FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO E SUBJETIVIDADE · crise das ciências europeias e a fenomenologia...

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LABCOM.IFP Comunicação, Filosofia e Humanidades Unidade de Investigação Universidade da Beira Interior FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO E SUBJETIVIDADE ANABELA GRADIM JOÃO CARLOS CORREIA ELISA ZWICK FRANCISCO XARÃO (ORG.) VOLUME 1, LINGUAGEM, CULTURA E SOCIEDADE

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LABCOM.IFPComunicao, Filosofia e HumanidadesUnidade de InvestigaoUniversidade da Beira Interior

FILOSOFIA, COMUNICAOE SUBJETIVIDADEANABELA GRADIMJOO CARLOS CORREIAELISA ZWICKFRANCISCO XARO(ORG.)

VOLUME 1, LINGUAGEM, CULTURA E SOCIEDADE

FILOSOFIA, COMUNICAOE SUBJETIVIDADEVOLUME 1, LINGUAGEM, CULTURA E SOCIEDADE ANABELA GRADIMJOO CARLOS CORREIAELISA ZWICKFRANCISCO XARO (ORGS.)

LABCOM.IFPComunicao, Filosofia e HumanidadesUnidade de InvestigaoUniversidade da Beira Interior

Ttulo Filosofia, Comunicao e Subjetividade: Volume 1, Linguagem, cultura e sociedade

OrganizaoAnabela Gradim, Joo Carlos Correia,Elisa Zwick e Francisco Xaro

Editora LabCom.IFPwww.labcom-ifp.ubi.pt

ColeoLivros de Comunicao

Direo Gisela Gonalves

Design Grfico Cristina Lopes Cefas Garcia Pereira (Ilustrao da capa)

ISBN978-989-654-526-0 (papel)978-989-654-528-4 (pdf) 978-989-654-527-7 (epub)

Depsito Legal450025/18

TiragemPrint-on-demand

Universidade da Beira InteriorRua Marqus Dvila e Bolama. 6201-001 Covilh. Portugalwww.ubi.pt

Covilh, 2018

2018, Anabela Gradim, Joo Carlos Correia, Elisa Zwick eFrancisco Xaro. 2018, Universidade da Beira Interior.O contedo desta obra est protegido por Lei. Qualquer forma de reproduo, distribuio, comunicao pblica ou transformao da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa autorizao do editor e dos seus autores. Os artigos, bem como a autorizao de publicao das imagens, so da exclusiva responsabilidade dos autores.

Ficha Tcnica

http://www.labcom-ifp.ubi.pthttp://www.ubi.pt

ndice

Apresentao 11

Prefcio 15

CONFERENCISTAS 23

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais 25Joo Carlos Ferreira Correia

Transformaes ps-modernas das humanidades e da comunicao: da paideia ao interculturalismo 45Anabela Gradim

Sotaque: a voz da identidade 75 Soraya Guimares Hoepfner

O imperialismo da imagem e o fetiche da sensao 93Flademir Roberto Williges

Os estudos culturais de Raymond Williams: a cultura como elemento de subjetividade? 119Andr Luiz Sena Mariano

Desateno: uma das consequncias mais graves da sociedade excitada 135Christoph Trcke

COMUNICAES 149

A reverso dialtica da tecnologia digital e a emancipao da conscincia no rap 151Mnica G. T. do Amaral

A formao do orador ciceroniano: do domnio da linguagem Filosofia 167Isadora Prvide Bernardo

Hiphopnag: letramentos rtmicos e sonoros 179Cristiane Correia Dias e Maria Teresa Loduca

Astcia ou malandragem: uma reflexo sobre a fenomenologia do brasileiro 195Tiago Lazzarin Ferreira

A formao do gnero feminino em sites de jogos on line para crianas 209Ana Paula Ferreira

O conceito de comunicao presente/ausente em Vilm Flusser 225Ana Ceclia Arago Gomes

Bullying na escola: a percepo de um grupo de alunos do 9 ano do Ensino Fundamental de uma escola pblica em Poos de Caldas 237Vernica Danziger Gomes

A experincia de leitura no presdio de Poos de Caldas: como ler no presdio? 253Davidson Sepini Gonalves, Joo Pedro Pezzato e Mara Leda de A. Carvalho

Epistemologia multicultural e a questo do sujeito em Charles Taylor 267Willian Martini

Em Cartaz: a guerra dos super-heris pelo mercado na indstria cultural do cinema 287Igor Rafael de Paula e Jhonatan da Silva Corra

Um debate sobre os rumos da cultura popular negra e o seu reconhecimento na era globalizada 303Elaine Cristina Moraes Santos

Televiso: linguagem, imagem e comunicao no contexto da indstria cultural 319Rosangela Trabuco Malvestio da Silva

A convalescena da linguagem em Clarice Lispector 335Dnis Ribeiro de Souza

A comunicao empresarial e a produo do consenso na relao entre empresa e trabalhador 349Maria Isabel Braga Souza

Utilizao de cotas na universidade: o caso do curso de graduao do Bacharelado Interdisciplinar em Cincia e Tecnologia da UNIFAL-MG 367Knia Eliber Viera e Betnia Alves Veiga DellAgli

A (Ciber)Literatura na Formao de Professores 385Fabiano Correa da Silva

Em relao dialtica com as crescentes transformaes

tecnolgicas, as contnuas mudanas nas formas de in-

terao e comunicao humanas so impulsionadoras

de redes sociais e novas mdias de massa, ensejando im-

pactos decisivos e novas experincias, as quais exigem

uma devida compreenso cientfica e crtica. Essa nova

realidade mundial desafia a comunidade acadmica a

renovar suas interpretaes, requerendo abordagens

integradas, permanentemente subsidiadas pelo dilogo

interdisciplinar.

Contribuem para este ambiente reflexivo reas de inves-

tigao como a Filosofia, a Psicologia, a Comunicao,

o Jornalismo, a Lingustica, a Educao, a Arte, a

Semitica, ao lado de outras Cincias Humanas e

Sociais. Enfoques direcionados a pesquisas no campo

tecnolgico, da informao e do comportamento muito

tm a colaborar para uma viso mais abrangente desses

fenmenos, trazendo reflexes e anlises prprias, bem

como inovadoras perspectivas tericas e metodolgicas.

Animado por este propsito que surgiu a ideia do

Simpsio Internacional de Filosofia, Comunicao e

Subjetividade (Lubral 2016). Ao integrar pesquisadores

de trs diferentes pases, quatro nacionalidades e di-

versas instituies, o simpsio priorizou a aproximao

cultural e o compartilhamento de experincias sobre

formas emergentes de interconexo, comunicao e

relacionamento humanos, estudadas em diferentes

campos de abordagem.

Colaboraram para a execuo deste evento o Curso de

Especializao em Filosofia oferecido desde 2010 pela

PUC Minas Campus Poos de Caldas, juntamente com

Apresentao

12

outras atividades acadmicas realizadas pelo Ncleo de Cincias Humanas

desta mesma unidade e sua atuao nos vrios cursos de graduao da PUC

Minas. Tambm se envolveram de modo especial os cursos de Comunicao

Social e de Psicologia da PUC Minas, alm de trs Grupos de Pesquisa da

instituio, vinculados ao CNPq Conselho Nacional de Pesquisa: Cultura,

Memria e Sociedade; Filosofia, Religiosidade e suas Interfaces; Modos de

Produo da Subjetividade. Do lado brasileiro destaca-se ainda a parceria e

atuao do Instituto de Cincias Humanas e Letras da Universidade Federal

de Alfenas (ICHL/Unifal-MG), pelo Grupo de Pesquisa, vinculado ao CNPq,

Filosofia, Histria e Teoria Social.

Do lado portugus, une-se a esta experincia o trabalho de ensino, pesquisa

e produo acadmica desenvolvido pelo Labcom.IFP, da Universidade da

Beira Interior (UBI - Covilh, Portugal), nas reas de Filosofia, Comunicao

e Mdia, Fenomenologia, Artes e Humanidades, representado atravs dos

grupos de Filosofia Prtica e de Comunicao e Media.

Ganha relevncia para o evento o fato de que em 2016 completaram-se qua-

renta anos da morte (1976) do filsofo alemo Martin Heidegger, um dos

grandes expoentes da filosofia fenomenolgica e da ontologia na contempo-

raneidade; oitenta anos (1936) da publicao de A crise das cincias europeias

e a fenomenologia transcendental (Die Krisis der europischen Wissenschaften

und die transzendentale Phnomenologie: ein Einleitung in die phnomenolo-

gische Philosophie), o livro clssico de Edmund Husserl; e tambm de A obra

de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica (Das Kunstwerk im Zeitalter

seiner technischen Reproduzierbarkeit), de Walter Benjamin. Todas so obras

e autores fundamentais para o pensamento filosfico crtico, essenciais no

enfrentamento dos desafios impostos pela modernidade nos mbitos tanto

cientfico quanto tcnico.

Alm de reunir pesquisadores e especialistas das universidades promotoras

do Brasil e Portugal, o evento tambm contou com convidados internacio-

nais oriundos da Alemanha e da Srvia, estabelecendo um elo bastante

diversificado de abordagens. Alm das conferncias e palestras, o Simpsio

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ofereceu aos participantes um minicurso sobre a relao entre o pensamen-

to de Heidegger e a mdia. Os participantes, vindos de diferentes partes do

Brasil, tambm trouxeram seus trabalhos, os quais foram apresentados em

trs mesas de comunicao, conforme as seguintes linhas temticas:

1. Comunicao, Mdias e Linguagens: prticas e ref lexes: esta sesso pro-

curou abrigar comunicaes que abordaram temas relacionados ao

campo da linguagem/Filosofia da Linguagem, semitica e comunicaes

simblicas, mdias e suas relaes no contexto cultural, social, poltico,

comportamental.

2. Filosofia e Psicologia: questes da subjetividade: esta sesso procurou abri-

gar comunicaes que abordaram temas relacionados aos campos de

investigao na Psicologia, especialmente nas conexes com as teorias e

mtodos filosficos, em torno do sujeito, do comportamento, da socieda-

de, tais como a fenomenologia, a psicanlise, as teorias humanistas etc.

