de vista do Direito. Como veremos mais à frente, isso não significa que não haja um juízo de censura social e a negligência não seja penalizada do ponto de vista moral.

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31

e ele teria que existir de acordo com essa essência. Sem Deus, cada homem “está

só e sem desculpas” ou como diz a canção “não há estrelas no céu / a dourar o meu

caminho”. O homem é livre para o fazer, como também é responsável e

responsabilizado por isso. A todo o momento, o homem escolhe, mas não existe

ninguém a indicar-lhe um caminho. O homem só se escuta a si mesmo, é ele que

constrói a sua essência. Se Deus existisse e tivesse criado o homem, este poderia

sempre admitir a vontade divina como responsável por aquilo que ele é e

desculpar-se com isso. Deus dá jeito a quem não quer arcar com o peso da

responsabilidade, quem quer fugir diante das suas responsabilidades. Neste

sentido, quem acredita em Deus vê nele um bom refúgio para demitir-se da

construção da sua essência e da própria realidade. Quem não acredita, tem de ficar

com o peso e as consequências da sua escolha.

§30.

Classificação das condicionantes da ação humana

O homem é um ser completamente exposto às influências do meio social,

cultural e natural, sempre aberto aos outros, completamente permeável às

influências do exterior. Por outro lado, é um ser inacabado e imperfeito, donde a

necessidade de agir, de se transformar e transformar a realidade de acordo com as

suas necessidades. O homem não é, assim, um ser fechado sobre si mesmo. Por

isso se diz que o homem é um ser de relação. Também no mesmo contexto de

ideias, note-se a afirmação do Ortega y Gasset: “ Eu sou eu e a minha

circunstância”. Com esta afirmação o filósofo espanhol quer-nos dizer que na

identidade e no conhecimento de qualquer um teremos de ter em conta o contexto

em que o próprio sujeito se encontra. O homem não se pode definir isolado da

realidade e dos outros. A sua estrutura anatómica-fisiológica aponta precisamente

para essa interpenetração do sujeito com a realidade que o envolve, seja a

realidade física ou a realidade cultural ou ainda a realidade social. O homem está

na dependência do mundo, um mundo de coisas e pessoas, e este constitui fonte de

limitações para a sua ação, mas também um conjunto de oportunidades e recursos

postos à sua disposição. Esta situação particular de um ser dependente do mundo,

aberto ao mundo e interagindo com o mundo, leva a que o homem não possa

contar apenas consigo, mas tenha que levar em linha de conta com um conjunto de

fatores que envolvem o sujeito e que o definem.

O sujeito não se compreende isolado dos outros, porque apenas se

desenvolve na interação com os outros. É assim que acontece quando

consideramos a perspetiva filogenética e a perspetiva ontogenética, isto é, quer

consideremos o homem na sua evolução individual desde a fase de criança até ao

estado adulto (filogénese), quer consideremos a evolução da própria espécie

humana e o processo de hominização (ontogénese). Nestes dois processos

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32

evolutivos o homem desenvolve-se na medida em que se relaciona com os seus

semelhantes e realiza trocas com o meio exterior. Esta interdependência entre o

homem e o meio que o envolve faz com que a sua ação nunca possa depender

exclusivamente da sua vontade. Todo este percurso acontece estando o homem

mergulhado numa determinada situação que o rodeia e influencia sob diversas

formas.

Ele não age de uma forma absolutamente livre. Existem fatores que

condicionam e limitam a ação humana. Estas condicionantes da ação humana

podem dividir-se segundo a seguinte classificação: condicionantes biológicas,

histórico-culturais, psicológicas e físicas.

O facto de o homem estar situado numa determinada sociedade e numa

determinada época coloca limitações à própria atividade humana. A começar,

devemos considerar as condicionantes sócio-culturais ou histórico-culturais,

ilustradas por todo um conjunto de produtos culturais e sociais que estruturam a

sociedade e asseguram o seu funcionamento mais ou menos regular: hábitos,

costumes, normas de convivência social, leis, imperativos religiosos e morais,

valores, tudo isto constitui uma constelação de princípios e regras que limitam a

atividade humana. Condicionam, mas não são barreiras intransponíveis, porque

todos nós sabemos que, nalguns casos, a atividade humana vai contra esses

princípios e regras. O Código da Estrada assegura o regular funcionamento do

trânsito na medida em que informa os condutores sobre o que se pode e não se

pode fazer. Mas a existência das normas do Código da Estrada não asseguram só

por si que não haja transgressões. Aquelas normas condicionam a ação dos

condutores, mas não são limites absolutos.

Mas existem outras limitações ao exercício da vontade. A estrutura e

funcionamento do nosso corpo são também condicionadores da ação. Eu não posso

estar debaixo de água mais do que determinado tempo e por mais vontade que

tenha em voar, eu sei que não o posso fazer. Existem, deste modo, outro tipo de

condicionantes que designaríamos como condicionantes biológicas e que são

transmitidas geneticamente. Trata-se de condicionantes que têm a ver com a

estrutura e funcionamento do nosso corpo. De notar, contudo, que o nosso corpo

possui um duplo sentido: por um lado constitui uma condicionante da ação humana,

por outro lado é com o corpo e é através do corpo que eu ajo e intervenho no

mundo. O meu corpo é um limite, mas também um instrumento da vontade, o

veículo para a concretização do meu pensamento. É através do meu corpo que eu

exteriorizo as ideias da minha mente. Nesse sentido, eu realizo a liberdade através

do meu corpo. O corpo é um instrumento ao serviço da ação, mas também limita a

própria ação, na medida em que eu não posso agir para lá daquilo que o corpo me

permite. O sujeito age dentro dos limites que são impostos pelo corpo, instrumento

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33

da ação, o corpo está ao serviço da liberdade, porque é através dele que eu

manifesto o meu ser livre, mas ao mesmo tempo, o corpo condiciona a liberdade,

ele é a fronteira da vontade.

Mesmo com uma vontade intensa e esclarecida eu não posso voar ou viver

debaixo de água. É verdade que eu posso ir alargando esses limites, quer porque

eu posso ir treinando o corpo, e ganhar mais destreza física, quer porque eu posso

socorrer-me de meios mecânicos para ampliar esses mesmos limites (quando eu

uso um telescópio eu amplio a minha capacidade de visão) contudo, alargar os

limites do meu corpo não significa que alguma vez eu possa dispensa-lo da

execução da ação.

As condicionantes biológicas não estão fixas. Na evolução da espécie

humana, verifica-se que o homem progride na medida em que depende cada vez

menos do corpo que foi transmitido geneticamente, construindo artifícios técnicos

que o ajudam a ultrapassar as suas limitações biológicas.

Para além do corpo, também a personalidade de cada um condiciona o seu

modo de agir. Existem certas maneiras de ser que fazem com que o indivíduo seja

mais passivo ou indiferente face ao mundo e, nesse sentido, menos propenso a

agir. A ação de uma pessoa, a sua intervenção no mundo, pode ficar condicionada

por causa de um temperamento mais envergonhado ou reservado. Neste caso,

estamos a falar de condicionantes psicológicas que se relacionam com o

psiquismo humano.

Finalmente, também poderemos entender que o meio físico onde a ação se

concretiza condiciona o agir humano. Pense-se, por exemplo, no trabalho agrícola e

como ele está dependente e condicionado por um conjunto de fatores, tais como a

natureza dos solos, a existência ou não e cursos de água, a existência ou não se

solos apropriados ou terrenos acidentados, o clima. Quer isto dizer que poderemos

também considerar a existência de condicionantes físicas ou ambientais.

O vasto elenco de fatores que condicionam a ação humana leva-nos à

conclusão de que o homem e a sua vontade estão limitados por determinados

fatores que, contudo, não são obstáculos intransponíveis. Se assim fosse, não

haveria nenhuma margem para a liberdade e vontade humanas. Ora, nós

constatamos facilmente que o homem tem, em muitas ocasiões, a possibilidade de

escolher algo e de recusar algo. Todas as vezes que eu ajo, eu sei também que

poderia ter feito mais ou menos do que fiz, que poderia sempre ter feito diferente.

Todas as vezes que eu levo por diante uma ação, eu sei que escolhi e rejeitei

alternativas, caminhos diferentes daqueles que acabei por seguir. Isso significa que

o homem é livre para escolher, mesmo que condicionado por inúmeros fatores.

§31.

Diversos tipos de determinismo

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A liberdade humana não é absoluta. Como facilmente já vimos existem

limitações que incidem sobre o homem e a sua vontade. Segundo alguns autores o

homem está submetido a diversos tipos de determinismo.

Determinismo físico

Significa a conceção do universo em que os fenómenos ou acontecimentos

estão de tal maneira relacionados uns com os outros que uma inteligência, capaz

de conhecer todas as circunstâncias da evolução do universo num momento dado,

poderia prever qualquer acontecimento futuro. Todos os acontecimentos estão

interligados entre si em termos de causa e efeito, todos os acontecimentos são

causa e efeito uns dos outros e onde o homem acaba também por ser determinado

pela realidade física. Neste sentido, o homem não é livre pois acaba por agir

determinado pelo turbilhão da realidade externa. É este determinismo que serve de

base à indução das leis científicas.

