Filosofia e método

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As Críticas de Aristóteles a Platão A teoria do conhecimento se caracteriza por uma preocupação coma busca de princípios gerais que permitam formular crenças verdadeirassobre a realidade. Essa idéia está presente na obra de Platão e é, emlarga medida, o que caracteriza também o pensamento de Aristóteles. É com Aristóteles que a filosofia ganha uma consciência mais definidaacerca do método a ser adotado quando o assunto é o conhecimento. Aristóteles contestou Platão porque via problemas em alguns pontosda explicação platônica do conhecimento. Platão tinha chegadonuma tese importante: para haver conhecimento da realidade, é preciso encontrar um caminho que dê acesso a idéias que sejam imutáveis,que não sofram transformações decorrentes da interpretação ou do capricho.Aristóteles concorda com isso, mas dirige uma crítica a Platão:para garantir a certeza e validade do conhecimento não é necessáriopostular uma teoria que duplique o real, isto é, que crie duas dimensõesna realidade: o sensível e o inteligível, como fez Platão. Para entendermos bem a crítica de Aristóteles é necessário demorar-se um pouco mais na teoria platônica que Aristóteles ataca: a chamada“teoria das Formas.” Com efeito, em obras como República e Fédon, Platão defende que o conhecimento só é alcançado quandoatingimos a “idéia” ou “conceito” do objeto. Platão utilizava, prioritariamente,o termo “Forma” para referir -se a essa idéia. Por Forma Platãoentende um núcleo de características de um determinado objetoou realidade que mantém seus componentes independentemente dosexemplares destes objetos encontrados no mundo ou na linguagem. Um exemplo que nos ajuda a entender isso é pensar naquilo quevocê compreende quando houve a palavra Justiça. Se relacionarmos oque as pessoas entendem por justiça, teremos uma gama variada de definições, muitas contraditórias entre si. Além disso, a própria aplicaçãodo conceito à realidade, no sentido de esforçar-se por ser justo,não é condição suficiente para que saibamos exatamente o que é justiça.Suponhamos que você diz que agir com justiça é devolver a alguém oque lhe pertence (cf. República 331e- 332c), e dá como exemplo a devolução,ao dono, de uma arma que você encontrou. Alguém pode protestarque teria sido mais racional e justo evitar a devolução, pois a armapoderia ser usada para ferir alguém. É isso que preocupava Platão.Muitas noções que temos sobre justiça e outros conceitos importantesesfacelam- se diante de certas circunstâncias. Platão se perguntava senão haveria um meio de evitar essa ambigüidade em que diferentes situaçõesexigirão de nós diferentes noções disto ou daquilo. Ele estavaconsciente de que se não houvesse um modo de chegar a uma visãounitária da justiça, jamais haveria possibilidade de entendermos a realessência do conceito. Pior que isso, os que cometem crimes ou violênciateriam sempre à mão um argumento para justificar suas ações. Daí porque Platão defendia que, para um conjunto específico decoisas como Justiça, Beleza, Conhecimento, Coragem, Igualdade, etc.,deveria existir uma única Forma que desse sustentação ao pensamentosobre essas coisas. Desse modo, ao aplicar o conceito de Justiça adeterminada realidade, no entendimento de Platão, estaríamos aplicandoo conhecimento do objeto aos casos particulares. Dito de outraforma: não é porque uma cidade foi devastada que a população localdeve se unir e reconstruí-la novamente. Antes mesmo da devastação apopulação deve saber que o que define a justiça é cada um fazer a sua parte(cf. República, livro IV) com vistas ao bem comum. Desse modo,no momento em que a cidade for arruinada não será necessário nenhumesforço de conscientização para que uns ajudem os outros, umavez que aquela população já sabia agir assim bem antes do acontecimentotrágico. Isto posto, voltemos às críticas de