3. Filosofia, Educao, Cultura e Sociedade: esta sesso procurou abrigar

comunicaes que abordaram temas amplos na Filosofia, sobretudo

aqueles que se voltam s questes da educao, da tica, da cultura, da

sociedade, da poltica, no contexto contemporneo.

A presente coletnea constitui o primeiro de dois volumes que renem

as conferncias e uma srie das comunicaes apresentadas nas mesas,

as quais traduzem o esprito interdisciplinar do evento, que valorizou di-

ferentes temticas a partir de distintas reas do conhecimento. Todas as

atividades foram abertas ao pblico interessado em Filosofia e suas inter-

faces, estudantes de graduao e ps-graduao nas reas afins, docentes,

profissionais e pesquisadores.

Os organizadores

Este livro reflete um olhar crtico sobre a comunica-

o na sua articulao com a cultura num momento

em que as redes assumem um papel determinante que

obscurece a reflexo empreendida. possvel no atual

contexto de globalizao manter uma postura crtica

sobre a comunicao, a cultura, a linguagem e a subjeti-

vidade, sem cair na fetichizao do impacto tecnolgico

das redes digitais? A pergunta deveria ser meramente

redundante. Porm, como se constata do interessante

texto de Anabela Gradim, um pouco por todo o lado,

responsveis pelas polticas acadmicas apelam

conteno da oferta formativa nas reas das Cincias

Humanas e das Humanidades.

Uns fazem-no explicitamente. Outros recorrem a

estratgias que na prtica se traduzem no subfinancia-

mento das reas que no privilegiam a aquisio das

competncias instrumentais. O atual esprito do tempo

favorece, assim, uma viso minimalista da comunica-

o e da cultura, em que esta se limitaria seleo dos

meios mais eficazes para atingir determinados recepto-

res, identificando-se, pois, com a clareza da mensagem,

a correo do cdigo e ao afastamento da entropia. As

humanidades enfrentam uma abordagem positivista

caracterstica da racionalidade instrumental que im-

pede a percepo da realidade social como construo

humana.

No presente volume incluem-se os textos do Simpsio

Internacional de Filosofia, Comunicao e Subjetividade:

Luso-Brasileiro-Alemo, uma organizao conjunta

da: PUCMinas Campus Poos de Caldas, Unifal- MG,

UBI, Portugal, o qual teve lugar nos dias 16, 17, 18 e

19 de novembro na Pontifcia Universidade Catlica de

Prefcio

16

Minas Gerais, Campus Poos de Caldas e nos dias 17 e 21 de novembro na

Universidade Federal de Alfenas. As Unidades de Investigao envolvidas

foram, do lado da PUCMinas, os Grupos de Pesquisa Cultura, Memria e

Sociedade, o de Filosofia, Religiosidade e suas Interfaces e o de Modos de

Produo da Subjetividade; pela Unifal-MG, o Instituto de Cincias Humanas

e Letras e o Grupo de Pesquisa Filosofia, Histria e Teoria Social; e, do lado

da UBI, a Unidade de Investigao Labcom.IFP Comunicao, Filosofia e

Humanidades, atravs dos Ncleos de Filosofia Prtica e Comunicao e

Media.

A perspectiva assumida pela maioria dos investigadores no parece coincidir

com a viso que motiva receios acima descritos. Os organizadores assina-

lam como um pano de fundo significativo alguns momentos determinantes

na histria da reflexo de matriz humanstica do sculo XX quarenta

anos da morte (1976) de Heidegger; oitenta anos (1936) da publicao de A

crise das cincias europeias e a fenomenologia transcendental (Die Krisis der

europischen Wissenschaften und die transzendentale Phnomenologie: ein

Einleitung in die phnomenologische Philosophie), o livro clssico de Edmund

Husserl; e tambm de A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica

(Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit), de Walter

Benjamin.

De Heidegger, retm-se a preocupao com a historicidade do ser, fundamen-

tal para entender uma parte substancial do pensamento crtico sequente,

apesar de todas as bem conhecidas determinantes existenciais, biogrficas

e polticas que orientaram a sua busca pela autenticidade.

De Husserl, retoma-se o sentido de crise de uma humanidade especfica, a

Europeia, da qual grande parte dos participantes neste livro so simulta-

neamente crticos e continuadores: crticos, pela natureza delimitada das

concepes de racionalidade e cultura partilhadas por essa humanidade;

continuadores porque a crise atingia, ento, uma tradio reflexiva que

enfrentava ameaas que visavam substitu-las por uma forma de barbrie

em ascenso.

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De Benjamin, retoma-se, especialmente, o reconhecimento do potencial

emancipatrio das transformaes econmicas, sociais, culturais e tecnol-

gicas que determinavam a apario da reprodutibilidade tcnica, a perda da

aura e a substituio do valor de culto pelo valor de exposio.

Finalmente, no coincidente com nenhuma efemride, h uma referncia

permanente a um conjunto de ensaios, a Dialtica do iluminismo (Dialektik

der Aufklrung), de Adorno e Horkheimer, frequentemente citada de modo

explcito pelos autores presentes neste livro. Trata-se de uma referncia sig-

nificativa, por expressar um dos diagnsticos mais intransigentes da relao

entre a cultura e a dominao, a partir de um ponto de vista que contempla

toda a racionalidade ocidental.Estamos, pois, perante um livro que no se

resume a testemunhar a atividade de um grupo de congressistas perante

um evento acadmico, mas que, antes, d conta, sobretudo na sua primei-

ra parte, nomeadamente na seco destinada aos conferencistas, da defesa

genuna, a partir de pontos de vista plurais, de uma continuidade reflexi-

va do pensamento humanstico. Assim, a Professora Anabela Gradim, da

Universidade da Beira Interior, em Transformaes ps-modernas das hu-

manidades e da comunicao: da paideia ao interculturalismo, confronta-se

diretamente com a reduo instrumentalista da formao universitria,

invocando nomeadamente o pensamento de Martha Nussbaum para cons-

tatar que a destruio do paradigma clssico de ensino das humanidades

na universidade americana, em favor de uma via mais profissionalizante

para promover ganhos imediatos e a competitividade internacional da eco-

nomia est a corroer a democracia tal como a conhecemos e constitui uma

sria ameaa sua sobrevivncia. A professora alerta para os riscos de

uma formao centrada em competncias instrumentais que se traduzir

na proliferao de sujeitos narrow minded, com poucas ferramentas de ava-

liao crtica, de argumentao racional e de reconhecimento emptico do

outro, mas excelentes a cumprir ordens: boas, ou ms e, citando Antnio

Fidalgo e George Steiner, chama a ateno para o papel das ciberculturas

como desafio inevitvel s culturas centradas na palavra e aos respectivos

saberes humansticos.

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Joo Carlos Correia, da mesma Universidade portuguesa, em O impacto da

globalizao na Comunicao: para uma abordagem ps-convencional do

conceito de redes culturais, sustenta a necessidade de retomar o potencial

tico do conceito de reconhecimento para tornar possvel uma abordagem

no redutora do conceito de rede que se limite sua dimenso tecnolgica

e performativa. Defende-se que o conceito de rede deve contemplar a sua

dimenso cultural e intersubjetiva e por isso torne mais produtivo o dilogo

entre culturas no contexto da globalizao.

Da jornalista e tradutora Soraya Guimares Hoepfner chega-nos o texto

Sotaque: a voz da identidade que a partir de uma linha de pesquisa de tradi-

o heideggeriana (Merleau-Ponty, Gadamer, Derrida etc) analisa a reflexo

identitria na sua relao com a linguagem e pensa o sotaque como o soar

da voz pensamento no mundo: O sotaque, o levamos conosco; quase

impossvel perd-lo, extirp-lo, pois enquanto locus na locuo, se guarda

numa regio muito mais ao fundo de nosso modo de ser e, por isso mesmo,

no importa quo bem dominemos a estrutura gramatical e a dico de uma

lngua estrangeira, ele sobressai-se, sublinha e entrelinha o nosso dizer. O

sotaque nos apresenta, nos entrega. Qualquer tentativa de elimin-lo, alm

de muito provavelmente em vo, no mnimo ignorante ignora justamente

esse confim que, de dentro do nosso corpo, evoca nossa identidade.

Flademir Roberto Williges, filsofo e professor de Filosofia do Instituto

Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Estado do Rio Grande do Sul

(IFRS) Campus Porto Alegre, em O imperialismo da imagem e o fetiche da

sensao, recorre obra de Christoph Trcke, nomeadamente ao seu livro

Sociedade excitada: filosofia da sensao, para empreender uma anlise da

atual configurao da cultura em que a economia da ateno releva sobretu-

do da sensao, qual cada vez mais se exige ser excepcional, espetacular,

sensacional, na medida em que se tornou uma bandeira pela qual todo

um mercado luta. O investigador denuncia uma apropriao fetichista da

sensao atravs do imperialismo do audiovisual.

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Do prprio Christoph Trcke, Professor Emrito da Escola Superior de

Artes Grficas e Livreiras de Leipzig, -nos apresentada, atravs do ensaio

Desateno: uma das consequncias mais graves da sociedade excitada,

uma interessante aplicao da sua obra, em que se identifica uma patologia

decorrente de um contexto cultural em que o choque da imagem se tornou

o foco de um regime de ateno global, que embota a percepo justamente

por uma contnua estimulao. Esta estimulao permanente respons-

vel por uma cultura do dficit de ateno, e por uma preocupao coletiva

de investigadores e pais, aos quais o investigador prope responder com

uma nova orientao escolar que designa por estudo de ritual, que visa

recuperar a concentrao motora, afetiva e mental, um tipo de recolhimen-

to, talvez at uma forma de devoo: Tornar as crianas capazes de orar,

nesse sentido figurativo, capazes de imergir em alguma coisa, de modo a

se esquecer de si mesmas. O Professor Trcke identifica um dos proble-

mas decorrentes da reflexo pedaggica: a perda de uma interiorizao e de

uma memria partilhada que resulta de uma forma de hipercomunicao,

quase patolgica, j intuda e adivinhada por Marcuse, um dos autores que,

compreensivelmente, cita. Segue o que Frankfurt captou melhor: uma eco-

nomia de mobilizao dos sentidos e o seu impacto profundo na experincia

da cultura.

