FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

81
As enciclopédias costumam apresentar o filósofo, político e escritor inglês Francis Bacon (1561 - 1626) como um dos fundadores da ciência moderna. Neste livro ele é visto de fato como um dos precursores dessa ciência, mas sobretudo por ter sido um questionador das principais características de que ela então se revestia. Ao mesmo tempo, consagrou-se como cientista e mago renascentista, e é assim que Raul Fiker prefere classificá-lo. O pensamento de Bacon é entendido por Fiker como um instrumento sensível voltado à sondagem de universos outrora dominados pela crença religiosa, mítica no caso. Por isso, ele faz questão de notar que "...além de lançar mão dos antigos mitos para popularizar seu plano de reforma científica, Bacon os considera realmente como uma forma primitiva de expressão usada por uma humanidade ainda incapaz de se exprimir em discurso argumentativo que, no entanto, contém uma sabedoria antiga e O CONHECER E O SABER EM FRANCIS BACON

description

Finker, francis bacon

Transcript of FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Page 1: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

As enciclopédias costumamapresentar o filósofo, político eescritor inglês Francis Bacon(1561 - 1626) como um dosfundadores da ciência moderna.Neste livro ele é visto de fatocomo um dos precursores dessaciência, mas sobretudo por tersido um questionador dasprincipais características de queela então se revestia. Ao mesmotempo, consagrou-se comocientista e mago renascentista, eé assim que Raul Fiker prefereclassificá-lo.

O pensamento de Bacon éentendido por Fiker como uminstrumento sensível voltado àsondagem de universos outroradominados pela crençareligiosa, mítica no caso. Porisso, ele faz questão de notarque "...além de lançar mão dosantigos mitos para popularizarseu plano de reforma científica,Bacon os considera realmentecomo uma forma primitiva deexpressão usada por umahumanidade ainda incapaz de seexprimir em discursoargumentativo que, no entanto,contém uma sabedoria antiga e

O CONHECER E O SABER

EM FRANCIS BACON

Page 2: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

O CONHECER E O SABER *

EM FRANCIS BACON

Raul Fiker

Page 3: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

© Copyright 1996 Raul Fiker

Todos os direitos cedidos à

Editora Nova AlexandriaR. Dionisio da Costa, 14104117-110Caixa Postal 12.9940401Y-970São Paulo – SPFone/fax: (011)571-5637

EditorLuiz Baggio Neto

Projeto gráficoMarina Mayumi Watanabe

Preparação de originaisCarla C.C.S. de Mello Moreira

Editoração eletrônicaStudio DuSeki

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ficker, RaulConhecer e saber : a interpretação alegórica dos mitos clássicos em Francis

Bacon : antecedentes, contexto, características / Raul Ficker. — SãoPaulo : Nova Alexandria : FAPESP, 1996.,

Bibliografia.

1. Alegoria 2. Bacon, Francis, 1561-1626 3. Conhecimento 4. Estética5. Filosofia I. Título.

96-4029 CDD-192

Indices para catálogo sistemático:

1. Bacon : Interpretação crítica : Filosofia inglesa 1922. Filósofos ingleses 192

-I-FIL

À memória de meus pais.E para o André.

Page 4: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Agradeço a Renato Janine Ribeiro, pela orientação datese que originou este livro, à Marcia Epstein Fiker, pela

paciência e cumplicidade concomitantes à sua elaboração eà Fapesp, cujo auxílio possibilitou sua publicação.

Page 5: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

SUMÁRIO

Introdução 11Notas da Introdução 16

I — Narrativa/Argumento 17Notas do Capítulo I 29

II — Alegoria 33Notas do Capítulo II 64

III — Ocultar/Revelar 72Ocultar 72Revelar 85Notas do Capítulo III 90

IV — O conhecimento da sabedoria: Bacon e os antigos 95Bacon e a tradição retórica 104Bacon e a tradição hermética 108Interpretações 110Notas do Capítulo IV 134

V — Conclusão 144Notas do Capítulo V 147

Referências Bibliográficas 149

Page 6: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

INTRODUÇÃO

D a interpretação alegórica dos mitos clássicos que Francis

Bacon faz em De sapientia veterum l pode-se dizer que pormuito tempo teve uma fortuna crítica semelhante N. própriaposição do autor no momento que ocupa na história do pen-samento ocidental: foi tomada, grosso modo, pelo que não é.Pois assim como Bacon é tradicionalmente, sobretudo nosgrandes panoramas históricos traçados com mais ligeireza,situado como um dos fundadores da ciência moderna pelosexatos motivos que não lhe garantem tal posição2 , seu Desapientia veterum, durante muito tempo, foi visto exclusiva-mente como parte de sua obra "literária". E somente a par-tir de pesquisas mais recentes (cf. Rossi, 1968; Lemmi, 1933;Garner, 1970; Jardine, 1974) que este equívoco — constanteaté na edição standard das obras de Bacon de Ellis,

Spedding e Heath de 1957-74 — passa a ser dissipado e o Desapientia veterum, sem que seja descartada sua "literarida-de", é reposicionado como parte da "obra filosófica" de Bacon,pois conteria, inclusive, de uma maneira oblíqua mas clara,colocações relativas ao naturalismo materialista democri-teano, que seriam de grande importância para a compreen-são da perspectiva de sua obra como um todo.

Esta maneira oblíqua empregada por Bacon é a alego-ria, mais exatamente, a interpretação alegórica, que ele,

1 1

Page 7: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

paradoxalmente, utiliza como um artifício retórico. Isto éparadoxal porque o procedimento alegórico, embora vise àcomunicação — para um público restrito — é voltado aoocultamento, ao contrário do retórico, que constitui um esfor-ço de comunicação para um público mais amplo. Assim, paraBacon, essas colocações seriam já expressão da "sabedoriados antigos " , que a teriam ocultado do olhar profano portrás do véu da alegoria, na forma do que chegou a nós comoalguns dos mitos clássicos. Ao interpretar esses mitos, Baconestaria comunicando certos pontos, por ele tidos como verda-des, de uma forma mais adequada de ser aceita pelo públi-co, ao mesmo tempo que os reforçava com o prestígio e o pesodessa antiquíssima e mítica sabedoria.

Esta abordagem que Bacon faz dos mitos antigos apre-senta vários prismas de interesse, não sendo os de menorimportância os relativos à sua filosofia natural e às suas con-cepções políticas e morais, à sua "obra explícita", enfim. Masela nos interessa aqui num outro parâmetro — o da relaçãomythos/lógos , ou seja, das modalidades narrativa e argu-mentativa de discurso 4 .

A desarticulação do elemento narrativo, bem como adissolução nas coordenadas do universo mental que originae nutre o discurso da "sabedoria" (que é elíptico, metafóricoe narrativo, em oposição ao aspecto direto, lógico e argumen-tativo da postura do "conhecimento") se evidenciam histori-camente através de diversas manifestações, entre as quaisa interpretação alegórica do mito como é levada a cabo porBacon no De sapientia veterum, no momento em que o estiloargumentativo se radicaliza no discurso científico através deeventos como a materialização da fisica em Galileu 5 .

De sapientia veterum, visto no contexto da relaçãomythos/lógos, apresenta vários aspectos representativosdesta relação. Em primeiro lugar, a interpretação alegóricaem si já pode ser vista como uma forma de irrupção do argu-mentativo no narrativo, como uma captura deste por aque-le, na medida em que a narrativa é traduzida (ou reduzida)para o argumento. Se é verdade que em Platão (cf. Schaerer,

1969, p. 18) o mito enquanto estilo narrativo tem salienta-da sua especificidade como veículo adequado a determina-das mensagens, o mais comum ao longo da tradição da inter-pretação alegórica — que se inicia com a exegese de Homeroanterior a Platão (cf. Pépin, 1958; Buffiere, 1956; Decharme,1904) — é encará-lo como uma espécie de véu um tantoarbitrário desvinculado de seu conteúdo, como uma casca ouinvólucro a ser descartado no processo de apropriação de seuconteúdo. Com respeito a isto a posição de Bacon é ambi-valente: de maneira alternada, ele apresenta o mito numaperspectiva semelhante à de Platão (cf. Rossi, 1968,pp. 127-31), isto é, como veículo privilegiado, e dentro datradição alegórica mais comum, relevando-o como véu a serdescortinado (cf. Rossi, 1968, pp. 127-31; Jardine, 1974,pp. 179-93).