Determinismo biológico

É a posição segundo a qual não há traços humanos que não sejam produto

biológico. A vida de cada homem seria condicionada por certas limitações impostas

pela herança biológica. Haveria, por exemplo, alguns mecanismos neurofisiológicos

e modos de comportamento que seriam muito difíceis ou mesmo impossíveis de

modificar. O homem seria consequentemente desresponsabilizado pelas suas

tendências e pelos seus atos, na medida em que tudo aquilo que ele faz deve ser

explicado não pela sua vontade mas através do funcionamento do seu corpo. Para

algumas tendências mais radicais, como por exemplo no âmbito da biossociologia,

mesmo os valores, como o patriotismo, teria um fundamento biológico.

Determinismo psicológico

É a tese segundo a qual todo o comportamento livre e espontâneo é

determinado por antecedentes psíquicos de ordem afetiva (crenças, desejos,

temores, etc.) ou de ordem intelectual (motivos). Esta forma de determinismo nega

a liberdade humana.

Determinismo sociológico

Considera que o comportamento do indivíduo é um produto da cultura, ou

seja, dos hábitos coletivos, adquiridos por aprendizagem social e transmitidos de

geração em geração. A cultura modela a personalidade, influencia os valores, as

crenças e atitudes. Condiciona, portanto, a maneira de ser, de pensar e de agir do

homem.

§31 – A.

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35

A crença no destino como forma de determinismo

O homem que se afirma a si mesmo, assumindo a sua liberdade, afirma-se

como senhor do seu destino. Mas há também quem afirme que o destino do homem

já está traçado de uma vez por todas e que tudo o que acontece no mundo

corresponde à Providência Divina e à vontade de Deus. Para esses, o homem não é

livre, é uma espécie de marionete, cuja vida é manipulada a partir do Além. Esta

posição também pode ser muito cómoda para quem não quer assumir a

responsabilidade pela sua condição e situação. Atribuir a Deus a causa de tudo o

que acontece é afastar o homem do seu próprio caminho e da sua história. Quem

assim pensa tem, sobretudo, medo que os homens sejam senhores do seu destino e

da sua vida e expulsem definitivamente os deuses da sua realidade.

§32.

Consciência, vontade e responsabilidade

Como já atrás vimos, as ações humanas envolvem a consciência e a vontade

humanas. A consciência e a vontade são elementos intrínsecos à ação, sem os

quais não poderíamos dizer que estávamos diante de uma ação humana. A

liberdade e a ação livre concretizam-se através de um processo em que o homem

(o agente) sabe o que faz e faz o que deseja fazer. A ação só é livre se o sujeito agir

de acordo com a sua vontade, consciente do que está a fazer e das consequências

de que daí resultam.

O sujeito é livre e age livremente, não porque não existam limites /

limitações ou barreiras à sua ação, mas porque reconhece essas limitações e joga

com elas.

A partir do momento em que o sujeito age livremente, de acordo com a sua

vontade e consciente do caminho que iniciou, então o sujeito é também

responsável pelos seus atos e pelas consequências destes. Só um sujeito livre pode

ser responsável e responsabilizado. Se a vontade do sujeito fosse manipulada por

indivíduos estranhos, por exemplo, então a responsabilidade recairia sobre estes e

o sujeito nunca poderia ser responsabilizado. Se o sujeito é livre e sabe o que faz,

então também é responsável, é sobre ele que recaem as responsabilidades do que

acontecer como consequência direta do seu agir25. Ser responsável significa

assumir as consequências do que acontece devido à sua iniciativa e à sua ação.

Quando o sujeito é responsabilizado ele vai arcar com o peso da sua decisão.

Por isso, em certas condições, um sujeito responsável não decide de ânimo leve. Ele

sabe que a sua ação pode dar início a uma série de consequências e reações em

cadeia. Com o seu agir a realidade transforma-se e já não é mais igual ao que era. É

25 Se não fosse a consequência direta, então poderíamos cair numa situação absurda em que o sujeito seria responsável por tudo o que acontecesse na sequência dos seus atos, mesmo tratando-se de uma consequência longínqua. Imagine-se que o senhor Albino provoca um acidente. Para além dos acidentados que aí aconteceram, seria também responsável por situações distantes como, por exemplo, pela vizinha do acidentado que escorrega na escada quando recebe a notícia do acidente!

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por isso que, em termos do direito, a responsabilidade assume-se através do

pagamento de uma indemnização que deverá, na medida do possível, repôr a

realidade tal como era antes da intervenção do agente26. Na medida do possível,

pelo que haverá lugar a uma indemnização pecuniária quando não for possível a

reposição da situação originária27.

Há uma íntima ligação entre liberdade e responsabilidade. Se o sujeito não

fosse livre, nunca seria responsável. Nesse sentido, muitos olham a liberdade como

uma espécie de condenação28. Então, optam pela moral dos escravos, porque não

querem aguentar com o ‘fardo’ da liberdade. Preferem ser mandados a assumir o

peso da responsabilidade pelas suas decisões.

Só que o homem só se afirma a si mesmo assumindo a sua liberdade,

afirmando-se como senhor do seu destino. Mas também aqui há quem afirme que o

destino do homem já está traçado de uma vez por todas e que tudo o que acontece

no mundo corresponde à Providência e ao cumprimento da vontade de Deus. Para

esses, o homem não é livre, é uma espécie de marioneta, cuja vida é manipulada a

partir do além. Esta posição também pode ser muito cómoda para quem não quer

assumir a responsabilidade pela sua condição e situação. Atribuir a Deus a causa de

tudo o que acontece é afastar o homem do seu próprio caminho e da sua história.

Quem assim pensa tem sobretudo medo que os homens sejam {ver o já impresso}

26 Isto no caso do ordenamento jurídico português. Noutros ordenamentos, onde as indemnizações podem atingir valores astronómicos, a indemnização tem também a função de penalizar o infrator, com o objetivo de do dissuadir de voltar a praticar a ter uma conduta prejudicial.27 Por exemplo, quando da ação resulta a morte de alguém ou a destruição de um bem original, infungível. Nestes casos não será possível repôr a situação anterior á conduta negativa.28 Era Sartre que afirmava que estamos condenados a ser livres.

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37

Capítulo 3 - O mundo não é indiferente ao homem: os valores

§33.

O que são os valores

Nós, no dia-a-dia, falamos ou ouvimos falar muitas vezes de valores.

Nomeadamente, já todos nós ouvimos falar da Bolsa de Valores, instituição onde se

transacionam ações e obrigações, entre outros papéis. Esses títulos são valores,

mas não é nesse sentido que falamos aqui de valores.

Os valores não são coisas materiais, mas representações mentais

que nós possuímos e que justificam as nossas escolhas. Os valores não são uma

realidade objetiva, material. Os valores são representações mentais, projeções

mentais, entidades ideais. Os valores são realidades subjetivas e expressão da

minha subjetividade, da minha vontade, da minha escala de preferências, que por

sua vez são resultado da minha educação e da minha cultura e da sociedade em

que vivo. Sem que isso queira dizer, no entanto, que não haja igualmente um

movimento em sentido contrário, através do qual explicamos como é que os nossos

valores também influenciam e transformam a educação, a cultura e a sociedade. Os

valores são representações mentais que eu projeto sobre as coisas, factos ou

pessoas. É isso que se passa quando eu realizo escolhas. Cada escolha é a

manifestação das minhas orientações pessoais, é a afirmação da minha

subjetividade. Isto quer dizer que os valores variam de pessoa para pessoa, de

grupo social para grupo social, são subjetivos.

E variam devido a múltiplos fatores de ordem cultural e educacional,

nomeadamente. É por isso que os valores vão mudando de época para época. Muda

o seu conteúdo, como também muda a escala de valores que cada época assume

como sua. Na medida em que eu os projeto sobre as coisas, os valores não são

caraterísticas intrínsecas às próprias coisas, como o tamanho, a cor ou a densidade,

por exemplo. As mesmas coisas podem ter valores diferentes no mesmo momento,

dependendo isso dos sujeitos avaliadores. Uma pedra que eu guardo no meu quarto

pode ter um elevado valor sentimental porque está associada a um momento

afetivamente importante da minha vida, enquanto que para os meus pais aquela

mesma pedra na estante do quarto representa apenas lixo. Como podem estar

sujeitas a uma sucessão temporal de vários valores. Porque os valores também

estão sujeitos à evolução histórica das sociedades. Por isso, são portadores de uma

variabilidade que depende de vários fatores, nomeadamente relacionados com a

época histórica, as caraterísticas da sociedade, os projetos e expetativas da

comunidade. As coisas não valem por si mesmas, mas valem em função do homem

que é criador dos valores e duma sociedade que as avalia. Assim, houve épocas em

que a honra e a vergonha eram valores da máxima importância, que se foram

José Carlos S. de Almeida / document.docx

38

‘desvalorizando’ com o passar do tempo. Neste sentido, podemos dizer que os

valores são históricos, estão sujeitos à historicidade. As mesmas realidades vão

sendo valorizadas ou desvalorizadas com o passar do tempo.

Para Sartre, ao escolher quando ajo eu estou a afirmar o que é melhor para

mim e para os outros. A minha escolha traduz uma conceção do que é melhor para

a Humanidade. Isso faz com que as minhas escolhas tenham um peso acrescido.

