Finizola Livro Tipografia Vernacular

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Tipograa Vernacular UrbanaFtima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 1 22/09/2010 15:52:12Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 2 22/09/2010 15:52:12Tipograa Vernacular UrbanaUma anlise dos letreiramentos popularesFtima FinizolaColeo Pensando o DesignCoordenaoPriscila Lena FariasFtima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 3 24/09/2010 18:05:42Tipograavernacularurbana:umaanlisedosletreiramentos populares2010 Ftima FinizolaEditora Edgard Blcher Ltda.Publisher Edgard BlcherEditor Eduardo BlcherEditora de desenvolvimento Rosemeire Carlos PintoDiagramao Know-How EditorialPreparao de originais Eugnia PessottiReviso de provas Thiago Carlos dos SantosCapa Lara VollmerProjeto grco Priscila Lena FariasRua Pedroso Alvarenga, 1245 4 andar04531-012 So Paulo, SP BrasilTel.: (55_11) [email protected] Novo Acordo Ortogrco, conforme 5. ed. do Vocabulrio Ortogrco da Lngua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, maro de 2009.Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blcher Ltda. 2010 proibida a reproduo total ouparcial, por quaisquer meios, sem autorizao escrita da Editora.Ficha CatalogrcaFinizola, Ftima Tipograa vernacular urbana: uma anlise dos letreiramentos populares / Ftima Finizola (Coleo pensando o design / Priscila Farias, coordenadora)\ -- So Paulo: Blucher, 2010.Bibliograa.1. Comunicao visual 2. Design 3. Design grco (Tipograa) 4. Letreiramentos populares 5. Linguagem 6. Paisagem tipogrca urbana I. Farias, Priscila. II. Ttulo. III. Srie.10-10427CDD-745.2ndices para catlogo sistemtico:1. Tipograa vernacular urbana: Design grco: Artes e comunicao745.2Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 4 22/09/2010 15:52:12Letras pintadas das ruas querem mandar mensagem para caracteres tipogrcos digitaisEraumnaldemanhnonaldosculo20,eeuestava chegando ao nal da Avenida Beira Mar (ao Pina do Meireles?) quando me ocorreu a ideia: se o design de um certo pas tem algo a aprender com as tradies artesanais locais, faltava, ao design grco brasileiro, uma viso menos preconceituosa em relao s prticas regionais de produo manual de letras, em especial aos letreiramentos comerciais. Uma chuva de pingos grossos e espaados comeou. Aumentei o ritmo das pedaladas enquanto comeava a imaginar uma atividade para alunos de design, na qual eles sairiam pela cidade em busca dessas letras artesanais,ecomelasconstruiriamalfabetoscompletosque conjugariam a espontaneidade dos letreiros originais e os co-nhecimentos dos alunos sobre estrutura, forma e signicados tipogrcos. Antes mesmo de concluir este raciocnio, a chuva j tinha parado, e nem tinha de fato molhado o cho. Nascia ali uma proposta de curso e uma linha de pesquisa.Inspirada por outras iniciativas, que ento pipocavam no contexto internacional da tipograa, chamei isso de tipograa vernacular. Animada como estava, criei tambm um pangra-ma (uma fase que usa todas as letras do alfabeto) com o qual os alunos testariam seus conjuntos de caracteres. Existiam j muitos pangramas sintticos e engracadinhos em ingls (um bom pangrama deve ser curto e memorvel), mas no me pa-receu muito adequado usar uma lngua diferente do portugus parademonstrarousodeumalfabetoinspiradoporletras encontradas nas ruas brasileiras. Foi somente no voo de volta paraSoPauloqueconseguicomporumafasealturadas minhas expectativas: zebras caolhas de Java querem mandar fax para moa gigante de New York.Esta epifania litornea me levou a muitos outros lugares, eaospoucosencontreioutraspessoascomvisesparecidas, congurando uma rede de interesses e de investigaes. Uma dasprimeirasfoiSolangeCoutinho,orientadoradadisserta-o de mestrado que deu origem a este livro. Outra foi Ftima Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 5 22/09/2010 15:52:126Finizola (para os ntimos, Faf), autora da dissertao e do li-vro, ento aluna do curso de especializao em design da in-formao da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).A coleo Pensando o Design pretende abordar temas con-temporneos e originais para os estudos em design, e Tipograa Vernacular Urbana atende plenamente a estes dois quesitos, ao dar um passo alm na ideia de buscar referncias para o design detiposemmanifestaespopulares,aprofundandoaques-to. O foco deste livro no so propostas especcas de novas fontesdigitais(emboraFafsejaautoradeumbomnmero delas),oumesmoumaanlisedestetipoproduo(embora alguns exemplos sejam mencionados e comentados), mas sim o registro e descrio de exemplos dos artefatos que servem de inspirao para tais famlias tipogrcas.Para realizar as descries atentas e perspicazes que encon-tramosnoltimocaptulo,aautoraelabora,e,oquemais importante, compartilha com os leitores, ferramentas e mto-dos de pesquisa que certamente serviro de modelo para outras investigaes.Taismtodospermitemcompreendercomose articula a linguagem grca dos letreiros populares, e apontar algumastendnciasrecorrentes.Paraentendermelhoraori-gem das formas e cores que encontramos nestes artefatos, a au-tora realiza entrevistas com letristas, contribuindo, assim, para aconstituiodeumregistrodocotidianodeumaatividade que se torna cada vez menos comum nas grandes cidades.Acompanhemos, ento, Faf, nestes roteiros em busca das le-tras artesanais do Recife, de Casa Forte ao Leme de Boa Viagem.Priscila Lena FariasSo Paulo 2010Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 6 22/09/2010 15:52:13A todos aqueles que buscam nas entrelinhas da vida urbana inspirao para a prtica diria do design.