Ocorrem também na prática baconiana da interpreta-ção alegórica amálgama e justaposição de fontes e de inten-ções que interagem dinamicamente produzindo às vezesalguma contradição, aparente ou real. Bacon utiliza muitoas fontes mais comuns em sua época e meio — além da maisremotas, como as Metamorfoses de Ovídio, os mitógrafosrenascentistas como Natalis Comes principalmente (Comes,1567; Boccaccio, 1472; Rossi, 1968, pp. 73-81) — mas quasesempre apenas para a exposição do "enredo" , sendo quaseinvariavelmente original nas interpretações, sejam elasmorais, políticas ou relativas à filosofia natural (e ao seuprojeto de reforma do conhecimento). Mas, entretanto, eleemprega também não poucos elementos da interpretaçãohermético-alquímica (cf. Rossi, 1968; Lemmi, 1933; Linden,1974; Pernety, 1972), e nesta veia fica valorizado o caráterde véu, o aspecto de ocultamento, da alegoria, isto é, a

proteçãoa uma sabedoria secreta que não pode cair em mãosindignas etc. Mas ao lançar mão da interpretação alegóricado mito para comunicar suas concepções mais polêmicas jus-tamente para um público "não-iniciado" e até menos prepa-rado, Bacon está recorrendo a processos que são de uma ou-tra tradição, a retórica (cf. Jardine, 1974; Vickers, 1968;Harrison, 1972).

12 13

Page 8: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Temos, enfim, que um exame da interpretação alegóri-ca do mito clássico em Francis Bacon no contexto da relaçãomythos /logos tende a levantar elementos entre ciência eliteratura, razão e imaginação, ficção e verdade ou realida-de num pensamento extremamente representativo para orenascimento inglês, para o século XVII europeu e para o iní-cio do pensamento moderno.

***

A tese consiste dos seguintes capítulos:I. NARRATIVA/ARGUMENTO — Onde se situa o

âmbito e a natureza da investigação, é colocado o problemae são estabelecidos seus parâmetros no contexto da relaçãomythos/logos. Parte-se aqui basicamente da concepção deHarald Weinrich (1970), mas também das questões levan-tadas por Lacoue-Labarthe (1970) relativas aos estatutos deficção e de verdade ou realidade, e da passagem de Cornford(1981) sobre o "conflito entre a filosofia e a poesia " —capítuloIX, cuja parte especificamente platônica — que é cen-tral no "conflito" — é examinada também nos textos concer-nentes deste filósofo em Burnet (1950) e em Schuhl (1947).São importantes também para a constituição destehorizontede questões, certas colocações de Broch (1966) a partir deuma perspectiva semelhante à de Cornford, de que a filoso-fia levanta as questões outrora respondidas na religião e napoesia.

O ponto focal deste capítulo é a área coalescente entrenarrativa e argumento, onde se situam modalidades ambí-guas como a ficção satírica e a interpretação alegórica, quesão examinadas em sua ação "desnarratizante", na medidaem que procuram reduzir o estilo narrativo a uma estraté-gia argumentativa, tornando-o contingente.

II. ALEGORIA— Onde o procedimento alegórico é exa-minado primeiro historicamente, desde as primeiras alego-rias homéricas e da exegese cínico-estóica à patrística, e de-pois problematicamente, em sua duplicidade hermenêuticae retórica.

III. OCULTAR/REVELAR — Aqui trata-se do examedas tradições hermética e retórica no contexto dorenascimento inglês. o ponto de partida da abordagem é aambivalência do procedimento alegórico em seus aspectos devéu iniciático e recurso retórico, conforme se procurou de-monstrar no capítulo precedente. A primeira parte lida comuma bibliografia de obras críticas e históricas e de textosalquímicos clássicos cujas exegeses alegóricas pertencem auma tradição cuja influência em Francis Bacon não foi

menorque a de mitografias mais freqüentemente a ele associa-das, como a de Comes.

Na segunda parte traça-se um esboço da tradição retó-rica no renascimento inglês e do papel que nela ocupa a arteda memória, item que efetua sua intersecção com a tradiçãohermética. Na bibliografia consultada, algumas obras —como Wallace (1943) e Jardine (1974) — discutem tal

panoramaem função da posição nele ocupada por Bacon, objetojá da primeira parte do capítulo seguinte.

IV. O CONHECIMENTO DA SABEDORIA: BACON EOS ANTIGOS — Este capítulo consiste de uma exposição docontexto histórico, filosófico e literário de Francis Bacon, desua relação com as tradições hermética e retórica e, basica-mente, de sua interpretação alegórica dos mitos clássicos emDe sapientia veterum. A primeira parte se relaciona estrei-tamente com os dois capítulos anteriores, na medida em quevincula Bacon às tradições ali vistas e retoma a história daprática alegórica a propósito de obras como The faerie queenede Spenser e a tradução da Odisséia de Chapman. A segun-da parte, para onde converge o restante da tese, é a análisede algumas exegeses baconianas no contexto do que foi vistoaté então, com o recurso a outras referências no conjunto desua obra assim como de uma bibliografia crítica.

Segue-se uma série de considerações finais, onde seprocura sumarizar o significado e o alcance da interpretaçãoalegórica de Bacon em termos da relação mythos/lógos eseus diversos desdobramentos.

* * *

151 4

Page 9: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

OBSERVAÇÃO —As referências bibliográficas à obrade Bacon são da edição de Spedding, Ellis e Heath, de 1859(fac-símile Friedrich Frommann, Stuttgart-Bad Cannstatt,Verlag Gunther Holyboog, 1963). Quando a referência éde autor citado e remete a outra edição, são fornecidos seusdados. Foram consultadas também a edição italiana deEnrico De Mas (Opere filosofiche. Bari, Laterza, 1965) e otexto original latino do De sapientia veterum (LugduniBatavorum, J. Marie, 1657 — Bibliothèque Nationale. Paris,microfilme), além da tradução brasileira do Novum organum(São Paulo,Abril, 1973).

NOTAS DA INTRODUÇÃO

1BACON, F. De sapientia veterum líber... – Lugduni Batavorum, J. Maire, 1657.Bibliothèque Nationale, Paris (microfilme). Há também outras interpreta-ções alegóricas do mesmo tipo espalhadas pela obra de Bacon, notadamen-te no De dignitate et augmentis scientarum e De principiis atque originibus.

• Por exemplo, pelas suas teorias da indução, principalmente. Por outro lado,sua refutação da hipótese, sua oposição à dedução (e descarte da matemáti -

ca), bem como sua assistemática coleção de dados naturais para o Sylvasilvarum recorrendo a autores como Della Porta e Cardano, valeram-lhetoda uma contra-corrente que procura rechaçá-lo para o recôndito do "me-dieval". Ver Rossi (1968:216-23) e Vickers (1968:1-3).

• Esses "antigos" seriam anteriores à filosofia grega propriamente dita, à qual,de maneira geral, Bacon se opõe explicitamente com ênfase em Aristóteles,e se situariam numa época mítica, uma espécie de illo tempore comconotações semelhantes às do prisci theologi que Marsílio Ficino via nosescritos de Hermes Trimegisto conforme descreve Frances Yates (1987:73).Para a crítica de Bacon dos filósofos antigos, ver, por exemplo, o prefácio doInstauratio magna e as seções históricas do De augmentis.

• A fórmula "do mito ao logos" — bastante conecida, principalmente a partirda obra de W. Nestle (1940), que muito contribuiu para vulgarizá-la — en-contra uma formulação estimulante num artigo de Harald Weinrich(1970:25-34), a partir do qual esboçamos nosso quadro. Esta relação, comooposição, está bem delineada em Cornford (1981), sobretudo nas páginas233-53, em termos que são questionados por Heidegger (1961:29). Lacoue-Labarthe (1970:51-63) enfoca esta relação no que diz respeito aos estatutosde ficção e de verdade ou realidade.

