Filosofia Do Direito

download Filosofia Do Direito

of 575

Transcript of Filosofia Do Direito

  • Vicente de Paulo Barretto

    Mauricio Mota

    POR QUE ESTUDAR FILOSOFIA DO DIREITO?Aplicaes da Filosofi a do Direito nas

    Decises Judiciais

    ApresentaoROBERTO ROSAS

    PrefcioEROS ROBERTO GRAU

    1 edio

    Braslia

    ENFAM

    2011

  • PROF. DR. VICENTE DE PAULO BARRETTOProfessor do Programa de Ps-Graduao em Direito da UNESA e da Faculdade de Direito da UERJ. Coordenador-geral do Dicionrio de Filosofi a do Direito, do Dicionrio de Filosofi a Poltica e autor de O Fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Pesquisador do CNPq.

    PROF. DR. MAURICIO MOTAProfessor do Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito da UERJ e Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador do livro O Estado Democrtico de Direito em questo: teorias crticas da judicializao da poltica e autor de Questes de Direito civil contemporneo.

    POR QUE ESTUDAR FILOSOFIA DO DIREITO?Aplicaes da Filosofi a do Direito nas

    Decises JudiciaisApresentao

    PROF. DR. ROBERTO ROSASProfessor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de Braslia. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFRJ. Ex-Ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurdicas.

    PrefcioPROF. DR. EROS ROBERTO GRAU

    Jurista, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo - USP.

    BrasliaENFAM2011

  • ESCOLA NACIONAL DE FORMAO E

    APERFEIOAMENTO DE MAGISTRADOS

    SecretrioFrancisco Paulo Soares Lopes

    Coordenadoria de PesquisaRita Helena dos Anjos

    DiagramaoCentro de Ensino Tecnolgico de Braslia - Ceteb

    RevisoTexto revisado pelos autores

    CapaTas Villela

    ImpressoCoordenadoria de Servios Grfi cos da Secretaria de Administrao do Conselho da Justia Federal

    M917p Mota, Mauricio. Por que estudar fi losofi a do direito?: aplicaes da fi losofi ado direito nas decises judiciais / Vicente de Paulo Barretto,Mauricio Mota; apresentao Roberto Rosas; prefcio ErosRoberto Grau. -- Braslia : ENFAM, 2011. 575 p.

    ISBN 978-85-64668-01-0

    1. Filosofi a do direito. 2. Deciso judicial, aspectos fi losfi cos. I.Barretto, Vicente de Paulo. II.Ttulo.

    CDU 340.12

  • SUMRIO

    Apresentao...................................................................................... 11Prefcio.............................................................................................. 151. Introduo...................................................................................... 19PARTE I - FUNDAMENTOS DA INTERPRETAO FILOSFICA DO DIREITO............................................................................................ 252. Por que Estudar Filosofi a do Direito?............................................... 253. As Demandas por Direitos e a Concretizao da Moralidade

    Jurdica............................................................................................. 374. O Estado Democrtico de Direito e a Judicializao da Poltica............................................................................................... 55

    4.1 O Problemtico Conceito de Estado de Direito........................... 554.2 O Estado Democrtico de Direito como Condio Prvia paraa Plena Consecuo da Judicializao da Poltica........................... 684.3 O Espao Social da Judicializao da Poltica........................... 734.4 Consideraes Finais............................................................. 77

    5. A Contribuio Kantiana para a Refl exo dobre o Estado Democrtico de Direito....................................................................... 79

    5.1 Consideraes Iniciais ............................................................. 795.2 A Quaestio Iuris em Kant........................................................ 845.3 O Discurso Jurdico Ps-Tradicional........................................ 875.4 A Autonomia e a Ordem Jurdica............................................ 895.5 O Direito Lato Sensu: Aequitas e Ius Necessitatis.................... 905.6 Os Fundamentos da Moral Kantiana....................................... 935.7 A Problematizao Crtica do Direito a partir da Moral................ 985.8 Princpios Racionais a Priori do Direito.................................... 101

    5.9 A Diviso do Direito............................................................... 1065.10 O Direito Resistncia e Desobedincia Civil....................... 106

    6. A Interpretao do Direito e o Modelo Hermenutico................... 1096.1 Um Deus Habilidoso............................................................... 109

  • 6.2 Desnudando os Textos.......................................................... 1106.3 Liberalismo e Interpretao Legal............................................ 1146.4 A Refundao da Interpretao do Direito............................... 1166.5 Uma Teoria Matricial.............................................................. 1186.6 Desafi os de um Modelo Hermenutico.................................... 121

    7. A Interpretao dos Direitos Humanos........................................ 1337.1 Consideraes Iniciais........................................................... 1337.2 Legitimao e Efi ccia........................................................... 1357.3 Uma Falsa Dicotomia........................................................... 1387.4 O que so Direitos Humanos?.............................................. 1427.5 Nacionalismo e Direitos Humanos......................................... 1457.6 Dois Nveis Epistemolgicos de Anlise.................................. 1467.7 Esboo de uma Antropologia Filosfi ca.................................. 1497.8 A Fundamentao Universal dos Direitos Humanos............... 154

    8. Interpretao dos Direitos Sociais................................................ 1638.1 Um Novo Paradigma Jurdico................................................. 1638.2 A Efetividade dos Direitos Sociais........................................... 1678.3 Falcias Tericas Sobre os Direitos Sociais............................ 1698.4 Falcias Polticas Sobre os Direitos Humanos e Sociais......... 1738.5 Direitos Sociais e Direitos Fundamentais............................. 1788.6 Etapas na Fundamentao tica dos Direitos Sociais.......... 1818.7 Igualdade na Liberdade como Fundamento dos Direitos Sociais......................................................................................... 1828.8 Justia e Dignidade da Pessoa Humana................................ 1858.9 tica e Direitos Sociais......................................................... 187

    9. A Interpretao do Princpio da Dignidade Humana.................. 1899.1 Em Busca de um Conceito.................................................. 1899.2 Direitos Humanos e Dignidade Humana............................. 1919.3 Os Fundamentos da Dignidade Humana........................... 1939.4 Genealogia do Conceito de Dignidade Humana................. 1969.5 A Concepo Moderna da Dignidade Humana.................. 199

  • 9.6 O Contedo do Princpio da Dignidade Humana............. 2049.7 A Natureza Jurdica do Princpio da Dignidade Humana......... 206

    10. Perspectivas ticas da Responsabilidade Jurdica..................... 20910.1 Duas Responsabilidades e uma Problemtica Comum........ 20910.2 As Transformaes do Agir Humano e a Responsabilidade... 21210.3 A Responsabilidade como Questo Filosfi ca: a Resposta Kantiana...................................................................................... 21510.4 A Teoria da Responsabilidade e a Problemtica da Justia... 21810.5 As Novas Dimenses da Responsabilidade.......................... 227

    PARTE II ESTUDO DE CASOS CONCRETOS DE APLICAES DA FILOSOFIA DO DIREITO NAS DECISES JUDICIAIS................. 23111. A Deciso do STJ sobre a Funo Social da Propriedade, no Caso da Favela do Pullman, Vista sob a Fundamentao de Toms deAquino............................................................................................. 231

    11.1 Consideraes Iniciais......................................................... 23111.2 Um Caso Paradigmtico: a Prevalncia da Posse com FunoSocial Sobre a Propriedade sem Funo Social na Favela do Pullman, em So Paulo............................................................... 23211.3 O Ponto de Partida Aristotlico........................................... 23911.4 A Propriedade em Toms de Aquino................................... 25011.5 Os Fundamentos Tericos da Funo Social da Propriedade................................................................................. 26111.6 Consideraes Finais......................................................... 274

    12. A Ideia de Direito ou o Direito Justo de Karl Larenz como Fundamento da Proteo do Devedor Decorrente do FavorDebitoris......................................................................................... 277

    12.1 O Favor Debitoris no Ordenamento Jurdico Brasileiro... 27712.2 O Sentido da Expresso Favor, Seus Limites Objetivos eSubjetivos................................................................................... 278

  • 12.3 A Proteo do Devedor em Perspectiva Histrica, sua Recepo no Antigo Direito Lusitano e no Ordenamento Jurdico

    Brasileiro..................................................................................... 28012.4 A Ideia de Direito ou o Direito Justo de Karl Larenz como

    Fundamento da Proteo do Devedor Decorrente do Favor Debitoris como Princpio Geral do Direito das Obrigaes............ 296

    13. O Conceito Jurdico-Filosfi co de Funo Socioambiental daPropriedade como Fundamento da Compensao Ambiental, na Nova Interpretao do Supremo Tribunal Federal, Proferida na

    ADI n 3378/DF............................................................................... 30513.1 Consideraes Iniciais.......................................................... 305

    13.2 A Nova Interpretao da Compensao Ambiental pelo Supremo Tribunal Federal........................................................... 308

    13.3 A Complexidade dos Bens Ambientais e a Funo Socioambiental da Propriedade.................................................... 319

    13.4 Compensao Ambiental e Responsabilidade Civil: entreConvergncias e Divergncias...................................................... 33713.5 A Natureza Jurdica da Compensao Ambiental................ 357

    13.6 A Compensao Ambiental como Instituto Concretizador doConceito Jurdico-Filosfi co de Funo Socioambiental da Propriedade na Nova Interpretao do Supremo Tribunal

    Federal........................................................................................ 37513.7 Consideraes Finais......................................................... 382

    14. A Aplicao da Teoria da Confi ana de Niklas Luhmann naFundamentao Jurdico-Filosfi ca da Aparncia de Direito....... 385

    14.1 A Ideia de Aparncia de Direito...................................... 38514.2 Elementos da Aparncia de Direito.................................. 388

    14.3 A Teoria da Confi ana de Niklas Luhmann como Fundamento Jurdico-Filosfi co da Efi ccia dos Atos Praticados

    com Aparncia de Titularidade.................................................. 40614.4 Efeitos da Efi ccia da Aparncia....................................... 427

  • 14.5 O Princpio da Responsabilidade por Situaes de Confi ana e a Tutela Geral no mbito da Aparncia de Direito... 42914.6 Consideraes Finais........................................................... 432

    15. O Conceito Jurdico-Filosfi co de Apropriao Econmicada Terra pelo Trabalho como Fundamento da Funo Social da Posse............................................................................................... 435

    15.1 Consideraes Iniciais......................................................... 43515.2 O Conceito Jurdico-Filosfi co de Apropriao Econmicada Terra pelo Trabalho Como Fundamento da Funo Social daPosse........................................................................................... 43615.3 A Funo Social da Posse.................................................... 46415.4 Exceo de no Funcionalizao Social do Domnio eTemporalidade: O Artigo 1228, 4 e 5 do Cdigo Civil............ 48015.5 Consideraes Finais........................................................... 501

    16. A Lgica do Razovel de Recasns Siches como Delimitao Jurdica Necessria do Princpio da Precauo................................. 505

    16.1 Consideraes Iniciais.......................................................... 50516.2 A Lgica do Razovel de Recsens Siches na DelimitaoJurdica da Ameaa Hipottica, Porm Plausvel Caracterizadorada Incidncia do Princpio da Precauo........................................ 51016.3 Certeza Cientfi ca na Determinao do Dano Plausvel......... 52516.4 A Lgica do Razovel na Adoo das Medidas EconmicasProporcionais para Prevenir a Degradao Ambiental.................. 533

    16.5 Consideraes Finais.......................................................... 542REFERNCIAS................................................................................ 547

  • 11

    APRESENTAO

    PROF. DR. ROBERTO ROSAS*

    Esta pergunta est inserida no ensino jurdico brasileiro. Como, quando, o que estudar de Filosofi a do Direito? Esta questo antecedida de outra como estudar Filosofi a em geral, no ensino mdio? O questionamento antigo, e resolvido em deslocamentos, proposies e colocaes nos currculos escolares.