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 7 22/09/2010 15:52:13Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 8 22/09/2010 15:52:13AgradecimentosFoigraticanteperceberoquantootemadestelivrocon-quistou inmeros colaboradores espontneos durante o rduo trabalho de campo e de reviso bibliogrca, bem como nas diversas vivncias de que tive oportunidade de participar du-rante os dois anos da pesquisa de mestrado que deu origem a esta publicao.Agradeo ao projeto Memria Grca Brasileira por ter in-corporado este trabalho e, dessa forma, ter permitido um rico intercmbio entre pesquisadores de vrias partes do Pas, mas principalmente entre a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)eoCentroUniversitrioSenac-SP,aoqualagradeo areceptividadedasprofessorasPriscilaFariaseAnnaPaula Gouveia, bem como dos alunos do mestrado e graduao, du-rante a misso de pesquisa desenvolvida nessa instituio.Agradeo minha orientadora Solange Coutinho, pela dis-ponibilidadeeentusiasmocomotema,aoprofessorSlvio Campello pelas coorientaes, quase dirias, no Laboratrio de Design da Informao da UFPE, e ao professor Hans Waechter pelo incentivo prossional constante.Agradeo a Damio Santana, meu el escudeiro, que por meio de suas lentes fotogrcas e olhar aguado, me acompa-nhou nas visitas de campo e registrou grande parte das ima-gens apresentadas neste livro. Agradeo aos letristas entrevistados e aos donos de estabe-lecimentos comerciais que disponibilizaram tempo e espaos para as gravaes, alm de todos aqueles que colaboraram, de alguma forma, com valiosas contribuies para esta pesquisa na forma de imagens, textos e reexes.Por m, agradeo ainda aos colegas de mestrado e minha famlia pelo apoio e pacincia, em especial aos meus pais que, de certa forma, plantaram essa sementinha que hoje traz bons futos.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 9 22/09/2010 15:52:13Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 10 22/09/2010 15:52:13ContedoIntroduo131O design como expresso cultural211.1O design como produto cultural 261.2O design global versus o design local: o fenmeno da circularidade cultural271.3Denindo o popular, o vernacular e o regional291.4Integrando o design formal ao vernacular312As diferentes formas de representao visual da escrita342.1Denindo o letreiramento, a caligraa e a tipograa362.2O letreiramento, a caligraa e a tipograa ao longo da evoluo da escrita412.3Elementos do estilo tipogrco473Os letreiramentos populares543.1O letreiramento popular na paisagem tipogrca urbana543.2Breve panorama da pesquisa sobre letreiramentos populares no Brasil e no mundo583.3O ofcio do pintor letrista624Investigando os letreiramentos populares664.1Impresses gerais sobre os roteiros684.2Anlise tipogrca: aspectos intrnsecos744.3Anlise tipogrca: aspectos extrnsecos854.4Anlise dos elementos esquemticos e pictricos87Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 11 22/09/2010 15:52:13125Investigando os letristas populares905.1Trs letristas populares do Recife905.2Algumas tcnicas de confeco de letreiramentos populares936Uma classicao para os letreiramentos populares986.1Critrio 1: autoria986.2Critrio 2: forma de representao da linguagem grca verbal1006.3Critrio 3: atributos formais100Concluso,106Referncias bibliogrcas109Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 12 22/09/2010 15:52:13IntroduoO incio das atividades de ensino superior de design no Brasil datado da dcada de 1960, com o surgimento da Escola Su-perior de Desenho Industrial (ESDI/UERJ) no Rio de Janeiro, em 1963. Nesse momento, a sociedade nalmente reconheceu de forma ocial o design (ento denominado desenho indus-trial) como uma nova prosso. No entanto, segundo Cardoso (2005: 8), antes da fundao da nossa primeira escola de design j existia uma srie de atividades prossionais aplicadas fa-bricao, distribuio e consumo de produtos industriais.As referncias de mestres e processos criativos utilizados nas primeiras escolas de design do Brasil possuam, na maio-riadasvezes,umamatrizmodernista,importadadaEuropa. O interessante que, ao observarmos a produo informal de design no Brasil, antes da dcada de 1960, percebemos a exis-tncia de solues projetuais que no derivaram diretamente de uma matriz estrangeira reconhecida, muitas vezes, trazen-do traos do que poderamos identicar como um design bra-sileiro mais autntico, com bases criativas mais prximas da cultura e hbitos locais (CARDOSO, 2005: 11).Algunsdessesofciosdesapareceram,outros,noentanto ainda coexistem com as atividades do design formal. O trabalho dos letristas populares, nos muros e placas espalhadas, princi-palmente, nas periferias das grandes cidades ou em pequenas cidades do interior do Brasil, um forte exemplo disso.A instituio de novas leis que visam reduo da polui-o visual em algumas capitais do Pas como a Lei Cidade Limpa1instauradaemSoPauloeRecife,mas,principal-mente, a evoluo de novas tecnologias de impresso digital, talvez coloquem em risco a existncia do ofcio do letrista po-pular.Numbrevepasseiopelosbairrosdocentrodacidade do Recife notamos que, cada vez mais, os letreiros populares pintadosmodisputamespaocomplacasconfeccionadas em vinil adesivo recortado ou impresses digitais. At mesmo muitos dos trabalhos de letreiramento j perderam um pouco da sua manualidade, na medida em que tambm partem de layouts gerados no computador (Figura 1).1A Lei n 14.223, mais conhecida como LeiCidadeLimpa,foiinstitudapela PrefeituradeSoPauloem26de setembrode2006,edispesobrea ordenaodoselementosquecom-pem a paisagem urbana da cidade. Maisadiante,em2008,aPrefeitura doRecife,instituiuaLein17.521, compropostasimilar,buscan do ordenar a publicidade no espao ur-bano do Municpio do Recife.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 13 22/09/2010 15:52:1314 Tipograa Vernacular UrbanaFigura 1 Letreiros manuais e impressos disputam espao nas fachadas. Foto de Damio Santana.Por outro lado, a era digital e as novas tecnologias estimu-laram o desenvolvimento de projetos baseados em transposi-es estticas, do passado para o presente, do meio analgico paraovirtual.Linguagensvisuaisdemovimentosdasartes grcas que marcaram poca no passado ou linguagens espon-tneas encontradas nas ruas so mescladas s linguagens gr-cas do presente, sendo utilizadas e reutilizadas, reconstrudas pelos atuais processos criativos digitais.SegundoDones(2004:1),olivreacessoaessasnovas ferramentas possibilitou ainda a recuperao do vernacular quetransitaaoladododesigngrcoocial,encontran-do um espao no campo da comunicao grca da cultura contemporneacomoformadeenquadramentoedeinclu-so,sempreconceitosesemhierarquias.Essatendncia tambmobservadanaproduotipogrcacontempornea noBrasil.Oricouniversopopularbrasileiropassaporum processo de deslocamento e traduo para os meios digitais, emqueobservamosumatendnciaaodesenvolvimentode projetostipogrcoscominspiraonalinguagemgrca vernacular.22 DeacordocomVeraLciaDones (2004: 1) o termo vernacular sugere aexistnciadelinguagensvisuaise idiomaslocaisqueremetemadife-rentesculturas.Nacomunicao, corresponde quelas solues gr-cas ligadas aos costumes locais pro-duzidos fora do discurso ocial.