• Este processo, como é sabido, passa ao largo de Bacon (ver Rossi, 1968:220-21). Esse é um momento, de qualquer forma, em que, no âmbito da relaçãomythos/logos, é interessante observar as relações dadas entre as provín-cias cada vez mais rigorosamente delimitadas da ciência e da literatura. Aeste respeiro, cf. Sewell (1960:53-168) e Richards (1932).

I — NARRATIVA / ARGUMENTO

(...) as leis da narrativa,que são tão inexoráveis quanto as leis da física,

embora mais difíceis de averiguar com precisão.R. Scholles e R. Kellogg (1977)

Uma poesia sem figura é por si um imenso tropoGoethe (1836)

i

E durante um processo que vai do século VIII ao IV a.C., naGrécia, período de mudanças fundamentais em todas asesferas do universo mental grego, que o termo logos deixade significar apenas "palavra", assumindo valor de raciona-lidade demonstrativa. E passa assim a opor-se a mythos noque este termo implica uma certa magia da palavra que con-fere aos diferentes gêneros de declamação — poesia, tragé-dia, retórica', sofística — um mesmo tipo de eficácia. Esteúltimo, além de designar uma narrativa concernente àgenealogia dos deuses, refere-se também a uma narrativaqualquer. Em seu uso moderno — a despeito da permanên-cia do significado mais geral na vigência da poética aristoté-lica, onde designa simplesmente o enredo — o termo perma-nece ligado apenas ao primeiro significado, mas é ao segundoque devemos recorrer para capturar o elemento narrativo aque se resume o mito enquanto modalidade de discurso. Este"estilo evêntico" 2 — elíptico, metafórico e narrativo —, carac-terístico da manifestação mítica, é tradicionalmente salien-tado por exegetas como Nietzsche, Jolles e Lévi-Strauss

171 6

Page 10: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

(Weinrich, 1970, p. 28). Enquanto o mythos opera no nívelde mimese e da participação emocional, o logos instaura umprocedimento de pesquisa e exposição que apela somentepara a inteligência crítica. É direto, lógico e argumentativo.Assim, segundo J. P. Vernant (1965, p. 200) 3 , num minuci-oso exame desta instauração, "tudo o que dá à palavra seupoder de impacto, sua eficácia sobre o próximo, é posto entãono nível do mythos, do fabuloso, do maravilhoso, como se odiscurso só pudesse ganhar na ordem do verdadeiro e do in-teligível na medida em que perdesse na ordem do agradável,do emocionante e do dramático".

O mito serve, de início, para a transmissão de uma sa-bedoria, mas sua linguagem narrativa vai sendo substitui-da pela linguagem argumentativa própria do discurso cien-tífico, que já não visa à sabedoria mas ao conhecimento 4 . Aascensão histórica do discurso argumentativo tem portantocomo contrapartida o desprestígio da seqüência narrativa5

nas diversas esferas (filosofia, teologia etc.). A ciência —assim como era função do mito, e ainda o é em algumas cul-turas — cabe então explicar os fenômenos que ultrapassama dimensão do cotidiano, tarefa que ela desempenha com osrecursos argumentativos do comentário, da explicação ou daanálise. Com a dissociação progressiva dos assuntos impor-tantes e do estilo narrativo, como nota Weinrich no estudoacima mencionado, somos obrigados a falar do mito numalinguagem argumentativa.

A narrativa passa então por um desenvolvimento pró-prio cujo percurso há de se cruzar não poucas vezes, nemsempre pacificamente, com o do argumento.

Podemos começar uma rápida mas suficiente incursãono caminho percorrido pelo estilo narrativo a partir da epo-péia, de onde se avista bem longe tanto para frente comopara trás. Nesta segunda perspectiva vemos várias formasnarrativas, nem todas incipientes — mito sacro, lenda qua-se histórica e ficção folclórica —, amalgamarem-se lenta-mente num composto de mito, história e ficção para forma-rem a epopéia. Para frente se vê igualmente longe e com a

mesma nitidez, mas o caminho já é bem mais acidentado emalguns pontos e consideravelmente bifurcado. A via princi-pal, acompanhada pelas suas diversas ramificações, temcomo direção o gradativo afastamento das narrativas domi-nadas pelo impulso mítico de contar uma histórica com umenredo tradicional — isto é, mítica propriamente dita no sen-tido em que o são as genealogias de deuses, por exemplo — anarrativa vai se desenvolver em dois sentidos antitéticos:o empírico e o ficcional6 , ambos procurando escapar datirania do tradicional no relato de uma história. A narrativaempírica, que deixa de ser fiel ao mythos (no sentido maisrestrito) para sê-lo à realidade, tem dois componentes: o his-tórico e o mimético. O primeiro é fiel à verdade do fato eao que seria verdadeiro passado ao invés de à visão tradicio-nal deste. Para seu desenvolvimento são necessários meiosmais precisos de medição no tempo e no espaço e conceitosde causalidade que se referem a agentes humanos e naturaisao invés de sobrenaturais. E o caso de Tucídides ao se distin-guir cuidadosamente da epopéia homérica. O componentemimético é fiel não à verdade do fato, mas à verdade dasensação e do meio ambiente e depende antes da observaçãodo presente do que da investigação do passado. Seu desen-volvimento requer conceitos de comportamento e processosmentais sociológicos e psicológicos. Esta modalidade de nar-rativa é a mais oposta à mítica e pode ser considerada maisuma descrição que uma narrativa propriamente dita, poistende à ausência de enredo, à "fatia da vida", como nos Ca-racteres de Teofrasto. A narrativa ficcional, por sua vez, tro-ca a fidelidade ao mythos pela fidelidade ao ideal e está livreda tradição e do empirismo. Subdivide-se em romântica (re-ferente a "romance" e não a romantismo) e didática e emambos os casos está voltada para o mundo externo, para opúblico, a quem espera agradar ou instruir'. Neste sentido,a narrativa ficcional, sobretudo em sua vertente romântica,apresenta o pensamento em forma de retórica. O componen-te didático da narrativa ficcional é regido por um impulsointelectual e moral, assim como o "romance"5 é regido peloestético.

1 8 19

Page 11: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Conforme indicam seus nomes — empírico e ficcional—, esses tipos representam, na esfera da literatura narrati-va, um contraste semelhante ao das abordagens científica eartística da realidade, reproduzindo, de certa forma, o con-traste mais amplo que opõe o estilo narrativo ao argumen-tativp, através dos quais são veiculadas tais abordagens.

Para F. M. Cornford (1981, cap. IX) 9 , a existência des-te contraste conflitante, que ele examina no nível da filoso-fia e da poesia, indicaria que já houve um campo comum rei-vindicado por ambas estas. Assim, o surgimento de umaciência da natureza com base na observação direta dos fenô-menos no século VI a.C. não teria sido repentino mas frutode uma paulatina diferenciação entre o poeta, o profeta e osábio, tipos que coexistiriam anteriormente na figura únicado xamã. A natureza dos deuses e as origens do mundo, nes-te quadro, eram da competência dos profetas e, não tendocaráter sagrado, as teologias homérica e hesiódica podiamser expurgadas pelos próprios poetas, acompanhando astransformações sociais10 . Como paralelamente se desenvol-via a concepção filosófica de divindade, houve entre ambasação recíproca. E, neste sentido, embora os filósofos tenhaminfluenciado os poetas, fazendo incidir uma crítica racionalsobre uma teologia atribuída aos primeiros poetas, seu pro-jeto de rasgar o véu do mito e penetrar na "natureza das coi-sas", revelando uma realidade que pudesse satisfazer as exi-gências do pensamento abstrato, substituindo assim asabedoria dos poetas pelo seu conhecimento, não pôde seraceito por aqueles em sua perspectiva necessariamente maisconservadora, uma vez que a poesia não podia prescindir daimagística e do poder emocional do mito. Assim, de seu lado,os filósofos, independentemente da reação dos poetas aonovo discurso, atacam abertamente suas antigas crenças.São bem conhecidos os ataques de Xenófanes aos deusesantropomórficos de Homero e Hesíodo e sua afirmação dodeus único, que seria "eterno, uno, sempre igual, limitado, deforma esférica e capaz de percepção em todas as suas partes