    No incio do sculo XX a Filosofi a era ensinada no Colgio Pedro II, no Rio de Janeiro, paradigma do ensino no Brasil, por ningum menos do que o grande Slvio Romero, e a cadeira persistiu por dcadas com grandes professores. Ali estava, essencialmente, a fi losofi a geral, e especifi camente o estudo das escolas fi losfi cas, desde os pr-socrticos, at, nos tempos modernos, na dcada de 60, existencialismo de Sartre. Essa apresentao seria muito importante, para projetar esse ensino de fi losofi a nas faculdades de Direito. Assim, o j mencionado Silvio Romero, ensinava no Rio de Janeiro, na Faculdade de Direito, e Pedro Lessa, na Faculdade de Direito de So Paulo. O defeito metodolgico estava na cronologia da apresentao, ao incio do curso, no 1 ano. Por isso, Romero, no prezava a disciplina, porque afi rmava - os alunos no sabiam direito, nem fi losofi a. Ora, essa afi rmao correta para o direito, porque os alunos iniciavam-se em fi losofi a do Direito no 1 ano, mas deviam ter capacidade para a fi losofi a em geral. Entretanto, em 1931, esses reclamos foram parcialmente contemplados, pois a Reforma do Ensino Francisco Campos (professor de Filosofi a do Direito na Faculdade Nacional de Direito, do Rio de Janeiro) deslocou a disciplina fi losofi a do Direito para o curso de ps-graduao, ento doutorado.

    Em outra reforma, voltou ao bacharelado (graduao), e a com grande destaque para o extraordinrio mestre Miguel Reale, da Faculdade de Direito da USP. Esse insigne professor teve a felicidade de dar incio sua ctedra muito jovem, e durante mais de cinquenta anos deu ao Brasil grandes lies.

  • 12

    Tudo isso importante, para mostrar as vicissitudes do ensino da Filosofi a do Direito, e, consequentemente, o seu desconhecimento, e a difi culdade de demonstrao da sua importncia. Assim, urgente na formao dos militantes da rea jurdica (magistrados, Ministrio Pblico e advogados) a incurso nessa seara de conhecimento, porque na formatao do pensamento jurdico e no poder decisrio presente nas decises, est nsito um arcabouo de ideias e de pensamento. Se o magistrado no est permanentemente em contato com esse arcabouo de ideias, certamente seu poder decisrio, ser limitado a um positivismo arraigado, ou distante de uma realidade social e histrica. O juiz no um autmato, um aplicador da lei, no distante das funes sociais e econmicas, porque a deciso dirigida a pessoas, a ser cumprida por pessoas.

    Por isso, importante a obra de Maurcio Mota e Vicente de Paulo Barretto, professores do Rio de Janeiro, ambos consagrados, e Barreto, veterano mestre da Sociologia e da Filosofi a do Direito, com obras memorveis. Aqui est mais uma demonstrao desse potencial.

    O Estado Democrtico de Direito est na base do alicerce jurdico, e Kant nos diz, com todas as foras, a partir do imperativo categrico, numa conceituao de moral.

    A hermenutica e a interpretao do direito compem o quadro dirio do juiz. Como interpretar, o que interpretar, que linha a seguir na interpretao. Isso tudo se expande para vrios setores jurdicos: direitos humanos, direitos sociais, a partir de um ponto fundamental jurdico, e especial no Brasil, no artigo 1 da Constituio - o respeito dignidade humana.

    Essa apresentao, que um roteiro dado por este livro, fi caria dispensada com a Parte II estudos de casos concretos, a adoo de um mtodo indutivo, bem americano, o case study, que nos leva do fato norma, mas com longa passagem fi losfi ca do tomismo a Luhmann e Luis Recasens Siches (este com a obra clssica to divulgada no Brasil) o que justifi ca, por si s, a defesa deste livro, a sua importncia.

  • 13

    Ainda que a etimologia de prefcio remonte a Ccero como prembulo de um decreto ou razes de uma lei, tambm Plnio adotava como palavra de escusas, desculpas. Na primeira acepo se concebe como estmulo, incentivo, aplausos aos mestres escritores desta obra, e seu signifi cado. Na segunda acepo, se h desculpas, elas devem ser dadas pelo atraso na divulgao da Filosofi a do Direito, para a formao do profi ssional jurdico, em particular o magistrado. Aqui, esto dois experientes professores, que vem a lembrana, a propsito, de Oliver Holmes, em seu clssico livro (The Common Law) a vida do direito no foi a lgica, e sim a experincia. E eles tem experincia.

    *Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de Braslia. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFRJ. Ex-Ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurdicas.

  • 14

  • 15

    PREFCIO

    PROF. DR. EROS ROBERTO GRAU*

    A interpretao uma experincia do sujeito que interpreta, de modo que ele outro aps t-la experimentado, perfazendo-se.

    Mesmo essa frase [= texto] h de ser interpretada. J sou outro aps t-la praticado. O mundo afetado por essa minha experincia, por menor, por mais estreito que seja o seu impacto nele/sobre ele, ser tambm outro, distinto do que existia anteriormente a essa experincia. Mas o sujeito que interpreta esse texto no o interpreta fora da realidade; esse texto [= essa frase] assume signifi cado no quadro da realidade, tal como apreendida (a realidade) pelo sujeito que o interpreta. Nessa experincia atuam, dialeticamente, objetividade do texto e da realidade e subjetivismo do intrprete.

    Maurcio e Vicente pediram-me um prefcio. Tomo esse texto do Por que estudar fi losofi a do direito? Aplicaes da fi losofi a do direito nas decises judiciais e, a partir da realidade, tal como existe para mim desde minhas anteriores experincias acumuladas, disponho-me a escrever o prefcio que Maurcio e Vicente me pediram.

    A outro, porm, no a mim --- tal como eu fui antes de conhecer o[s] texto[s] do Por que estudar fi losofi a do direito? Aplicaes da fi losofi a do direito nas decises judiciais ---, Maurcio e Vicente pediram um prefcio.

    Tinha, anteriormente a essa leitura, algo a dizer sobre a fi losofi a do direito e sua aplicao s decises judiciais. Posso/devo diz-las agora de um modo diferente, no importa se a favor ou contra o que dizem os que me convidaram a escrever este prefcio.

    Talvez, sem ser contra, observar que no h fi losofi as, mas apenas a fi losofi a. Partimos as coisas para melhor agarr-las. Mas elas perdero sentido,

  • 16

    sabor, contedo se no considerarmos o todo ao qual pertencem. Os que me convidaram tomaram da fi losofi a do direito como quem toma entre os dedos uma rosa, para fruir do seu perfume. No a arrancaram da roseira de que brotou, o que a faria fenecer antes do tempo.

    A imagem talvez no seja correta porque a fi losofi a, por no ter tempo, no uma rosa. O tempo mesmo posterior a ela, visto que a compreenso do que seja o tempo resulta de uma refl exo fi losfi ca...

    Devo, pois, prontamente dizer uma e outra coisa que posso anotar a respeito da fi losofi a do direito e sua aplicao nas decises judiciais.

    O processo de interpretao dos textos de direito, li em Gadamer, encontra na precompreenso o seu momento inicial. Da que seria interessante procurarmos identifi car, no conjunto das decises que certo juiz (qualquer juiz) toma ou tomou, os fundamentos fi losfi cos que o inspiram ou inspiraram. Seria interessante e instrutivo... Exerccio como tal poderia ser til (digo-o a srio, sem ironia) explicitao da noo1 --- pois de conceito no se trata, visto que temporal --- de notrio saber, requisito da investidura de juzes em alguns tribunais.

    O que inicialmente me ocorre afi rmar que a fundamentao fi losfi ca elemento primacial da precompreenso do juiz e, se no houver, ser um desastre...

    Em seguida permito-me lembrar que a interpretao do direito no uma cincia, no conduz a respostas exatas. A interpretao do direito uma prudncia, um saber prtico, a phrnesis aristotlica, seu desafi o consistindo em comportar, sempre, inmeras respostas corretas para uma mesma questo.

    A amplitude dessas solues h, contudo, em uma sociedade democrtica, de ser pautada, limitada, conformada pelo[s] texto[s] de direito que o juiz interpreta.

    1 Idia que se desenvolve a si mesma por contradies e superaes sucessivas e que , pois --- segundo Sartre --- homognea ao desenvolvimento das coisas.

  • 17

    O desafi o democrtico torna-se dramtico, no instante da deciso judicial de cada caso, na tenso dialtica entre objetividade do texto e da realidade e subjetivismo do intrprete. Da que tenho afi rmado que toda deciso jurdica dramtica --- como todo anjo, toda deciso jurdica terrvel.

    Retorno neste passo a Kelsen, que s foi idealista para quem no refl etiu seriamente sobre o todo de sua obra. Retorno a Kelsen para afi rmar que o intrprete toma do texto e da realidade para produzir a norma. A norma, desejo dizer bem alto o que agora digo, uma construo do intrprete, produzida pelo intrprete. H porm uma moldura, a moldura da norma, da qual o intrprete no se pode afastar, pena de sacrifcio do Estado Democrtico de Direito. Por isso tenho execrado --- em textos, palestras e mesmo em votos, ao tempo da magistratura que exerci --- a chamada ponderao entre princpios2, os tais pospositivismo e neoconstitucionalismo e outros derivados alternativos. Vocs se lembram do direito alternativo?