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 14 22/09/2010 15:52:1315 IntroduoSe observarmos o acervo de fontes produzidas pela fundi-o digital pernambucana Tipos do Acaso, notamos que muitas delasinspiram-seemelementosdaculturadoEstadode Pernambuco e do Nordeste. A fonte Cordel, de Buggy (Figura 2, linha 1) por exemplo, inspira-se no trao rstico das xilogra-vuras que estampam as capas das literaturas de cordel; a fonte dingbat Cabra-da-Peste, de Diego Credidio (Figura 2, linha 2), tambm utiliza a linguagem visual da xilo, mas, no entanto, retrata personagens presentes nas lendas e mitos regionais; a fonte Toinho, de Joana Amador e Renata Faccenda (Figura 2, linha3),apresentaairregularidadedotraadodasletrases-tampadas em placas populares; entre outros exemplos. No mbito nacional, tambm notamos que uma grande parceladasnovasproduesdosdesignersdetiposbrasi-leiroscontmrefernciassimblicasculturalocal.Na2 edio da mostra Tipograa Brasilis, realizada em So Paulo em 2001, observamos uma grande tendncia a releituras de linguagens grcas vernaculares. A fonte Seu Juca, de Priscila Farias (Figura 3), foi inspirada nas placas populares pintadas pelo letrista pernambucano Joo Juvncio Filho, que faleceu em 2006. A fonte Ghentileza Original, de Luciano Cardinali (Figura 4), registra a escrita caracterstica dos versos pintados pelo poeta popular Gentileza, nos muros do Rio de Janeiro, e a fonte Brasilro, de Crystian Cruz (Figura 5) provavelmen-te a fonte digital de inspirao popular mais utilizada pelos designers brasileiros retrata peculiaridades dos manuscri-tos populares.Figura 3 Fonte Seu Juca (Priscila Farias ), Tipograa Brasilis, 2001.Figura 4 Fonte Ghentileza Original (Lucia-no Cardinalli), Tipograa Brasilis, 2001.Figura 5 Fonte Brasilro (Crystian Cruz), Tipograa Brasilis, 2001.Figura 2 Fontes digitais: Cordel (Buggy), Cabra-da-peste (Diego Credidio) e Toinho (Joana Ama-dor e Renata Faccenda) . Tipos do Acaso (2000).Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 15 22/09/2010 15:52:1316 Tipograa Vernacular UrbanaDesde 2004, o coletivo Tipos Populares do Brasil, coorde-nado pelo tipgrafo carioca Pedro Moura, rene designers de tipos brasileiros que tm, como inspirao comum, a grca popular do Brasil, dentre eles Fernando PJ, Fernando Rocha, Ftima Finizola, entre outros (Figuras 6-8).Em 2009, o projeto colaborativo Crimes Tipogrcos fundadonoRecife,noano2000entraemparceriacom o Tipos Populares do Brasil, ampliando seu acervo de fontes comrefernciaspopulares,eapresentanaExposioCo-nexes>Connexions,noSescPompeia,umrecortedasua produo tipogrca, por meio de 15 fontes digitais popula-res desenvolvidas por tipgrafos de vrios estados do Brasil (Figura 9).Mais adiante, em 2010, o mesmo grupo tambm organi-zaamostraTipograaVernaculardoanalgicoaodigital, no Centro de Design do Recife, com o intuito de destacar as semelhanas e disparidades entre os letreiramentos populares e a produo tipogrca digital atual que faz referncia a esse tema.Essemovimentodevalorizaodeelementosdacultura localcontinuacrescendononossopas,contrariandoaglo-balizao do design e assumindo cada vez mais as suas razes populares, vernaculares. Observando essa tendncia releitu-ra do repertrio visual popular na prtica diria das atividades projetuais do design formal, no s no segmento da tipograa, mas, de uma maneira mais ampla, em vrias reas do design grco, a 9 Bienal de Design Grco, promovida pela Asso-ciao dos Designers Grcos do Brasil ADG/Brasil em 2009, tambminseriu,entreasnovecategoriasdoevento,otema Popular, Vernacular e Regional, contemplando aqueles proje-tos inspirados nesse universo.Figura9ExposiodefontespopularesdigitaisdoCrimes TipogrcosnoSescPompeia,[SP] 2009. Fonte: Foto de Damio Santana.Figura6FonteTeteia(PedroMoura), Tipos Populares do Brasil, 2003.Figura 7 Aplicao da fonte 1 Rial (Ftima Finizola), Tipos Populares do Brasil, 2003.Figura8FonteBonoc(FernandoPJ), Tipos Populares do Brasil, 2003.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 16 22/09/2010 15:52:1417 IntroduoPortanto,osletreiramentospopulares,comoparteinte-grante da cultura material de um povo, assim como da histria do design brasileiro antes mesmo da ocializao da prosso, nos proporcionam uma srie de experincias visuais que po-demserutilizadascomoumricomanancialdeinspiraes para a prtica do design formal. Dessa forma, o intuito deste livro registrar e analisar, sob o ponto de vista da tipograa, alguns desses artefatos do design vernacular, bem como o pro-cesso criativo dos seus criadores, antes que venham a desapa-recer quase ou por completo dos centros urbanos.Aoobservaralinguagemgrcapopularexpressaem placas e letreiros, nota-se que ela possui certos padres, ape-sar de manifestar-se em diferentes pases e culturas, ou ser executada por indivduos distantes pelo tempo ou pelo con-texto(Figuras10-12).Seroimproviso,oaspectoartesanal, intuitivo,esuainerentenalidadecomercialqueasune? Que inuncias comuns tiveram os letristas no aprendizado deseuofcio?Quetcnicaseprocessoscriativoselesmais utilizam? Quais so as referncias formais utilizadas pelos le-tristas populares ao confeccionar seus artefatos? Existe algu-ma referncia em comum, algum modelo criativo ensinado a esses arteses? Essas so algumas questes que pretendemos responder ao longo deste livro.Alm de preservar a memria grca do design brasilei-ro e pernambucano, a sistematizao da produo de letreira-mentos populares pernambucanos torna-se relevante tambm comorefernciaparaoprocessodedesenvolvimentodefu-turasfontesdigitaispopularespordesignersdetipos.Nesse sentido, o objetivo geral do projeto de pesquisa que deu ori-gemaestelivrofoiinvestigaraproduodeletreiramentos popularesdePernambucoembuscadetraarumperlda produo desses artefatos nessa regio, sob o olhar do design, comnfasenosaspectostipogrcos,apartirdosseguintes objetivos especcos:Registrar os letreiramentos populares e sua diversidade deformaspormeiodacriaodeummodelode classica o para esses artefatos quanto a sua autoria, forma de representao da linguagem verbal e atribu-tos formais.Registrarosmtodoseasferramentasutilizadasno processo criativo de letristas, bem como as referncias visuais utilizadas por esses indivduos. Figura10Letreiramentopopulardo Brasil. Foto de Damio Santana.Figura 11 Letreiramento popular do Mxico. Foto de Priscila Farias.Figura 12 Letreiramento popular dos Es-tados Unidos. Foto de Jonh Baeder.