"

(Hipólito, Ref., I, 14, 2), além de constituir o próprio mundo,

o universo divino. Deste modo, Xenófanes rejeitava a preten-são de que as Musas revelariam a verdade acerca do passadoremoto e reivindicava para si uma visão profética em oposi-ção à delas. Também Heráclito (frag. A22), com sua concep-ção de um deus que pode igualmente ser descrito como a vidado universo, o fogo "sempre vivo" e portanto também "sem-pre agonizante" na transformação dos elementos, reivindi-cava da mesma forma para si um conhecimento proféticoque nega aos poetas (e aos filósofos, Xen©fanes incluído),assentando tal reivindicação em que o Logos, o pensamentoque orienta todas as coisas, se encontra dentro dele, bemcomo na Natureza: é o fogo no mundo exterior a nós e umaparte deste fogo está em nós. Há aqui uma "contrapartidafilosófica da reivindicação do poeta, que se diz inspiradopelas Musas, e da do vidente, que se diz possuído por Apolo.O filósofo é entheos num sentido prosaico e literal: a suainteligência é uma parcela que se separou da inteligênciadivina na Natureza. E o que é mais, esta inteligência éa parte do seu ser que é racional e não a que é irracional"(Cornford, 1981, p. 245). Cornford prossegue, passando porParmênides, pela física atomista, por Empédocles eAnaxágoras (Cornford, 1981, pp. 245-50) na revisão desteconflito filósofo versus poeta que teria girado principalmen-te em torno das objeções dos racionalistas ao antropomorfis-mo dos mitos (Cornford, 1981, pp. 250-1), no que, aliás,pode-se mesmo ver uma proximidade da concepção não-antropomórfica dos filósofos com aquela muito mais antigaque a antropomórfica, de um poder sobre-humano difundidopela natureza (Cornford, 1981, p. 251). Mas o que nos im-porta aqui, mais do que o caráter profético do filósofo, é aentrada da razão intuitiva (vo0s) no lugar da faculdadesupranormal que anteriormente se manifestava em sonhose visões proféticas (Cornford, 1981, p. 251) exprimindo-sena linguagem narrativa dos mitos tradicionais trabalhadospelos poetas didáticos, a quem as Musas revelavam os lon-gínquos limites de história do mundo.

20 21

Page 12: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Quanto a isto, a posição de Platão — que, lembremo-nos, expõe seu pensamento sob a forma dramática de diálo-gos — é extremamente sugestiva. Ele opõe a dialética e amatemática ao mito (Schuhl, 1947, p. 32), e exclui, pode-sedizer, com ênfase xenofônica, o poeta, o fabulador, de seuEstado ideal, em que as instituições têm alicerces em boaparte pedagógicos 11 constituídos por sua vez a partir destepensamento rigoroso que se exprime através do logos e, noentanto, assumindo o mito como um logos (Goldschmidt,1963, p. 96; Fedro, 114d e G6rgias, 523a), faz desta forma deexpressão um dos instrumentos principais de seu pensamen-to 12 . Exprimindo em termos concretos os raciocínios abstra-tos muitas vezes inacessíveis, o mito traduz o que, podendoser transformado em imagem sensível, indica uma orienta-ção. Mas o mito platônico não é somente uma exposição ci-entífica ou transposição vulgarizadora, guardando suas ca-racterísticas originais de linguagem mimética e emocional,ele é também encantamento, sedução (Schuhl, 1947, pp. 21-

2; Schaerer, 1969, p. 146; Fédon, 114c-d). O mito platônicoainda compartinha com a poesia e a eloqüência um dinamis-mo afetivo que pode suprir a ausência de provas, o que nãocaberia no estilo argumentativo do logos enquanto tal. NosDiálogos, o mito ascende às mais altas realidades, ao além,ao mundo da Formas, aos deuses, ao Bem — só que ilusoria-mente, no plano dadoxa. Daí, segundo Schaerer, a importân-cia do mito nos Diálogos, pois enquanto a dialética avançalentamente, o mito, como uma espécie de deus ex machina,possibilita aceleração rumo à conclusão. Desta forma, naRe-pública (506d-e)), Glauco, incapaz de contemplar o Bem— pois o decorrer de uma vida humana não seria suficiente— o verá, contudo, sob a forma do sol: imagem mítica, semcompromisso e no entanto bastante útil, pois permite situara realidade mais elevada sem exigir que para tanto se eleveaté ela. O mito é assim, em relação à dialética, uma ficção,uma mentira útil e consciente 13 , de sabedoria que era ini-cialmente, tornou-se uma espécie de "doxa auxiliar" da novaepisteme instaurada pelo estilo argumentativo do logos, oconhecimento.

É esta, de qualquer forma, a configuração que vamosencontrar ao longo da história das relações entre os dois dis-cursos. Embora a carga semântica com que se nos apresen-tam seus termos, sugerindo uma oposição entre "verdade" e,pura e simplesmente "mentira", ambos, sobretudo em suasorigens, sempre foram permeáveis um ao outro complemen-tando-se, ainda que em tensão e com o predomínio evidentedo logos. Quanto a este aspecto, para Heidegger l4 :

Mito quer dizer: a palavra que diz. Dizer é, para os gregos, tor-nar manifesto, fazer aparecer, exatamente fazer aparecer o pa-recer e o que está em sua Epifania. MQBoç é, no seu dizer, oque é: é, no desvelamento de sua demanda, o que parece. Mü9oçé a demanda que toca todo o ser do homem de antemão e radi-calmente, a demanda que nos faz pensar no estado que parece,que é. Aáyoç diz a mesma coisa. MOBoç e Aóyoç não entramde forma alguma, como em geral a história da filosofia o crê,em uma oposição causada pela filosofia mesma; e precisamenteos primeiros pensadores entre os gregos (Parmênides, fragmen -

to 8) empregam püeoç e Àóyoç no mesmo sentido. MUBoq e Àóyoçnão se descartam nem se opõem mutuamente a não ser ondenem o püüoç nem o Àóyoç podem guardar seu ser primitivo. Éisto o que já está cumprido em Platão. A crença de que o püOoçtenha sido destruído pelo Àóyoç é um preconceito da história eda filologia, herdado do racionalismo moderno com base noplatonismo. O religioso não foi jamais destruído pela Lógica,mas sempre e unicamente pelo fato de que o Deus se retira(Heidegger, 1961, p. 29).

Assim,

(...) o Àóyoç é a verdade do pü&oç (como dizer verdadeiro,mas o p08oq autentica a originalidade ontológica do Àóyoç, suapureza anterior à cisão e à oposição entre ambos' 5 .

Esta configuração das duas esferas discursivas que secomplementam ganha alguma nitidez — embora explicita-

mente (mas não convincentemente, como se verá adiante)

2322

Page 13: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

recusada — na obra de Hermann L'héritageBroch, onde oantagonismo mythos/lógos ocupa uma posição central en-quanto tal. Em seus ensaios "L'héritage mythique de lalittérature " e "Le style de 1'âge mythique " (Broch, 1966), arelação se dá ainda, entretanto, em termos de interação:

É no domínio do mito que se revelam os elementos fundamen-tais constitutivos da alma humana, e eles se revelam a ela, poisela os redescobre, os reconhece e os transpõe em ação dramáti-ca nos eventos do mundo e nos da natureza. É o mesmo proces-so pelo qual o espírito humano conhece sua estrutura funda-

mental sob forma de lógica e a redescobre na causalidade doseventos do mundo exterior, dominando assim estes últimos.Condicionado por esta dupla constituição fundamental da exis-tência humana, o ato de apreender o mundo se realiza no mythos

e no logos. Eles são as duas imagens originais do conteúdo e daforma, indissoluvelmente conjugadas entre si, e precisamentepor isto eles se refletem mutuamente e se unificam miraculosa-mente no mais humano de todos os fenômenos humanos: a lin-guagem humana (Broch, 1966, p. 247).Mas o mito — e especialmente em sua unidade última, dis-simulada como o Logos — abarca a totalidade da essênciahumana. Para refleti-la e afirmar a verdade, ele deve ter umaimagem do mundo que, igualmente mítica e submetida à cau-salidade lógica, contenha uma ordem tão totalmente compreen-

siva que ele represente a "criação" e seja ele mesmo criação.