Contudo, eu nunca tenho a certeza do que é melhor para os outros. A incerteza que

resulta dessa escolha é geradora de angústia, porque apenas posso contar comigo

mesmo para assumir as consequências da minha decisão.

A minha escolha, na acção, significa a eleição do que é preferível. Portanto,

na ação estão sempre também conceções do que é correto e do que é incorreto, do

que está bem e do que está mal, do que é melhor e do que é pior e deve ser

rejeitado. Em todas as ações estão presentes os valores. Agir é também valorar,

valorizar ou desvalorizar, atribuir valores, porque o sujeito nunca é indiferente ao

mundo que o rodeia. Ao agir eu realizo a minha tábua de valores, eu torno o mundo

mais significativo para mim, porque ele vai adquirindo a minha marca29.

§34.

O percurso da ação aos valores

Todas as vezes que eu realizo uma ação, realizo determinadas opções,

concretizo as minhas preferências. Quando pratico uma ação, opto por seguir um

determinado caminho e rejeito aqueles que não sigo. Porque sou livre, quando

realizo uma ação eu sei que podia sempre ter agido de outra maneira. Por exemplo,

depois de estudar, eu sei que podia ter estudado mais ou estudado menos, que

podia ter estudado ou ter feito outra coisa diferente. Aquilo que fiz ou deixei de

fazer foi resultado da avaliação e ponderação que fiz em relação aos valores e

alternativas em presença. Porque o sujeito é livre, todas as ações que eu levo por

diante representam uma escolha e poderiam ter ocorrido de outra maneira. Quando

agi, fiz uma opção, concretizei a minha liberdade. Todos os dias, de manhã,

levanto-me da cama. Decidir levantar-me da cama, foi essa a minha escolha.

Mesmo sentindo sobre mim o dever e a obrigação de me levantar, fui eu, enquanto

sujeito livre, que aceitei obedecer ao dever e seguir as minhas obrigações

profissionais e as minhas obrigações sociais. Ao escolher levantar-me, rejeitei a

opção de ficar a dormir. Assim, qualquer ação é simultaneamente uma escolha e

uma rejeição. Ora, porque é que decidi levantar-me, ir trabalhar e enfrentar hordas

de bárbaros adolescentes, em vez de ficar a dormir e descansar mais um pouco?

Porque entre aquelas duas opções, eu preferi ir trabalhar; naquele momento, pelo

menos, dei mais valor ao trabalho que ao descanso – foi essa a minha preferência e

29 Tudo isto sem prejuízo das considerações que se podem fazer a propósito do conceito de alienação, dando conta de um mundo que é progressivamente mais estranho para o homem e o homem que se sente um estranho entre os outros, precisamente porque que realidade à sua volta se desumanizou.

José Carlos S. de Almeida / document.docx

39

que está de acordo com os valores da própria sociedade burguesa e do espírito do

capitalismo. Ou, então, acabei por dar mais valor ao próprio cumprimento dum

dever do que à “satisfação de não cumprir um dever” (Fernando Pessoa). Ao agir

duma determinada maneira eu estou a optar pelo que valorizo mais, estou a dar

mais valor e importância à alternativa seguida que à alternativa rejeitada (Claro

que não temos aqui em conta o peso que pode ter o desejo de evitar consequências

negativas quando, por exemplo, ao comentar a escolha feita, afirmo que ‘do mal o

menos’). Em todas as ações que realizo, eu faço uma escolha entre valores

diferentes. Em qualquer ação existe, consciente ou inconscientemente, uma eleição

entre valores algumas vezes opostos entre si; quando tomo uma decisão eu acabei

de eleger o valor que naquele momento, face ao que está em jogo, é para mim o

mais fundamental. Eu ajo em função dos valores que escolho e, escolhendo, aplico

a minha tábua de valores. Enquanto médico, se pratico ou não a eutanásia, isso

significa que me movimento entre dar valor à autonomia do doente e à qualidade

de vida ou dar valor à quantidade de vida que se prolongaria a todo o custo

(obstinação terapêutica). Se eu respeito o pedido do doente para morrer, isso quer

dizer que eu dou mais valor à autonomia do doente que à manutenção da vida sem

ter em conta a qualidade de vida que ele, o doente, ainda possui. Eu atuo segundo

os valores que elejo. Imaginemos a situação dum médico que necessita, para salvar

um doente menor, de proceder a uma transfusão de sangue; entretanto, os pais

recusam a transfusão sanguínea por razões religiosas. Os valores que estão aqui

em confronto são, pelo menos, dum lado o direito à vida e, do outro, o direito à livre

manifestação da sua escolha religiosa, ou liberdade de culto. Não só estão estes

valores em confronto, como estão em confronto diferentes tábuas de valores: para

o médico a vida será o valor mais importante, enquanto que para os pais do rapaz,

a liberdade religiosa sobrepõe-se ao direito à vida. O seu comportamento, o que

devem fazer a seguir, como reagir perante situações-limite como esta é algo que

resulta da ponderação dos valores em presença. Qualquer decisão para agir surgirá

guiada, justificada e legitimada por uma opção de natureza axiológica, isto é, da

ordem dos valores. Quer dizer, então, que os valores guiam a minha ação,

funcionam como uma espécie de farol, indicando-me o caminho a seguir. Os valores

são, desta maneira, um critério e uma justificação para a ação que os concretiza. Os

valores surgem como um referencial para a minha ação, uma espécie de luz que

ilumina e conduz a minha existência e as minhas ações num certo sentido. Em

todas as ações estão presentes um ou mais valores, porque todo o sujeito possui a

sua escala de valores que, normalmente, é a escala de valores do grupo social a

que pertence, numa determinada época histórica. As decisões, mesmo coletivas ou

com um sentido marcadamente social, não escondem nem apagam o individual

contributo que existe em cada decisão coletiva. A liberdade é um resíduo que nunca

se pode apagar em qualquer circunstância.

José Carlos S. de Almeida / document.docx

40

Vejamos ainda outro exemplo, outra situação. Se eu faço greve ou não faço

greve, isso dependerá de vários fatores entre os quais a minha tábua de valores. Se

o valor solidariedade for muito importante e pesar muito nas minhas decisões

então, eventualmente, eu irei fazer greve, manifestando a minha solidariedade para

com os meus companheiros. Pelo contrário, se o individualismo se sobrepuser aos

outros valores então vou-me marimbar para a solidariedade, trato da minha vidinha

e vou trabalhar para não me descontarem no vencimento. Portanto, os meus

valores ajudam a perceber as minhas decisões e a minha maneira de agir, como

também explicam as posições que vou assumindo. Em cada ação do homem é

possível identificar os valores que aí estão presentes. No limite, se eu conhecer a

escala de valores dum indivíduo, conseguirei antecipar as suas decisões e as suas

escolhas. Veja-se a importância que esse conhecimento terá para quem é

responsável pelo marketing e pela publicidade dum produto; ou para quem se quer

candidatar a um cargo político e preparar o seu discurso em função dos valores do

auditório.

§35.

Não há ações gratuitas, isto é, sem a presença dos valores

Não há ações gratuitas, na medida em que todas as ações são movidas por

um qualquer interesse, que não tem que ser necessariamente um interesse

material ou um interesse consciente. Agir com interesse não significa ser

interesseiro, mas apenas que eu atuo sempre com determinados objetivos, em

função de determinados valores que eu persigo e quero ver concretizados. Sempre

que ajo, ajo em função de qualquer coisa, de qualquer objetivo que pretendo

alcançar. Mesmo que agisse por agir, agisse sem ter nada em vista, seria possível

descobrir uma intenção mais profunda e oculta.

Não há ações gratuitas, no sentido em que todas as ações têm um objetivo a

alcançar, têm um determinado motivo que as dinamiza. Nunca o sujeito age por

agir, nunca age sem intenção. Por mais ocultos que estejam, por poderem ser

censuráveis do ponto de vista individual ou social, existem sempre objetivos na

ação. Contudo, existem vários tipos de fins para a ação: eu posso agir tendo em

vista objetivos exclusivamente espirituais, (a fruição estética que resulta da

contemplação dum quadro ou da audição duma peça musical) ou posso também

agir tendo em vista objetivos materiais, isto é, pretendendo obter vantagens

materiais, que enriquecerão o meu património. O filantropo (o benemérito) pratica o

bem e poderia pensar-se que age desinteressadamente, sem interesse algum

visível. Mas também se pode dizer que ele não faz o bem para obter vantagens

materiais, mas pode ter objetivos inconfessados: sentir-se bem consigo mesmo ou

José Carlos S. de Almeida / document.docx

41

obter o reconhecimento da comunidade onde vive30, sem, no entanto, deixar de ser

benemérito por essa razão. Assim, a sua ação benemérita não é totalmente

gratuita. A aparente gratuitidade da ação esconderia, afinal, objetivos que

concorrem para benefício do próprio sujeito. Já o indivíduo interesseiro seria aquele

que apenas age se, antecipadamente, lhe garantirem determinadas vantagens. O

indivíduo interesseiro apenas age com a certeza e a segurança da obtenção dos

resultados pretendidos. Noutras situações, o sujeito age em função de motivos

inconscientes, que ele próprio desconhece ou não reconhece imediatamente. Trata-

se de motivos ou finalidades sobre as quais recaia um juízo de censura social que

impede o sujeito de os assumir aberta e publicamente. Para Freud31 e para a

psicanálise, existem objetivos e finalidades inconscientes e que foram objeto de um

processo de recalcamento, pelo que o sujeito não tem consciência dos motivos que

o levam a agir duma determinada maneira32.