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 17 22/09/2010 15:52:1418 Tipograa Vernacular UrbanaDurante a observao do nosso objeto de estudo, procura-mos vericar duas hipteses: Hiptese principal: embora os letristas utilizem, como fonte de inspirao para seu trabalho, modelos tipogr-cos aos quais tiveram acesso a partir do computador ou de materiais grcos impressos, possvel reconhe-cer estilos de letras peculiares linguagem visual dos letreiramentospopulares,cominunciasgenuina-mente vernaculares. Hiptese secundria: diante da variedade de estilos de letras reproduzidos no trabalho dos letristas populares, possvel descrev-los de acordo com suas similarida-des formais, de autoria ou quanto forma de represen-tao da linguagem grca verbal. Mtodos de pesquisaAmetodologiaadotadaduranteoprocessodeinvestiga-oeanlisedonossouniversodeestudocontoucomduas fasesdistintasecomplementaresquecontemplaramtantoos letreiramentos populares, como os letristas responsveis pela suaproduo.Resumimos,aseguir,ospontosprincipaisda metodologia empregada.Duranteaprimeirafase,apesquisaseconcentrounuma minuciosa anlise tipogrca dos letreiramentos populares do Recife, a partir de uma vasta pesquisa de campo. Inicialmen-te, foi desenvolvida uma pesquisa de campo preliminar, com carterexploratrio,porquatrobairrosdacidadedoRecife CasaAmarela,CasaForte,SoJoseVrzea.Emseguida, utilizou-se o mtodo de card sorting3 com a nalidade de agru-parosletreiramentospopularescomcaractersticasformais semelhantes.Aonaldessadinmica,foidesenvolvidoum mtodo de classicao inicial para os letreiramentos popula-res, de acordo com seus atributos formais, autoria e forma de representao da linguagem grca verbal. Para vericar a ecincia do mtodo, foi realizada uma nova pesquisa de campo, dessa vez, mais sistematizada, para uma nova coleta de letreiramentos populares contemplando uma amostra-gem mais diversicada entre bairros de vrias zonas da cidade do Recife. As impresses acerca dos roteiros percorridos foram registradas em relatrios intitulados Dirios de Bordo.Osartefatoscoletadosnessaetapaforamsubmetidosa umadetalhadaanlisegrca,apartirdacatalogaoem-chas de anlise desenvolvidas especicamente para a investi-gao tipogrca dos letreiramentos populares.3Ocardsortingumaferramenta largamenteutilizadanareadeAr-quitetura da Informao para ajudar aestruturaoeorganizaode contedoinformacionaldosmeios decomunicaodigitais.Segundo Rocha(2008)Ofuncionamento bsicodessemtodoconsisteem levantarasinformaesessenciais quepodemserusadaspelousu-rioemumdeterminadocontexto, distribuir essas informaes em car-teseproporparaosusuriosque organizemessesdadosconforme seu entendimento.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 18 22/09/2010 15:52:1419 IntroduoEmseguida,iniciamosasegundafasedapesquisacom o objetivo de investigar tambm os letristas populares, regis-trando seu mtodo criativo e as principais inuncias estticas que permeiam esse processo. Foi construdo um cadastro de letristasatuantesdoRecife,apartirdoslevantamentosrea-lizadosduranteapesquisadecampoeposteriorseleode prossionais para entrevista. A escolha dos letristas procurou contemplar a variedade de gneros de artefatos que esses pro-ssionais produzem, tais como murais, cartazes, placas etc.Para coletar informaes com os letristas populares, utili-zamos o mtodo de entrevista semiestruturada, acompanhado do registro fotogrco do processo de produo de cada letris-ta, e, em alguns casos, de udio e de vdeo. O roteiro denido pela entrevista buscou registrar dados pessoais e histrico re-sumidodecadaartce,bemcomoasetapasenvolvidasno seuprocessocriativo,observandoferramentas,suportese mtodos .Por m, foi traado um panorama geral da produo dos letristas populares em Pernambuco, a partir das informaes coletadas nessas duas fases. Ao nal da pesquisa, as hipteses iniciais se mostraram pertinentes ao nosso objeto de estudo, o que resultou na consolidao de uma classicao tipogrca para os letreiramentos populares.Para apresentarmos ao leitor uma reexo acerca da tipo-graa vernacular urbana, estabelecida ao longo do processo de pesquisa desse universo, estruturamos este livro em seis cap-tulos que abordam questes relacionadas aos temas Design e Cultura, Formas de Representao da Linguagem Visual Escri-ta e, especicamente, sobre os Letreiramentos Populares.O Captulo 1 reete sobre o design como forma de expres-so cultural de um povo, abordando questes sobre globaliza-o, identidade, design global x design local e sobre as contri-buies da era digital para novas linguagens visuais do design. Tambm dene o popular, o vernacular e o regional sob a tica do design grco, apontando para possveis caminhos de inte-grao entre o design formal, o informal e o espontneo.O Captulo 2 discute sobre as diversas formas de represen-tao visual da escrita, denindo e diferenciando as tcnicas de letreiramento, caligraa e tipograa, e ainda esboa notas sobreaaplicaodessastrsformasderepresentaovisual durante a evoluo da escrita. Por ltimo, apresenta elementos da anatomia das letras e principais atributos formais relacio-nados ao desenho tipogrco e caligrco.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 19 22/09/2010 15:52:1420 Tipograa Vernacular UrbanaO Captulo 3 constri o estado da arte do no nosso objeto de estudo os letreiramentos populares por meio de notas de diversos autores sobre a paisagem tipogrca urbana, num brevepanoramaatualsobrealgunsestudosmaisrelevantes acercadosletreiramentospopularesdoBrasiledomundo, bem como nos apresenta ao ofcio do pintor letrista.O Captulo 4 apresenta uma investigao sobre os letrei-ramentos populares realizada na cidade do Recife, com nfase nosaspectostipogrcosintrnsecoseextrnsecoslingua-gem grca verbal desse universo. OCaptulo5abordaouniversodosletristaspopulares dePernambuco,investigandoalgumastcnicaseprocedi-mentos utilizados por esses prossionais para a confeco de letreiramentos.Por m, no Captulo 6, propomos um modelo de classi-cao tipogrca para os letreiramentos populares, segundo os aspectos de autoria, representao da linguagem grca verbal e atributos formais.