Todo mito culmina na cosmogonia. É a imagem original de tudoo que é enunciável, primitiva e inacessível ao mesmo tempo porsua simplicidade. Nenhum dos derivados míticos que a huma-nidade engendrou em épocas mais recentes — conhecimentohistórico-científico, historiografia com suas variedades biográ-ficas, literatura histórica — jamais foi nem poderia vir a sercosmogonia, mas cada uma delas, graças à sua herançacosmogônica, tende para uma totalidade submetida à ordem deuma cosmogonia a fim — no limite onde essa tendência é efeti-vamente satisfeita — de tornar-se "criação

" , verdadeira criação

renovada (Broch, 1966, p. 248).

E envereda por caminhos paralelos ao de Cornford: mito e logos— que estão inicialmente unidos por uma ponta profética vol-tada para o desconhecido se separam tão radicalmente que estaseparação parece ter extirpado completamente o conhecimentoda faculdade profética da consciência do homem (Broch, 1966,p. 252).

E ainda:

(...) o mito é a primeira emanação do logos no espírito humano,na linguagem humana. Jamais o espírito humano ou sua lin-guagem teriam concebido o Logos se esta concepção já não ti-vesse tomado forma no mito. O mito é o arquiteto de todo co-nhecimento fenomenal de que o espírito humano é capaz (Broch,1966, p. 263).

Broch, como observa H. Arendt (1987, pp. 99-131), seorientou cada vez mais do mythos para o logos, da literaturapara a ciência, em busca de um modo estritamente lógico edemonstrável de conhecimento. Em seu romance,A morte deVirgílio, o poeta manda, para o bem do conhecimento, quei-mar a Eneida — pois "a literatura é apenas impaciência doconhecimento "16 . A posição de Broch aqui é exemplar poisalém de programar a queima do mythos para que prevaleçao logos através do próprio mythos em sua maior eficácia,Broch se diz platonista (Arendt, 1987, p. 109), e com ele, efe-tivamente, estamos de volta à antiga e recorrente postura defundo pedagógico que Platão mantinha em relação ao mito eà poesia, com a importante diferença (surpreendentementesimétrica, dadas as obras visadas) de que, á contrário dePlatão, que rejeitava a leitura alegórica dos mitos dos poe-mas homéricos (ver Capítulo II, p. 35), Broch (1966, p. 197)justifica o Ulysses de James Joyce apenas por considerá-lo"triplamente" alegórico'''.

A preocupação de Broch com a "obra de arte científica"não é um fator isolado no contexto da modernidade, em quea ciência, desde um enfoque positivista no século passado e

2 4 25

Page 14: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

através do prestígio da tecnologia no século atual, passa aser enfocada também mítica e fabulosamente. Baudelaire,para caracterizar a precisão do estilo, compara-o aos "prodí-gios da matemática", com a metáfora adquirindo o valor de"exatidão matemática". Baudelaire apóia-se aqui em Poe,que falara do parentesco das tarefas poéticas com a "lógicarigorosa de um poema matemático". Através de Mallarmé,estas idéias prosseguiram atuando na poética atual l8 . Con-vém notar, no entanto, que Baudelaire condena as ciênciasnaturais: "A interpretação científica do universo é percebi-da pelo sentido artístico como restrição do universo, comoperda do mistério e, portanto, o desdobramento extremo dasforças da fantasia vem revidar aquela interpretação" (apudFriedrich, 1978, p. 56).

E nas ciências naturais, entretanto, que E. Sewell(1960) e G. Beer (1986) vão procurar um ponto de concilia-çãoentre a ciência e a poesia, entre o logos e o mythos. Sewellparte do mito de Orfeu 19 e da colocação de M. Polanyi (emPersonal knowledge) de que a ciência depende de um ato deafirmação pelo cientista — asserção básica, compromissopessoal, que nunca pode ser verificado por nenhum meiológico — colocando a ciência na companhia das artes. Rela-ciona a gramática, principalmente através dos pronomese verbos reflexivos, ao corpo, como "uma área de constanteintercâmbio entre forma e conteúdo" (Sewell, 1960, p. 40);salienta um certo caráter reflexivo na biologia (tambémsegundo Polanyi), que apareceria como um processo de vidase refletindo em si mesma. Com isto, Sewell procura fazer,na verdade sem muita consistência, com que a biologia, aocontrário da matemática ou da lógica, se pareça — comoqueria Goethe — com a poesia (Sewell, 1960, p. 44-5). JáBeer procura mostrar como Darwin introduziu na sua lin-guagem expositiva aquele tipo de riqueza criativa de cará-ter plural que a ciência tende a descartar e que interessa àpoesia. Uma vez que, para Darwin, as espécies não eramessências permanentes divinamente criadas mas formastransitórias, que se adaptam, através do tempo, a outros

organismos e ao ambiente, a metáfora e a analogia, comtodas as suas ambigüidades poéticas, tornaram-se impor-tantes para o seu projeto científico. Como nenhuma das afir-mações da Origem das espécies pode ser provada por meio deevidência empírica direta, Darwin realiza algumas proezasretóricas notáveis, proezas de metáfora e analogia para fazê-las e sustentá-las. O uso que ele faz desses recursos pode sersituado na tradição do "uso pedagógico" que tinha o mito nodiálogo platônico, pondo o estilo narrativo a.serviço do argu-mento. A retórica, contudo, é certo, de imediato oferece suaface de Jano voltada para o argumentativo, e seria proble-mático designar seus recursos literários — narrativos oulíricos — se não tivéssemos em mente a diluição da retóricaaristotélica por sincretismo, deixando de opor-se à poética,"em proveito de uma noção transcendente que chamaríamoshoje `literatura"' (Barthes, 1975, p. 161); daí a atribuiçãodaqueles recursos à esfera do mythos. Isto sem refletir, é cla-ro, outro aspecto da obra de Darwin, a saber, como fontemitopoética a informar — como Freud e Frazer — a temá-tica literária moderna, fixando jurisdição imaginativa sobrea consciência moderna.

Ainda na esfera do narrativo a serviço (didático) do ar-gumento, há o vasto território do gênero literário da sátira.Na medida em que na sátira, a construção do enredo pro-priamente dito (e o enredo, coluna dorsal da narrativa, éparte homônima do todo, designado comumente comomythos) tem que se adaptar a uma mensagem, tornando-seseu veículo, ela tende a se enfraquecer enquanto tal. E em-hora o problema central da sátira seja sua relação com arealidade20 , ela carece do vigor mimético que anima a nar-rativa desde a épica homérica, pois a despeito de se reivindi-car realista, ela é quase sempre exagerada ou distorcida. Seudesvio do estilo narrativo, por outro lado, fica ainda maispatente em uma de suas formas típicas: o monólogo, quaseininterrupto, proferido pelo autor "narrador" ou por umapersonagem sua porta-voz (Highet, 1972, p. 5) 21 . Este des-vio no contexto da teoria dos gêneros está implicado mesmo