De Andr Luiz Sena Mariano, Professor Adjunto do Instituto de Cincias

Humanas e Letras e do Programa de Ps-Graduao em Educao da

Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), resulta o ensaio Os estudos

culturais de Raymond Williams: a cultura como elemento de subjetivi-

dade? O Professor Mariano visita a recuperao da cultura quotidiana

empreendida pelos Estudos Culturais e demarca-se de uma interpreta-

o determinista desta escola de pensamento, propondo-se recuperar a

perspectiva inicial dos Estudos Culturais, que procuraram organizar a

compreenso das prticas culturais a partir de uma abordagem prtica de

interveno e transformao da realidade.

O livro inclui, ainda, uma coletnea de comunicaes apresentadas ao

evento, das quais no possvel dar minuciosa conta, pela amplitude e

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diversidade dos textos, mas aos quais testemunho pela interessante e pro-

metedora e panplia de abordagens e aplicaes: Mnica G. T. do Amaral,

professora da Universidade de So Paulo (USP), em A reverso dialtica da

tecnologia digital e a emancipao da conscincia no rap, mobiliza Adorno

e Benjamin para explicar as potencialidades emancipatrias inscritas num

videoclipe de um grupo de Hip-hop; Isadora Prvide Bernardo, doutoran-

da pela USP, analisa a A formao do orador ciceroniano: do domnio

da linguagem Filosofia; Cristiane Correia Dias e Maria Teresa Loduca,

mestrandas da Faculdade de Educao da USP, recorrem cultura hip-hop

para experincias de docncia compartilhada, entre a disciplina de Lngua

Portuguesa, a dana e a msica, Hiphopnag: letramentos rtmicos e sono-

ros; Tiago Lazzarin Ferreira, doutorando da Faculdade de Educao da USP

prope uma Fenomenologia do brasileiro, revisitando a astcia de Ulisses,

com a ajuda da Dialtica do iluminismo; Ana Paula Ferreira, Mestre em

Educao pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), debrua-se so-

bre A formao do gnero feminino em sites de jogos on line para crianas;

Ana Ceclia Arago Gomes, doutoranda em Comunicao e Semitica da

PUC-SP, prope-se indicar algumas hipteses de investigao sobre o con-

ceito de comunicao na obra de Vilm Flusser (O conceito de comunicao

presente/ausente em Vilm Flusser); Vernica Danziger Gomes, licenciada

pela PUCMInas, sintetiza resultados de um estudo sobre Bullying na esco-

la: a percepo de um grupo de alunos do 9 ano do Ensino Fundamental

de uma escola pblica em Poos de Caldas; Davidson Sepini Gonalves,

Joo Pedro Pezzato. e Mara Leda de A. Carvalho, respetivamente Professor

da PUCMinas, Professor Livre Docente pela UNESP - Rio Claro e Bacharel

em Direito pela PUCMinas, debruam-se sobre A experincia de leitura

no presdio de Poos de Caldas: como ler no presdio?; Willian Martini,

mestrando em Filosofia da UFSM, prope uma reflexo estimulante sobre

Epistemologia multicultural e a questo do sujeito em Charles Taylor; Igor

Rafael de Paula, mestrando em Geografia Humana pela USP e Jhonatan

da Silva Corra, graduando em Geografia-Licenciatura pela Unifal-MG, se-

guem A guerra dos super-heris pelo mercado na indstria cultural do

cinema; Elaine Cristina Moraes Santos, doutoranda em Educao pela USP,

21

prope Um debate sobre os rumos da cultura popular negra e o seu re-

conhecimento na era globalizada; Rosangela Trabuco Malvestio da Silva,

Professora da UNESPAR Campus Paranava, em Televiso: linguagem,

imagem e comunicao no contexto da indstria cultural, considera a

linguagem e a imagem veiculadas pela TV como um dos principais instru-

mentos da Indstria Cultural; Dnis Ribeiro de Souza, do grupo de pesquisa

Literatura e outros saberes da Unifal-MG, em A convalescena da lingua-

gem em Clarice Lispector, identifica num texto da escritora uma narrativa

que rompe o modelo clssico do narrar, e dialoga com a filosofia na cons-

truo de sua linguagem; Maria Isabel Braga Souza, Professora da Unifae

analisa A comunicao empresarial e a produo do consenso na relao

entre empresa e trabalhador; Knia Eliber Viera, Mestra em Educao,

Ambiente e Sociedade pela Unifae e Betnia Alves Veiga DellAgli, Doutora

em Educao pela Unicamp, propem estudar a Utilizao de cotas na uni-

versidade: o caso do curso de graduao do Bacharelado Interdisciplinar

em Cincia e Tecnologia da Unifal-MG e, finalmente, Fabiano Correa da

Silva, Doutorando em Educao pela Unimep, escreve sobre A (Ciber)

Literatura na formao de professores.

Assim, o seminrio oferece-se como uma iniciativa promissora cm capa-

cidade de mobilizao e interveno das Academias envolvidas, gerando

olhares interdisciplinares que reveem a possibilidade de levar um projeto

consentneo com um projeto capaz de discutir as Humanidades com um

espirito novo, embora possa sobressair o facto de que da leitura dos textos

programticos do evento as conferncias seja difcil, ainda que fosse es-

timulante e prometedor, extrair um projeto acabado de novas humanidades.

As Humanidades mantm-se no que tm de melhor: a sua capacidade de se

pensarem a si prprias, como tal difceis de submeter, de forma redutora,

a qualquer molde resultante de um projeto politico e econmico. Porm,

este seminrio demonstra que sobrevivero como tais , como fizeram na

Renascena, na Revoluo Industrial, ou durante a emergncia da indstria

cultural no incio sculo XX, perante sucessivas vagas de alteraes tecno-

lgicas e de configuraes globalizantes. Claro que no despiciente, como

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nunca foi, o de se cruzarem com novas plataformas (do papiro ao pergami-

nho at imprensa e ao holograma), ou de se cruzarem com novas prteses

que expandem ou restringem os limites do humano ou do ps-humano.

Mas permanecero, sob modos diversos, alguns ainda no nem pensados

nem testados, at que a prpria Humanidade, sujeito ou objeto das suas in-

findveis narrativas, deixe de marcar a sua pegada no universo, e assim, a

cultura morrer. Disso j nada saberemos: nem uma palavra, imagem ou som

semelhantes aos muitos outros que estes ensaios analisam e descrevem.

Finalmente, importa destacar uma palavra para o interesse deste dilogo

cultural em contexto de lngua portuguesa. Trata-se de um desenvolvimento

que promete a continuidade sustentada e madura de um processo de re-

lacionamento em contexto de pesquisa interdisciplinar. Ser interessante

aprofund-lo com reflexes que trabalhem a especificidade das condies

dos pases envolvidos e analisem comparativamente as suas pesquisas.

Joo Carlos Correia1

1. Joo Carlos Correia Agregado, Doutor e Mestre pela Universidade da Beira Interior, onde leciona Sociedade e Comunicao e Teorias da Cultura, entre outras disciplinas. Joo Carlos Correia autor de seis livros, de trinta e sete captulos de livros, e coordenou a edio e organizao de sete livros de antologia de textos, a publicao de conferncias em 21 livros de atas de congressos internacionais, a edio e direo de dezoito volumes da revista Estudos em Comunicao e a publicao de 34 artigos em revistas nacionais e internacionais. Os seus trabalhos foram publicados em Portugal, Brasil, Es-panha, Reino Unido, e Holanda. Os seus interesses de pesquisa so Teorias da Cultura, Teoria Crtica e Esfera Pblica.

CONFERENCISTAS

O IMPACTO DA GLOBALIZAO NA COMUNICAO: PARA UMA ABORDAGEM PS CONVENCIONAL DO CONCEITO DE REDES CULTURAIS

Joo Carlos Ferreira Correia

1. Introduo

Neste texto, propomos uma abordagem ps-

-convencional dos conceitos de cibercultura, rede,

identidade e globalizao. Esta abordagem levanta

trs problemas fundamentais. Um primeiro problema

poltico: qual o modelo de globalizao cultural com que

nos confrontamos hoje? um modelo de globalizao

homogeneizadora ou um modelo de dilogo multicul-

tural? A globalizao, na sua configurao atual permite

o reconhecimento das culturas perifricas, nomeada-

mente o acesso ao reconhecimento e protagonismo nas

indstrias culturais e criativas?

Outro dos problemas eminentemente conceptual:

faz sentido, a partir da modernidade tardia contempo-

rnea, marcada pela presena de uma multiplicidade

de pretenses identitrias, recorrer noo de uma

cultura humanstica, recuperando a ideia de formao

(paideia) proveniente dos clssicos e distinguindo-a do

conceito antropolgico de cultura? Qual foi o impacto

das indstrias culturais, das indstrias criativas e da ci-

bercultura nestas divises tradicionais?

O terceiro problema rene ambos os tipos de questes

abordadas nos anteriores, isto questes conceptuais

e polticas. Ser produtivo uma operacionalizao da

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais26

anlise comparativa das especificidades e das convergncias entre estu-

dos europeus e sul-americanos que compreenda as diferenas histricas,

sociais e culturais que determinaram formas de aproximao distintas s

relaes entre cultura, comunicao e cidadania, integrando essas diferen-

as no pensamento sobre o modelo articulador das identidades que praticam

a lusofonia.

Tais problemas so observados tendo em conta processos comunicativos,

lutas simblicas e processos de debate bem como o papel atribudo ideia

de reconhecimento enquanto elemento central nas estratgias de cons-

truo de uma comunidade cultural baseada na partilha de uma lngua

comum que acompanha experincias histricas e identitrias diferentes.

Considera-se, finalmente, a oportunidade proporcionada pela posio se-

miperifrica de Portugal para o desenvolvimento de uma anlise que acople

a referncia ao Sul e s diferentes especificidades que o mesmo comporta,

no Sudoeste da Europa e na Amrica do Sul.