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 20 22/09/2010 15:52:14O design como expresso cultural1No incio do sculo XXI, a humanidade se depara com inten-sasmudanasnocenrioeconmicomundial,quereetem diretamente em outros aspectos da vida social, cultural e no meio ambiente de todo o planeta. A supremacia das prticas econmicas capitalistas acarretou um fenmeno de crescente globalizao da economia numa disputa mundial entre as cor-poraes multinacionais pela conquista de novos mercados.Esta globalizao econmica se caracteriza principalmente pela disseminao das empresas multinacionais, e pela conse-quente perda de controle do Estado sobre a sua economia, que sedesenvolvenumcenriodegrandesavanostecnolgicos e danos ao meio ambiente, entre outros aspectos fortemente modicados,nasesferaspessoal,familiareprossionaldos indivduos. Ono (2006) observa que, apesar dos estados-nao seremosprincipaisatoresnaordempolticaglobal,ascor-poraespassamaserosagentesdominantesnaeconomia mundial.A globalizao cultural tambm decorrente desse fen-meno de globalizao mundial das economias, que, na verda-de, encontra-se em andamento h muito tempo. Iniciada ain-da por volta do sculo XVI com a colonizao das Amricas, e posteriormente acentuada aps a II Guerra Mundial e a Guerra Fria, a globalizao se potencializou mais ainda nas duas lti-mas dcadas de 1990 e 2000. De acordo com Ono (2006), por volta de 1980, o termo globalizao comea a ser empregado nas escolas de administrao de empresas dos Estados Unidos paradenironovocenrioeconmicomundial,dominado pelos centros capitalistas, como os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japo.Entreosprincipaisefeitosocasionadospelamodernida-de globalizada, largamente discutidos por tericos em todo o mundo,encontramosoprocessodedescentralizaodepo-deres,adesterritorializaodeculturaseamassicaodo consumo, que culminam com a tendncia homogeneizao Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 21 22/09/2010 15:52:1422 Tipograa Vernacular Urbanadegostosehbitosculturaisimpostospelasnovasprticas econmicas que no se intimidam em substituir literalmente hbitosoriginaisdecadacomunidadepornovosmodismos impostos pela onda consumista do mercado capitalista. Coelho observa que: Do ponto de vista dos modos culturais tais como so tradi-cionalmente considerados, a globalizao (...) revela-se antes de mais nada na tendncia uniformizao da sensibilida-de, (...) o que conseguido pela distribuio de produtos ge-rados por um nmero cada vez menor de fbricas culturais colocadassobagideeconmicadospadreseconmicos administrados por empresas globais. (...) Produtos alternati-vos circulam apenas em espaos limitados alcanando p-blicos menores ou diminutos. (COELHO, 1997: 183.)No entanto, apesar de a globalizao surgir com o intuito de eliminar as diferenas e realinhar os horizontes, ela parece tambm encontrar algumas fentes de resistncia, onde pro-voca efeitos inversos:Emplenaeradaglobalizaoobserva-seumclaroressur-gimento da diferena identitria manifestando-se de modo extremamente violento ou procurando emergir mais paci-camente sob a aparncia do multiculturalismo. As culturas e os imaginrios nacionais tendem a desmoronar, mas no desaparece de todo o localismo como ncora cultural, quer isto signique um valor positivo (de armao identitria), quer negativo (rearmao de provincianismos no de todo distantes do racismo e da xenofobia). (COELHO, 1997: 183.)Nessecenriodedualidades,encontramosodesigner comomediadordoprocessodeinteraoentreprodutose consumidores,bemcomodeseusefeitosnasociedade.Para que esse processo possa uir de forma harmnica e equilibra-da, fundamental que cada designer compreenda o contexto cultural onde est inserido cada usurio a m de desenvolver artefatosmaisintegradoscomasreaisnecessidadesdecada povo e de seu ambiente.E. Tylor (apud ONO 2006: 3) elabora, em 1871, uma das pri-meiras denies de cultura, entendendo-a como o todo com-plexoquecompreendeoconhecimento,ascrenas,aarte,a moral,asleis,oscostumeseasoutrascapacidadesouhbitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. Mais de um sculo adiante, em 1989, Geertz (apud ONO 2006: 1) ela-bora um novo conceito, mais amplo, de acordo com uma abor-dagem interpretativista: Entende-se cultura como a teia de sig-nicados tecida pelas pessoas na sociedade, na qual desenvolvem Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 22 22/09/2010 15:52:1423 O design como expresso culturalseus pensamentos, valores e aes, e a partir da qual interpretam o signicado de sua prpria existncia. Assim, nesse todo com-plexo, observamos que o design, enquanto codicador de signos e mensagens, tambm produto e produtor da nossa cultura.Por meio de seus produtos, o design tem o poder de in-uenciardiretamenteaconstruodaculturadecadaso-ciedade,manifestando-setambmcomoumaexpressoda identidade de cada povo. Resta-nos saber, diante desse cenrio deglobalizao,qualpartidoodesigndevetomardiantedo dilemaglobalversuslocal.Semdesmerecercadaumadessas correntes, interessante percebermos que cada uma delas tem o momento certo de ser utilizada. H momentos em que ser global,optarporumalinguagemvisualuniversalista,coe-rentecomasnecessidadesdedeterminadoprojeto,que,por exemplo, necessite ter um grande alcance multicultural, como umsistemadesinalizaoparaumaeroporto.J,emoutros casos, como ao fazer peas promocionais para eventos come-morativos regionais, optar por utilizar uma linguagem visual com inuncias locais pode maximizar o processo de comuni-cao em determinada comunidade (Figura 1.1).Nessa busca por um design que represente a identidade de cada povo, cabe ao designer encontrar esse ponto de equilbrio entre essas duas tendncias, sabendo usufuir o que h de me-lhor em cada uma delas, sem ferir as tradies, os hbitos e os costumes de cada regio.Figura 1.1 Linguagens visuais globais x locais: aeroporto da Tailndia; edies especiais da Coca-Cola para festas tpicas da regio Norte e Nor-deste do Brasil, Oz Design. Foto de Nina Chantrasmi (imagem esquerda); ADG, 2004: 252 (imagem direita).Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 23 22/09/2010 15:52:1524 Tipograa Vernacular UrbanaOno observa queAidentidadepodesercompreendidacomoumprincpio de coeso interiorizado por uma pessoa ou grupo, que lhes permite reconhecer os outros e ser por outros reconheci-dos. E a identidade de um grupo consiste em um conjunto de caractersticas partilhadas pelos seus membros, que per-mitem um processo de identicao das pessoas no interior dogrupoedediferenciaoemrelaoaoutrosgrupos. Pode-se assim dizer que, dentro do contexto social, a iden-tidadeculturalfundamenta-senadiferena,nadistino. (ONO, 2006: 11.)Neste contexto, o design grco, particularmente, encon-traduasfontesderefernciainuentesparaoseuprocesso criativo: a cultura ocial e a cultura popular. Coelho (1997: 115) dene a primeira como aquela cultura ordenadora, institucio-nal, compiladora, que alegadamente expressa o esprito de um lugar ou de uma poca e que no chega a sufocar os modos culturais alternativos, mas tende a coloc-los em guetos com os quais, de qualquer forma, acaba por entrar em relaes de