    O direito no apartado da tica.3 Direi mesmo que o direito uma tica, no Estado Democrtico de Direito tica da legalidade. A deciso jurdica para ser tomada a partir de regras jurdicas, at porque --- desejo tambm gritar isto --- os princpios existem somente enquanto regras. Os princpios, relembro Antoine Jeammaud, so regras.

    O fato que, como observa Habermas, ao ponderar princpios, o juiz os toma no como norma jurdica, porm como valores, preferncias intersubjetivamente compartilhadas. Da dizer ainda Habermas que, enquanto uma corte constitucional adotar a teoria da ordem de valores e nela fundamentar sua prxis decisria, o perigo de juzos irracionais aumenta, porque os argumentos funcionalistas ganham prevalncia sobre os normativos.

    Basto-me, neste passo, em transcrever pequeno trecho do voto que proferi, no STF, na ADPF 153:

    2 Ver, v.g., meu voto na ADPF 101.

    3 Ver GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. So Paulo: Malheiros, 2008, especialmente pg. 290 (o ndice remissivo indica inmeras outras pginas em que tratei do tema).

  • 18

    Estamos, todavia, em perigo quando algum se arroga o direito de tomar o que pertence dignidade da pessoa humana como um seu valor [valor de quem se arrogue a tanto]. que, ento, o valor do humano assume forma na substncia e medida de quem o afi rme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure. Ento o valor da dignidade da pessoa humana j no ser mais valor do humano, de todos quantos pertencem humanidade, porm de quem o proclame conforme o seu critrio particular. Estamos ento em perigo, submissos tirania dos valores. Ento, como diz Hartmann4, quando um determinado valor apodera-se de uma pessoa tende a erigir-se em tirano nico de todo o ethos humano, ao custo de outros valores, inclusive dos que no lhe sejam, do ponto de vista material, diametralmente opostos.

    Eis o que eu desejava novamente afi rmar, a fi m de que depois no digam que no avisei.

    *Jurista, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo - USP.

    4 Ethik, 3. edio, Walter de Gruyter & Co., Berlin, 1949, pg. 576 (Jeder Wert hat wenn er einmal Macht gewonnen hat ber eine Person die Tendenz, sich zum alleinigen Tyrannen des ganzen menschlichen Ethos aufzuwerfen, und zwar auf Kosten anderer Werte, auch solcher, die ihm nicht material entgegengesetzt sind).

  • 19

    1. INTRODUO

    Os textos reunidos neste livro destinam-se a servir como material auxiliar e introdutrio aos temas, problemas e solues que constituem o corpo do pensamento jusfi losfi co contemporneo. No devemos procurar respostas defi nitivas sobre os problemas jurdicos nas obras dos fi lsofos do direito, mas vamos encontrar os instrumentos tericos necessrios ao processo de conhecimento de ns mesmos e da sociedade em que vivemos. A fi losofi a do direito uma refl exo crtica sobre o fenmeno jurdico, objetivado nas leis, doutrinas e jurisprudncia, que fornece ao magistrado, e ao jurista de uma forma geral, um instrumento intelectual imprescindvel para a aplicao das normas do sistema jurdico do estado democrtico de direito. A Constituio brasileira de 1988, em seu Prembulo, estabelece que se destina a instituir um estado democrtico de direito, baseado em valores.

    A fi losofi a do direito trabalha, precisamente, com esses valores fundantes da ordem social, poltica e jurdica nacional. Por essa razo, torna-se uma rea do conhecimento humano essencial para a deciso judicial, que dever ser tomada levando-se em conta esses valores. O escopo do estado democrtico de direito defi ne-se por esses parmetros valorativos que se destinam a assegurar, como se encontra consagrado no texto constitucional, o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfi ca das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus.

    O material deste livro pretende, assim, contribuir para que nas escolas de magistratura o magistrado possa se familiarizar e aperfeioar continuamente o seu conhecimento tcnico-jurdico atravs da perspectiva crtica da fi losofi a do direito. Para tanto, essa fi losofi a do direito para os magistrados estrutura-se em partes e captulos, cuja temtica possibilita uma abordagem crtica do fenmeno jurdico, levando-se em considerao a funo da magistratura na construo de uma sociedade democrtica.

  • 20

    A primeira parte do livro estabelece os fundamentos iniciais para uma interpretao fi losfi ca do direito. O primeiro texto esclarece signifi cativamente porque se deve estudar a fi losofi a do direito. Desde a publicao do livro Princpios da Filosofi a do Direito de Hegel, em 1821, se reconheceu explicitamente a importncia de se compreender a Ideia de Direito, de se refl etir sobre o fenmeno jurdico. Nesse primeiro texto se enfatiza a compreenso do direito como um sistema de normas, voltado para ao atendimento de valores morais que se encontram consagrados nos direitos humanos, ressaltando-se que o caracterstico da modernidade no a instituio dos direitos humanos, mas o seu reconhecimento como agente legitimador e, necessariamente, partcipe e integrante da ordem jurdica democrtica.

    O segundo e terceiro textos da parte I enfocam outra faceta fundamental do direito contemporneo: o processo de judicializao da poltica. Procura-se salientar nesses textos que o paradigma contemporneo do Estado Democrtico de Direito se caracteriza por ser um Estado de Direito em um contexto ps-positivista, marcado por uma reentronizao dos valores na interpretao jurdica, com o reconhecimento de normatividade aos princpios e de sua diferena qualitativa em relao s regras; pela reabilitao da razo prtica e da argumentao jurdica; pela formao de uma nova hermenutica. E, ainda, pelo desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edifi cada sobre a dignidade da pessoa humana, tudo a aproximar o mbito do direito daquele da poltica, juridicizando as relaes sociais, mas, ao mesmo tempo, conservando o que existe de irredutvel em cada um desses campos do saber. Esse o desafi o do Judicirio do nosso tempo, atuar com segurana e justia nessa seara permeada por valores, muitas vezes contraditrios entre si.

    No quarto texto se ressalta a contribuio do paradigma kantiano para o entendimento contemporneo do direito. O objetivo fi losfi co principal de Kant, no mbito da fi losofi a do direito, foi encontrar os fundamentos do Direito e do Estado a partir dos conceitos a priori, ou seja, princpios de uma razo jurdico-prtica pura, no emprica, que iro justifi car racionalmente as restries ao exerccio da vontade soberana. Kant intenta defi nir as bases racionais puras, as nicas capazes de sedimentar, na sua perspectiva, o conhecimento fi losfi co e assegurar uma leitura crtica da realidade jurdica. Seu esforo terico, aqui

  • 21

    apresentado, possibilitou o desenvolvimento do raciocnio jurdico em bases muito mais amplas, bases essas que possibilitaram os avanos da refl exo jurdica, seja para corroborar as premissas kantianas, seja para critic-las.

    Por fi m, nos textos cinco a nove da primeira parte se apresentam em detalhe os fundamentos tericos para uma interpretao fi losfi ca do direito, em grau decrescente de generalidade, do mais geral para o mais especfi co. Assim, so sucessivamente apresentados o modelo hermenutico de refl exo sobre o direito, a interpretao dos direitos humanos, dos direitos sociais, do princpio da dignidade humana e as perspectivas ticas da responsabilidade jurdica.

    Tais paradigmas tericos interpretativos visam balizar para o intrprete do direito um cabedal de conhecimentos necessrios plena compreenso daquilo que est por trs do sentido das regras jurdicas. Cada regra jurdica tem em si prpria uma historicidade e uma refl exo fi losfi ca pregressa e cabe ao aplicador do direito ao interpretar a regra ter em vista essas balizas para uma perfeita compreenso do fenmeno jurdico como uma totalidade.

    Na segunda parte do livro se estudam casos concretos da aplicao da fi losofi a do direito nas decises judiciais, ilustrando e esmiunando as defi nies tericas apresentadas na primeira parte.

    No texto dez da segunda parte se estabelecem os fundamentos tericos da chamada funo social da propriedade. Conclui o texto que os bens que o homem tem so legtimos desde que tenham a fi nalidade de lhe garantir o espao vital digno e sufi ciente para a vida pessoal e social. Se os bens, por essa perspectiva, pertencem a todos, cada indivduo tem direito sua parte, sem o que no se cumpriria a destinao universal, ao menos se se considerar que possuir e desfrutar tudo em comum no prescrio de direito natural, nem possvel na prtica. Tudo o que ultrapassa a necessidade do espao vital e tudo aquilo que no bem administrado ou que, por qualquer razo, pela extenso ou pelo mau uso, prejudicar a outrem, deve ser submetido aos critrios da comunidade, isto , do bem comum. Os textos doze e quatorze da mesma parte reforam essa perspectiva, analisando, respectivamente, a funo socioambiental da propriedade a partir da compensao ambiental, tal como a entende o Supremo

  • 22

    Tribunal Federal e a funo social da posse como apropriao econmica da terra pelo trabalho.

    No texto onze se esmia a ideia de direito no pensamento de Karl Larenz e aplica-se a mesma ao instituto da proteo do devedor, estabelecendo que este funda-se na ideia de direito, como o comprova o desenvolvimento histrico dos seus institutos, e atua para atenuar os rigores do pacta sunt servanda, reequilibrando a noo de obrigao e consubstanciando a ratio e a justifi cao deontolgica das regras protetivas do direito ibrico e latino-americano.

    O texto treze expe a teoria da confi ana de Niklas Luhmann e esclarece como essa abordagem terica da confi ana pode servir de fundamento da efi ccia dos atos praticados com aparncia de titularidade, excluindo, por sua vez, as teorias que baseiam tal fundamento na culpa, na boa-f subjetiva to-somente, na simulao ou no risco. O pensamento da confi ana na acepo luhmaniana integra-se, pois, no sistema jurdico sem romper as suas estruturas e coerncia: numa poca marcada pela presso no sentido do incremento da interao humana, e pela tendncia da impessoalidade, correlato da urgncia de uma maior e enrgica autonomia dos sujeitos, a proteo da confi ana diminui os riscos da ao ligada progressiva interdependncia dos sujeitos, como mostra o texto.

    No texto quinze da segunda parte, por fi m, se discute a ideia de razoabilidade no direito tal como a compreende Recasens Siches, para a delimitao jurdica necessria do chamado princpio da precauo. Defi ne-se nesse texto que a interpretao das regras jurdicas no se faz atravs das balizas da lgica tradicional, com razes de tipo matemtico (silogismos), mas sim por meio de estimaes jurdicas que sopesem desde a determinao da norma aplicvel ao problema concreto, consoante os valores envolvidos, at a constatao dos fatos, bem como a qualifi cao jurdica desses fatos. Assim, as razes que estimamos corretas e que possibilitam a compreenso de um fato humano valorado pelo direito so razes no campo da razo, mas no da armao racional da lgica tradicional e sim da estrutura do logos do humano, do logos da ao humana. algo que deve ser resolvido razoavelmente. Nesse logos do razovel intervm observaes e experincias de realidades vrias, de realidades humanas e no humanas; assim como intervm juzos de valor, juzos estimativos

  • 23

    derivados sobre fi ns, juzos estimativos sobre a bondade ou no dos meios, e juzos estimativos sobre a adequao, e tambm sobre a efi ccia dos meios para conseguir a realizao dos fi ns propostos.