2. Comunicao, desenvolvimento e globalizao: as redes culturais

Ao longo da difcil e complexa histria das teorias da comunicao pode

reconhecer-se a existncia de trs grupos de teorias, demasiadamente

heterogneas para poderem talvez configurarem paradigmas mas sufi-

cientemente prximas para poderem ser consideradas coerentes entre si.

Um primeiro grupo seria essencialmente centrado na transmisso de in-

formao. Reduz os processos de significao sua dimenso puramente

transmissiva. Mesmo nas suas variantes mais sofisticadas no chegou a

afastar-se do problema da influncia sobre o recetor (Lasswell, 2009, pp.

51-63). Esta viso da comunicao limitar-se-ia seleo dos meios mais

eficazes para atingir determinados recetores, identificando-se pois com a

clareza da mensagem, a correo do cdigo e o afastamento da entropia,

atravs do afastamento da diferena.

No plano das relaes entre culturas distintas, este grupo de teorias orienta-

-se segundo um modelo de influncia destinada a provocar inovao nos sis-

temas sociais de pases considerados menos desenvolvidos, de modo a que

Joo Carlos Ferreira Correia 27

estes seguissem os padres de consumo e de produo dos apontados como

mais desenvolvidos. Os meios de comunicao deveriam ser utilizados para

transmitir os valores da modernidade vigentes, nomeadamente nos Estados

Unidos e no Centro e Norte da Europa.

Seguidamente, como reao ao primeiro, refere-se o grupo de teorias que

criticam os fenmenos de desigualdade que esto na origem da influn-

cia e da manipulao. Num ponto de vista mais global, expressam-se no

paradigma da dependncia segundo o qual o subdesenvolvimento estaria

relacionado com a subordinao dos pases do ento designado terceiro

mundo no contexto da economia mundial e a sua consequente subordina-

o no plano da ordem internacional da informao. Este modelo surge

associado ao contexto histrico de crtica do imperialismo e do movimento

anticolonialista e a sua anlise crtica manifesta-se ao contexto acadmico

pela presena dos Estudos Culturais e da Comunicao Comunitria de-

senvolvida na Europa e Amrica do Sul, bem como em alguns trabalhos

influenciados pelos Estudos Culturais e pela Economia Poltica dos Media.

(Garnham, 2006; Herman e Chomsky, 2002; Chomsky, 2012).

Traduz-se na reivindicao de novas prticas populares de relacionamento

comunicativo e de circulao e troca de produtos culturais. Alimentado por

postulados crticos de origens diferenciadas afirma a necessidade de con-

trariar as desigualdades nas relaes entre pases, que em essncia, so a

causa principal do subdesenvolvimento.

Em terceiro lugar, surge um paradigma alternativo de pendor dialgico,

com nfase na participao dos cidados e no conceito de esfera pblica

que coloca o reconhecimento como um elemento estruturante do ordena-

mento poltico, jurdico e institucional, seja no plano interno, seja no plano

externo. A comunicao surge entendida como um processo orientado para

a capacitao dos cidados e das diferentes culturas como protagonistas

e sujeitos responsveis pelo prprio processo. Surgiu ainda associado

dimenso ritual da comunicao (Carey, 2006) como processo cultural e

rejeitou a viso imanente ao paradigma dominante, centrado na comunica-

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais28

o como informao. (Caune, 2008). Todavia, expressa-se em frmulas

diferentes dos Estudos Culturais e da comunicao comunitria, apesar das

suas proximidades. Este paradigma enfatiza mais componentes deliberati-

vas do que participativas e frequentemente tem a sua filiao num tipo de

reflexo devedora da filosofia kantiana e do pragmatismo, como acontece

no caso de Habermas (1987/2012), provavelmente o seu terico mais conhe-

cido. A comunicao retoma o nfase na interao social, dando coeso

s legtimas preocupaes dos grupos sociais, particularmente dos menos

privilegiados, permitindo-lhes a descoberta de sua prpria situao estrutu-

ral, a identificao de problemas e a busca de solues. Neste ltimo grupo

de teorias existem pontos de vista ancorados em conceitos diferentes. Por

exemplo, o conceito de reconhecimento (Honneth, 1987) por exigir hori-

zontes de significao comum (Taylor, 2003, p 31) articula-se melhor com

a ideia de comunidade, verificando-se que esse subconjunto deste grupo

de teorias convergiro nalguns pontos com o grupo anterior. A pluralidade

dos espaos pblicos e os interesses especficos de alguns grupos excludos

(Frazer, 1992) tambm autorizar alguma dessa convergncia com o grupo

anterior. J a reivindicao de uma democracia regida por procedimentos

deliberativos que integram a ordem jurdica assegurando processualmente

a racionalidade e legitimidade da deliberao atravs de uma norma que

resulta de um processo alargado de debate democrtico parece ser um

caminho especificamente talhado tendo por horizonte poltico, cultural e

jurdico, algumas realidades mais especficas dos pases centro-europeus

(Habermas, 1997).

Recentemente, desde o final do sculo passado, somos confrontados com

uma tendncia que parece surgir de traos contraditrios destes modelos

ou paradigmas anteriores. As cincias sociais esto permeadas por uma

abordagem positivista caracterstica da racionalidade predominantemente

instrumental que se tornou, de novo hegemnica, e , mais recentemente,

ressurgiu nas teorias da comunicao, impedindo a percepo da realidade

social como construo humana, cuja coeso tecida atravs dos sentidos

compartilhados intersubjetivamente . Uma certa euforia acrtica sobre

Joo Carlos Ferreira Correia 29

o desenvolvimento tecnolgico e o seu impacto na globalizao cultural

traduziu-se no regresso desta abordagem que, de resto, se torna frequente-

mente presente em condies histricas e culturais diferentes de cada vez

que h uma mutao a nvel global no regime de organizao do trabalho e

da produo.

As recentes perspectivas conservadoras, atravs de desenvolvimentos te-

ricos associados aos conceitos elitistas de democracia e , dissimulam ou

mistificam a dimenso simblica dos processos associados dominao,

violncia, , resistncia e ao conflito. Ao ignorarem a diferenciao e com-

plexidade da racionalidade da ao social do ser humano, substituindo-a

pelo fascnio acrtico pela tecnocracia, induzem uma imagem da comu-

nicao esvaziada da sua dimenso relacional e dialgica, reduzida sua

dimenso tecnocrtica e performativa, com a participao dos povos re-

duzida a uma varivel estatstica traduzida num esforo dito colaborativo.

A economia poltica que acompanha o neoliberalismo revela uma negao

do esforo interpretativo, enquanto esforo de compreenso recproco das

culturas e das subjetividades.

Sob o ponto de vista comunicacional e cultural, a especificidade das con-

dies tecnolgicas implicou a reduo do conceito de cibercultura a um

produto que surgiu resultante de uma atividade, o uso de rede de com-

putadores. Muitas das noes que gravitam em torno deste conceito de

cibercultura continuaram devedoras do ambiente utpico dos primrdios

da democratizao da rede, num contexto em que a utopia deve muito a

uma mescla de individualismo tecno-liberal que, paradoxalmente, se articu-

lou com as concees elitistas de democracia, plasmando-se numa ordem

liberal que se articula com o empobrecimento da esfera pblica no plano

nacional e, de modo cada vez menos equvoco, no plano mundial.

Estas caractersticas do novo paradigma implicam uma conceo metaf-

sica da relao entre o humano e a tcnica, na qual esta adquire a noo de

instrumento ou utenslio que se limita a ser usado, (des) implicando-se de

uma relao dinmica com a constituio da cultura, relao esta j identi-

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais30

ficada por autores to dispares e importantes como Marx e Engels (1975),

Engels (1980), Adorno e Horkheimer (1985), Benjamin (1987), Arnold Gehlen

(1993) e MacLuhan (1974) bem como por toda a tradio antropolgica.

De acordo com a perspetiva aqui defendida, a afirmao das redes culturais

no pode ser concebida num contexto unilateral que contemple apenas a efi-

ccia e o reducionismo tecnolgico. Uma noo alternativa de rede j estava

presente na ideia de cultura e de tcnica como uma prtica desenvolvida em

comum que possui uma dimenso antropolgica, econmica, poltica e so-

cial para a qual as Cincias Sociais, nomeadamente a Sociologia da Cultura

e a Antropologia j haviam dado o seu contributo. Continua-se a relacionar

este conceito com o estudo de vrios fenmenos associados (tambm)

Internet, incluindo questes ligadas identidade, ou a associ-lo, de modo

ainda mais produtivo, na senda de Andr Lemos (2002), a um ambiente ou

a uma formao sociocultural que advm de relaes de troca entre a so-

ciedade, a cultura e as novas tecnologias da informao e da comunicao.

Defende-se um ncleo terico que inclua o reconhecimento da mediao

tecnolgica e dos usos e apropriaes da tcnica pelo humano e, simultanea-

mente, da mediao social, atravs da noo de reconhecimento e da anlise

das redes de interao formuladas no contexto de um pensamento crtico ins-

pirado pelo dialogismo (Honneth, 1997). Apesar das barreiras que impedem

a discusso dos temas, problemas, questes e reivindicaes dos indivduos,

especialmente da periferia da estrutura de poder, reconhecem-se avanos

contraditrios ao nvel da comunicao, atravessados por constrangimen-

tos mas em que se distinguem relaes de tenso que se expressam entre

instncias sociais, polticas e comunicacionais.

Em alternativa a uma viso redutora das recentes transformaes tecnol-

gicas culturais, estudos crticos sobre a Internet propuseram um modelo

agonstico em relao cultura da rede. O software passou a ser estudado e

analisado como um campo de relaes sociais em que se desenvolve o dis-

curso online. Criticou-se a natureza mtica de alguma cultura computacional

e o reducionismo tecnolgico da inteligncia artificial. Surgiram debates

Joo Carlos Ferreira Correia 31

sobre os regimes de propriedade do software, os riscos corporativos, o di-

gital divide, a diversidade cultural e lingustica, a busca de parceiros para

um modelo econmico sustentvel para uma fora de trabalho maioritaria-

mente independente, a economia poltica da Internet e a regulamentao da

atribuio de domnios. Os seus promotores defenderam a generalizao

de prticas democrticas para a Internet, atravs da criao de estruturas

independentes e da discusso de regimes de propriedade. (Lovinck, 2009)

Contribuindo para esta outra leitura da Comunicao, da cultura e de uma

gramtica sobre os direitos que lhe esto associados, considerou-se que a

ideia de relao entre tecnologias, sociabilidade pode ser entendida de for-

ma mais produtiva usando o conceito ps-convencional de redes culturais.