Aristóteles. Elas estão, sobretudo,no capítulo 9 da Metafísica. Aristóteles critica vários pontos da teoria.Vamos nos deter no núcleo comum de suas análises. A preocupaçãode Aristóteles é que a teoria das Formas de Platão conduz a um tipobem particular de problema: ela torna o pensamento de um objeto independentedeste objeto, ou seja, faz pairar acima dos objetos conceitosabstratos. Isso não é necessário, pensa Aristóteles. Ele concorda,por exemplo, que a observação e comparação de diferentes tipos decavalo levam a um grupo de aspectos que definem o “conceito de cavalo”.Isso só pode ser feito pelo pensamento. Mas Aristóteles não concordaquando Platão imagina que existe algo abstrato e formal como“a cavalidade”, independentemente da existência de cavalos particulares.Para Aristóteles, chegamos ao conceito de cavalo mediante estudodos exemplares existentes, chegamos ao conceito de humanidade mediante estudo de homens concretos e assim por diante. Aristóteles sepergunta: por que postular propriedades essenciais de cada objeto queexistam separadamente quando sabemos que conceitos, termos, palavras,frases são produto do próprio pensamento e só existem enquantopensamento? Para Aristóteles um homem é mais real que a humanidade,e é por meio do primeiro que chegamos ao conceito do segundo. Não é difícil entender o que Aristóteles está dizendo. Se você é umespecialista em teoria da relatividade e foi chamado para uma palestraa um público que não entende coisa alguma de física, será melhoriniciar sua fala por alguns exemplos triviais do cotidiano para cativaro público e só então arriscar conceitos mais técnicos ou fórmulas. Emoutras palavras, você fará um caminho que vai do “particular” (o quefaz parte da experiência do público) ao “geral” (a visão de conjunto,mais técnica e elaborada, sobre a qual você vai falar). A marcha do nossoentendimento vai do simples ao complexo. Isso significa que compreendemosmelhor um assunto quando podemos fazer a passagem daquiloque conhecemos para aquilo que desconhecemos. Observe como os grandes oradores começam seus discursos por analogias ou casos quea platéia logo se identifica. No texto da “Física” Aristóteles dá o exemplo da criança para ilustrarsua tese: inicialmente ela chama qualquer homem ou mulher depai e mãe. Só mais tarde aprenderá a identificar quem é pai e mãe, ecom o tempo formará um conceito de paternidade e maternidade. Háaqui um curso do entendimento que vai do particular ao universal, fazendocom que o conhecimento amplie- se. Aristóteles, que era consideradoum professor brilhante, já dominava em seu tempo noções depsicologia e pedagogia para saber que ser humano algum adquire conhecimentose não puder partir daquilo que já sabe. Atenção: a regra anterior é absoluta no que toca ao aprendizado,mas ela não diz tudo. O texto da Física também indica que o “claro”para nós é, freqüentemente, um dado muito geral e simplista. O conhecimentosó é efetivo quando puder descer às minúcias. É isso queAristóteles quer dizer com “(...) mais claro e mais cognoscível para nósem direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza”. A marcha é do que nós sabemos em direção ao que as coisas são de fato. Procurenão fazer confusão sobre esse ponto. Essa é a razão pela qualos melhores alunos na escola são aqueles que desenvolvem o hábitode acompanhar os pontos principais do conteúdo. A regra de ouro é:compreenda os conceitos principais, mais gerais, só então se dediqueao estudo dos pontos particulares . Muitas vezes esses alunos são tomadospor “inteligentes”, mas não é nada disso. Adquirir conhecimentoé uma questão de saber como procede o aprendizado. Muitos que tiramos primeiros lugares nos vestibulares não dedicam mais do que 4horas de estudo por dia no período de preparação, o que escandalizaos demais que no mesmo período chegam a estudar 10 horas por diae não alcançam os mesmos resultados.