    Portanto, o presente livro pretende apresentar, em seus diversos elementos, uma viso introdutria, mas substancial, da fi losofi a do direito e ressaltar sua utilidade para os operadores do Direito para que estes, no deslinde de lides complexas sempre submetidas ao juzo, possam melhor se orientar e decidir essas lides, que traduzem os confl itos reiterados e seculares entre os diversos grupos de nossa sociedade, resolvendo os ditos confl itos a partir da sempre renovada perspectiva do humano, do razovel e dos efetivos direitos fundamentais dos contendores.

  • 24

  • 25

    PARTE I - FUNDAMENTOS DA INTERPRETAO FILOSFICA DO DIREITO

    2. POR QUE ESTUDAR FILOSOFIA DO DIREITO?

    A expresso fi losofi a do direito surgiu somente, no incio do sculo XIX, ainda que a temtica deite as suas razes nas origens da cultura jurdica e poltica do Ocidente. Pode-se mesmo datar o uso do termo, quando da publicao dos Princpios da Filosofi a do Direito, de autoria de Hegel, em 1821. Hegel inicia o seu texto, destinado a servir para o curso por ele dado de fi losofi a do direito, referindo-se cincia fi losfi ca do direito, que teria por objeto a Ideia do direito, que compreenderia o conceito de direito e sua realizao.5 Kant, por sua vez, tratou da temtica da fi losofi a do direito, mas usou outros termos para a ela referir-se: doutrina do direito ou metafsica do direito. Antes de Kant, outros fi lsofos, como Puffendorf, Burlamaqui ou Wolf utilizaram outros termos, como teoria do direito natural, princpios de direito natural, ou ainda, cincia do direito natural para tratarem dos temas prprios da fi losofi a do direito.

    A rea de conhecimento da fi losofi a do direito situa-se em patamar diferenciado da cincia do direito ou da doutrina do direito positivo. A fi losofi a do direito, que se constitui num ramo da fi losofi a pura, consiste numa refl exo fi losfi ca sobre o fenmeno jurdico. Duas perguntas podem ser feitas quando tratamos das caractersticas e da utilidade da fi losofi a do direito. A primeira refere-se ao tema de investigao privilegiada nessa rea de estudos fi losfi cos, qual seja a anlise da ideia do direito e de sua realizao. A segunda tem a ver como essa ideia ir ser transformada em conhecimento objetivo e que tenha repercusso no universo jurdico.

    5 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Principles de la philosophie du Droit. Paris: Gallimard, 1940, p. 47.

  • 26

    Para que a fi losofi a do direito possa preencher essa dupla funo, ela trabalha com conceitos abstratos, necessrios para o estabelecimento de um discurso racional comum entre a fi losofi a e o direito. A funo do Direito consiste, ento, em apropriar-se desse conhecimento e empreg-lo para que se possa justifi car como as normas jurdicas, que so gerais e abstratas, podem ser aplicadas em cada caso concreto. As difi culdades encontradas nessa passagem entre um tipo de conhecimento e outro permitiram que se explicitasse, principalmente no positivismo jurdico, uma radical oposio e excluso entre a fi losofi a do direito e a cincia do direito. Permaneceram as interrogaes de como a fi losofi a poderia contribuir para a realizao do direito ou em que medida a refl exo fi losfi ca sobre o direito poderia dot-lo de uma funo crtica de seus prprios pressupostos teorticos e permitir uma avaliao valorativa da sua prtica. Em outras palavras, quais seriam as condies de possibilidade de uma refl exo que superasse a ideia do Direito redutvel ao fato?

    O modelo epistemolgico do positivismo jurdico transmitiu para a formao do jurista a desconfi ana de que o Direito encontrava-se trado pela fi losofi a6, desconfi ana que se expressa, principalmente, nas perguntas feitas pelos estudantes de direito. O curso de fi losofi a do direito aparece como uma perda de tempo e que nada representa diante de suas preocupaes mais imediatas e prticas. Estudar a fi losofi a do direito serviria unicamente para atender s exigncias do currculo mnimo do curso de bacharelado em direito, exigido pelo MEC.

    A partir da promulgao da Constituio de 1988, entretanto, pelas razes que procuraremos explicitar a seguir, passou-se a examinar qual a possvel contribuio da fi losofi a do direito para o direito e, especifi camente, para a aplicao da Constituio e das leis positivas pelo poder judicirio. Existem razes para que o estudante de direito deva aplicar-se nesse tipo de estudo terico, abstrato, aparentemente distante dos cdigos e da vida dos tribunais? Por que, enfi m, estudar a fi losofi a do direito?

    6 ARNAUD, Andr-Jean. Le droit trahi par la philosophie. Rouen: Centre dtudes des systmes politiques et juridiques, 1977, p. 2.

  • 27

    O interesse pela temtica da fi losofi a do direito um fenmeno cultural e poltico que se manifesta no espao pblico de todas as sociedades contemporneas. Naes tradicionais, com culturas jurdicas sedimentadas, bem como naes recentemente estabelecidas, reclamam uma grande dose de refl exo fi losfi ca sobre o Direito e a Lei. Isto porque as sociedades democrticas tm como princpio nuclear o exerccio da liberdade, tendo o direito a funo de ordenar o exerccio da liberdade individual. Por essa razo, as ltimas dcadas presenciaram uma mar crescente de democratizao, que se caracterizou pelo revigoramento e o estabelecimento de instituies democrticas. Essa instituies exigem, por sua prpria natureza, para o seu funcionamento, uma ateno permanente para a questo da liberdade, da igualdade, da responsabilidade, dos direitos humanos, todos temas da fi losofi a do direito.

    Antes de poder responder concretamente s questes acima formuladas, parece-me oportuno examinar a resistncia e a desconfi ana que se manifesta no meio jurdico em relao fi losofi a do direito. Ainda que de uns tempos para c essa resistncia encontre-se em franco processo de eroso, isto no impede que em virtude de mais de um sculo de mal-entendidos e incompreenso, a rejeio da fi losofi a do direito continua presente nas salas e corredores dos cursos de direito no Brasil.

    Existem dois fatores tericos que explicam o retorno da refl exo fi losfi ca sobre o direito, como valor de referncia na sociedade democrtica contempornea: a eroso do marxismo como principal projeto ideolgico do anti-jurisdicismo e as difi culdades internas do individualismo liberal. Essa reavaliao da instncia jurdica constitui assim um fato que aparece no campo da teoria e da prtica poltica. Pergunta-se, entretanto, se necessria uma refl exo propriamente fi losfi ca sobre o direito e, caso necessrio, em que sentido preciso de fi losofi a estamos falando. Uma fi losofi a no direito ou uma fi losofi a do direito?

    Em primeiro lugar, necessrio que se estabelea com preciso qual a funo especfi ca do direito no contexto democrtico da contemporaneidade. Constata-se que se atribui ao direito uma funo crtica face ao poder constitudo

  • 28

    e s injustias sociais7. O direito na tradio sempre exerceu de uma forma ou de outra uma funo crtica, que se manifestou contra a injustia do chamado fato totalitrio, representando o direito um instrumento de crtica e de combate; mas tambm nas sociedades liberais, o direito serviu como instrumento de correo dos abusos e contradies implcitos no uso das liberdades individuais. Para alm de regular os confl itos inter-individuais, o sistema jurdico tem uma funo crtica que o situa como o parmetro valorativo e normativo da continua avaliao dos mecanismos institucionais. O direito deixa, ento, de ser um sistema de normas fechado, e passa a ser um sistema de normas que tem a dupla funo de regular confl itos e, tambm, estabelecer critrios valorativos sobre a ordem vigente.

    O desafi o diante do qual se encontra o direito contemporneo, entretanto, encontra-se no paradoxo provocado pela convivncia de duas heranas, que dominaram o universo intelectual dos juristas e dos fi lsofos, no sculo XX. Na cincia do direito, a infl uncia marcante do positivismo e, na fi losofi a, o historicismo. A construo de uma nova forma de pensar a funo do direito vem sendo desenvolvida face aos dois obstculos acima referidos, principalmente, tendo em vista que a teoria de Kelsen contrapondo teoria geral do direito e fi losofi a do direito, afastando todo o debate sobre o direito natural, retirou do direito qualquer funo crtica. Se a cincia do direito reduz-se, como na perspectiva kelseniana, a uma anlise da estrutura interna do direito positivo, ela no pode integrar em suas consideraes as ideias do justo e do injusto, fazendo com que no se possa realizar uma verdadeira avaliao do sistema jurdico, principalmente, daquele que consagra situaes de injustia.

    A negao ltima da funo crtica do direito pode ser constatada nas prprias palavras de Kelsen: totalmente sem sentido a afi rmao de que no despotismo no existe uma ordem jurdica, mas que prevalece a vontade do dspota....quando o estado despoticamente governado tambm tiver qualquer ordem de comportamento humano...essa ordem precisamente a ordem jurdica. Negar-lhe o carter de direito simplesmente uma ingenuidade ou arrogncia do direito natural...Aquilo que apontado como sendo vontade, somente a

    7 RENAUT, Alain & SOSOE, Lukas. Philosophie du Droit. Paris: Presses Universitaires de France, 1991, p. 26.

  • 29

    possibilidade jurdica do Aristocrata chamar cada deciso a si... Tal situao uma situao de direito, ainda quando for considerada desvantajosa. Mas tambm ela tem seus aspectos positivos. O clamor a favor da ditadura, que no raro no estado de direito moderno, demonstra isso claramente.8 Strauss9 comenta como Kelsen, no tendo alterado a sua posio a respeito do direito natural, omitiu esse signifi cativo trecho na traduo inglesa do seu livro, intitulada General Theory of Law and State (1949).10

    Quais as razes para tal rejeio? Podemos distinguir duas razes: a primeira origina-se numa concepo da fi losofi a do direito, considerada como uma razo ordenadora, que regularia atravs de mximas morais a vida na sociedade democrtica; a segunda razo seria a de que a fi losofi a do direito intil em face das exigncias do direito contemporneo, que teria a seu dispor recursos ditos cientfi cos para a sua aplicao.