Portanto, não existem ações gratuitas, nunca o sujeito age por agir, de uma

forma completamente desinteressada. Essa maneira de agir revela a abertura do

sujeito à realidade que o circunda e a diferente valoração que o sujeito faz dessa

mesma realidade. Do mesmo modo que o sujeito age tendo em vista determinadas

finalidades, também a realidade não lhe é indiferente, fazendo com que o sujeito se

mova e atue em função dessa mesma avaliação. Assim, ao agir, o sujeito revela o

seu sistema de valores, estruturado em função desse processo de avaliação da

realidade e que exprime as diferentes ordens de preferência do sujeito em relação

ao mundo que o rodeia. Em todas as ações, o sujeito exibe a atualiza a sua

avaliação da realidade; os valores fundamentam, justificam e guiam as ações do

sujeito. Não há ações gratuitas, porque todas elas são guiadas pelos valores (e

interesses) do sujeito.

§36.

Caraterísticas dos valores

Os valores não são coisas materiais, mas representações mentais que nós

possuímos e que justificam as nossas escolhas. Perante a mesma realidade, esta

poderá ser alvo de avaliações diferentes. A intervenção americana no Iraque

movimentou posições opostas entre si. Foram várias as posições que surgiram na

avaliação daquele conflito. Considerando que os principais valores em confronto

neste conflito internacional serão a segurança internacional e o direito de cada

povo a escolher o seu próprio caminho, veríamos que aqueles para quem a

30 De qualquer modo, estará ainda assim, muito longe daquele que, num determinado momento distribui eletrodomésticos junto da população mais carenciada. É que este ‘benemérito’ era candidato à Câmara de Gondomar!31 Sigmund Freud, o criador da psicanálise….. [incompleto]32 É o que acontece, por exemplo com os lapsos de memória ( lapsus linguae) que Freud descreve na sua Psicopatologia da vida quotidiana.

José Carlos S. de Almeida / document.docx

42

segurança internacional é o valor mais importante, apoiariam a intervenção

americana; para aqueles que consideram que a segurança internacional não é um

bem mais valioso que a soberania de cada povo e Estado, colocar-se-iam contra a

intervenção americana no Iraque, que teria atentado contra essa soberania. Assim,

o mesmo acontecimento é avaliado de forma diferente, consoante a escala de

valores de cada um dos avaliadores. Se um médico se recusa a praticar a

eutanásia, apesar do pedido insistente de um doente consciente que se encontra

em sofrimento com dores insuportáveis e cuja doença mortal que o atinge é

irreversível, sem hipótese ou esperança de cura, é porque, para ele, a defesa da

vida é um valor mais valioso que a liberdade e a autonomia do paciente. O médico

irá agir de acordo com a sua escala de valores (tábua de valores), com as

representações que possui e lhe indicam o que está certo e está errado, o que deve

e não deve fazer. Mas podemos encontrar outro médico com outra escala de

valores e para o qual a autonomia do doente e a satisfação do seu pedido sejam

mais valiosas que aquela vida daquele doente, naquele momento e naquelas

condições. Assim, ele respeitaria o pedido do doente e praticaria a eutanásia. Isto

quer dizer que os valores variam de pessoa para pessoa, são subjetivos. Os valores

são expressão da subjetividade de cada um. E variam devido a múltiplos fatores de

ordem cultural e educacional, nomeadamente. É por isso que os valores vão

mudando, de época para época vai mudando o seu conteúdo, como também muda

a escala de valores que cada época assume como sua. Assim, houve épocas em

que a honra e a vergonha eram valores da máxima importância, mas que se foram

desvalorizando com o passar do tempo. Neste sentido, podemos dizer que os

valores são históricos, estão sujeitos à historicidade. Mas também acontece que na

mesma época histórica, os mesmos valores recebam conteúdos e graus de

importância diferentes, consoante o grupo ou a classe social que os assume. Veja-

se, por exemplo, como a honra tem um valor fundamental dentro dos grupos

mafiosos, o que já não acontece fora desses grupos. Ou como a existência de

relações sexuais antes do casamento é avaliada de forma diferente na comunidade

cigana e fora dela. O mesmo é dizer que os valores não são realidades absolutas

que pairam acima do seu tempo, afastados ou desinseridos da realidade; antes são

relativos a cada época histórica ou ao grupo social que os produziu e os assume

como seus. E é a partir da realidade historico-social que os valores são correta e

plenamente compreendidos. Não há valores absolutos no sentido em que estariam

desligados da realidade social concreta.

Os valores não são coisas. Os valores não são uma realidade objetiva e

material. Os valores são representações mentais, projeções mentais, entidades

ideais. Os valores são realidades subjetivas e expressão da subjetividade da minha

vontade, da minha escala de preferências, que por sua vez são resultado da minha

educação, da minha cultura e da sociedade em que vivo. Os valores são

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representações mentais que eu projeto sobre as coisas, factos, ações e

comportamentos ou pessoas. Se eu os projeto sobre a realidade, então os valores

não são caraterísticas intrínsecas dessa realidade. Quando eu digo que aquele cão

tem o corpo coberto de pêlos, isso trata-se de uma qualidade que faz parte da

própria condição canina, é intrínseco ao próprio cão. Mas se eu digo que aquele cão

é bonito, isso trata-se de uma qualidade que não faz parte da sua natureza, mas

que eu atribuí àquele cão. Dizer que o cão tem o corpo coberto de pêlos, isso é

emitir um juízo de facto, um juízo objetivo que descreve uma realidade. Dizer que o

cão é bonito, trata-se de um juízo de valor, um juízo subjetivo, que não descreve

como a realidade é, mas o que ela significa para o sujeito, como se integra na sua

escala de valores, exprime o seu critério valorativo. Enquanto todos estão de

acordo que o cão tem o corpo coberto de pêlos, nem todos estarão de acordo que

ele seja bonito. Ser bonito é uma qualidade subjetiva, o resultado de uma

qualificação ou avaliação que o sujeito produziu. As mesmas coisas podem ter

valores diferentes no mesmo momento, dependendo isso dos sujeitos avaliadores e

dos seus critérios. Como podem estar sujeitos a uma sucessão temporal de vários

valores, porque estes também estão sujeitos à evolução histórica das sociedades.

Por isso, são portadores de uma variabilidade que depende de vários fatores,

relacionados nomeadamente com a época histórica, as caraterísticas da sociedade,

os projetos e as expetativas da comunidade. As coisas não valem por si mesmas,

não têm o valor inscrito na sua natureza, mas valem em função do homem e da

sociedade que são criadores de valores e avaliam. Como afirmava Nietzsche, os

homens é que são os verdadeiros avaliadores, os medidores de todas as coisas.

Quando se diz que os valores não são absolutos, isso também quer dizer que os

valores não existem por si e em si mesmos; os valores não existem isoladamente,

fora do contexto que os originou e será sempre relativamente a esse contexto que

devemos compreender a sua natureza e génese.

Em suma. Os valores são subjetivos isto é são projeções da mente e não realidades

materiais. Dependem da opinião e posicionamento de cada um, resultam da

subjetividade humana. Como afirmava Nietzsche, os valores são criação do homem

(e por isso também podem ser modificados pelo homem). São subjetivos,

dependem da subjetividade do sujeito, não são realidades materiais ou

caraterísticas intrínsecas das próprias coisas. Os valores são também bipolares isto

é, existem sempre com o seu oposto. Os valores existem sempre aos pares como o

pólo positivo e o pólo negativo. Por outro lado, os valores são hierarquizáveis, isto é,

posicionam-se uns em relação aos outros numa escala de importância. Os valores

são, finalmente, realidades históricas, isto é, determinados pela sociedade e cultura

de cada época historia. Isso faz com que os valores não sejam absolutos – o seu

conteúdo e o seu grau de importância vão mudando de época para época e de

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44

grupo social para grupo social. Neste sentido devemos dizer que os valores são

relativos – a sua importância e o seu conteúdo aferem-se relativamente à época

histórica em que os homens os assumem e deles se servem para enquadrar a sua

atividade e experiência.

§36-A.