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A teoria do conhecimento se caracteriza por uma preocupação com a busca de princípios gerais que permitam formular crenças verdadeiras sobre a realidade. Essa idéia está presente na obra de Platão e é, em larga medida, o que caracteriza também o pensamento de Aristóteles.

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As Críticas de Aristóteles a Platão A teoria do conhecimento se caracteriza por uma

preocupação coma busca de princípios gerais que permitam formular crenças verdadeirassobre a realidade. Essa idéia está presente na obra de Platão e é, emlarga medida, o que caracteriza também o pensamento de Aristóteles. É com Aristóteles que a filosofia ganha uma consciência mais definidaacerca do método a ser adotado quando o assunto é o conhecimento.

Aristóteles contestou Platão porque via problemas em alguns pontosda explicação platônica do conhecimento. Platão tinha chegadonuma tese importante: para haver conhecimento da realidade, é preciso encontrar um caminho que dê acesso a idéias que sejam imutáveis,que não sofram transformações decorrentes da interpretação ou do capricho.Aristóteles concorda com isso, mas dirige uma crítica a Platão:para garantir a certeza e validade do conhecimento não é necessáriopostular uma teoria que duplique o real, isto é, que crie duas dimensõesna realidade: o sensível e o inteligível, como fez Platão.

Para entendermos bem a crítica de Aristóteles é necessário demorar-se um pouco mais na teoria platônica que Aristóteles ataca: a chamada“teoria das Formas.” Com efeito, em obras como República e Fédon, Platão defende que o conhecimento só é alcançado quandoatingimos a “idéia” ou “conceito” do objeto. Platão utilizava, prioritariamente,o termo “Forma” para referir-se a essa idéia. Por Forma Platãoentende um núcleo de características de um determinado objetoou realidade que mantém seus componentes independentemente dosexemplares destes objetos encontrados no mundo ou na linguagem.

Um exemplo que nos ajuda a entender isso é pensar naquilo quevocê compreende quando houve a palavra Justiça. Se relacionarmos oque as pessoas entendem por justiça, teremos uma gama variada de definições, muitas contraditórias entre si. Além disso, a própria aplicaçãodo conceito à realidade, no sentido de esforçar-se por ser justo,não é condição suficiente para que saibamos exatamente o que é justiça.Suponhamos que você diz que agir com justiça é devolver a alguém oque lhe pertence (cf. República 331e-332c), e dá como exemplo a devolução,ao dono, de uma arma que você encontrou. Alguém pode protestarque teria sido mais racional e justo evitar a devolução, pois a armapoderia ser usada para ferir alguém. É isso que preocupava Platão.Muitas noções que temos sobre justiça e outros conceitos importantesesfacelam-se diante de certas circunstâncias. Platão se perguntava senão haveria um meio de evitar essa ambigüidade em que diferentes situaçõesexigirão de nós diferentes noções disto ou daquilo. Ele estavaconsciente de que se não houvesse um modo de chegar a uma visãounitária da justiça, jamais haveria possibilidade de entendermos a realessência do conceito. Pior que isso, os que cometem crimes ou violênciateriam sempre à mão um argumento para justificar suas ações.

Daí porque Platão defendia que, para um conjunto específico decoisas como Justiça, Beleza, Conhecimento, Coragem, Igualdade, etc.,deveria existir uma única Forma que desse sustentação ao pensamentosobre essas coisas. Desse modo, ao aplicar o conceito de Justiça adeterminada realidade, no entendimento de Platão, estaríamos aplicandoo conhecimento do objeto aos casos particulares. Dito de outraforma: não é porque uma cidade foi devastada que a população localdeve se unir e reconstruí-la novamente. Antes mesmo da devastação apopulação deve saber que o que define a justiça é cada um fazer a sua parte(cf. República, livro IV) com vistas ao bem comum. Desse modo,no momento em que a cidade for arruinada não será necessário nenhumesforço de conscientização para que uns ajudem os outros, umavez que aquela população já sabia agir assim bem antes do acontecimentotrágico.