    A rejeio da fi losofi a do direito por ser considerada uma razo-ordenadora, prejudicial sociedade democrtica, tem suas origens na fi losofi a moderna. Michel Villey, historiador e fi lsofo do direito, mostra como os juristas contemporneos receberam a ideia do hipottico papel da fi losofi a do direito. Escreve Villey: estou persuadido de que a ns, juristas, os fi lsofos modernos fi zeram muito mal. Falo de Hobbes, Locke, Hume, e mesmo Leibniz, Kant, Fichte, Hegel e quase a totalidade dos fi lsofos do XIV sculo e do XX sculo. Quando falam em direito com uma total ignorncia do trabalho especfi co do direito. O que sabem? Matemticas, uma sociologia mais ou menos marcada pelo evolucionismo, pela lgica e, as vezes, pela moral. Dessa forma, eles transplantaram para a nossa disciplina, sistemas cientfi cos baseados em experincias extrnsecas vida jurdica. A sua infl uncia perturbou a nossa prpria representao do fenmeno jurdico, nela injetando os positivismos legalista e sociolgico.11

    8 KELSEN, Hans. Algemeine Staaslehre. apud STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Paris: Plon, 1954, p. 335-336.

    9 STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Paris: Plon, 1954, p. 335.

    10 KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. 2. ed. Cambridge : Harvard University Press, 1949.

    11 VILLEY, Michel. Prface. In: PERELMAN, Cham. Le raisonnable et le draisonnable en droit. Au-del du positivisme juridique. Paris: L.G.D.J. , 1984, vol. XXIX, p. 8.

  • 30

    Outra objeo encontrada nos meios jurdicos fi losofi a do direito a de que ela , simplesmente, intil, inefi caz e sem relevncia para a prtica quotidiana do jurista. Esse argumento, entretanto, no se expressa por uma recusa da fi losofi a do direito, pois isto signifi caria a admisso de tal fi losofi a. O argumento central dessa argumentao consiste em demonstrar que a fi losofi a do direito no traz nenhuma contribuio, que no seja assegurada pela cincia do direito. Aquilo que no explicado pelas cincias do direito so temas e questes puramente especulativas ou especulaes metafsicas. Ainda que no se seja contra esse tipo de especulao, evidente que o argumento sustenta que as cincias do direito devem ocupar com legitimidade o lugar deixado vazio pela retirada (forada) da fi losofi a do direito. A fi losofi a do direito torna-se, assim, um devaneio, um passa-tempo ou uma atividade quase espiritual, que os juristas podem mesmo cultivar nas suas leituras e conversas com seus colegas. uma atividade de lazer, o que signifi ca que a fi losofi a do direito deve ser deixada na esfera da imaginao. Isto signifi ca que ningum, nesta posio doutrinria contra a fi losofi a do direito, mas simplesmente sustenta que ela um conhecimento intil para o desenvolvimento da cincia do direito.

    Considero que essa constatao de fatos, que se expressam nas formas de resistncia/desconfi ana que encontramos nos meios jurdicos contra a fi losofi a do direito, refl etem a herana tumultuosa do perodo no qual a fi losofi a do direito julgava-se uma espcie de cincia-me e negligenciou o dilogo com a experincia prtica dos juristas e com o desenvolvimento dos diferentes discursos cientfi cos do direito, como nos referimos. Isto no mais possvel na atualidade, pois se corre o risco de reduzir a fi losofi a do direito ao papel de comentarista das obras clssicas ou ainda torn-la um exerccio semntico e sistmico, que gira em torno de si mesmo. O primeiro desafi o do ensino da fi losofi a do direito seria, portanto, o de superar a desconfi ana profi ssional dos juristas contra o discurso vazio e arrogante e provar que pode contribuir de forma til e original para o direito.

    Tentemos ento responder a nossa pergunta inicial, mostrando como historicamente e a prpria natureza da fi losofi a do direito, demonstram como a sua temtica pode contribuir para o estabelecimento do estado democrtico de direito. Para tanto vamos procurar desenvolver um argumento que situa a fi losofi a do direito como Acompanhante do projeto jurdico moderno, no que se

  • 31

    refere aos argumentos e s razes.

    O fato de conceber a fi losofi a do direito como acompanhante do projeto jurdico moderno signifi ca a renncia a toda inteno ordenadora, tanto do ponto de vista fi losfi co, quanto do ponto de vista jurdico. De fato, se pode afi rmar que a fi losofi a do direito, muitas vezes adotada pelos fi lsofos de profi sso ou vocao pode ser caracterizada pela elaborao de uma Razo Ordenadora e as conseqentes formas de Direito Ideal; por outro lado, a fi losofi a do direito dos juristas pode ser caracterizada como fundada na ideia de uma Experincia Ordenadora, implicando nas formas correspondentes de Direito Verdadeiro. Essa ltima corrente no se denomina fi losofi a do direito, mas fi losofi a jurdica. Ora, ainda que possamos considerar o confronto entre essas duas correntes como relevantes, isto no impede que toda a fi losofi a do direito que na atualidade pretenda exercer a funo de Ordenadora ir privar-se de um produtivo dilogo com o direito positivo (vlido) , assim como com a dimenso democrtica do direito que deve, a meu ver, caracterizar o projeto jurdico moderno, como pretende a nossa Constituio de 1988.

    Deve-se aceitar o fato de que a fi losofi a do direito no pode ter a pretenso de explicar o direito, pois este j se encontra sufi cientemente explicado por suas prprias foras; e, tambm, deve renunciar pretenso de possuir uma sabedoria ou conhecimento que poder contribuir substancialmente para qualquer aspecto do projeto jurdico. Na medida em que a fi losofi a do direito renuncia ao seu papel de Ordenadora, parece-nos que lhe resta o papel, no menos importante e relevante, de acompanhante do projeto jurdico. A fi losofi a do direito nesse papel ir estudar os valores fundamentais da ordem jurdica e como se expressam atravs dos argumentos e razes do projeto jurdico. Ela no possui, dessa forma, qualquer resposta ou receita para os problemas jurdicos, mas participa sem absorver, e sem privilgios, da refl exo sobre a complexidade jurdica contempornea. Assim sendo, a fi losofi a do direito serve como instrumental crtico, para desconstruir os modelos jurdicos, atravs de uma atividade intelectual argumentativa.

    Em resumo, a fi losofi a do direito tem um papel a exercer na contemporaneidade, que deve refl etir-se no ensino jurdico, papel esse que

  • 32

    consiste em acompanhar o desenvolvimento dos argumentos e das razes do projeto jurdico. Ela faz com que tenhamos uma abordagem crtica do Direito e da Lei, submetendo os valores subjacentes e os critrios de aplicao a uma constante avaliao crtica.

    Por outro lado, a fi losofi a do direito deve servir para identifi car os diferentes parmetros culturais ou fi losfi cos que justifi cam o Direito e a Lei. atravs da fi losofi a do direito que iremos analisar as diferentes concepes sobre as relaes entre o direito e a moral, entre a sociedade e a indivduo, a responsabilidade dos indivduos, como agentes morais e jurdicos, as diferentes concepes de justia e outros topos do mesmo gnero. A fi losofi a do direito no analisa as qualidades formais do direito, domnio prprio das cincias jurdicas, mas simplesmente acompanha o sentido e o horizonte do projeto jurdico moderno.

    A questo central da fi losofi a do direito contempornea reside na necessidade de um dilogo continuo com as cincias e, especialmente, com a cincia do direito, para que possa ter acesso a informaes empricas, que sirvam de alimento refl exo crtica sobre o projeto jurdico moderno. O kantismo jurdico, representado de modo privilegiado por Hans Kelsen, prejudicou a refl exo jurdica crtica ao procurar, certamente contra a inteno do prprio Kant, aprisionar o projeto jurdico moderno num espao de pureza e recusando-se a dialogar com as convices polticas, sociais, morais e religiosas dos indivduos.

    A fi losofi a do direito nesse papel crtico deve servir para desconstruir o paradigma, tanto ontolgico, como epistemolgico e axiolgico, do positivismo jurdico, marca da cultura jurdica brasileira durante o ltimo sculo. Por essa razo, a fi losofi a do direito no serve ao direito positivo, mas ao projeto jurdico, pois o reducionismo, que caracteriza o positivismo jurdico, faz com que nos esqueamos de que as questes do direito referem-se, na prtica, a questes dos direitos que nos obrigam mutuamente e intersubjetivamente. O direito encontra na lei a sua normatividade, sendo normativo no sentido de que a questo dos direitos se inscreve sob a forma de um dever ser, que nos defi ne como autores e destinatrios de direitos que reconhecemos intersubjetivamente.

  • 33

    Os problemas com que se defrontam nossos tribunais, em alguns pases de modo mais evidente do que em outros, fazem com que os juzes, principalmente aqueles dos tribunais superiores, como a Suprema Corte dos EUA, o Tribunal Constitucional de Alemanha e o Supremo Tribunal, tenham que decidir, no somente, e principalmente, em funo das determinaes da lei positiva, mas em relao a interlocutores que so responsveis, portanto, seres morais, como autores e destinatrios de direitos. A fi losofi a do direito serve para que se possa fundamentar e analisar os argumentos, que se cristalizam na deciso judicial. Quando os juzes tomam posio em relao ao aborto, eutansia, aos direitos das minorias e outros temas, eles no oferecem uma soluo defi nitiva para essas questes, mas sim como partcipes e interlocutores privilegiados no debate moral e jurdico que se processa no espao pblico.

    A fi losofi a do direito no tem, portanto, a funo de arbitrar o debate pblico, mas unicamente de acompanhar os argumentos e as razes do projeto jurdico. A fi losofi a do direito no expressa uma fi losofi a da conscincia (Kant, Fichte e Hegel), pois o julgamento do projeto jurdico por uma pessoa individual, importa pouco. A fi losofi a do direito , assim, uma forma de refl exo crtica, que participa do discurso em torno do projeto jurdico da sociedade democrtica contempornea. Por essa razo, as razes e argumentos da fi losofi a do direito devem ser postos prova no espao pblico, pois neste espao que o peso, o valor ou a importncia de cada argumento ou razo ser debatido por todos e com o conhecimento de todos. Procurando elaborar a produo dos argumentos e das razes, como o fator principal do projeto jurdico, a fi losofi a do direito acompanha praticamente esse projeto, demonstrando que a racionalidade prtica qual se refere o direito se encarna nos discursos pblicos. Todo o processo de debate no espao pblico de uma sociedade democrtica ocorre atravs do discurso, como prtica interindividual entre sujeitos de direito, e caracteriza-se por produzir argumentos e razes, submetidas ao auditrio pblico com vistas a serem avaliadas e validadas.