reconversocultural,lembrandoquenemsempreacultura ocial a cultura dominante. J a cultura popular, embora de denio um tanto contraditria, encontra nas concepes do dedutivismo e do indutivismo, uma sntese das principais cor-rentes que tentam explic-la. Coelho observa que: Para os dedutivistas, no h propriamente uma autonomia da cultura popular, subordinada que est cultura da classe dominante, cujas linhas de fora regem a recepo e a cria-o populares. Para os indutivistas, pelo contrrio, a cultura popular um corpo com caractersticas prprias, inerentes sclassessubalternas,comumacriatividadeespeccae um poder de impugnao dos modos culturais prevalentes sobre o qual se fundaria sua resistncia especca. Se para os dedutivistas s se pode conhecer aquilo que chamado de cultura popular a partir das lentes da cultura dominante, para os indutivistas s possvel aprender a natureza dessa culturamedianteseusprpriosdepoimentosdiretos,ex-pressos em suas obras ou em declaraes explcitas de seus produtores. (COELHO, 1997: 120.) curioso notar que, a partir desses cruzamentos entre as maisdiversicadasculturas,provenientesdasmaisdiversas classes sociais e territrios, comeam a surgir o que chamamos de culturas hbridas, caracterizadas, segundo Ono (2006) pela mistura de elementos simblicos de culturas distintas. Nesses cenrios de miscigenao, no h uma diviso clara entre os elementosprovenientesdeumaculturaerudita,popularou Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 24 22/09/2010 15:52:1525 O design como expresso culturalde massa, identitria ou globalizada. Coelho (1997: 125) observa que A hibridizao refere-se ao modo pelo qual modos cultu-rais ou partes desses modos se separam de seus contextos de origem e se recombinam com outros modos de outra origem, congurando, no processo, novas prticas.O design segue esse mesmo caminho. Com a possibilidade de trocas interculturais, num curto intervalo de tempo, poten-cializadaspelaferramentadaInternet,designerstmacesso facilmentesltimastendnciaseinspiraesgrcasdos pases mais distantes. Esses cdigos so processados e repro-cessados em cada novo ambiente cultural, em que so acres-cidos novos elementos que temperam mais ainda essa grande mistura. Coelho reete que:Para os que consideram a cultura como sinnimo de tradio, de permanncia no tempo, de trao nacional distintivo, essas mudanas so considerveis. Para os que entendem a cultura como um processo dinmico que nunca, em momento algum da histria, se manteve igual a si mesmo apesar de abrir es-paos para bolses de especicidade local , o que se registra hoje no nenhuma novidade e, menos ainda, no signica nenhuma calamidade relevante. (COELHO, 1997: 125.)Da mesma forma, o design grco, como uma expresso cultural, segue essa mesma trajetria de constante mutao e reconstruo, ora priorizando uma linguagem mais universal, ora mais regional, e quase sempre apresentando grandes sur-presas e tendncias novas que so futo de linguagens grcas hbridas (Figura 1.2).Figura 1.2 Projetos grcos selecionados na categoria Popular, Vernacular e Regional, na 9. Bienal Brasileira de Design Grco, promovida pela ADG Brasil em 2009. Capa do livro Na rua: ps-grate, moda e vestgios, de Juliana Pontes ( esquerda); Postal Carioca, de Bruno Porto ( direita). CONSOLO, 2009: 125.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 25 22/09/2010 15:52:1526 Tipograa Vernacular Urbana1.1O design como produto culturalOsdesignersgrcosseinspiram,cadavezmais,nacultu-rapopular,comoumaformaderesgatarasorigenssimb-licasquepermeiamasidentidadesdedeterminadosgrupos depessoas,cidadesouregies.Essanovaproduoreeteo olhar atento daquele designer capaz de observar a essncia da linguagem visual annima das ruas, das comunidades, assim como o que h de mais autntico nos quatro cantos do Brasil, e que transpe e traduz essa riqueza visual para a prtica do design formal, unindo-a s novas tecnologias de produo e s novas estticas do design.Valoriza tambm o que h de mais legtimo na diversidade das manifestaes e da cultura material de todo o Pas, como as xilogravuras nordestinas, os letreiros populares, os grates pau-listas, o kitsch, a diversidade do folclore e das paisagens, tradu-zidos em formas visuais, texturas, cores, matrias-primas, sem necessariamente fazer um trco de imagens para o design.Da mesma forma como podemos identicar ritmos mu-sicais tpicos de cada regio do Brasil, como o forr, o brega, ofunk,osambaeoreggae,tambmpodemosperceberuma pluralidade de repertrios visuais que coexistem na nossa cul-tura, futo da miscigenao entre os diversos povos que cons-truram a histria do Brasil. Cabe ao designer transform-los em novas linguagens visuais que traduzam e reforcem a iden-tidade cultural do nosso pas.O ps-moderno e a valorizao de novas estticasA dcada de 1960 trouxe novos paradigmas para a prtica projetual do design no Brasil e no mundo, por intermdio do surgimentodetendnciascontrriasaofuncionalismoeao Estilo Internacional, herdados da Bauhaus e, posteriormente, daEscoladeUlm.Assim,ops-modernoretomaoexperi-mentalismo de movimentos modernos das dcadas anteriores, unindo-o s novas tecnologias disponveis.Apesar de as primeiras escolas de design no Brasil apre-sentaremumaforteinunciadasestticaseuropeias,nesse cenrio surgem tambm outros movimentos de cunho nacio-nalista,que,aospoucos,levantamabandeiradeumdesign inspiradoemnossaculturalocal.Atropiclia,porexemplo, surgida em 1968, alm de ser reconhecida nacionalmente como marco para a msica brasileira, traz tambm novos preceitos para o design grco, no momento em que comea a retratar em suas peas grcas elementos da cultura nacional. Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 26 22/09/2010 15:52:1527 O design como expresso culturalOMovimentoArmorialsurgenoRecifeem1970como objetivo de construir uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do nordeste. A sua diversicada produo cul-tural em vrias reas, como teatro, msica e poesia, contempla tambm as artes grcas, a exemplo das iluminogravuras e do alfabeto de ferros de marcar boi, criados por Ariano Suassuna. Paralelamente,noinciodadcadade1970,despontamtam-bm alguns outros grupos de designers de mobilirio que agre-gavam a sua produo matrias-primas locais, bem como for-mas que remetessem cultura brasileira, na busca pela criao de uma identidade nacional para nosso mercado de produtos.Segundo Cardoso (2008), a partir da dcada de 1980 surge umanovageraodedesignersbrasileirosrelativamentelivre dasprescriesdedcadaspassadas,queparecereconhecera importncia de redescobrir e reinventar os elementos formais e informais da tradio nacional de design. A introduo do com-putador como nova ferramenta de trabalho dos designers gr-cos favoreceu ainda mais esse cenrio, potencializando novos experimentosgrcos.Odesktoppublishingpermitiuaodesign experimentar e mixar as mais diversas linguagens do meio ana-lgico e do digital, transpondo os limites rgidos da esttica fun-cionalista por meio de layouts mais uidos e complexos, monta-dos a partir de inmeras camadas de informaes visuais.Nesse contexto, interessante observar que muitos pro-ssionais de design se voltaram para um processo de integra-oentreodesignformal,provenientedasuniversidadese escritrios de design, quele design espontneo, originado de uma massa annima, com a nalidade de construir e legitimar um design brasileiro, caracterizado por uma forte identidade cultural, proporcionando uma constante troca de experincias e solues projetuais entre outros povos e culturas.1.2O design global versus o design local: o fenmeno da circularidade culturalDiante das intensas transformaes do mundo moderno, ob-serva-se que tradies e costumes tm se perdido em meio avalanche de informaes em que estamos imersos, num cres-cente movimento de homogeneizao cultural em que pessoas de toda a parte do mundo tm a oportunidade de consumir a mesma cultura amplamente difundida pelos meios de comu-nicao, principalmente pela Internet. Odesign,comodiscurso,espelhaessefenmenocultu-ralaomesmotempoemquecolaboratambmparaacons-truo e transformao constante desse paradigma. Como um Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 27 22/09/2010 15:52:1528 Tipograa Vernacular Urbanacodicadordemensagensvisuais,odesignergrcoesta-beleceumdilogocontnuoentreossmbolosdacultura dominante e da cultura perifrica que se encontra margem do sistema ocial. Segundo Couceiro (2002), esse dilogo in-tegra um fenmeno maior que o historiador e antroplogo Ginzburg dene como circularidade cultural: um processo recproco de constantes trocas e interaes entre a cultura ocial e a popular, entre a central e a perifrica. Ao trazer-mosoconceitodecircularidadeculturalparaocampodo design,observamosque,nesseprocessocontnuodetroca deexperincias,duaslinhasprojetuaisinteragem:umde-signcomestilomaisuniversaleoutromaiscarregadode inuncias da cultura local. De um lado encontra-se o design que traz reminiscncias do Estilo Internacional, baseado nos princpios da boa for-ma, em que a forma determinada pela funo. Sua esttica seconstripormeiodeumestiloimpessoal,quenotem interesse em carregar consigo valores, signicados e smbolos de uma cultura, mas sim atingir a perfeio formal por meio da eciente integrao entre as formas projetadas e os usu-rios, bem como otimizar os processos industriais de produo. Essa tendncia tambm pode ser percebida, com uma nuance um pouco diferente, naqueles projetos que apresentam uma linguagem grca ligada a modismos de poca, que percor-rem vrios pases do mundo com suas devidas adaptaes.Dooutroladoencontra-seumasegundacorrente,de cunho mais regionalista, que traz consigo a preocupao com a identidade cultural da produo de design, buscando aliar toda experincia da cultura e da tradio s mais modernas tecnologias, para produzir um design bem relacionado com seucontextosocialevoltadoparaasnecessidadesdeseu pblico, peculiares a seu territrio. um design que valoriza as grandes contribuies perpetuadas por muitos anos, por meiodosaberpopular,eprocurapromoverasrelaesde troca entre culturas (Figura 1.3).Do mesmo modo como a cultura das classes dominantes, por muitas vezes, se impe cultura das classes subalternas, a circularidade cultural corre o risco de acarretar uma crescen-te despersonalizao das diversas manifestaes regionais de design a favor de um design internacional de caractersticas universais. O designer surge nesse cenrio com o papel de en-contrar o ponto de equilbrio ideal entre essas duas tendncias, a m de no deixar se perder o que h de mais original em cada cultura, participando, sim, da globalizao, mas no uma globalizao que pasteuriza, mas aquela que permite uma rica troca de experincias entre as particularidades de cada povo.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 28 22/09/2010 15:52:1529 O design como expresso culturalFigura 1.3 Projetos grcos com referncias culturais: identidade visual do Frum Social Mundial (esquerda)queretrataelementosvisuaisdaculturaindgena,efonteArmoribat(direita) inspirada no Movimento Armorial. Forminform-Mapinguari Design (identidade visual); Buggy e Matheus Barbosa (fonte Armoribat).1.3Denindo o popular, o vernacular e o regionalO design grco pode ser utilizado como importante instru-mento de integrao e valorizao social, capaz de aproximar a to elitizada prosso do design da cultura proveniente das classesmaisexcludasdasociedade,incorporandoumpapel dedifusor,tambm,deelementosdacontracultura.Abusca por inspirao para muitos projetos de design grco no ver-nacular, no popular e no regional, pode resultar em um design commaioridentidadenacionalquereeteapluralidadede razes culturais de nosso povo.SegundoVillas-Boas(2002),odesigngrcotemacapa-cidade de dessemantizar e articular elementos pertencentes a outroscontextosculturais,fazendocomqueesseselementos assumam novos signicados. Fazendo um recorte sobre a pro-duocontemporneabrasileira,podemosobservarcomoo design faz essa releitura de signos e imagens, do popular, regio-nal e vernacular para o design formal. Para compreendermos melhor esse processo, deniremos esses trs universos, apon-tando suas caractersticas, pontos em comum e disparidades.