Esta abordagem ps convencional da cultura, da comunicao e da socia-

bilidade, apesar de ser objeto de formulaes diversas, apresenta algumas

caractersticas comuns na considerao do papel da comunicao na rela-

o entre culturas.

a. Abandono da conceo instrumentalista da tcnica como um simples au-

xiliar que se limita depender da sua utilizao.

b. Enfatizao da dimenso relacional que alerta para os usos e apropria-

es dos artefactos tecnolgicos e remete para a sua importncia na

constituio de uma forma humana de sociabilidade.

c. Uso da noo de rede como um espao entre agentes e entre fenmenos.

d. Conscincia da desigualdade como elemento que perverte um encontro

insistentemente referido, por vezes de modo totalmente, acrtico, como

globalmente democrtico.

3. Cultura enquanto rede

A importncia do conceito de rede foi, com certeza, influenciado, pelas

tecnologias digitais mas est muito alm da sua dimenso tecnolgica. A

cultura no sentido humanstico no pode ser dissociada da sua origem num

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais32

particular ideal de melhoria do humano e da sociedade, no sentido do seu

aperfeioamento individual, atravs da formao (Paideia). Todavia, tal como

se disseminou, esta ideia de cultura inclua o estabelecimento de um pa-

dro. Por isso, a cultura humanstica foi marcado por trs traos:otimismo

(crena na plasticidade ilimitada das caractersticas humanas), universa-

lismo (crena num ideal aplicvel a todas as naes, lugares e tempos) e

etnocentrismo, isto , a crena de que o ideal formado na Europa do sculo

XVIII representava o modelo da perfeio humana. (Bauman, 1999, p. 29).

Todavia, medida que a globalizao expandiu o comrcio, a economia e os

produtos culturais do Ocidente, este foi crescentemente confrontado, ainda

que a contragosto, com a sua relatividade e com os seus limites,

A partir do sculo XIX, a palavra cultura tendo como suporte a conceo

antropolgica, tornou clara a diviso do mundo em diferentes contextos

culturais, igualmente valiosos. Todavia,o estudo das diferenas e dos con-

textos no tem por consequncia necessria um relativismo contextualista

que afinal se torna ele prprio inimigo do dilogo das culturas, por lhe atri-

buir uma forma especial de essencialismo. Os estudos sobre os contextos

culturais permitiram dar conta das questes associadas ao reconhecimento

e relao. A tradio s viva quando uma forma de dilogo que convoca

propostas de diversos contextos culturais. A reificao da tradio, isto

a sua transformao em algo inerte, ou pura e simplesmente museolgico,

cercado por muros que garantiriam a sua pureza constituiria uma das

suas formas possveis da sua tragdia e fenecimento. O estudo das diferen-

as e dos contextos no tem por consequncia necessria um relativismo

que, afinal, se torna ele prprio inimigo do dilogo das culturas, por con-

figurar uma forma especial de essencialismo. Hoje o conceito de cultura

no se refugia num mundo de essncias para estabelecer um cnone vlido

para todos os tempos e os lugares. Este conceito j se confrontou com o seu

momento crtico e reflexivo e da as exigncias de democratizao e de liber-

tao de vrias gramticas e dialetos possveis.

Joo Carlos Ferreira Correia 33

As indstrias culturais refletem as marcas e um processo de globalizao

em que a hegemonia dos principais centros de produo (por exemplo,

Hollywood, Nova Iorque Paris, Milo , Londres , Dublim, Berlin e Silicon

Valley) desempenharam papel crucial. Porm, a reflexo em torno do con-

ceito de imprio de Negri e Hardt (2004) ou sobre o fim do poder por Moiss

Naim (2013) revela que, tal como as empresas e os estados, no universo da

cultura, os centros de produo continuam centrais. Mas, so-no cada vez

mais por menos tempo, configuram-se como mais dependentes de outros

centros e carecem mais e mais de estabelecer relaes e de obter reconhe-

cimento para poderem confirmar a sua centralidade. Nesse sentido, podem

originar relaes menos tradicionais e mais fluidas. Simultaneamente, a

natureza especfica das indstrias culturais e criativas exatamente pela

exigncia de criatividade, pela necessidade de abertura a formas de racio-

nalidade esttico-expressiva, faz com que a imposio do modelo de gesto

que gerou a crtica da racionalidade instrumental seja muito mais proble-

mtica. (Hesmondhalgh e Baker, 2011). Se verdade que a industrializao

foi acompanhada por processos de uniformizao industrial que tornaram

mais evidentes a imposio ao domnio da cultura de imperativos sistmicos

de natureza burocrtica e mercantil, no menos verdade que a produo

esttica e cultural se distingue pela necessidade de mobilizar energias ino-

vadoras e criativas de natureza especifica. No Manifesto, Marx e Engels,

na sua descrio do surgimento do capitalismo, j enfatizam a sua capacida-

de inovadora e criativa expressa na Renascena e na Literatura Inglesa do

tempo da Revoluo Industrial. (Marx e Engels, 1975, p. 65-66). As grandes

transformaes econmicas glbais foram sempre acompanhadas por uma

dialtica eentre processos inovadores e criativos e a emergncia de novos

processos de dominao instrumental do homem, da cultura e da natureza.

O facto de isto se poder tornar uma oportunidade para o reconhecimen-

to e a visibilidade um processo, nunca um dado partida. As indstrias

culturais e as indstrias criativas (estas, mais sensveis do que as primei-

ras fragmentao e segmentao) conferiram visibilidade a segmentos

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais34

de mercado que provavelmente ficariam arredios, afastados dos mesmos

processos: desde os anos 50 com os cruzamentos entre gneros musicais,

a ateno conferida s msicas das periferias, exploso da world-music,

o despertar do interesse pelo cinema e pelas literaturas sul-americanas,

mediterrnicas, africanas e asiticas, as fuses entre gneros que so

tambm misturas de culturas, como acontece no estabelecimento de as re-

laes entre o fado e a msica clssica (vejam-se Carlos do Carmo e Maria

Joo Pires), do fado com o jazz (Mariza ) e a msica africana e, mais recen-

temente, a partir das s perplexidades identitrias que que se configuram

nas formas de expresso literria, visual e audiovisual no decurso do apare-

cimento de linguagens e formas de expresso multi-mediticas, entramos,

mais uma vez, num processo que transcende uma diviso simplista entre

os tradicionais mecanismos de hegemonia cultural (de tipo colonial ou im-

perialista) versus exaltao da famosa libertao dos dialetos referida pelos

ps-modernos. Seria um reducionismo grosseiro, classificar o encontro en-

tre Sinatra e Joo Gilberto, entre o Jazz e a Bossa Nova, como uma pura

apropriao cultural pela mquina reprodutora da hegemonia capitalista.

Da mesma forma, ser ingnuo fazer desses fenmenos, paradigmas de

uma espcie de essncia emancipatria que seria intrnseca ao encontro de

culturas.

Sem que nos confinemos ao determinismo tecnolgico, este fenmeno

acelera-se na poca dos videojogos, da largura de banda, do embarateci-

mento da memria digital. Uma das lutas que valer a pensa observar ser

a que se vai desenvolver entre os partidrios do open source e a imposi-

o de uma lgica global corporativa. Demonstra que o universo cultural

suficientemente contraditrio e atravessado por sensibilidades peculiares,

acentuando a sua dimenso reticular. Um dos grandes desafios ser o de

estabelecer dilogos e relaes sem provocar a dissoluo das identidades e,

ao mesmo tempo, preservar as identidades sem esquecer a dimenso do di-

logo: neste sentido, o jogo da cultura aparentemente um jogo democrtico.

Porm, s os mais ingnuos podero ignorar o modo como esta aparn-

cia, apesar de ser mais do que pura aparncia ou iluso, est ameaada

Joo Carlos Ferreira Correia 35

por comportamentos estratgicos que visam a dominao e a objetivao

dos significados, atravs de imperativos sistmicos em que continua a so-

bressair o mercado. Apesar das mltiplas desconfianas, a lusofonia, ou

qualquer projeto similar construdo pela partilha de uma lngua comum

um projeto que deve ser olhado com esta dimenso de reconhecimento da

sua complexidade. A necessidade de massa crtica e o esforo de visibilidade

que decorre num dos mais competitivos mercados do mundo exige uma in-

finita pacincia no estabelecimento de projetos e de parcerias, na formao

de pblicos e na construo de referncias comuns, nem que sejam as que

resultam da diferena que partilhamos.

As relaes internacionais entre os povos no mbito da cultura, num con-

texto de globalizao, so associadas a formas de desenvolvimento que

promovem a uniformizao e homogeneidade redutoras e que ignoram

tradies locais e regionais, especificidades culturais, memria, contextos

de reconhecimento. O pensamento crtico reintroduziu o mundo da vida

como espao da cultura quotidiana onde se encontram os horizontes de sig-

nificao comuns, opondo-o aos imperativos sistmicos, onde predomina a

racionalidade tcnica e administrativa, vulgarmente associada tecnocra-

cia. O significado do mundo da vida tem sido marginalizado e esquecido

nas discusses sobre identidade at por polmicas de natureza conceptual

discutidas em seu torno. Todavia, associado ideia de reconhecimento, tem

a vantagem de retomar as problemticas da identidade e da transmisso cul-

tural sem despertar alguns arcasmos regressivos que rodeiam o conceito.

Construir uma comunidade de comunicao e de cultura, necessita de um

reconhecimento mtuo em que se chame a ateno para as diversidades

contextuais.