26 27

Page 15: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

no termo sátira, cuja origem, a palavra latina satura, desig-na mistura, variação 22 e, segundo o rastreamento da chama-da sátira menipéia que M. Bakhtin 23 (1970 e 1978) processapara o fim da antigüidade clássica e durante o períodohelenístico, época de formação de gêneros múltiplos masintei namente aparentados enquanto "cômico-sérios " , essamistura de gêneros inclui principalmente o "diálogo socráti-co" e a viagem fantástica. Reencontramos estes elementosna utopia (cujo proto-pai, aliás, é Platão com a Repúblicae As leis), que pode ser vista como um subgênero da sátira eque consiste, principalmente, de uma fantasia cientificistaexpressa por uma narrativa que inclui ou consiste geralmen-te de uma viagem fantástica. Esta narrativa tende a se en-caminhar para a descrição de uma ordenação geométrica (ouao menos simétrica) da sociedade humana com vista à reali-zação de um logos. Todo este território cartografado como"narrativo" na teoria dos gêneros, enfim, está infiltrado pelaargumentação, que prossegue em sua ação desnarratizantepor regiões limítrofes como a do "romance filosófico" oudo "romance de tese", sem falar da "literatura engajada".Assim, na obra ficcional de Sartre L'être, por exemplo, aexposição de sua ontologia do homem como uma "liberdadeem situação" encontra um percurso que, do argumento filo-sófico no L'être e le néant, passa para a narrativa romanescaem La nausée e L'homme. De qualquer forma, o que se cons-tata é que a coalescência sempre se dá em detrimento danarrativa, embora seja ela que se dê na linha de frente. Omythos sempre termina por se diluir ou se tornar subalter-no do logos, que o explica. Quanto a este invariável desfechodesnarratizante, é indiferente que a narrativa seja recruta-da para fins argumentativos, ou que o argumento seja em-pregado para explicar e interpretar a narrativa (como se dáde modo mais evidente na teoria e crítica literárias), ou ain-da, principalmente, na alegoria — de modo mais complexo eambivalente — onde por trás dela ele vai encontrar a si mes-mo. E é o que passamos a examinar no capítulo seguinte.

NOTAS DO CAPÍTULO I

1 Sobre o papel ambivalente da retórica no âmbito da presente abordagem,ver esclarecimentos mais adiante no Capítulo II, e na segunda parte doCapítulo III.

z Na terminologia sugerida por H. Weinrich (1970). Tendo lingüisticamente ostatus da fala, no sentido saussuriano do termo, o mito narrativo pode sedeixar traduzir para outro código, por exemplo, sob forma dramática(Weinrich 1970:27) lembra inclusive que a tragédia grega, segundo a tesede Nietzsche, salvou o mito por um certo tempo, quando este vacilava aoassédio da razão) ou no interior do gênero lírico. Wdinrich enumera umasérie de sinais apropriados para que um texto se deixe reconhecer comonarrativa em geral ou como mito especificamente:• sinais situacionais: vários ouvintes reunidos em torno de um narrador;• sinais metalíngüísticos: o narrador anuncia que vai contar um mito (ou

uma história);• sinais textuais persistentes: uma fórmula de introdução tipo "Era uma

vez..." no começo, e outros sinais que designam a seqüência narrativa nocurso do texto;

• sinais textuais recorrentes: o emprego dos tempos narrativos — em gre-go, o imperfeito e o aoristo — numa certa distribuição (Weinrich, 1970:27).Para diversas línguas modernas estes sinais são examinados exaustiva-mente em Les temps, do mesmo autor (1973), notável ensaio de lingüísti-ca do texto. No artigo que ora citamos há uma exemplificação a propósitodo mito de Narciso nas Metamorfoses de Ovídio (Weinrich, 1970:27-8).

Estes sinais — cuja presença total não é obrigatória num texto para que elepossa ser caracterizado como uma narrativa — podem ser considerados, naterminologia de Lévi-Strauss, como fazendo parte da "armadura" do mito,isto é, "de um conjunto de propriedades que permanecem invariáveis emdois ou mais mitos" (Lévi-Strauss, 1964:205).

s Esta ruptura entre o modo narrativo e o que Weinrich chama de discursoargumentativo é visto por N. Frye (1973:75) nos termos em que "em litera-tura o que entretém precede ao que instrui, ou, como podemos dizer, o prin-cípio da realidade se subordina ao princípio do prazer. Nas estruturas ver-bais assertivas a prioridade se inverte" . Ver também, quanto a isto, asconsiderações de Todorov (1969:105-117) sobre a "palavra-ação" e a "pala-

vra-narrativa" na Odisséia, que se atêm não às categorias de verdadeiro emaravilhoso, mas de justiça e beleza.Weinrich (1970:30-4) dá um resumo da descrição histórica da ascensão dodiscurso argumentativo. Trata-se de um quadro das etapas mais salientesda desmitologização que domina toda a história da mitologia a partir daIdade Média, quando o mito é reduzido em seu caráter narrativo e imobili-zado em seu caráter sucessivo sob forma de quadro, tornando-se compará-vel ao tipo de alegoria conhecido como personificação, até a ausência totaldo aspecto narrativo no mito moderno, evidente no "conceito mítico" deBarthes, completamente dessintagmatizado.

2 8 29

Page 16: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

A. Jolles (1976:100), além de destacar o evento como o que define o gestoverbal do mito, salienta também a oposição mythos / logos, caracterizando omito como o "lugar onde o objeto se cria a partir de uma pergunta e de umaresposta, isto é, o lugar onde, a partir de sua natureza profunda, um objetose converte em criação (Schopfung)" (pp. 90-1). Na esfera do logos, poroutro lado, "o conhecimento e a descoberta, ao contrário do mito, são pro-cessos em que os objetos não se criam, mas são produzidos. Como vontadede transformar o mundo de si mesmo e pelo trabalho ativo, como penetra-ção no âmago do universo para esclarecer-lhe a natureza, estão em guerraconstante com o mito" (p. 91).W. Benjamin (1980:59) associa também o estilo narrativo ao universo dasabedoria — "A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico daverdade, a sabedoria, está agonizando (...)" — embora mais adiante oponhaesta não ao conhecimento mas à "informação" (ver a propósito do jornalis-mo, pp. 60-1). Ele vê este processo como "uma manifestação secundária deforças produtivas históricas seculares que aos poucos afastou a narrativado âmbito do discurso vivo (...)" (p.59).

5 O termo "narrativa" é empregado aqui um tanto extensivamente, abran-gendo não só a poesia épica e seus derivados, mas também a lírica e emalguns casos a dramática. Não se trata de confundir os termos, mas de opõ-los, no que eles têm em comum, ao logos. Convém lembrar, contudo, quemesmo na esfera a que nos atemos, delineia-se claramente uma distinçãona medida em que a poesia lírica pode ser vista como estando para a narra-tiva com esta está para o argumento. Ver, por exemplo, P. de Man (1971:168):A poesia lírica é uma forma de linguagem primitiva e espontânea, em con-traste aberto com formas mais autoconscientes e reflexivas de discurso li-terário em prosa. Nas especulações do século XVIII sobre as origens da lin-guagem, a asserção de que a linguagem arcaica é a da poesia, e a dalinguagem contemporânea ou moderna é a da prosa — é um lugar-comum:Vico, Rousseau, Herder, afirmam a prioridade da poesia sobre a prosa, ge-ralmente com uma ênfase valorativa que parece interpretar a perda de es-pontaneidade como um declínio (...).

6 Ver Scholles e Kellogg (1977:8). Ver também Chassang (1948:23 ss.), princi-palmente sobre a diferenciação entre a ficção novelesca e política em que ocaráter ficcional da primeira é mais "voluntário" , por assim dizer.