Como se transmitem os valores

Os valores fazem parte da superstrutura ideológica de uma dada

comunidade e, enquanto tal, integram o património cultural que se transmite de

geração para geração. Os valores, ao guiarem a minha ação, ajudam a revelar o

caráter repressivo da cultura (Marcuse), na medida em que desta também se

destaca um sistema de regras e proibições que controlam o lado animal e instintivo

do homem, assegurando a convivência social e evitando que a sociedade seja

dominada pela lei do mais forte. A família e a escola encarregam-se da transmissão

dos valores e o sujeito educa-se, forma-se e socializa-se na medida em que

interioriza a tabu de valores (a hierarquização dos valores) vigente na sociedade

num determinado momento histórico. Ao interiorizar e partilhar os valores em vigor,

eu afino o meu comportamento pelo modelo de comportamento que é oficial e

desejável. O sujeito evita correr o risco de seguir valores que não são comungados

pelo resto da sua comunidade. Se a educação é o sistema que se encarrega de

transmitir os valores, então os valores impregnam todo o sistema educativo. Um

rapazinho ou uma rapariga educadinhos serão aqueles que seguem, sem contestar,

os valores transmitidos pelos papás. Estes, demasiado ocupados, encarregam a

escola e os professores, como se fossem seus funcionários, de transmitirem aos

seus filhos o que é bom, o é mau, o que é desejável e indesejável, o que é

repugnante e o que é amoroso, o que é aceitável e o que deve ser repudiado. Da

linha de montagem que é escola sairão umas fornadas de mulherzinhas e

homenzinhos, todos fabricados à imagem e moldados pelos valores oficiais, muitos

deles prontos para passarem o serão, a olhar em silêncio, para a televisão e a

correrem, ao fim de semana, para o centro comercial, empurrando felizes, o

carrinho das compras, envergando um fato de treino roxo. Temos, assim, mais uma

geração apta par reproduzir, junto dos seus filhos, a miséria do nosso quotidiano.

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Capítulo 4 – A experiência ética e política da vida e do mundo

§37.

Os valores morais e o relativismo cultural

A experiência moral refere-se a situações, factos e atos suscetíveis de serem

avaliados moralmente. É a experiência do dever cumprido ou infringido. Isso quer

dizer que preside àquelas situações uma orientação dada por uma vozinha da

consciência que nos dizia o que estava certo ou errado e, em função disso, o que

devia ou não devia ser feito. A orientação correta é traduzida numa norma, numa

regra que orienta a nossa ação e, por isso, é uma regra prática. A norma

moralmente correta tem origem na nossa racionalidade, mas o homem é, como

afirmava Kant, um ser anfíbio, isto é, um ser sujeito à razão, mas também

dominado pelo seu lado sensível, pelos seus sentidos. O homem não é apenas

razão, também é um corpo. Ele é simultaneamente assaltado por orientações da

razão e impulsos dos sentidos. O homem sente-se dividido em seguir o caminho da

razão ou o caminho dos seus impulsos e desejos sensíveis. O homem é um ser

dividido, dilacerado. Ele deve seguir as orientações fundadas na sua parte racional.

Estas aparecem-lhe sob a forma de comandos ou imperativos, regras que ele deve

seguir na sua vida prática. As regras práticas racionais surgem-lhe sob a forma do

dever. O homem ao obedecer-lhes, domina o seu lado sensível.

As normas morais são normas imperativas, indicam o que se deve fazer ou

como avaliar a moralidade dos atos e das decisões. Estes são moralmente corretos

quando estão de acordo com o dever fundado na razão e que se exprime nas

normas morais. Aparecem sob forma imperativa, porque o homem não obedece

automaticamente à razão. Esta surge como um horizonte que deve ser

concretizado.

Como se ligam normas e valores morais? As normas são regras que

exprimem os valores sob uma forma imperativa, sob a forma do «tu deves». Os

valores são os motivos do cumprimento das normas. A ação moral realiza os valores

positivos, aqueles que estão estabelecidos em nome da razão e que podem, por

isso, orientar todos os homens, podendo, assim, fundar uma comunidade humana

racional.

Os valores morais são promovidos através do cumprimento das normas

morais e das normas jurídicas. Qual a diferença entre estas normas? As normas

jurídicas são instituídas pelo poder do Estado, estão organizadas sistematicamente

em códigos escritos e o seu cumprimento é assegurado através da sua força

coerciva que faz com que a infração das normas jurídicas seja punida judicialmente,

através de sanções (penas ou multas); a não observância das normas morais não é

sancionada pelos tribunais, apenas motiva um juízo de censura social. As normas

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morais são cumpridas em função dos valores donde emanam e da vontade do

sujeito em evitar a censura dos outros. Claro que há sempre quem não se importe

com isso, mas, nesse caso, terá que suportar a eventual marginalização que os

representantes da moral socialmente dominante poderão provocar.

As normas morais são elementos culturais. Perante a diversidade das

culturas, pergunta-se se estaremos condenados ao relativismo moral. Este

consistiria na afirmação da inexistência de valores absolutos, com validade

absoluta, acima da mudança social e histórica. Para o relativismo moral todos os

valores valem no contexto histórico em que surgiram e se aplicam. A sua validade é

relativa, transitória. Para o relativismo moral há valores dominantes numa

determinada época ou para um determinado grupo social que deixam de ter essa

validade noutra época histórica ou no âmbito de outro grupo social. O que não há é

valores que estejam acima da história ou da sociedade, valores cuja validade

estaria fixada para sempre. O relativismo moral é difícil de defender, pois se todos

os valores têm a sua validade própria de acordo com a sua época histórica ou o

grupo social onde funcionam, então teremos de aceitar todos os comportamentos

que concretizam esses valores, mesmo os que infringem os direitos humanos. Se

cada cultura tem os seus próprios valores que nós devemos aceitar, pois não

existem valores mais válidos que outros, então deveremos aceitar, por exemplo,

que se condene à morte, por apedrejamento, mulheres acusadas de terem

praticado o adultério? Em nome de que valores ou princípios poderemos criticar as

outras culturas e os outros valores ou normas morais? Será que a cultura ocidental

deve ser mais respeitada ou aceite que as culturas dos povos do terceiro mundo? O

direito à vida, por exemplo, é um valor absoluto que se deve impor a todas as

sociedades? Ou cada sociedade deve avaliar a vida de acordo com os seus

princípios próprios e a sua tradição? Quais são as virtudes e os limites do

relativismo moral e cultural?

§38.

Relativismo moral, relativismo cultural e tolerância

O espetáculo do mundo oferece-nos, numa rápida apreciação, a constatação

da enorme variedade de formas e manifestações culturais, bem como a extrema

variedade de normas morais. Às várias sociedades e comunidades humanas,

corresponde essa variedade cultural e moral. A partir dos séculos XV e XVI, com as

aventuras dos descobrimentos e das viagens marítimas, a Europa despertou para

essa constatação. Mas, ao mesmo tempo, afirmava a superioridade da cultura do

homem europeu e das suas normas morais, perante aquele estranho mundo de

bárbaros, de que se chegava a duvidar que possuíssem alma33. O etnocentrismo e o

33 Neste sentido, o Cristianismo com a sua enorme força civilizadora, passados os primeiros momentos em que alinhou as suas teses pelas da superioridade do homem branco, acabou por contribuir para uma unificação dos diversos povos sob

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eurocentrismo reinaram durante vários séculos. Hoje, a posição dominante é a que

afirma a diversidade cultural e moral da Humanidade e a consequente necessidade

de respeitar essa tolerância em relação às diferentes culturas e diferentes sistemas

de valoração moral que integram o mosaico do género humano. Contudo, o respeito

pelas diferenças, não nos pode levar a cair numa posição de indiferentismo perante

certas práticas que, em nome do respeito pela diversidade, seriam acolhidas

mesmo apesar de violarem flagrantemente os direitos humanos. O relativismo

cultural não nos deve conduzir a uma relativização valorativa, onde tudo seja aceite

em nome do respeito pelo outro que é diferente. O relativismo cultural e moral não

é sinónimo dum nivelamento dos critérios valorativos, não pode conduzir ao abdicar

duma tomada de posição crítica em relação a certos costumes e práticas culturais.

Tolerar não é o mesmo que abster-se de tomar posição. Com efeito, poderemos

aceitar ou virar costas ao costume bárbaro de mutilação dos órgãos genitais

femininos, só porque se trata de uma tradição cultural de certos povos? Devemos

deixar de ser críticos em relação ao sofrimento do touro nas touradas só porque se

trata de uma tradição cultural que tem sentido para determinadas pessoas e para

outras não, mas que deveriam ser respeitadas em nome da tolerância perante a

diferença?

§39.Ética e moral: dimensões próximas mas diferentes

Todos os dias nos deparamos com factos e situações que envolvem a

liberdade e a dignidade das pessoas, os seus direitos e deveres, e que por isso se

podem situar na esfera da liberdade e da responsabilidade do sujeito.

Consideremos, por exemplo, as seguintes situações: quando alguém opta por

mentir a outro ou quando alguém decide não roubar um CD de uma loja porque

existem câmaras de vigilância. Tudo isto são situações que envolvem uma

avaliação moral e em ambos os casos existem regras, princípios, valores, decisões,

responsabilidade e consequências. Trata-se, pois, de uma esfera de experiências

com características e princípios próprios que a distinguem da experiência estética e

da experiência religiosa. Aquelas situações remetem-nos para um campo coberto

pelos conceitos de moral e ética.

Quando falamos da ética e da moral referimo-nos a um domínio da ação

humana orientado por valores e valorações ético-morais: bem / mal, justo / injusto,

correto / incorreto, entre outros. Trata-se de valores que são ditados pela nossa

consciência, transmitidos pela cultura da comunidade em que vivemos. Na

orientação ético-moral dum indivíduo a sua consciência interior é determinante. A

a única realidade da espécie humana. Todos éramos, afinal, criaturas de Deus. Mas esta posição, longe de traduzir, unicamente, um passo em direção à libertação do género humano, apenas alargava o número das ovelhas que deviam ser conduzidas pelos bons pastores da Igreja.