No caso sul-americano, verificou-se a predominncia tardia de situaes

ditatoriais de violncia extrema perpetrada pelo exrcito e foras parami-

litares que conduziram ao recuso resposta armada ( situaes que, pelos

vistos, deixaram alguns saudosistas acantonados na busca de um primeiro

pretexto); um processo de acumulao capitalista dependente do exterior e

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais36

pela escassa penetrao do modelo de Estado Providncia e uma diversida-

de cultural associada a situaes de excluso.Logicamente, a comunicao

comunitria incidiu a sua reflexo original num modelo em que enfatizou

a dimenso militante numa lgica de emancipao dos excludos. Nos anos

de 1970 e 80 o contedo da comunicao popular centrava-se na proposta

de contestao ao status quo e na transformao da sociedade capitalista.

Porm, a emergncia da democracia no Leste Europeu e na Amrica Latina

centrou a ateno no alcance e eficcia poltica dos atores provenientes da

sociedade civil. Novas temticas foram sendo includas e verificaram-se

mudanas nas linguagens e tipos de canais adequados ao momento atual.

Simultaneamente, as caractersticas prprias da sociedade continuaram a

ditar a existncia de um discurso poltico que valoriza a ampliao dos di-

reitos e deveres de cidadania. Esta permanncia refletiu-se num nmero

crescente de ONG, associaes e movimentos organizativos de toda esp-

cie e no sucesso das formas de comunicao comunitria associadas aos

Fruns Sociais de Porto Alegre (Peruzzo, 2004, pp. 3-4).

Em face destes fenmenos, as propostas deliberativas extradas do contexto

acadmico norte-americano e centro-europeu acabaram por constituir um

importante segmento acadmico, nomeadamente no Brasil. Esta abordagem

marcada j pelo contexto de democratizao ps-guerra fria assume a con-

figurao que alguns autores lhe atriburam de um modo de regulao que

procura responder ao dfice de participao poltica que afetava, por toda

a parte, as democracias liberais e acentua as oportunidades dos cidados

de intervirem nas esferas de deciso sobre polticas pblicas e administra-

tivas dos governos (Gomes, Maia e Marques, 2011, p. 19-28) Logicamente,

deseja-se que a ameaa de desenvolvimentos contrrios a esta tendncias

que, infelizmente assombram , de modos distintos, o Brasil e a Europa, se

no concretize.

A operacionalizao desta abordagem assume, no caso da Amrica Latina,

alguns traos significativos que se fazem sentir sobretudo na nfase fre-

quentemente concedida ao reconhecimento enquanto combate excluso

de grupos sociais (cf. Mendona & Maia, 2009; Mendona, 2011). O proble-

Joo Carlos Ferreira Correia 37

ma do reconhecimento revitaliza uma pluralidade de contextos de ao e de

atores sociais que no coincidem com os tradicionais movimentos de classe.

Assim, h fronteiras sociais, culturais bem como o decurso da histria

poltica das ltimas dcadas que explicam estas diferenas tericas, especi-

ficidades, deslocaes e transies discursivas. Percebe-se uma enfatizao

dos problemas dos sujeitos sociais excludos predominantes na Amrica

Latina e do problema da legitimidade e responsabilidade das decises do

Estado mais presente nas sociedades europeias.

Sendo verdade que estas duas abordagens no so, de todo mutuamente

exclusivas (a responsabilidade e legitimidade das discusses poltica aumen-

ta necessariamente com a incluso de grupos sociais excludos no debate

pblico e vice-versa) possvel considerar uma estratgia e uma retrica

relativamente diferenciadas, assim como um maior porosidade atribuda,

nuns casos, aos rgos do estado democrtico que desencadeiam, eles pr-

prios, mecanismos reflexivos e de debate ou permanecem suficientemente

sensveis s redes de sensores que atuam na sociedade civil (Habermas,

1997) e, noutros casos, dos agentes sociais que, nomeadamente atravs de

ONG ou organizaes populares de base, pugnam pela incluso e visibili-

dade dos grupos marginalizados. Os recentes desenvolvimentos que no

podem ser ignorados tornaram, porm, visvel, a fragilidade das conquistas

e o peso determinante dos contextos de dominao.

Do lado europeu, Portugal ocupa uma posio semiperifrica na constru-

o desta topografia. Segundo Boaventura Sousa Santos (1985, p. 168), se

forem tidos em conta os indicadores sociais normalmente utilizados para

contrastar o primeiro e o terceiro mundos (classes sociais e estratificao

social; relaes capital trabalho; relaes Estado/sociedade civil; estatsti-

cas sociais, padres sociais de reproduo; etc.), conclui-se facilmente que

Portugal no pertence a nenhum desses dois mundos e que, se alguns in-

dicadores o aproximam do primeiro, outros aproximam-no do terceiro.

Mesmo que haja a relativizar este conceito e as numerosas mudanas nos

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais38

indicadores citados (basta recordar, entre as mais significativas, a dimi-

nuio da taxa de mortalidade infantil, as taxas de cobertura no mbito da

sade e da educao e a acessibilidade), haver que ter em conta que o que

se pretende precisamente identificar a existncia de um percurso que per-

mite a relao com mais de um modelo de desenvolvimento.

Enquanto identidade de fronteira (Santos, 1994, p. 53) por um lado, teve

a influncia resultante da vizinhana do modelo centro-europeu. Porm,

conheceu tambm um desenvolvimento tardio do Estado Providncia, a re-

presso das liberdades democrticas e o desenvolvimento capitalista adiado.

O resultado deste desenvolvimento intermdio tambm uma escassa ma-

turao do dualismo Estado/sociedade civil. A sociedade civil ps-burguesa

e ps-materialista que originou os discursos participativos e deliberativos

conheceu aqui uma maturao tardia.

Nos anos 70, os movimentos sociais (alfabetizao popular, por exemplo)

manifestaram-se em formas de participao que se desenvolveram durante

o processo que se seguiu Revoluo do 25 de Abril, mas a natureza autori-

tria de algumas vanguardas e os contextos de luta poltica da Guerra Fria

tornaram difcil a sua afirmao democrtica.

Nos anos 80, o Estado interventor deu lugar a um tardio Estado Providncia

que originou a necessidade de espaos de dilogo e de representao na

sociedade civil e se traduziu no alargamento da participao aos parceiros

sociais que adquiriram poder negocial e que recolocaram a questo da legi-

timidade das decises e protagonistas no centro debate.

O desenvolvimento dos meios animou uma paisagem comunicativa associa-

da a novas formas de questionamento da legitimidade. Entre os momentos

que expressam novas prticas comunicativas ligadas ao questionamento da

legitimidade do Estado encontra-se como caso exemplar a projeo pelas

televises privadas atravs de um programa chamado Praa Pblica

do escndalo dos doentes renais da Unidade de Hemodilise do Hospital de

vora em 1993, durante o qual morreram 25 pessoas por efeito do elevado

Joo Carlos Ferreira Correia 39

teor de alumnio na gua que chegava aquela Unidade de Sade. Pela primei-

ra vez, a existncia de novos direitos sociais e reivindicaes decorrentes da

capacidade reivindicativa de camadas intermdias da populao permitia

de forma clara discusso publica das consequncias humanas (e polticas)

de decises normalmente que eram apresentadas como puramente tcni-

cas. Da mesma forma, o chamado Buzino da Ponte colocando em causa

a subida das portagens na Ponte 25 de Abril colocava em cena uma classe

mdia que valorizava uma mobilidade recentemente conquistada.

Portugal esteve sempre demasiado distante da Europa Central para poder

assumir um tipo de racionabilidade inerente histria cultural dos seus

povos e deixou marcas no desenvolvimento do seu sistema capitalista .

A chegada da Unio Europeia, apesar das patologias que ensombram a de-

mocraticidade do respetivo projeto, significou tambm a chegada tardia de

uma nova gerao de direito e de novas exigncias e pretenses de valida-

de, inseridas num espao publico diferenciado, marcado pela liberdade de

expresso, pelo aparecimento de projetos concorrenciais de televiso e de

rdio, por um convvio mais facilitado com outros pases e nveis de desen-

volvimento econmico.

Portugal atravessado por contradies que exigem a presena de dis-

cursos diferenciados sobre o papel da comunicao nos processos de

desenvolvimento. Logicamente, a anlise comparativa das especificidades

e das convergncias no poder ser seno produtiva, uma vez estabiliza-

da a existncia de padres comuns de anlise. Nesse sentido, a construo

de uma ponte entre estudos europeus e latino-americanos ser tambm a

operacionalizao do estudo comparativo e partilhado das diferenas comu-

nicacionais e das narrativas polticas. O reconhecimento da especificidades

identitrias, assumido por um e outro lado, numa lgica de olhares cruza-

das ser fundamental para o estabelecimento/aprofundamento relaes

culturais. A retrica dos pases irmos, por vezes assumida de forma pe-

rigosamente condescendente ao sabor de convenincias polticas no pode

ser subscrita pelos acadmicos: ser mais prejudicial ao estabelecimento

O impacto da globalizao na Comunicao: Para uma abordagem ps convencional do conceito de redes culturais40

de relaes culturais sinceramente densas ser menos produtiva do que o

conhecimento cuidado e rigoroso das contradies, especificidades, dife-

renas e antagonismos que traaram e traam a nossa histria comum. As

Cincias Sociais em geral, com relevo para as Cincias da Cultura e para as

Cincias da Comunicao desempenham um papel fundamental pois trans-

portam a dimenso antropolgica e relacional para processos que no se

podem reduzir nem a diplomacia nem economia.

4. Concluses

1. O modelo de globalizao decorrente da presente ordem mundial sinte-

tiza e integra processo de hegemonia e excluso com oportunidades de

reconhecimento e de afirmao.

2. As formas culturais atualmente em jogo na ordem mundial vivem en-

tre o espao tensional que se desenha entre vocaes particularistas,

frequentemente regressivas e comunitrias, e novas pretenses de he-

gemonia global.

3. O reconhecimento do potencial comunicativo do mundo da vida justifica

uma orientao normativa em que a ordem jurdica plasma o reconhe-

cimento como uma dimenso constitutiva das sociedades pluralistas,

inclusivamente num plano global.

4. O reconhecimento do mesmo potencial comunicativo impede uma vi-

so unilateral e instrumentalista das Tecnologias da Informao e da

Comunicao.

5. As redes sociais no se reduzem a instrumentos manuseados por um

sujeito empreendedor. Antes se inserem em redes sociais mais vastas

nas quais as tenses contraditrias entre o potencial democrtico e os

mecanismos de dominao sistmica permanecem presentes. O prprio

mundo da vida social e cultural um arqutipo dessa rede com as suas

possibilidades, patologias e dimenses.