7 Ver a propósito da relação da narrativa com seu público a interessante com-paração que E. Auerbach (1971:1-20) faz em "A cicatriz de Ulisses" entreuma passagem da Odisséia, e outra da Bíblia, a do sacrificio de Isaac,

redigida pelo assim chamado Eloísta: "Os relatos das Sagradas Escriturasnão procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisongeiam, paranos agradar e nos encantar — o que querem é dominar-nos " (pp. 11-12).Nesta mesma obra há no ensaio seguinte, "Fortunata " , um bom exemplo deficção empírica mimética do tipo "fatia da vida" na descrição dada por

Petrônio de um jantar no Satiricon.8 "Romance" é um termo tomado emprestado de sua aplicação posterior como

rótulo generalizado para narrativas nos idiomas vernáculos ou romance,de onde passou para o uso geral europeu (p. ex., roman em francês), comotermo para uma ficção em prosa longa em oposição à curta (p. ex., nouvelle

em francês) e para o uso inglês como termo para ficção não-realista emoposição ao tipo realista, que recebeu o nome de romance (novel).É oportuno lembrar aqui a linha de restrições surgida mais recentementeà abordagem de Cornford (e à de Burnet). Detienne (1981:100) a resumecom a afirmação que: "Numerosas pesquisas — as de Louis Gernet e deJ.-P. Vernant em particular — mostram que a passagem do mito à razãonão foi o milagre, aceito por J. Burnet, nem o desencantamento progressivode um pensamento mítico numa conceitualização filosófica, reconhecido porF.M. Cornford: é nas práticas institucionais de tipo político e jurídico que seopera no curso dos séculos VII e VI a.C. um processo de laicização das for-mas de pensamento. E na vida social que se constituem ao mesmo tempo oquadro conceitual e as técnicas mentais que favorecemw advento do pensa-mento racional."No que tange à nossa abordagem, isto não questiona o quadro da oposiçãoentre o poeta e o filósofo traçado por Cornford, embora não deixe intactasua especulação sobre a origem da mesma.

10 Ver a este propósito exemplos em Euripides e Píndaro no Capítulo II, p. 42e a nota 25.República, 595a-608b. Ver também Burnet (1950:183) e Fedro, 229ss.

' Z Scharer (1969:18). Linguagem sugestiva, o mito se aparenta à dialética, aoutra forma de expressão capital em Platão.

13 República, 414b. Schaerer observa que há ainda em Platão um outro tipode exposição mítica que comunica, não o conhecimento imperfeito de umobjeto superior, "mas aquele, tão perfeito quanto possível, de um objeto in-ferior — o que vem a dar exatamente no mesmo do ponto de vista subjetivopois, tanto em um como no outro caso, o pesquisador não aprende mais doque uma opinião" (p. 147).

14 Esta passagem de Heidegger é citada por P. Lacoue-Labarthe (1970) aodiscutir a respeito das relações entre filosofia e literatura os estatutos deficção e de verdade ou realidade.

' Cf. Lacoue-Labarthe (1970:57). Na perspectiva de Lacoue-Labarthe. (1970:58), o mundo é portanto o que se diz. A sua maneira, a própria me-tafísica não cessou de o dizer. Mas cindindo o dizer segundo a verdade:p08ogHAôyoç. A partir do momento em que se desfaz esta cisão, em que odizer não é um dizer verdadeiro que se opõe a um dizer fictício, mas umdizer puro e simples, a partir do momento, portanto, em que não há maistranscendência da verdade e em que a verdade não é mais um além, nega-tivo, do dizer, não resta mais nada que seja exterior ao dizer — e nada, aprincípio, a partir do que o dizer tenha começado. Nem o dizer verdadeiro,nem o outro. Não há origem nem fim, mas uma mesma fábula, se se quer,eterna. O arrancar da filosofia à mitologia, a repressão da mitologia etodas as cisões que a acompanham (opinião/ciência, poesia/pensamento etc.)nada mais significam.

'6 Mas no romance esse conhecimento é sacrificado à amizade entre Virgílio eo imperador e às exigências políticas mais imediatas da época, incluídasnessa amizade particular. Pois o percurso de Broch implica "verter todo oestético para o poder do ético" e, em última instância, o que o tempo requernão é o conhecimento, mas a ação, não uma "obra de arte científica", mas

30 31

Page 17: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

uma"obra de arte ética" (v. Arendt, 1987:103). Quando afirmei acima que a

união complementar do mythos e do lógos é explícita mas não convincente-mente rejeitada por Broch, me referia especialmente à Morte de Virgílio,pois, como observa acertadamente H. Arendt (1987:104) a respeito destelivro, "a força literária do livro era grandiosa demais para que sua 'mensa-gem', o ataque à literatura enquanto tal, obtivesse seu pleno impacto

".

" Mas esta alegoria seria uma simples brincadeira se não tivesse um signifi-cado intelectual mais profundo, se não contivesse uma alegoria à segunda eà terceira potências, se ela não permitisse redescobrir a essência da vida eda visão poética, de que Homero é modelo. (Broch, 1966:197)

18 V. Friedrich (1978:41-2). Ver também o soneto de Poe "To Science", em quea ciência, "abutre cujas asas são realidades anódinas

" é "predadora no co-ração do poeta

" e, entre outros estragos na mitopoética, "arrastou Diana deseu carro

". Ver também Richards (1926).

18 Que ela define em três partes: I. com sua voz e música, Orfeu move rochase árvores e domina animais; 2. desce ao inferno para recuperar Euridice; 3depois de despedaçado pelas mênades, sua cabeça fica numa caverna profe-tizando dia e noite até Apolo silenciá-la. Assim, acrescenta Sewell, a poesianão tem poder apenas sobre palavras e pensamentos, mas também sobreobjetos naturais, animados ou inanimados; tem, em conjunção com o amor,poder sobre a vida e a morte; e mesmo em seu próprio desastre, tem algo aver com a profecia (pp. 1-4).Highet (1972:158): "A sátira quer expor, criticar e envergonhar a vida huma-na, mas ela pretende dizer toda a verdade e nada mais do que a verdade

" .21 Aqui também cabe lembrar o precedente platônico, sobretudo quando da

substituição da dramaticidade (relativa) de seus primeiros diálogos pelasituação em que os interlocutores de Sócrates apenas como que pontuamcertas passagens de sua argumentação.

22 Primariamente designava "cheio", "pleno" , para depois tornar-se "uma mis-

tura cheia de coisas diferentes" e seu contexto original é a culinária, tal

como a poética "macarrônica" — mistura grosseira de latim e italiano — e

outras conexões entre comida e tipos de literatura. Quando Horácio chamasuas próprias sátiras de sermones, "falas " , ele está querendo mostrar queelas são menos fortuitas, menos acidentais, que as saturae.

23 O termo "sátira menipéia" designa um gênero que tira seu nome de Menipo

de Gadara que, no século III a.C., lhe deu sua forma clássica. Enquantodesignação de um gênero particular, o termo foi empregado pela primeiravez no século I a.C. por Varrão, que intitulou suas obras saturae menippeae.

II — ALEGORIA

L'homme est né menteur.La verité est simple et ingénue,

et il veut du spécieux et de 1 'ornament.

Elle n'est pas A. lui, elle vient du ciel toute faite,pour ainsi dire, et dans toute sa perfection 1homme;

et lhomme n'aime que son propre ouvrage,

la fiction et la fable.La Bruyère, Des esprits forts, 22

N o curso das complexas relações mantidas entre o mythos e ologos, talvez as primeiras reações, entre as que nos são co-nhecidas, contra a antiga fabulação poética — antes aindade Xenófanes e Heráclito — tenham sido de Pitágoras(Pépin, 1958, pp. 93ss.) que, por outro lado, pelo caráter se-creto de sua mensagem (os mistérios eleusinos já suscitavamuma disciplina do silêncio, que chega à filosofia por intermé-dio do orfismo), favorecia o advento da alegoria através dorecurso aos símbolos (óià oupI3óÀwv)'. Esses símbolos nãodiferiam muito dos usados pela exegese alegórica propria-mente dita, sobretudo estóica, como veremos mais adiante.Eis, a este propósito, uma seqüência propícia a nos introdu-zir no âmbito peculiar dessa prática que consiste quase sem-pre numa espécie de ventriloquia eventualmente brutal —a exegese alegórica.`

Pitágoras recomendava que as libações aos deusesfossem feitas pela orelha2 das taças. Cerca de 330 a.C., omístico sírio Jâmblico, discípulo de Porfírio, entendia este

3 2 33

Page 18: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

preceito no sentido de que era preciso fazer a libação pelaparte da taça onde não se costuma pôr os lábios, para bemseparar o sagrado e o profano 3 . Mas contra este sentido lite-

ral, Porfírio, discípulo de Plotino, defendia que desta forma"Pitágoras recomendava, em termos velados, honrar os deu-ses e celebrá-los através de hinos musicais: é pelas orelhasque a música passa "4 .