    A vocao da fi losofi a do direito - a de que se destina ao espao pblico - tem a ver com uma concepo especfi ca do direito, entendido como essencial para assegurar e desenvolver a formao comum da vontade e da opinio relativas ao projeto jurdico moderno. E a primeira caracterstica dessa concepo especfi ca

  • 34

    do Direito a de que se acha tributria do fato de que, na medida em que o direito refere-se primeira pessoa do plural ns-, a fi losofi a do direito deve referir-se aos debates e aos discursos crticos que ocorrem no espao pblico e formao racional da vontade e da razo.

    Esse modo de considerar a fi losofi a do direito, como vinculada ao desenvolvimento de bons argumentos e da razo esclarecida, revela-se como uma posio fi losfi ca. Essa concepo fi losfi ca, que se encontra subjacente ao entendimento que se possa ter da natureza e da funo da fi losofi a do direito, conseqncia, por sua vez, de uma concepo democrtica do direito.

    Para que se entenda tal concepo democrtica do Direito, necessrio que se assinale que essa concepo diferencia-se da concepo do direito liberal, que se constitui no ncleo do ensino jurdico na Amrica Latina. A concepo do direito liberal fundamenta-se numa fi losofi a do direito, que sustenta a existncia pr-poltica de um feixe de princpios e regras a priori e na crena de que o direito tem como pressupostos certos direitos morais, entendidos como a expresso de direitos individuais inerentes ao cidado e que asseguram, ao mesmo tempo, liberdades negativas e controlam a atividade coletiva. A democracia na sociedade liberal seria um instrumento para garantia desses direitos individuais, formalizados no sistema do direito positivo.

    O objetivo e a concepo democrtica do direito tem como pressuposto a considerao de que a democracia tem um valor moral em si mesmo. De fato, se verdade, como Kant afi rmava que a fi losofi a do direito representa a libertao do homem do reino da heteronomia (os argumentos de autoridade) para o reino da autonomia (os argumentos da conscincia individual formulados pela razo do indivduo), faz com esta autonomia constitua-se no ncleo de uma concepo democrtica do direito. A democratizao do projeto jurdico caracteriza-se, assim, por projetar a autonomia no espao pblico, retirando-a do mbito restrito das individualidades e considerando todos os sujeitos de direito, como autores e destinatrios de direitos, normas e instituies. Esse o carter diferenciador de uma ordem jurdica democrtica face ordem jurdica liberal.

  • 35

    O papel da fi losofi a da Direito contempornea serve para combinar no interior do projeto jurdico o lado prtico do direito, com o lado prospectivo da fi losofi a, e assim reconciliar de alguma forma o projeto jurdico com uma ideia da fi losofi a como prtica democrtica.

  • 36

  • 37

    3. AS DEMANDAS POR DIREITOS E A CONCRETIZAO DA MORALIDADE JURDICA

    No caberia no mbito do Direito e da cincia jurdica qualquer referncia a ideais e valores, excluindo-se, assim, do mbito da cincia jurdica o exame crtico dos objetivos ltimos da ordem jurdica, a saber, a segurana jurdica, o bem comum e a justia. Essa posio radicalmente contrria considerao, na aplicao das normas estabelecidas pela constituio, de critrios valorativos que legitimem e justifi quem o sistema jurdico conhecida pela denominao geral de positivismo jurdico. A cincia do direito para o positivismo jurdico deve ater-se, dessa forma, anlise estrita do texto da lei e de sua interpretao pelos tribunais, no cabendo consideraes de natureza moral, social ou poltica, que se encontram presentes na vida social. A refl exo jurdica, a cincia jurdica, teria o objeto do seu estudo limitado ao sistema de normas, que se organiza no direito positivo de cada Estado. Quando muito o jurista poderia fazer uma refl exo terica sobre o direito positivo e suas categorias, mas devendo sempre estar atento para os riscos de permitir que consideraes de ordem moral e poltica interfi ram nas suas anlises.

    Esse entendimento sobre a natureza do Direito, que marcou profundamente a cultura jurdica brasileira, encontra-se, a meu ver, ultrapassado, tendo em vista, precisamente, ideais e valores como a liberdade, a igualdade, a justia e a solidariedade consagrados no texto constitucional de 1988 e que constituem a espinha dorsal do estado democrtico de direito, vigente no Brasil. A aplicao prtica das normas que constituem esse sistema jurdico pressupe a anlise crtica, portanto fi losfi ca, dos valores fundantes da ordem constitucional vigente. Essa a razo em virtude da qual a Ordem dos Advogados do Brasil, depois da promulgao da Constituio de 1988, reivindicou que se inclusse no currculo mnimo dos cursos de direito a disciplina Filosofi a do Direito.

    Outro aspecto que vem marcar o Direito em nosso tempo aquele relativo a um fenmeno, que interessa diretamente a ns, como juristas e cidados: trata-se da demanda crescente por direitos, advinda de indivduos e de grupos

  • 38

    sociais. Em todas as sociedades democrticas da atualidade constata-se um forte movimento de conscientizao do valor da ordem jurdica e da necessidade da obedincia lei como forma para a soluo dos confl itos sociais. Esse recurso ao Direito repercute, na poca contempornea, os versos de squilo, o grande poeta da Grcia clssica: Quem, homem ou cidade, se no encontra no mundo nada que faa tremer o seu corao, ir respeitar por muito tempo a justia?. Nesse verso vamos encontrar, de forma sinttica, a dupla face do Direito contemporneo. De um lado, a necessidade de uma fora coletiva, que contenha os impulsos malfi cos encontrados no corao de todos ns; de outro lado, squilo estabelece a ligao necessria entre esse poder limitador de nossas vontades e a justia, valor acima da vontade estatal e que servir de fonte legitimadora do exerccio desse poder.

    O exemplo da histria recente do Brasil ilustrativo de como o estabelecimento, atravs da Constituio de 1988, de um estado democrtico de direito, provocou uma crescente participao da sociedade na afi rmao de seus direitos. A vida social e poltica brasileira torna-se, progressivamente, mais jurdica, isto , jurisdicissa-se, o que pode ser comprovado pelo nmero de demandas judiciais, ajuizadas em nossos tribunais, indicando uma crescente conscincia jurdica por parte de indivduos e grupos sociais. Essas mudanas na sociedade brasileira surgiram no bojo do esvaziamento do modelo autoritrio do regime militar, que culminou com a convocao da Assemblia Constituinte e a elaborao da Constituio de 1988, chamada, signifi cativamente, de Constituio Cidad, pelo deputado Ulysses Guimares, com vistas realizao do estado democrtico de direito. Tanto a Assemblia Constituinte, como a constituio por ela promulgada, representaram a vitria e a cristalizao jurdica do valor e da dignidade do Direito, que foram negados durante os vinte e um anos de regime militar.

    Quando falamos em democracia como um regime qualitativamente superior s diferentes formas de regimes autoritrios, estamos com isto afi rmando que o Direito positivo encontrado no estado democrtico de direito diferencia-se do direito poisitivo dos regimes autoritrios. Na verdade, o direito na democracia e no autoritarismo somente na forma sistema de normas estabelecidos e garantidos pelo Estado so semelhantes. Encontramo-nos diante de dois tipos de Direito: o direito no regime autoritrio um conjunto de normas e decises

  • 39

    que se justifi ca atravs do exerccio da fora e, por essa razo, somente na forma pode ser chamado de direito. O direito no estado democrtico de direito, por sua vez, tem algumas caractersticas que se originam na sua prpria fonte, que a vontade livre dos cidados como se encontra expressa atravs da representao poltica. Por existir esse tipo de direito nas democracias, que podemos dizer que esta ltima um regime poltico que tem como ncleo uma referncia jurdica.

    O estado democrtico de direito originou-se da superao de duas formas de estado, o estado liberal, vigente at o golpe de 1964 e o regime autoritrio. Para que pudesse ocorrer essa transformao do direito vigente no regime autoritrio para o direito da sociedade democrtica do sculo XXI, foi necessrio tambm a superao da tradio do estado liberal-individualista, sistema poltico e jurdico vigente no Brasil desde o sculo XIX. A Assemblia Constituinte defrontou-se com um duplo desafi o, de um lado, fazer uma nova constituio que garantisse dreitos e liberdades, negadas durante os vinte e um anos do regime militar. Mas, por outro lado, para que pudesse responder s reinvidicaes de mais e mais amplos direitos, foi necessrio ultrapassar, sem sacrifi car direitos e liberdades individuais, o estado liberal vigente. A Constituio de 1988 e as leis posteriormente estabelecidas como o caso do Cdigo de Defesa do Consumidor e o Novo Cdigo Civil vieram expressar, precisamente, essa ruptura com um Direito voltado e comprometido principalmente com o indivduo, considerado como predominante e cujos interesses deveriam prevalecer sobre os interesses da coletividade.

    O estado democrtico de direito surgiu, assim, comprometido com o coletivo, mas preservando as liberdades e direitos individuais no contexto da sociedade como um todo. O direito no sculo XXI aparece, ento, como um sistema de normas, legitimadas por valores morais e polticos, mas que ter por objetivo, ao estabelecer limites ao indivduo, integr-lo sociedade como cidado. Para que se possa ter uma ideia como o Direito no sculo XXI passa a exercer essas funes e como os limites tornam-se necessrios, ainda que com peculiaridades especfi cas somente encontradas na sociedade democrtica, basta atentar para os desafi os enfrentados pela biotica e o biodireito.

  • 40

    Os cientistas, os mdicos e os indivduos em virtude do avano signifi cativo nas cincias biolgicas, aumentaram as possibilidades de intervenes genticas, que alteram o equilbrio da natureza e permitem a aplicao de terapias mdicas poucas vezes imaginadas pela fi co cientfi ca de cinqenta anos atrs. A nova cincia biolgica e as tecnologias mdicas dela resultante permitem intervenes, que hoje caminhamos para uma situao onde quase tudo ser possvel, desde a cura de doenas at agora consideradas incurveis, at o prolongamento da vida humana. Diante desse mundo aberto pela gentica, o Direito chamado a exercer o papel de sistema de normas, que estabelea limites para alm dos quais as experincias cientfi cas e as tecnologias mdicas tornam-se manipulaes que violam a autonomia individual.

    claro que o estabelecimento de limites no pode ser resultado da vontade e da conscincia individual. A dinmica da sociedade democrtica faz com que o indivduo seja enriquecido pelos valores da coletividade. No caso, por exemplo, das experincias e aplicaes da cincia biolgica contempornea, a deciso retirada do indivduo (cientista, mdico) e transferida para rgos da coletividade (comits de tica de hospitais e de universidades) e rgos legislativos. Logo, o direito estabelecer um padro de referncia dentro do qual os rgos da coletividade iro aplicar ao caso concreto normas jurdicas, que sero aplicadas sob a tica da moralidade. O direito, portanto, na sociedade democrtica contempornea tem essa primeira caracterstica: um instrumento de limitao ao individualismo, de uma limitao imposta sob a forma da lei, para o exerccio de liberdades individuais compatveis com liberdades idnticas dos demais indivduos.