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 29 22/09/2010 15:52:1630 Tipograa Vernacular UrbanaOdesigninspiradonopopularreetetudoaquiloque produto das classes populares a cultura popular , bem como expresses da cultura amplamente difundidas pelo povo e para o povo a cultura de massa. O popular abrange o universo de produtosindustriaiseculturaisconsumidosougeradospela grande massa da populao, no descartando tambm aqueles hbitosqueforaminicialmenteimpostospelaculturadomi-nantee,maistarde,incorporadosnaculturalocal.Odesign grco inspirado no popular um espelho da cultura material das classes populares, bem como dos ambientes e paisagens em que esto inseridas.Autilizaodotermovernacularempregadaparade-niraquelesartefatosautnticosdaculturadedeterminado local, geralmente produzidos margem do design ocial. Do-nes (2004: 1) observa que, antes do aparecimento da cultura impressa, as linguagens europeias eram consideradas lnguas vernculas, em contraste com o latim e o grego ocial, usados pelasclassesinstrudas.Otermovernacularsugereaexis-tncia de linguagens visuais e idiomas locais, que remetem a diferentesculturas.Nacomunicaogrca,correspondes solues grcas, publicaes e sinalizaes ligadas aos costu-mes locais, produzidos fora do discurso ocial. Lupton(1996,apudDones,2004:2)ressaltaqueover-nacularnodeveservistocomoalgomenor,marginalou antiprossional, mas como um amplo territrio em que seus habitantes falam um tipo de dialeto local (...). No existe uma nica forma vernacular, mas uma innidade de linguagens vi-suais, (...) resultando em distintos grupos de idiomas. Assim, o design com inuncia do vernacular aquele que provm diretamente das tradies culturais de cada povo, que so pas-sadas adiante, de gerao em gerao, de maneira informal. Porm,odesigngrcodeinspiraoregionalvaloriza costumesetradieslocais,enfatizandosuasqualidades,ex-pressando o que caracterstico de uma regio, por meio de solues prprias e do emprego de materiais e tcnicas locais. O regional congura especicamente uma tradio vinculada a um territrio que possui forte identidade cultural. O regio-nalpode,muitasvezes,seconfundircomovernacular,pois ambos esto ligados a uma localidade especca, porm o re-gionalenglobatambmhbitosqueforamincorporadosem determinada regio, mas que podem advir de outros contex-tos, outras culturas, nem sempre produzidos fora do discurso ocial.Paraesclareceroentendimentodessestrsconceitos elaboramos o esquema apresentado na Figura 1.4, destacando pontos em comum e diferenas entre eles.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 30 22/09/2010 15:52:1631 O design como expresso culturalFigura 1.4 Caractersticas do design popular, regional e vernacular.Observamos que, por sua grande proximidade, essas trs situaes culturais podem se combinar e interagir, dando ori-gem a projetos que exploram, simultaneamente, vrias dessas fontes de inspirao. 1.4Integrando o design formal ao vernacularAo lanar um olhar despretensioso sobre a produo de design grcobrasileiracontempornea,podemosperceberalguns indcios de como se d o processo de apropriao e traduo do repertrio visual encontrado no popular, no regional e no vernacular para a prtica do design formal.Podemos distinguir, a princpio, trs grandes grupos: primei-ro, aqueles que fazem releituras ou transposies de elementos visuaispresentesnalinguagemgrcavernacularoupopular de determinada regio e propem novas aplicaes e utilizaes; segundo, aqueles que registram por meio de imagens, cores, tex-turaseformas,fagmentosdeambientesquefazempartedo nosso entorno; e, por m, os projetos que no trazem consigo nenhum vnculo visual direto com o popular, o regional ou o vernacular, mas que tratam conceitualmente o tema, a partir de novaslinguagensgrcas.Cadaumadessasabordagensproje-tuais tm seu mrito especco, o que nos impede de apontar um caminho como mais ou menos adequado. O que une esses designersaopoporvalorizar,deumaformaoudeoutra, elementosdaculturabrasileira,proporcionandoumareexo maior, entre aqueles que iro consumir esses produtos, acerca da verdadeira identidade nacional de nosso design (Figura 1.5). Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 31 22/09/2010 15:52:1632 Tipograa Vernacular UrbanaFigura1.5Diferentesformasdetraduodopopular,regionalevernacular:pormeiodetraduesvisuais:CardpioparaCafdaCasaCor, Niramekko ( esquerda); por meio de registros fotogrcos Parangol, Tecnopop (ao centro); ou por meio de conceitos Jogo War in Rio, Fbio Lopez ( direita).Porexemplo,nopapeldereprocessadordossmbolose das linguagens visuais produzidas espontaneamente margem da cultura ocial, e, por que no, do design ocial, o designer pode integrar ao seu projeto letreiramentos populares, encon-trados nos subrbios e periferias das cidades, e a esttica das xilogravuras que estampam as capas de folhetos da literatura de cordel, to populares na regio nordeste do Pas. Utiliza-se tambmderestriestcnicascomoousodepoucascores ou de recursos de impresso de baixa tecnologia, como a seri-graa presente nos lambe-lambes.4 Tambm opta pela seleo de suportes de impresso, mais rsticos e populares como o papel kraf e similares. Com um olhar perspicaz, o designer grco se coloca no papel de observador atento do seu entorno e busca registrar, em sua obra, peculiaridades do ambiente em que est inseri-do, assim como fagmentos fotogrcos da produo efmera e espontnea de designers annimos provenientes do povo, antes que se percam na fugacidade e no movimento de cons-tantemetamorfosedasmetrpoles.Essedesignercapazde enxergar a riqueza que se esconde nos detalhes dos microcos-mos que constituem as cidades e periferias, promovendo, por meio de seu trabalho, o registro da cultura e hbitos. Ainda com um papel de codicador de informaes, o de-signer grco tambm pode atuar em um nvel mais conceitual, usan docomopontodepartidaparaodesenvolvimentode 4Oslambe-lambessopsterespu-blicitrios ou artsticos de tamanhos variadosquegeralmentesocola-dosemmurosemespaospblicos de forma ilcita. So confeccionados por meio de pintura, fotocpia, seri-graa,impressocomtiposmveis ou mesmo offset.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 32 22/09/2010 15:52:1633 O design como expresso culturalprojetos, temticas oriundas de hbitos, fenmenos e compor-tamentos presentes em cada regio, sem necessariamente ter de se utilizar das linguagens visuais legitimamente populares. interessantenotar,tambm,quemuitosdesignerstentam explorar em seus projetos linguagens visuais que no so ori-ginrias da prpria regio em que esto inseridos, proporcio-nando, por vezes, interessantes releituras e aplicaes inusita-das que no foram percebidas por aqueles designers que esto imersos nesses universos. Por m, observando a recente produo brasileira de de-sign, notamos que ela reete o grande caldeiro cultural que representa nosso pas, formado pela mistura de ndios, negros e europeus, entre tantos outros imigrantes, dos mais diversos pases,queaquiaportaram.Anossaidentidaderesidejusta-mente nessa grande mistura de estilos que coexistem no nosso extenso territrio. A circularidade cultural favorece essa rica troca de experincias entre essas culturas, permitindo que, por vezes, o erudito se torne popular, e que o popular seja assimi-lado pela linguagem ocial, tornando-se tambm erudito.Ftima Finizola_Tipografia vernacular urbana.indd 33 22/09/2010 15:52:16