Joo Carlos Ferreira Correia 41

6. Qualquer projeto lusfono s pode ser desenhado no mbito de um proces-

so dinmico de reconhecimento mtuo que tem de incluir a comunicao

e a cultura. Logo, no ocorrero por tratado nem decreto nem se firmaro

instantaneamente, mas por um trabalho exigente de reconhecimento das

identidades e diferenas que passar por um estudo atento por parte das

Humidades e da Comunicao.

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TRANSFORMAES PS-MODERNAS DAS HUMANIDADES E DA COMUNICAO: DA PAIDEIA AO INTERCULTURALISMO

Anabela Gradim1

A histria das ideias, como da cincia, sempre apresen-

ta algum grau de ligao com a histria e o estado de

desenvolvimento das condies de existncia do mundo

material e dos seus modos de produo, ou seja, o modo

de produo econmica est relacionado com a estrutu-

ra social com que coexiste, e juntos formam a base da

histria poltica, cultural e cientfica de uma determina-

da poca.

A natureza dessa relao, que o marxismo cria de cau-

sa-efeito, sempre foi problemtica, e permanece ainda

hoje um objecto em aberto: para o materialismo dialti-

co as condies materiais de existncia e o modo como

a produo se encontra organizada na sociedade so a

causa das demais configuraes polticas, sociais, cul-

turais, religiosas, e artsticas; para o idealismo, sucede

o oposto, semelhana da antiga viso platnica de um

real que se aproxima ou molda em conformidade com

um determinado ideal.

Sem pretender resolver esta dicotomia, nesta confe-

rncia, a propsito do impacto da ps-modernidade nas

Humanidades e na Comunicao, no quero deixar de

anotar alguns paralelismos mais bvios entre um e ou-

tro territrio: as condies materiais da existncia e o

modo como isso se projeta na conscincia colectiva co-

mum. E de entre estes paralelismos, o mais bvio que

1. Universidade da Beira Interior - Portugal.

Transformaes ps-modernas das humanidades e da comunicao: da paideia ao interculturalismo46

a passagem da modernidade para a ps-modernidade, caracterizada como a

era que viu o fim das grandes meta-narrativas teve um impacto imenso no

campo das Humanidades e da Comunicao. s primeiras, no se colocam

hoje meras questes de relevncia e sustentabilidade o que na verdade

seria remontar a um debate com origem no industrialismo do incio do

sculo XX , mas de pura sobrevivncia: so cada vez mais os que veem

em insolvncia as Humanidades e as artes liberais (liberal arts) como eram

tradicionalmente entendidas, numa sociedade dominada pelo fetichismo da

tcnica e da racionalidade econmica.2

Tambm a comunicao perdeu o seu centro na ps-modernidade. O mo-

delo tradicional de comunicao de massas instaurado com a inveno da

prensa mvel, unidirecional, de um para muitos (McLuhan, 2011; McQuail,

1987), foi substitudo por um modelo de comunicao em rede, onde esta

assume toda a centralidade o prprio ato de comunicar, mais do que o

contedo, que importa, um dos sentidos em que o meio a mensagem3 num

modelo reticular, de muitos para muitos, e onde o auditrio em teoria uni-

versal (Castells, 2011; McLuhan, 2011).

A ps-modernidade instaura-se com o fim da narrativa unificada do

iluminismo, tpica da sociedade industrial, do mesmo modo que o ilumi-

2. Destes o epifenmeno mais espaventoso ter sido a carta que em 2015 o Governo Japons dirigiu s 86 universidades do pas, exortando-as a encerrar ou reduzir drasticamente os departamentos de Cincias Sociais (incluindo Direito e Economia) e Humanidades. Vinte e seis das 60 universidades japonesas de mbito nacional anunciaram ir faz-lo. (consultado a 22 mai 2018).3. The medium is the message expressa uma intuio fundamental to pertinente hoje como em 1964, quando McLuhan primeiro a formulou em Understanding Media. O medium a mensagem na medida em que produz no sujeito novas formas de relacionamento com os outros e consigo prprio. O signi-ficado de um meio no o que fazemos com ele a mensagem seria o seu contedo mas o que essa tecnologia faz connosco, ou faz em ns. Para ilustrar o conceito McLuhan recorre ao exemplo da luz elctrica, que informao pura, meio sem mensagem (excepto quando usada para veicular um signifi-cado verbalizvel, caso de um farol), e que esclarece desde logo um segundo conceito chave: que o con-tedo de qualquer meio sempre um outro meio. Assim, a mensagem de qualquer meio ou tecnologia no o seu contedo mas the change of scale or pace or pattern that it introduces into human affairs. Que o contedo de um meio seja sempre outro meio apenas serve para distrair e cegar o homem a essa verdade fundamental: o meio a mensagem. O efeito dos meios no est pois relacionado com o seu contedo, mas com a sua prpria configurao e com as recomposies que essa forma induz no que o rodeia. McLuhan acredita que a electricidade e a velocidade vieram tornar esse facto mais visvel, e que a resposta convencional que centra a mensagem do medium no seu contedo um sintoma de idiotia tecnolgica.

https://www.timeshighereducation.com/news/social-sciences-and-humanities-faculties-close-japan-after-ministerial-interventionhttps://www.timeshighereducation.com/news/social-sciences-and-humanities-faculties-close-japan-after-ministerial-intervention

Anabela Gradim 47

nismo, a partir de meados do sculo XVIII expulsou a sociedade agrria

pr-capitalista do palco da histria.

Este iluminismo, cuja crtica se notabilizou com Adorno e Horkheimer na

sua Dialtica do esclarecimento (Dialektik der Aufklrung) conhece a sua ex-

presso mais perfeita no projeto de uma vontade de saber, autonomia crtica

e esclarecimento de que Kant foi arauto, e que se estender paulatinamen-

te racionalizao de todos os domnios da existncia. Ele coincide com a

cientifizao de todas as esferas da vida, pela maximizao da raciona-

lizao e eficincia dos processos: na economia esse movimento parte da

Revoluo Industrial para culminar no Fordismo e Taylorismo; na arte tem

o seu ponto alto com o Futurismo; na gesto dos espaos com o Modernismo

e o Brutalismo; na cincia com o programa de desocultao radical do

Positivismo e do Neopositivismo; na educao com uma ideia global de

formao que corresponde na sua estrutura, apesar da diversidade de con-

figuraes que foi conhecendo ao logo da histria, ao ideal da paideia grega.

O esclarecimento tem perseguido sempre o objectivo de livrar os homens

do medo e investi-los na posio de senhores... O seu programa era o de-

sencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a

imaginao pelo saber (Adorno & Horkheimer, 1944, p. 19). Falhou, avaliam

desencantadamente Adorno e Horkheimer, pois ao mesmo tempo que se rea-

liza, o programa do esclarecimento nega-se ao reprimir mais intensamente

a criatura que era suposto libertar do totalitarismo das potncias mticas.

Este programa de domesticao da natureza a nica coisa que importa;

s que, ao domin-la, tambm o homem que natureza acaba reprimido.

S o pensamento que se faz violncia a si mesmo suficientemente duro

para destruir os mitos diro (idem, p. 20).

Repare-se ento que nesta viso da histria das ideias, muito vasta e sem

necessariamente estrita conformidade temporal, mas mesmo assim regis-

tando coincidncias e coexistncias (correlaes, seno causalidades), a

tese principal de que a histria dos aspectos materiais de uma sociedade

acompanha a histria das suas ideias, e que algures em meados do sculo

Transformaes ps-modernas das humanidades e da comunicao: da paideia ao interculturalismo48

XX, entre a dcada de 50 e 60, com ritmos diversos, a narrativa iluminista

orientada para um progresso de sabor hegeliano comea a esboroar-se nas

mais diversas esferas da existncia. Esse fenmeno teve a sua gnese no

Holocausto ou Shoah, que mostrou o quo normal e desumana pode ser a

mais intransigente racionalidade (Arendt, 1963) e estendeu-se progressiva-

mente a todas as esferas da vida.

claro que os dois mundos coexistiram, e coexistem ainda vestgios da

antiga ordem,4 mas uma das narrativas mais forte, e hoje que o proje-

to iluminista parece subitamente ameaado, com os desaires polticos e as

guerras que tragicamente marcam o incio do sculo num mundo multipo-

lar, suspeitamos que uma outra narrativa se aproxima da hegemonia.

Para a comunicao, estes so tempos de exploso, em volume, em inten-

sidade, online all the time for everyone, e simultaneamente de fragmentao

e de perda de sentido da narratividade. A era do indivduo e da mass self

communication sobrepe-se era da comunicao de massas, sem perder

o aspecto crucial de orientao para o mercado, mas quebrando os antigos

laos sociais, identitrios e de classe que se dissolvem no individualismo

hodierno, construdo sob o paradoxo de um empoderamento individual que

tem como correlato a perda da capacidade de identificao e ao colectivas.

Para as humanidades o impacto do advento da sociedade ps-industrial

expressa-se numa nova categoria, a de neo-humanidades ou humanida-

des digitais, promovendo a aliana entre a capacidade de computao e os

novos meios de comunicao, e as preocupaes clssicas das disciplinas

humansticas. Estas humanidade digitais, com o seu aspecto trans-media de

dilogo entre meios distintos que mobilizam e a que aspiram, expressam no

campo da comunicao um dilogo que, no campo da cultura e das ideias,

tomou a forma de interculturalismo, e no campo da vida material a forma

da globalizao.

4. Uma epifania iluminista ocorreu por exemplo no final da dcada de 80, quando Francis Fukuyama com notvel sucesso declara O Fim da Histria, defendendo que com o fim da guerra fria a democracia parlamentar liberal de tipo ocidental representa a mais perfeita e ltima forma de governo, um fim da histria para l do qual a evoluo no seria possvel, optimismo que de resto viria a temperar anos mais tarde, sem que chegue a retractar-se da tese original.