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consciência consiste numa capacidade interior de orientação, avaliação e crítica da

conduta, em função de vários fatores, nomeadamente, valores. Estamos, assim, no

domínio da ação humana e da reflexão sobre a ponderação e as decisões que o

sujeito leva a cabo e que se materializam, ou não, nas ações que realiza.

O que é um ser ético-moral?

Trata-se alguém que considera imparcialmente os interesses em jogo;

alguém que reconhece e/ou aplica princípios éticos de conduta; alguém que não se

deixa guiar por impulsos, mas escuta a razão, mesmo que isso implique rever as

suas convicções; alguém que age com base nos resultados da sua deliberação

independentemente de pressões exteriores, fazendo escolhas autónomas; alguém

que se guia por valores e ideais que reconhece como certos e bons para se tornar

um ser humano melhor.

§39 – A.

Distinguir ética e moral

Há quem distinga a ética34 da moral35, pois são muitas vezes confundidas

devido ao facto de se debruçarem sobre domínios muito aproximados. Quando

alguém pratica um ato moralmente condenável podemos dizer que esse indivíduo

não tem ética ou falta-lhe carácter. No entanto, moral e ética não são o mesmo,

apesar de haver autores que consideram que a distinção não é relevante.

A Moral designa um conjunto de princípios e normas prescritivos que

regulam o comportamento de um indivíduo ou de um grupo, no sentido de se fazer

o bem e evitar o mal, realizar o que é considerado correto e afastar o que é tido

como errado ou indigno. A moral ordena e manda o sujeito agir de determinadas

maneiras. Por outro lado, a moral faz parte da cultura de uma comunidade e serve

para regular as interações entre as pessoas, a convivência social, o que a cada

momento se deve ou não fazer.

A Ética, também designada por Filosofia Moral, possui uma orientação mais

teórica, por oposição à vertente mais prática da moral. Com efeito, a ética consiste

numa reflexão teórica, racional e crítica, sobre o que vai sendo estabelecido a partir

da moral. Por exemplo, perante a norma moral que nos diz que não devemos

matar, caberá à ética a reflexão sobre os princípios que fundamentam essa norma,

no caso, o direito à vida. Poderá também refletir sobre se essa norma deve ser

considerada absoluta, isto é, válida em todas as situações, ou se poderemos admitir

exceções, o que é importante quando analisarmos o comportamento daqueles que

se suicidam, ou ajudam ao suicídio ou praticam a eutanásia. Nesse sentido caberá à

ética analisar as decisões e os princípios nelas implicados36. A reflexão teórica que a

34 O termo ética deriva do grego ethos que significa carácter e também designa o lugar que habitamos.35 O termo moral vem do latim moris, que significa costume ou modo de ser habitual.36 É o que acontece por exemplo com as comissões de ética que existem nos nossos hospitais e cuja atividade está prevista e regulamenta por lei. Cabe a estas

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ética proporciona poderá também incidir sobre a legitimidade daqueles que

estabelecem a fronteira entre o que é bom e o que é mau, o que é aceitável e o que

é condenável, o que deve ser seguido e o que deve ser evitado. Como também

deverá incidir sobre o fundamento das ações consideradas moralmente válidas.

Em suma, enquanto a Moral se refere às normas concretas e aos

comportamentos que as concretizam, respeitando ou violando, a Ética diz respeito à

reflexão crítica sobre esse campo. A Ética não vai refletir apenas sobre a Moral;

também a Política e o Direito são campos onde se exerce a ação humana e onde se

concretizam as suas escolhas e decisões.

A moralidade tem a ver com o nosso esforço para orientar a nossa conduta

por princípios racionalmente justificados ou justificáveis, tendo em conta tanto os

nossos interesses, como os interesses de todos aqueles que são afetados pelas

nossas ações.

§39 – B.

Distinguir moral e religião

A moral e as suas normas surgem muitas vezes associadas à religião. Não é

por acaso que deparamos frequentemente com expressões tais como moral cristã

ou moral islâmica. Qual, então, a relação entre a moral e a religião? Vejamos um

exemplo concreto: o adultério.

Entre nós, o adultério é avaliado do ponto de vista moral, na maioria dos

casos, de forma negativa. Com efeito, ele pode traduzir uma violação dos deveres

conjugais, de deveres contraídos no momento do casamento em relação ao outro, o

cônjuge, e mesmo em relação aos filhos e aos próprios familiares e amigos.

Contudo, tudo isto é aqui afirmado em abstrato, sem ter em conta qualquer caso

concreto que poderia modificar esse juízo valorativo. No entanto, apesar da

avaliação moral maioritariamente negativa, o adultério não é nenhum crime aos

olhos do nosso direito. [muito incompleto]

§40.

Intenção e norma

Para a avaliação da moralidade duma ação não basta uma norma, uma regra

socialmente estabelecida que sirva de padrão para a ação; não basta a sua

conformidade com a norma, o acordo exteriormente verificável.

comissões, formadas por indivíduos de diversas formações académicas e profissionais, avaliar eticamente as decisões e as condutas com implicações dos profissionais da saúde, médicos e pessoal de enfermagem, nomeadamente. Por exemplo, poderá uma destas comissões analisar o comportamento dum médico que ocultou ao doente informações sobre a evolução da sua doença e os dias de vida que lhe restariam; ou dum médico que contrariou a posição dos pais que, por motivos religiosos, recusavam que o seu filho menor fosse sujeito a uma transfusão de sangue.

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É fundamental a intenção, isto é, o julgamento íntimo que cada um faz do

que é permitido e do que não é permitido.

Situação 1. António está prestes a afogar-se por não saber nadar. Bárbara

observa a situação e atira-lhe uma tábua a que António se deverá agarrar, evitando

o afogamento mortal. Só que a tábua atinge António na cabeça e acaba por feri-lo

mortalmente.

Situação 2. Carlos caiu ao mar e, por não saber nadar, está com

dificuldades e prestes a afogar-se. Diogo, seu arqui-inimigo, aproveita a situação

desesperada de Carlos. Por enquanto, ainda ninguém apareceu. Estão, pois,

sozinhos. Assim, atira-lhe com uma tábua com o objetivo de o atingir mortalmente

na cabeça. Só que falha o alvo por muito pouco. Carlos consegue agarrar-se à tábua

que o mantém à tona de água até chegar mais gente que sabe nadar. Assim, Carlos

consegue salvar-se.

É ou não imprescindível conhecer a intenção do agente (Bárbara na primeira

situação e Diogo na segunda) para avaliarmos moralmente a ação? Ou conhecer a

intenção não é essencial, bastando conhecer as consequências? E como é que

conhecemos a intenção do agente?

Se a intenção contar, então, na primeira situação, António morre, mas

Bárbara não é condenada, pois ela queria salvá-lo, só que as coisas correram mal. E

no segundo caso, Carlos salva-se, mas tendo em conta a intenção, teremos de

condenar Diogo. Criámos uma situação absurda: onde não há vítimas, há

condenação; onde há vítimas, não há condenação.

Só age moralmente e faz uma opção moral aquele que se obriga a si mesmo

a respeitar o fim que definiu como bom, tendo em vista o seu aperfeiçoamento,

ainda que só ele conheça a verdadeira intenção dos envolvidos na ação.

No domínio da moralidade cada indivíduo…

→ só tem que prestar contas à sua própria consciência, a única autoridade;

→ é responsável pelos seus atos, uma vez que tem a possibilidade de fazer

escolhas.

§41.Distinção conceptual entre moral e ética – quadro-resumo

ÉTICA MORAL

→ Responde à questão: que princípios

devem orientar a vida humana?

→ Analisa os princípios que regem a

→ Responde à questão: que devo fazer

ou como devo agir em tal circunstância

concreta?

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constituição das normas orientadoras da

ação e os respetivos fundamentos

(razões justificadoras); reflete sobre os

fins que dão sentido à vida humana;

→ Princípio: a vida humana tem um

valor incalculável;

→ A ética pergunta: por que razão não é

permitido matar, ou seja, que valor ou

princípio justifica tal proibição?

Ou ainda: o que é o bem? Por que razão

devemos agir moralmente?

→ É a reflexão sobre os fundamentos

(justificação) e os princípios que regem

a constituição das normas, propondo

fins e ideais a realizar tendo em vista o

aperfeiçoamento do ser humano.

→ Designa o conjunto de normas

obrigatórias (imperativos e interditos)

estabelecido no interior de um grupo,

sociedade ou cultura, para orientar ou

julgar uma ação;

→ A norma moral responde: não se deve

matar;

→ Analisa os problemas práticos e as

dificuldades que se colocam na sua

realização;

→ É o conjunto das normas obrigatórias

reconhecidas por um grupo social.

§42.

Dimensão pessoal e social – o si mesmo, o outro e as instituições

A vivência social é necessária para garantir a nossa sobrevivência biológica,

como também é indispensável para a nossa construção como seres humanos.

Ora, nós não temos apenas deveres para connosco, mas também em relação

aos outros.

O ser humano, quando age, e na medida em que também é um ser

comunitário, idealiza fins orientadores da ação que vão para lá da mera dimensão

biológica e dos interesses individuais egoístas.