Isto posto, voltemos às críticas de Aristóteles. Elas estão, sobretudo,no capítulo 9 da Metafísica. Aristóteles critica vários pontos da teoria.Vamos nos deter no núcleo comum de suas análises. A preocupaçãode Aristóteles é que a teoria das Formas de Platão conduz a um tipobem particular de problema: ela torna o pensamento de um objeto independentedeste objeto, ou seja, faz pairar acima dos objetos conceitosabstratos. Isso não é necessário, pensa Aristóteles. Ele concorda,por exemplo, que a observação e comparação de diferentes tipos decavalo levam a um grupo de aspectos que definem o “conceito de cavalo”.Isso só pode ser feito pelo pensamento. Mas Aristóteles não concordaquando Platão imagina que existe algo abstrato e formal como“a cavalidade”, independentemente da existência de cavalos particulares.Para Aristóteles, chegamos ao conceito de cavalo mediante estudodos exemplares existentes, chegamos ao conceito de humanidade mediante estudo de homens concretos e assim por diante. Aristóteles sepergunta: por que postular propriedades essenciais de cada objeto queexistam separadamente quando sabemos que conceitos, termos, palavras,frases são produto do próprio pensamento e só existem enquantopensamento? Para Aristóteles um homem é mais real que a humanidade,e é por meio do primeiro que chegamos ao conceito do segundo.

Não é difícil entender o que Aristóteles está dizendo. Se você é umespecialista em teoria da relatividade e foi chamado para uma palestraa um público que não entende coisa alguma de física, será melhoriniciar sua fala por alguns exemplos triviais do cotidiano para cativaro público e só então arriscar conceitos mais técnicos ou fórmulas. Emoutras palavras, você fará um caminho que vai do “particular” (o quefaz parte da experiência do público) ao “geral” (a visão de conjunto,mais técnica e elaborada, sobre a qual você vai falar). A marcha do nossoentendimento vai do simples ao complexo. Isso significa que compreendemosmelhor um assunto quando podemos fazer a passagem daquiloque conhecemos para aquilo que desconhecemos. Observe como os grandes oradores começam seus discursos por analogias ou casos quea platéia logo se identifica.

No texto da “Física” Aristóteles dá o exemplo da criança para ilustrarsua tese: inicialmente ela chama qualquer homem ou mulher depai e mãe. Só mais tarde aprenderá a identificar quem é pai e mãe, ecom o tempo formará um conceito de paternidade e maternidade. Háaqui um curso do entendimento que vai do particular ao universal, fazendocom que o conhecimento amplie-se. Aristóteles, que era consideradoum professor brilhante, já dominava em seu tempo noções depsicologia e pedagogia para saber que ser humano algum adquire conhecimentose não puder partir daquilo que já sabe.

Atenção: a regra anterior é absoluta no que toca ao aprendizado,mas ela não diz tudo. O texto da Física também indica que o “claro”para nós é, freqüentemente, um dado muito geral e simplista. O conhecimentosó é efetivo quando puder descer às minúcias. É isso queAristóteles quer dizer com “(...) mais claro e mais cognoscível para nósem direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza”. A marcha é do que nós sabemos em direção ao que as coisas são de fato. Procurenão fazer confusão sobre esse ponto. Essa é a razão pela qualos melhores alunos na escola são aqueles que desenvolvem o hábitode acompanhar os pontos principais do conteúdo. A regra de ouro é:compreenda os conceitos principais, mais gerais, só então se dediqueao estudo dos pontos particulares. Muitas vezes esses alunos são tomadospor “inteligentes”, mas não é nada disso. Adquirir conhecimentoé uma questão de saber como procede o aprendizado. Muitos que tiramos primeiros lugares nos vestibulares não dedicam mais do que 4horas de estudo por dia no período de preparação, o que escandalizaos demais que no mesmo período chegam a estudar 10 horas por diae não alcançam os mesmos resultados.