    Em que sentido o Direito na sociedade democrtica supe uma refl exo que trate de valores que se encontram para alm do texto escrito da lei? Essa refl exo ir servir como referncia metapositiva para o legislador e o aplicador da lei? E como essa referencia pode assumir a forma de uma categoria jurdica, isto , um valor que possa receber a forma de um direito?

    Para que possamos defi nir essa categoria moral e jurdica, que caracteriza o estado democrtico de direito, necessrio considerar qual a funo do Direito que se encontra acima de simples regulador dos confl itos sociais. Essa funo

  • 41

    a funo crtica. O Direito, hoje, como ontem, situa-se tendo em vista um fato e, a maioria das vezes, contra o prprio fato. Assim, contra a injustia contida no fato social do autoritarismo, luta-se pela necessidade de uma ordem jurdica; contra os abusos do uso da liberdade, o Direito chamado a determinar os limites a serem respeitados. O que necessrio, ento, para que o Direito possa, efetivamente, atender sua vocao crtica?

    Essa funo crtica foi negada nos ltimos cem anos pelo positivismo jurdico, que procurou reduzir a anlise do Direito simples interpretao das normas do sistema jurdico, considerado como um sistema fechado, organizado em torno de uma hierarquia legislativa e que tinha na funo do intrprete a exclusiva adequao do fato previso legal. A Cincia do Direito fi cou, assim, reduzida anlise da estrutura interna do sistema do direito positivo. Por essa razo, sob o ngulo do positivismo jurdico no podemos, por exemplo, diferenciar qualitativamente o despotismo da democracia, porque para essa corrente do pensamento, o Direito no expressaria ideias e valores, que transcendam ao prprio direito, mas exclusivamente a vontade estatal.

    O desafi o diante do qual se encontra o Direito no limiar do sculo XXI reside em adequ-lo a uma sociedade plural e democrtica. Essa constatao signifi ca que o sistema jurdico deve expressar um patamar normativo, que permita a existncia de uma sociedade diversifi cada, onde valores e interesses por serem diferentes e contraditrios no inviabilizam a existncia do grupo social. Trata-se, portanto, da procura no jurdico de valores comuns a todos os grupos de uma mesma sociedade e que sirvam como fundamento dos mecanismos da crescente demanda pelo direito, caracterstica da sociedade contempornea.

    Para que possamos encontrar esse fundamento comum das relaes sociais no sistema jurdico necessrio que possamos nos referir a uma dimenso universal, que se encontra para alm do direito positivo e do jogo dos interesses particulares. A crtica das leis injustas somente pode ocorrer em nome de outros princpios de direito, que no aqueles encontrados no direito positivo, mas que expressem uma outra ideia de direito. Essa ideia de um direito universal, que sirva de fundamento para toda a ordem jurdica positiva, foi expressa de forma sistematizada pela tradio jusnaturalista a ideia de que existem direitos

  • 42

    independentes da vontade do Estado e que teve nas declaraes de direitos do homem do fi nal do sculo XVIII e na declarao das Naes Unidas (Declarao da Independncia dos Estados Unidos de 1776, Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado da Revoluo Francesa de 1789 e Declarao Universal dos Direitos Humanos das Naes Unidas, 1948) suas formulaes. Observe-se que esses documentos centrais na histria das liberdades e direitos humanos, chamaram-se Declaraes e no leis, institudas pelos estados; isto signifi ca que as declaraes no so estabelecidas ou institudas como as leis, mas sim que declaram e proclamam direitos (chamados naturais) da pessoa humana enquanto tal, que sero reconhecidos ou no pelo estado, mas nunca por ele criados.

    Essa ideia de que existem direitos que se encontram fora do mbito da positivao do Estado signifi ca que o direito positivo somente poder ser avaliado e criticado em funo desse direitos pr-estatais. Por essa razo, lgico que os movimentos antitotalitrios e pela democracia, no Brasil e nos demais pases, que lutaram nos ltimos quarenta anos, por um regime democrtico e pelo estado de direito, alimentaram-se dessa fonte poltica e jurdica universal. Podemos, ento, afi rmar que a valorizao do direito nos dias atuais encontra-se, em primeiro lugar, nesse renascimento da categoria dos direitos humanos (naturais), como referencial valorativo para a anlise crtica do direito positivo.

    Essa reabilitao do humanismo jurdico, vinculando o direito positivo necessidade de assegurar valores e direitos relativos pessoa humana, necessita ser devidamente dimensionado. Na sociedade contempornea, ao mesmo tempo em que indivduos e grupos sociais exigem mais direitos e liberdades, essa demanda para que possa ser garantida pelo poder pblico, necessita do estabelecimento de limites, que permita a convivncia entre grupos e interesses divergentes e confl itantes. Toda a problemtica envolvendo a questo dos limites das liberdades e direitos, que se encontra no centro do debate sobre o direito contemporneo, requer o reconhecimento de princpios que iro estabelecer as condies de coexistncia das liberdades individuais, que seja compatvel com a dignidade da pessoa humana. Rompe-se,assim, o sistema que erigia de forma hegemnica a vontade individual como centro da vida social e poltica. Assim, por exemplo, na biotica a referncia ao direito de cada um ao respeito do seu corpo

  • 43

    referido modernamente como sendo um direito subjetivo primordial, isto , um direito sem o qual o ser humano no poderia afi rmar-se como sujeito de direitos, capaz de ser a fonte de seus atos, mas tornar-se-ia um objeto, uma coisa. Em torno, portanto, da ideia dos direitos naturais da pessoa humana que se pode construir uma ordem jurdica positiva, que garanta direitos e liberdades.

    Para tanto, precisamos estar atentos para a necessria explicitao do que entendemos por direitos naturais humanos na atualidade. Essa ideia tem trs pressupostos:

    a) pressupe uma valorizao da pessoa humana em suas mltiplas dimenses, como sendo o valor supremo da modernidade, expressa nas diferentes formas de humanismo. A ideia central do humanismo a de que a pessoa humana tem uma fi nalidade em si mesma e no pode nunca ser usada como um meio;

    b) o humanismo jurdico, por sua vez, o refl exo no direito dessa ideia da supremacia do ser humano, e expressa-se na categoria dos direitos humanos, que representa o ser humano como ser consciente e responsvel, como sujeito dos seus pensamentos e atos. Assim, por exemplo, as declaraes dos direitos humanos proclamam a liberdade de expressar a opinio, como um direito humano na medida em que a negao desse direito impediria a pessoa humana de ser autora dos seus pensamentos; da mesma forma, o reconhecimento, nessas declaraes, da liberdade como consistindo em fazer-se tudo aquilo que no prejudique o outro estabelece limites que equilibram as relaes entre seres livres;

    c) para que os direitos humanos sejam valores comuns aos diversos grupos de uma mesma sociedade ou de diversas sociedades e que possam fundamentar, para alm das rupturas e dos jogos de interesses particulares, uma base jurdica comum, necessrio que aquilo que se encontra defi nido nas declaraes como direitos humanos possam transcender o contexto histrico de sua emergncia. claro que as declaraes apareceram em momentos

  • 44

    histricos determinados, para atender a interesses socialmente situados. Essa constatao tem servido, para alguns fi lsofos e juristas, como o grande argumento contrrio universalidade dos direitos humanos. No entanto, a histria dos ltimos dois sculos comprova que esses valores, garantidos pelos direitos humanos, foram utilizados como argumentos contrrios ao estado, como fonte legitimadora da transformao de sistemas jurdicos que consagravam, atravs de suas leis, situaes polticas e socialmente injustas. A abrangncia dos direitos humanos, portanto, no pode fi car reduzida ao seu momento histrico, expresso no direito positivo de cada nao, mas tem uma dimenso universal. O direito positivo naturalmente mutvel, histrico, dependente das circunstncias polticas, econmicas, sociais e culturais e no poder ser julgado e avaliado pelos seus prprios critrios, pois os mecanismos de correo de eventuais injustias da lei positiva encontram-se previstos no prprio ordenamento legal, que est sendo avaliado e julgado. Para que possamos afi rmar que uma lei ou deciso injusta necessitamos recorrer a categorias, que sem serem a-histricas (pois as categorias de valor expressas pelos direito humanos surgiram no curso da histria, especifi camente, no curso da histria do estado moderno europeu), possuem um sentido metahistrico, para alm da experincias no qual nasceram. Dessa forma, o questionamento de leis e polticas pblicas injustas, quando no se baseiam em valores universais, estaria condenado a um relativismo pouco compatvel com as exigncias de uma crtica radical e consistente da injustia.

    Os direitos humanos sero, ento, a formulao jurdica da dignidade humana como fundamento, uma norma fundamental moral do sistema jurdico. A ideia de dignidade humana encontra-se subjacente teoria dos direitos humanos e expressa o reconhecimento de que a pessoa humana tem direitos pelo fato mesmo de ser pessoa. A dignidade da pessoa humana signifi ca que o indivduo tem uma esfera existencial e poltica, que lhe prpria, constituida de direitos e obrigaes, que o tornam um sujeito de direitos. A noo de direito e a noo de obrigao moral faz com que sejam correlacionadas, pois ambas

  • 45

    deitam as suas razes sobre a liberdade prpria dos agentes espirituais: como escreveu Jacques Maritain, se o homem encontra-se moralmente obrigado s coisas necessrias para que possa cumprir o seu destino, ele, homem, tem direito s coisas necessrias para que possa atingir as suas fi nalidades ltimas.

    Os direitos humanos, entretanto, tm sido questionados e negados na atualidade, atravs de dois argumentos bastante encontrados nos meios jurdicos brasileiros. O primeiro desses argumentos consiste em pensar o direito sem os direitos humanos, retirando-se o direito da tradio humanista em que se encontrava inserido. O segundo argumento, procura separar os direitos humanos de seus pressupostos fi losfi cos considerados na atualidade problemticos, notadamente a referncia ideia de subjetividade os direitos humanos como direitos subjetivos primordiais e do universalismo, ou seja, pensar o direito sem o sujeito e sem o universal. Esse segundo argumento contrrio aos direitos humanos permite que sejam reduzidos a simples manifestaes histricas e culturais, em outras palavras, direitos humanos seriam aqueles direitos reconhecidos como tais pelas diferentes legislaes positivas. Seria, portanto,uma categoria de direito relativa, que no expressaria nenhuma valor universal, defi nidor da pessoa humana, mas somente a vontade do legislador, que hoje seria um, amanh outro, com valores e critrios variantes.