A ação moral tem, assim, as seguintes características:

- está orientada para um fim, que é um bem;

- é voluntária e intencional;

- é suscetível de juízo, isto é, de ser avaliada em termos de bem ou de mal;

- adota um posicionamento não apenas individual, mas também comunitário,

de tal maneira que o agente, colocando-se na perspetiva do outro, chegue à

perspetiva da universalidade do agir.

§43.

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Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva deontológica de Kant

§44.Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspectiva

consequencialista de Stuart Mill

§44 – A.

Confronto entre as teorias deontológicas e as teorias

consequencialistas

Para um adepto das teorias deontológicas tudo aquilo que fazemos deve ser

determinado por princípios. O princípio que afirma que «não se deve tirar a vida a

um ser humano» deverá ser seguida, segundo as teorias deontológicas, em todas

as ocasiões37. Nesse sentido, um médico que seguisse esta orientação, deveria

abster-se de praticar a eutanásia, mesmo que o paciente lho pedisse por estar em

grande sofrimento e a sua doença ser comprovadamente fatal de forma irreversível.

Se um indivíduo não seguir princípios poderá vir a ter atuações contrárias

entre si. Por exemplo, imaginemos um político que junto dos trabalhadores defende

o direito à greve para obter o seu apoio e, logo a seguir, junto dos patrões, declara-

se contra as greves para conseguir o voto do patronato. Para este político, o direito

à greve não vale em si mesmo e não é um princípio a ser defendido e a ser seguido

em todas as circunstâncias; aquilo que orienta e determina a sua ação é o interesse

pessoal, o bem próprio, a sua ambição desmedida e para isso tentando sacar votos

a toda a gente. Trata-se de um tipo de pessoas que nós designamos como não

tendo princípios, um indivíduo sem princípios. Para ele são as circunstâncias que

ditam o que ele deve fazer e, por essa razão, acabam por ter percursos sinuosos e

ambíguos.

Mas será que devemos ser atender exclusivamente aos princípios

orientadores da ação?

É que, em certas circunstâncias, devemos ter em conta as consequências da

ação. Os resultados da ação devem ser considerados na avaliação da justeza e

correção da ação. Os resultados da ação devem, em certas circunstâncias, ser tido

também em consideração na avaliação moral da ação e não apenas as intenções e

os princípios do sujeito.

Imaginemos a seguinte situação. Uma empresa numa situação económica

muito complicada, devendo já um mês de salários aos trabalhadores, e com

empréstimos a bancos a serem pagos dentro de poucas semanas, recebe uma

37 Segundo Kant, um princípio acompanhado desta força obrigante, que obriga a ser seguindo de forma incondicional independentemente das circunstâncias, obriga de forma absoluta, isto é, tal princípio tem a forma dum imperativo categórico. Já aqueles que apenas obrigam em certas condições ou em vista de determinados fins são denominados imperativos hipotéticos.

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encomenda muito importante do estrangeiro que lhe permitirá, no prazo máximo de

seis meses, alcançar uma situação financeira estável, eliminando todo o seu

passivo. No entanto, os trabalhadores dessa empresa, por não lhes ter sido pago

ainda o salário do mês anterior, decidem fazer greve durante uma semana. Essa

greve irá impedir a empresa de satisfazer essa importante encomenda que vinha do

estrangeiro. Neste caso, deve o respeito pelo princípio do direito à greve sobrepor-

se às consequências resultantes da greve que se vai realizar?

Ainda outro exemplo. Em determinados contextos, por exemplo, ao nível sãs

políticas económicas, os resultados dessas mesmas políticas não podem ser postos

completamente de lado. Por exemplo, em nome do princípio de que os acordos são

para se cumprir, deve o governo português cumprir, custe o que custar, o que foi

acordado com o FMI? Mesmo que os resultados da aplicação do acordo sejam

desastrosos para a economia nacional e socialmente agressivos para as populações

mais desfavorecidas? Partindo do princípio que o Estado deve ser uma pessoa

honrada e de uma só palavra, deverá cumprir o acordo até ao fim,

independentemente das consequências?

§45.

A relação entre a ética, do direito e a política

Entre estas três dimensões – ética, direito e política – o que há de comum

entre elas é, desde logo, o Homem. Com efeito, é o homem que está no centro das

preocupações. No entanto, em cada uma dessas dimensões o Homem é tomado de

diferentes maneiras. Ou o consideramos enquanto indivíduo que é uma realidade

bio-psico-social, realizando-se no seio da sociedade e na relação com os seus

semelhantes, sujeito de obrigações contratuais, condicionado por leis codificadas;

ou é tomado enquanto pessoa, consciente de si mesmo e do outro, cujos direitos e

deveres decorrem dum código moral não escrito e dum sistema ético que

fundamenta e problematiza a sua atuação enquanto ser livre; ou, finalmente,

assumindo-se como cidadão, intervindo na comunidade, simbolizada pela polis /

civitas, espaços de afirmação e proteção de direitos, mas também de projeção de

uma sociedade melhor.

A relação entre ética e política parece-nos bem sintetizada nesta curto texto

de Fernando Savater: “A ética é a arte de escolher o que mais nos convém para

vivermos o melhor possível, o objetivo da política é organizar o melhor possível a

convivência social, de modo a que cada um possa escolher o que lhe convém”38. A

função do direito será a de enquadrar quer as escolhas pessoais, quer as das

instituições políticas que as concretizarão, de forma a que decorram de forma

pacífica, sem violação dos direitos das pessoas. É essa a função do poder político,

que deverá controlar a vida pública da sociedade.

38 Fernando Savater, Ética Para Um Jovem, Lisboa, Editorial Presença, 1995, p.

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54

§46.

O Estado enquanto problema filosófico

Uma das questões centrais da Filosofia política tem a ver com a origem do

Estado. Trata-se de saber como é que determinados indivíduos, uma minoria,

alcançaram uma posição de domínio sobre os outros que são a maioria. O Estado

formou-se pela força ou resulta dum acordo entre os homens em que estes abdicam

duma parte da sua liberdade e da sua autonomia e a entregam àqueles que irão

dirigir a sociedade?

O Estado é uma forma de poder e consiste num exercício mais ou menos

violento de condução da sociedade. O problema que se levanta é o de saber que

limites se devem estabelecer em relação ao poder, mesmo sabendo que este se

justifica a si mesmo, afirmando que age em nome do bem público, isto é, do

interesse da maioria. Essa é sempre a justificação do Estado: que estão a trabalhar

no interesse dos outros que são a maioria, que estão a agir desinteressadamente,

abnegadamente. Aquilo que nós vemos é que a maioria vive cada vez pior e uma

minoria vive cada vez melhor. Assim, onde é que está o interesse público?

Significa isto que a reflexão sobre o Estado, deve ser acompanhada por uma

investigação sobre os mecanismos de controlo da atividade do Estado.

Apesar da omnipresença do estado, cada homem não deixa de ser um

cidadão, isto é, alguém com direitos e que observa criticamente a realidade.

§47.O homem e o Estado: a perspetiva clássica: Aristóteles

§48.O homem e o Estado: a perspetiva contratualista moderna: John

Locke – do estado de natureza à natureza do Estado

§49. A teoria da justiça de John Rawls

§49 – 1.

Conflito e cooperação nas sociedades contemporâneas; a relação

entre a liberdade e igualdade [incompleto]

Em todas as sociedades existem dinâmicas que exprimem quer conflitos de

interesses, quer processos de solidariedade e cooperação entre os seus membros.

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Os conflitos podem resultar do choque de interesses dos vários grupos sociais

(patrões e empregados, proletariado e burguesia, grevistas e fura-greves), das

várias gerações, das minorias com as tendências dominantes. Mas há também

conflitos entre o indivíduo e o grupo, entre o cidadão e o Estado. Os conflitos

resultam do choque entre interesses antagónicos, nomeadamente entre o interesse

privado e o interesse público. Porém, a sociedade não é apenas conflito, até porque

se assim fosse, a própria sociedade acabava por implodir. Não só existem

mecanismos que regulam os diferendos, como também assistimos nas sociedades

atuais a fenómenos de comovente solidariedade e cooperação. Por isso, poder-se-ia

dizer que a sociedade é simultaneamente conflito e cooperação.

§49 – 2.

Rawls critica o utilitarismo [incompleto]

A crítica do utilitarismo levada a cabo por John Rawls estende-se por vários

aspetos, nomeadamente:

a) Falta-lhe um princípio absoluto que sirva de critério universal para decidir

o que é justo ou injusto;

b) Subordina o individuo a interesses sociais, não lhe reconhecendo direitos

fundamentais invioláveis; veja-se, por exemplo, a situação de um

indivíduo que se auto-imola pelo fogo para chamar a atenção dos meios

de comunicação social para a situação do seu grupo, sacrifica o direito á

vida pelos interesses da maioria;

c) Não considera a forma justa ou injusta como a felicidade é distribuída; os

utilitaristas valorizam o resultado, não se deixando condicionar pelos

meios utilizados para atingir esse resultado.

§49 – 3.

A escolha racional dos princípios da justiça [incompleto]

O ser humano é um ser social, mas a vida em sociedade não é isenta de

conflito. Para a gestão dos conflitos é necessário que existam princípios para

estabelecer critérios para a avaliação das pretensões em disputa e a superação dos

conflitos.