Anabela Gradim 49

Nesta conferncia pretendo explorar a crise das humanidades, e a crise do

paradigma clssico da comunicao de massas como aspectos da transio

para uma sociedade ps-industrial que tem tanto de distpico como poder

ter tarefa especfica de construo da Filosofia e da Comunicao de

utpico.

1. O programa educativo clssico

O ideal pedaggico na Grcia antiga toma o nome de paideia e visa a com-

pleta e perfeita formao do cidado da polis, mediante um currculo que

contempla todas as reas do saber, incluindo a formao intelectual, fsica

e espiritual do jovem. Para os gregos a educao seguindo o ideal homrico

vista no como a mera transmisso de uma techn, mas como formao

global do homem virtuoso.

A ideia central deste ideal elitista de educao e saber de aret, virtude

entendida como excelncia, e conhecimento no contexto socrtico (Jaeger,

1945). A aret homrica a excelncia de qualquer tipo num determina-

do campo, e a virtude nas sociedades hericas encontra-se intimamente

ligada a conceitos como temperana, coragem, amizade, destino e morte

(Gradim, 1996, p. 15). Para Aristteles representa tambm as qualidades que

permitem ao homem atingir o seu telos, a eudaimonia, bnos, felicidade,

prosperidade, ou seja, o estado de estar bem e fazer bem estando bem a

partir de um juzo racional e verdadeiro sobre o que bom para o homem

(idem).

Aret um elemento central na paideia grega, que compreende um concei-

to de educao integral para a formao de um cidado virtuoso, capaz de

desempenhar qualquer funo na sociedade. O aperfeioamento da aret

envolvia educao fsica, oratria, retrica, cincia, msica e filosofia, alm

de educao espiritual.

A virtude episteme, tica, poltica, inerente natureza humana

e realidade ontolgica dos seres; objeto da psych e da educao,

prxis, poisis, asthesis; ao, criao, sensao e razo. Esta virtude

Transformaes ps-modernas das humanidades e da comunicao: da paideia ao interculturalismo50

manifesta-se por meio do intelecto/razo, mas tambm pelo sentir e pe-

las emoes, pelo comportamento e pelo agir; decorrente do que h de

inato no ser humano, mas tambm fruto do ensinado, do aprendido, do

transmitido e recebido, por meio do processo de vida que se estabelece

entre cada indivduo inserido na polis com a natureza que envolve a am-

bos indivduo e cidade (Pereira Filho, 2014, p. 94).

Marrou considera que a histria da educao antiga reflete a passagem de

uma cultura de nobres guerreiros a uma cultura de escribas, sem que a

tica aristocrtica a presente se afaste do ideal humanista que tal cultura

veicula (Marrou, 1948). Esta mesma ideia est patente em Grson Pereira

Filho, quando considera que em Plato j encontramos plenamente reitera-

da a intelectualizao da aret, que se fora progressivamente descolando do

ideal guerreiro homrico.

na Repblica que se esclarece de vez a ideia de que a virtude co-

nhecimento, porm conhecimento filosfico; que a virtude poltica,

cujos valores permanecem fundamentados nos valores tradicionais

da coragem (andrea), temperana (sophrosyne), justia (dik) e sabedo-

ria (sophia), mas que todas elas esto unificadas pelo ideal do Bem, da

Perfeio; que conhecimento e virtude esto acessveis a todos os

indivduos, mas que poucos conseguem alcan-los, cabendo aos filso-

fos esta rdua tarefa, o que somente ser vivel por um longo percurso

educacional. Assim, virtude e conhecimento so ensinveis e passveis

de aprendizado, mas no por meio de qualquer mtodo ou de qualquer

tipo de mestre (idem, p. 97).

O ideal da paidia no perodo clssico visa a completa formao do homem

grego enquanto agente cvico da vida na polis, e que encarna nas virtudes

pertencentes ao bom cidado.

Ser pela correta educao dos sentidos e da razo que se alcanar a

virtude responsvel pela conduo da cidade livre, amiga de si e pondera-

da. Por sua vez, a educao virtuosa fruto do conhecimento assimilado

Anabela Gradim 51

pelos costumes, pelo aprendizado, pelo discernimento racional e pelo

domnio das paixes, o que assegurar o devido equilbrio mediante o

amparo das leis e das instituies da plis (idem, p 92).

A influncia do ideal humanista de formao do homem grego est presente

at atualidade nas culturas de influncia ocidental (Jaeger, 1945; Marrou,

1948), tendo conhecido uma renovao significativa da sua importncia no

Renascimento, e cuja matriz de formao humanista do homem entendido

como projeto global informava ainda h bem pouco tempo a maioria do pro-

gramas pedaggicos de escolas e universidades (Marrou, 1948).

Referimos o elitismo e os aspectos aristocrticos deste ideal educativo como

sendo uma sua das suas principais caractersticas definidoras, que posicio-

na, distingue e eleva a sociedade grega em relao s suas contemporneas,

e essa conscincia da superioridade helnica referente ao outro, aos br-

baros, ficou gravada na prpria etimologia da palavra.5 Com estas duas

caractersticas superioridade cultural/axiolgica e formao integral do

ser humano, foi essencialmente este o programa que alimentou a concepo

de educao no ocidente, atravessando a Idade Mdia, o Renascimento e o

Iluminismo, e permitindo a construo do homem moderno.

2. O iluminismo na cincia

Ter sido na cincia que o programa iluminista conheceu o seu optimis-

mo mais destemperado, numa crena que hoje vemos como ingnua de

desocultao e dominao da natureza, que seria o seu destino inevitvel,

sustentando uma ideologia que para os seus crticos6 tomou o nome de

cientismo.

5. A palavra foi originalmente utilizada pelo gregos para referir os outros povos no gregos: egpcios, persas, indianos, fencios, etruscos, macednios, cartagineses, turcos... e tinha um sentido claramen-te pejorativo. Os romanos utilizaram o termo para designar germanos, celtas, gauleses, trcios e ib-ricos em geral. A palavra vem de (brbaros) e tem uma origem onomatopaica: para o ouvido gregos o falar dos outros povos que no se expressavam na lngua grega soava como bar-bar-bar, pala-vreado sem sentido, da a expresso brbaros, que encontramos nas lnguas atuais por via do latim. (consultado a 22 mai 2018).6. Entre os quais se contam Popper, Apel, e Putnam, entre outros.

http://www.etymonline.com/index.php?term=barbarian

Transformaes ps-modernas das humanidades e da comunicao: da paideia ao interculturalismo52

Os positivistas e neopositivistas acreditavam na tese de uma cincia unifi-

cada, na qual as cincias do esprito decalcariam os mtodos bem sucedidos

das cincias naturais. O positivismo de finais do sculo XIX encontra, j no

final dos anos vinte do sculo XX, a sua consagrao definitiva na conceo

cientfica do mundo do Crculo de Viena (Serra & Branco, 2014).

Este Positivismo Lgico do Crculo de Viena ser o programa epistemolgico

que melhor corporizou o esprito das luzes e a mundividncia iluminista.

O grupo, que inclua entre outros Hans Hanh, Kurt Godel, Otto Neurath

e Rudolph Carnap, reuniu-se a partir de 1924, em torno de um seminrio

privado leccionado por Schlick na Universidade de Viena.

Em 1929 publicado o manifesto do Crculo de Viena, o folheto

Wissenschaftliche Weltauffassung der Wiener Kreis. Autorado por Carnap,

Hahn e Neurath, fora concebido como uma homenagem e agradecimento a

Schlick, que acabara de declinar um convite para leccionar em Bona, deci-

dindo permanecer em Viena (Gradim, 2014).

As principais teses do manifesto, e que viriam a caracterizar o movimento,

so bem conhecidas: rejeio do essencialismo e da metafsica tradicional;

defesa do empirismo e do positivismo (o conhecimento s pode provir da

experincia, ou a ela ser reconduzido); negao da possibilidade de juzos

sintticos a priori; utilizao da anlise lgica e da lgica simblica para a re-

construo, em todas as reas, dos conceitos fundamentais da cincia, que

uma vez operada conduziria cincia unificada (Carnap, Neurath & Hahn,

1979).

Animados do esprito do iluminismo e da pesquisa anti-metafsica factual,

oposto ao pensamento metafsico e teologizante, os autores do manifesto

declaram-se partidrios de um modo de pensamento fundado na experin-

cia e avesso especulao e partilhar uma mesma concepo cientfica do

mundo (Carnap et al., 1979, p. 2) que se propem defender e propagar.

Anabela Gradim 53

Entre os traos que distinguiro o movimento contam-se a recusa de

todas as formas de essencialismo e idealismo, de Plato a Kant. Tudo

o que no puder ser clarificado com recurso anlise lgica e trans-

formado numa questo empiricamente verificvel declarado um

pseudo-problema. A tarefa da filosofia de clarificao de problemas

e asseres atravs da anlise lgica, que reconduz os enunciados at

ao dado emprico, ou os desmascara como carecendo de significado por

no denotarem estados de coisas nem poderem ser verificados. O Cr-

culo rejeita a metafsica escolstica, o idealismo alemo, e tambm a

metafsica oculta de Kant e o apriorismo moderno, ou seja, a existncia

de juzos sintticos a priori, prprios da epistemologia kantiana (Gra-

dim, 2014).

Serra e Castelo Branco resumem a concepo cientfica do mundo do

Positivismo Lgico a quatro aspectos fundamentais: i) recusa da metafsi-

ca: s existe conhecimento da experincia, baseado no dado imediato: ii)

Aplicao do mtodo da anlise lgica (da linguagem); iii) Os factos (o dado)

como critrio de significao; iv) Negao dos juzos sintticos a priori: a

cincia reduz-se aos enunciados analticos da lgica e aos enunciados expe-

rimentais sobre objetos (Serra & Branco, 2014, p. 48).

O Crculo de Viena mantm a viso de que os enunciados do realismo

(crtico) e do idealismo sobre a realidade ou no realidade do mundo

externo e de outros sujeitos so de carcter metafsico, porque esto

expostos s mesmas objeces dos enunciados da velha metafsica: no

tm sentido porque no so verificveis nem tm contedo. Para ns,

algo real apenas porque est incorporado na estrutura total da expe-

rincia (Carnap et al., 1979, p. 6).

O derradeiro objectivo