    Dentro desse contexto importante que se situe como os direitos humanos podem ser conceituados e sistematizados em funo de sua dupla dimenso, de expresso jurdica da subjetividade individual e do seu carter universal. Para que possamos demonstrar como os direitos humanos representam um papel essencial nos regimes democrticos, deve-se aceitar o fato de que os direitos humanos afi rmam-se historicamente no ncleo do discurso e da prtica democrticas. necessrio que se verifi que at que ponto a sociedade contempornea pode passar sem os valores da autonomia e da responsabilidade, fundamentos do humanismo jurdico; ao mesmo tempo, devemos enfrentar o dilema suscitado pela existncia da heterogeneidade das culturas, atravs do qual termina-se por sustentar a impossibilidade de conceber-se um estatuto jurdico ou moral que tenha uma dimenso universal.

  • 46

    Permitam-me, ento, que situemos esse desafi o para a fi losofi a do direito contemporneo. Trata-se de buscar na sociedade contempornea, um novo entendimento da situao do indivduo e da necessidade da ideia de um valor e de um direito universal. Em primeiro lugar, no se pode negar as caractersticas do indivduo na sociedade contempornea, que exigem que sejam repensadas o que se entende por autonomia e responsabilidade no contexto da realidade social, poltica, econmica e cultural da atualidade. Essa primeira tarefa do pensamento jurdico ir afetar diretamente a funo essencial de todo e qualquer ordenamento jurdico, qual seja, estabelecer os limites da autonomia individual e determinar responsabilidades. Em segundo lugar, a coexistncia no planeta e dentro dos estados nacionais de uma multiplicidade tnica e cultural, ocasionando um grande intercruzamento de valores morais e tradies, faz com que se torne necessrio a busca de uma nova defi nio de universalidade. A universalidade dos direitos humanos no seria decorrente, ento, de caractersticas pretensamente universais dos seres humanos, caractersticas essas proclamadas em funo da simples elaborao racional e intelectual, mas sim de valores comuns que permeiam objetivamente as diferentes culturas.

    Podemos resumir a nossa exposio ao seguinte: vivemos uma poca em que se constata a afi rmao dos valores democrticos no seio de uma sociedade pluralista, que tem um sistema jurdico herdado de uma sociedade liberal-individualista. A crise da sociedade liberal provocou no seu vcuo o surgimento da mar montante do movimento de reivindicao de direitos crescentes, por parte de indivduos e grupos sociais. Esses direitos, principalmente os direitos sociais, constituiram-se, ao lado dos direitos individuais, de eixo central do estado democrtico de direito. Essa forma de organizao poltica fundamenta-se e expressa nas suas constituies, direitos que antecedem ao prprio Estado. Assim, no Prembulo da Constituio de 1988, proclamam-se os valores supremos, que informam a aplicao de suas normas: uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, defi nida pela garantia dos direitos sociais e individuais, da liberdade, da segurana, do bem-estar, do desenvolvimento, da igualdade e da justia. No corpo da Constituio, vamos encontrar os direitos fundamentais, que se diferenciam dos direitos humanos em virtude de serem direitos institudos pelo Estado, mas considerados como patamar jurdico do sistema jurdico nacional. Muitos desses direitos, como os direitos vida, expresso e etc. so direitos

  • 47

    humanos aceitos pelo constituinte nacional. Existem, no entanto, direitos humanos, como os relativos ao genoma humano (proclamados na Declarao Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos das Naes Unidas), que no se encontram consagrados explicitamente no texto constitucional brasileiro e, nem por isto, deixam de serem direitos humanos.

    Podemos, ento, situar as perspectivas do direito no sculo XXI em funo do papel relevante e central que os direitos humanos iro exercer no quadro institucional do estado democrtico de direito. Mas, antes, devemos chamar a ateno para o fato de que os direitos humanos no estado democrtico de direito podem ser tratados sob dois aspectos: no primeiro, devemos analisar a questo da efi ccia e da vigncia dos direitos humanos; no segundo, procuraremos mostrar como os problemas encontrados com relao efi ccia e vigncia dos direitos humanos podem ser superados, se forem examinados no mbito de moralidade jurdica.

    A difi culdade na implementao dos direito humanos isto , a questo da sua efi ccia e vigncia - tem sido utilizada, por autores ilustres, entre eles Norberto Bobbio, como a principal evidncia, de que a questo dos direitos humanos no se encontra na sua fundamentao e conceituao, mas sim no terreno da sua aplicao. Esses autores sustentam que a prtica dos direitos humanos choca-se, frontalmente, com a sua teoria e, por essa razo, no adianta discutirmos a natureza e os fundamentos dos direitos humanos, quando no quotidiano os governos desrespeitam aquilo que se encontra estabelecido nas declaraes por eles assinadas. A meu ver, entretanto, essa no a questo, ou melhor, apodemos sustentar a tese de que a efi ccia dos direitos humanos encontra-se subordinada e ser conseqncia, precisamente, do debate permanente sobre os fundamentos, as caractersticas e a natureza desses direitos. Esse debate que ir despertar e alimentar nos estados democrticos de direito a conscincia cvica e jurdica, esta sim a mais efi ciente guardi da efi ccia dos direitos humanos.

    O segundo aspecto da situao dos direitos humanos na atualidade aquele que o situa como eixo central, junto com a democracia, do que podemos chamar de moralidade jurdica contempornea. A pergunta que pede uma resposta o qu se entende por moralidade jurdica, essa nova categoria do

  • 48

    pensamento social e jurdico.

    Quando falamos em moral podemos estar falando em sentido positivo para signifi car os usos e costumes de um grupo social ou, em sentido crtico, o conjunto de obrigaes sociais, que no so relativas, em outras palavras, obrigaes que todos os grupos sociais, independentemente de suas culturas, consideram como essenciais para a sobrevivncia da sociedade. A moralidade jurdica ser a parte da moral crtica, cujas normas as pessoas aceitam reciprocamente. e que servem como fonte legitimadora dos cdigos legais.

    Como a ideia de moralidade jurdica recente na cincia do direito, necessitamos de conceitu-la. O substantivo moral na expresso moralidade jurdica aponta para o fato de que no se trata diretamente do direito positivo. E o adjetivo jurdica mostra que estamos nos referindo a uma moral cujo reconhecimento no ser somente esperado ou desejado, mas, sobretudo, ser exigido. Existe um direito subjetivo ao seu reconhecimento.

    Essa moralidade somente poder ser exigida se for atravs do Direito. Por essa razo, podemos afi rmar que o Direito sendo uma forma reguladora e necessria para a convivncia social, tem, por essa razo, um carter moral, que o legitima como instncia constituinte e legitimadora. Logo, o fato da existncia de normas jurdicas que se destinam a organizar a vida de acordo com estruturas jurdicas, i.e, no lugar de opinies e poderes privados, expressam o carter moral das instituies jurdicas.

    O julgamento crtico do direito vigente realiza-se atravs desse conjunto de valores morais jurdicos (o princpio da boa-f, por exemplo, ou o respeito integridade do corpo humano). O importante a assinalar que essa avaliao crtica do direito vigente realizada no sob o ngulo da legalidade (conformidade com o direito positivo), mas sob o ngulo da validez moral: da legitimidade. Desde os primrdios da fi losofi a, a ideia de que a moral tinha duas faces, j tinha sido explicitada pelos pensadores clssicos. Assim, Aristteles distinguia dois tipos de moral, a moral individual meson pros hmas - constituda por um ncleo de deveres para ns mesmos; e a moral jurdica ou poltica, cuja virtude a justia meson pragmatos constituda por um ncleo de deveres independente do sujeito

  • 49

    individual e que o obriga. Essa moralidade jurdica ter, assim, dois sentidos, pois expressa, ao mesmo tempo, valores morais cujo reconhecimento so exigidos pela sociedade e, tambm, um direito subjetivo ao reconhecimento desses valores morais, um direito a exigi-los.

    A moralidade jurdica submete, assim, todo o ordenamento jurdico positivo a uma exigncia de moralidade. Essa exigncia apresenta-se em trs nveis:

    a) o primeiro nvel o da moral constituinte e legitimadora do direito, que exige a conformao da vida social estruturas jurdicas, de modo que no lugar de opinies e poderes individuais, apaream normas comuns possibilitando o imprio da lei;

    b) no segundo nvel, a moral jurdica estabelece que seja estabelecido o processo legal; todo caso previsto na norma e, por igual, toda ao pessoal prevista na norma, devero ser tratados de acordo com a norma da igualdade. Essa moral realizadora do direito se expressa no princpio da isonomia, da igualdade de todos perante a lei e, em suas verses negativas, na proibio de arbitrariedade e de parcialidade. Esse segundo nvel da moralidade jurdica se expressa em algumas regras de procedimento judicial, como, por exemplo, ninguem pode ser juiz de s mesmo; a parte contrria tem direito de ser ouvida; aquele que divide no deve ser aquele que escolhe; em direito penal, a presuno de inocncia do acusado e nenhuma pena deve ser aplicada quando no tiver sido prevista em lei anterior ao ato.

    Esses dois primeiros nveis da moralidade jurdica so aceitos praticamente por todas as culturas, constituindo parte integrante da herana comum da ideia de justia da humanidade. No terceiro nvel, a moral jurdica constituda pela democracia e pelos direitos humanos, critrio normativo que no essencial encontra-se aceito pela maioria das culturas.

  • 50

    Enquanto que os dois primeiros nveis, o que estabelece a primeira manifestao moral na necessria forma jurdica da convivncia e o princpio da igualdade diante da lei, como critrio moral e lgico para a aplicao da lei, expressam somente um mnimo de moral jurdica, o terceiro nvel consiste na ampliao moral da ao do poder pblico. A moralidade jurdica, entretanto, no pode fi car reduzida a simples formulaes de ideais de justia abstratos, mas deve ser constituda por valores substantivos, que possam servir como referncias objetivas para a materializao dos valores morais implcitos no sistema jurdico. Esses valores substantivos do ncleo central da moralidade jurdica contempornea so constitudos pelos Direitos Humanos e pela ideia de Democracia. Em outras palavras, a moralidade jurdica, se expressa atravs dos direitos humanos e da democracia.

    Observe-se, no entanto, que o respeito aos valores dos direitos humanos e da democracia no aparece, necessariamente, ao mesmo tempo. Assim, por exemplo, na Atenas clssica, a escravido era admitida e a mulher tinha um status jurdico e social inferior ao do homem, o que representava uma violao dos direitos humanos, mas, entretanto, a democracia, como forma de Estado e de governo era praticada de f