Estes princípios servirão de critérios para a distribuição de direitos e deveres

entre os cidadãos e a distribuição dos encargos e benefícios resultantes da

cooperação social.

Ora, antes de definirmos os princípios e decidir sobre o seu conteúdo,

coloca-se a questão de saber como é que se chega a uma escolha consensual

desses princípios.

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§50.A experiência estética

§50 – 1.

Quando um acontecimento se torna numa experiência para o sujeito

De entre todas as coisas que acontecem na vida de uma pessoa, nem todas

são recordadas como uma experiência, nem todas se elevaram a essa condição. O

que é que faz dum acontecimento uma verdadeira experiência?

Todos os dias acordo, lavo os dentes, ato os sapatos. Esses acontecimentos

e gestos diários, apesar da sua repetição e, portanto, do elevado número de vezes

que ocorreram, não são, na maioria dos casos, aquilo que designamos por

experiências.

O que faz dum acontecimento uma verdadeira experiência é mais as suas

repercussões no sujeito, que o acontecimento em si. Com efeito, o sujeito pode

afirmar que passou por uma experiência na medida em que ela deixou marcas no

sujeito e este aprendeu e cresceu com isso. A experiência é o que mexe com o

sujeito, que o abana e abala e por isso o sujeito que sai da experiência já não é o

mesmo. Pensemos nas viagens que já fizemos na nossa vida. Poderá alguma

traduzir-se por ter sido uma autêntica experiência? O que é que aconteceu nessa

viagem? Ou melhor o que é que aconteceu em mim por causa dessa viagem?

§50 – 2.

Caraterização da experiência estética

O sujeito, diante da realidade, passa por várias experiências, assume

diversas perspetivas e sente várias emoções. A mesma realidade, por exemplo,

pode suscitar vários tipos de experiência. Consideremos, por exemplo, uma

trovoada durante a noite sobre o mar. Podemos, neste caso, experimentar

sensações de caráter religioso, mesmo místico, considerando as forças da Natureza

como expressão divina naquele momento manifestando-se de forma radical.

Podemos, também, assumir uma perspetiva científica, observando e analisando o

fenómeno enquanto descarga eletromagnética. Mas a visão de uma violenta

trovoada noturna também pode proporcionar uma experiência estética. Neste caso,

o que é que está a acontecer? O que carateriza a experiência estética?

Quando nos colocamos diante dos objetos, podemos assumir várias atitudes,

que acabarão por condicionar a minha interpretação e a própria construção da

representação.

Podemos assumir uma atitude técnica se olharmos as coisas na perspetiva

da sua capacidade para produzir algo; podemos assumir uma atitude pragmática se

nos interessarmos pela utilidade do que observamos; podemos assumir uma atitude

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teórica se olharmos para a realidade com o intuito de a compreender ou de a

explicar; podemos assumir uma atitude religiosa, se interpretarmos a realidade

como criação ou mesmo presença do divino, a presença de uma realidade superior;

posso, finalmente, ter uma atitude estética se tiver em conta o belo ou o feio que

há nas coisas e., nesse sentido, me deixar conduzir pela sensação de satisfação e

de prazer (ou de desprazer) que me proporcionam. Por isso se diz, também, que a

atitude estética é uma atitude desinteressada, que apenas tem em conta o prazer

ou o desprazer provocados pela perceção das coisas.

A experiência estética também acontece no processo criativo. O artista, e

todos aqueles que criam algo de novo, passam por uma experiência estética,

obtendo prazer quer do produto final, quer do processo de criação que envolve a

imaginação para além das habilidades técnicas. No processo criativo, o homem

assemelha-se com o Criador, através desse processo de criação ex nihilo.

Em suma, a experiência estética é um estado do sujeito em que se

experimentam sensações de prazer (ou de desprazer) provocadas por situações,

acontecimentos ou elementos da natureza ou objetos artísticos. Pelas sensações de

prazer ou agrado que nos proporcionam, somos levados a classificar esses objetos

como belos.

«A experiência estética é um estado afetivo de agrado e de prazer suscitado

pela apropriação subjetiva de um objeto, seja a contemplação da natureza, seja a

criação ou a contemplação de uma obra de arte.» (manual Pensar Azul)

§50 – 3.

Atitude e sensibilidade estéticas

A atitude estética é uma atitude desinteressada porque apenas tem em vista

o prazer proporcionado pela contemplação do objeto. Quando contemplamos um

quadro de Bosch ou quando escutamos uma peça de Philip Glass não estamos

motivados por qualquer sentimento de utilidade. A obra de arte não é útil como

uma esferográfica ou um frigorífico. A obra de arte ‘serve’ para dar prazer, para ser

fruída e nesse sentido não se lhe vê qualquer utilidade. Mas a sua inutilidade acaba

por valorizar ainda mais a criação artística. O que é que move ou motiva, em última

instância, o criador de obras de arte? Alguns artistas responderão que são movidos

por uma espécie de necessidade interior, outros dirão que pretende comunicar

sentimentos, ideias, dar a conhecer problemas sociais e apresentar propostas e

projetos; a arte também tem uma função social que complementa a sua dimensão

comunicativa.

Em relação à sensibilidade estética e artística podemos considerá-la como

sendo a capacidade de compreender ou apreciar mesmo sem compreender as

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obras de arte de que se gosta ou não, emitindo ou não um determinado juízo mais

ou menos elaborado.

Em todos os homens e em todas as sociedades encontramos a sensibilidade

estética. Todas as pessoas têm a preocupação de agradar a si e aos outros em

termos estéticos. Há quem faça dessa preocupação uma obsessão: imaginemos

alguém que antes de sair à rua demora mais de duas horas a arranjar-se, a escolher

a roupa e os acessórios, vestindo-se e despindo-se várias vezes, mirando-se de

todos os ângulos e muitas vezes, depois desse prolongado exercício, opta por naos

sair, barafustando porque não tem nada para vestir. Mas esta atitude e

sensibilidade é equiparável ao indivíduo que passa todos os dias uma hora ou mais

a puxar o lustro à carroçaria do seu carro.

§50 – 4.

Objetivismo e subjetivismo na experiência estética

Quando falamos de objeto artístico, isso pode ser em dois sentidos:

objetivo, se nos referimos àquilo que o sujeito contempla; subjetivo se nos

estamos a referir à representação mental do objeto artístico.

§50 – 5.

Teorias acerca da natureza da Arte e da obra de arte

A Estética39 é uma disciplina da Filosofia que analisa a experiência estética e

aborda e discute os problemas relativos ao belo, ao gosto e à natureza da arte e

das obras artísticas.

À pergunta sobre a natureza da arte e da obra de arte surgem várias

respostas, que se fundamentam em tantas outras teorias da arte.

a) A arte como imitação – mimesis

Uma primeira posição defende que a arte e a obra de arte imitam a

natureza. Esta é a posição que foi defendida por Aristóteles na sua obra Poética.

Esta posição foi desenvolvida através doutras teorias que se sucederam. Por

exemplo, nas teorias literárias, com o naturalismo e o realismo. A função da arte

(ou da literatura) seria a reprodução o mais fiel possível da realidade. É isso que faz

com que se soltem exclamações por parte de quem vê um quadro e diz, “parece-se

mesmo com a realidade!”.

b) A arte como expressão da subjetividade do autor – expressivismo

No entanto, se considerarmos, a título de exemplo, o universo da pintura,

facilmente deparamos com quadros que não reproduzem fielmente a realidade.

39 A palavra ‘estética’ deriva do grego…… [incompleto]

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Nem foi essa a intenção do seu autor. Com efeito, nalguns casos, o que o pintor

pretende é exprimir o seu mundo de sentimentos e emoções.

Para outra teoria acerca da natureza da arte e da obra de arte, defende-se

que a arte não se deve limitar a reproduzir a realidade, porque a obra de arte

também exprime e comunica os sentimentos, emoções e desejos do seu autor;

como também deve procurar provocar esses mesmos sentimentos em que recebe a

obra (público, leitor, espetador). Esta teoria recebeu o nome de expressivismo.

c)

Finalmente, uma outra teoria é o formalismo, onde o que é importante na

obra de arte é a organização dos seus elementos, organização que faz ressaltar a

sua forma significante.

Os quadros de Piet Mondrian, por exemplo, não são essencialmente

significativos pelo seu conteúdo figurativo. O seu conteúdo “reduz-se”

invariavelmente às cores básicas que preenchem formas geométricas também elas

elementares (quadrados ou retângulos principalmente). Nos quadros de Mondrian

há uma vitória da forma, da organização do espaço, da redução da multiplicidade

aos seus elementos mais básicos ou puros. E nesse sentido há como que uma busca

do Absoluto. É a forma que é significativa, o seu conteúdo é a forma. É como se

tivéssemos recuado a um momento anterior à criação das coisas e estivéssemos no

cadinho donde sairá tudo. Estas formas básicas são o Absoluto, o Deus antes da

criação.

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Bibliografia

André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Parténon, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, pp. 23-24Pierre LÉVY, As tecnologias da inteligência, Lisboa, Instituto Piaget, *****John SEARLE, Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70,

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