Jâmblico, embora querendo dar algum sentido ao pre-ceito — pois, afinal, como bem lembra Curtius (1957,p. 211), a interpretação alegórica é um compromisso que osgregos encontraram para não renunciar nem a Homero nemà ciência — considera seu sentido literal. Porfírio quer depu-rar o pitagorismo de suas velhas superstições e confere aopreceito um valor alegórico propriamente dito (Buffiere,1956, p. 59)5 , malgrado por esta via acabe por tomar a "ore-lha" num sentido paradoxalmente ainda mais literal que ode Jâmblico. Detenhamo-nos nesta última postura, que é aque nos interessa aqui. Seu propósito é o mesmo que dá ori-gem, desde o início assinalável, à exegese alegórica. Esse iní-cio não se refere a um preceito religioso, litúrgico, como emnosso exemplo — escolhido, aliás, propositalmente fora deseu "habitat" não natural mas usual, o texto, para ser intro-duzido liberto de seus limites costumeiros mas não necessá-rios — mas à vontade de justificar a fabulação, que comovimos, o próprio Pitágoras teria sido o primeiro a atacar. Quefabulação era essa, que diante desses ataques produzia jus-tificativas cuja estratégia era a mesma que seus atacantesempregavam zelosamente em outras esferas? Tratava-se,naqueles primórdios, da fabulação poética de Homero (prin-cipalmente) e Hesíodo, de certo tipo de narrativa, do mito,enfim. Pois a própria noção grega de mito já inclui a idéia deum segundo plano. O mito é então uma ficção, mas uma fic-ção que ilustra uma verdade (Buffiere, 1956, p. 33, n. 1)

6 .Assim, se certas passagens de certos mitos são inadmissíveisdo ponto de vista moral ou religioso, deve-se considerar queelas são apenas um conteúdo manifesto, à guisa de véu atra-vés do qual se pode chegar ao conteúdo latente: a verdadeque as justifica.

Na antigüidade usam-se indiferentemente os termos"mito", "alegoria", "metáfora", "figura", "símbolo", "signo"etc.' Pépin (1958, pp. 85ss.) mostra que á(Mnyopíçc, palavrarecente$

na língua grega — que não é a mais usada pelos gre-gos em relação às ressonância misteriosas das narrativas deHomero —, traduz uma antiga idéia que se exprime pelapalavra úrróvoia 9 , cujo sentido primeiro é "suspeita" ou"conjectura". Supõe uma relação entre um dado concreto queé apresentado à percepção e uma idéia relativa ao futuro ouque ultrapassa o mundo sensível, posta como conclusãoou hipótese. Em outra acepção, ligada à interpretação alegó-rica das narrativas poéticas, representações plásticas e mi-tos, trata-se do "significado oculto", do sentido subjacentedestes. Em ambas as acepções o termo exprime uma relaçãoentre um dado sensível — narrativo, descritivo ou plástico —e sua representação intelectual 10 . A natureza do únóvoia sub-jacente aos mitos pode ser filosófica (0rígenes), física(Proclo), teológica (Sinésio), de ordem moral (Aristófanes,Plutarco), histórica (Tucídides). De maneira geral, pode-seadotar — o que é mais costumeiro e faremos aqui — a divi-são entre alegoria 1. física, 2. moral (e psicológica), 3. histó-rica e/ou evemerista" , além da 4. metafísica dos neoplatôni-cos. "Alegoria", finalmente, aparece no vocabulário dosgramáticos (no vocabulário da retórica a palavra se encon-tra em Filodemo de Gadara — cerca de 60 a.C.). É uma pala-vra "técnica", como sublinha Heráclito, o retor, que dá estadefinição: "Um tropo ou figura de estilo que consiste emdizer uma coisa para dar a entender outra 12 . A alegoria nãoé uma forma primária, ela se dá desde que se prolongue porum certo tempo um outro procedimento de retórica, a metá-fora; segundo a definição de Quintiliano, "a alegoria é feitade uma metáfora continuada"" . Quando a alegoria deixa deser clara, muda de nome: torna-se enigma (Quintiliano,Inst.Orat., VIII, 6, 52). Enfim, imagem, metáfora, alegoria e enig-ma são quatro figuras que pouco diferem e se reduzem prati-camente a um procedimento mais geral que consiste em di-zer uma coisa para significar outra (Pépin, 1958, pp. 85ss.).

3534

Page 19: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

A alegoria pode ser um modo de expressão e uma varie-dade de interpretação, sendo que uma expressão alegóricapode nunca vir a ser interpretada alegoricamente, da mes-ma forma que pode ocorrer interpretação alegórica de umautor que não empregou alegoria. Para ambos os sentidos,na que se refere ao mito, seu verdadeiro valor está na verda-de que ele exprime e não na imagem exprimida. Pouco im-porta a fabulação, pois não é ela que é verdadeira. A letra domito da união de Zeus e Hera sobre o monte Ida pode serchocante, mas o que importa é apenas a realidade fisica oumetafisica do mito: a união do ar e do éter, a união da mô-nada e da díada, ou ainda, a união sagrada de duas potên-cias paternal e maternal no escalão divino. A salvaguarda dosentido literal não preocupa os exegetas de Homero comopreocupará os das santas Escrituras, pois eles não têm ne-nhum compromisso com a letra dos mitos.

Como veremos adiante, "alegoria" pode também, atual-mente, designar abstrações personificadas (o que os gregoschamavam de "prosopopéia" ou "personificação" ), como noRoman de la Rose ou na Rópica Pnefma de João de Barros(1531), em que o Tempo, a Vontade e o Entendimento preten-dem passar na alfândega da vida eterna as mercadoriasmundanas constituídas pelos sete pecados capitais. Emboraa alegoria dos antigos seja mais restrita, eles de certa formatambém admitem este segundo sentido: Homero teria encar-nado a sabedoria em Atena, a paixão em Afrodite etc. Zeusseria o éter, Hera, o ar, e Hefesto forjando o escudo deAquiles representaria o demiurgo organizando o mundo.

O nascimento da interpretação alegórica pode ser situ-ado no século VI a.C. 14 , quando se desenvolve vigorosa opo-sição à teologia homérica, acusada de dar aos deuses umarepresentação imoral. O primeiro autor de alegoriahomérica conhecida é Teagenes de Régio, que procura justi-ficar Homero contra os detratores de sua teologia através da

alegoria fisica, vendo no combate dos deuses a luta entre oselementos, e da alegoria moral, ao ver nos deuses represen-tações das disposições da alma. A partir daí, desde Teagenes,no século VI a.C., ao século VA.D., multiplicam-se inumera-velmente as exegeses de Homero sobre o sentido oculto daIlíada ou da Odisséia por retores, sofistas, gramáticos oufilósofos. Sem muitas inovações, a tradição exegética ia seadensando com poucas variações sobre o mesmo temapodendo ser dividida, como o faz Buffiere (1956, pp. 66ss.),em três estágios, sendo que o material disponível parareconstituí-lo pode se dividir em duas categorias bem diver-sas: a) dispersos entre toda a literatura grega, dos pré-socráticos aos estóicos, de Plotino aos últimos platônicos,desde a menor alusão a uma indicação precisa, bem comotestemunhos latinos de inspiração grega, como Cícero ouMacróbio, e autores cristãos ou judeus, como Clemente deAlexandria e Fílon de Alexandria; e b) as obras especialmen-te consagradas à interpretação de Homero. Entre estas últi-mas, as que têm por objeto preciso a exegese homérica, asque falam de Homero ou de seus mitos de maneira mais ge-ral e as anotações, verso por verso, dallíada e Odisséia con-tidas nas coleções dos escólios ou os Comentários de Eustato.

De todos os tratados exegéticos de Homero apenas doischegaram a nós: as Alegoria homéricas de Heráclito redi-gidas com todos os procedimentos da retórica no século IA.D., apoiando-se nos estóicos e procurando demonstrar queHomero não é o ímpio de Platão, canto por canto, demoran-do-se mais na Ilíada — e o Antro das ninfas de Porfirio —que a partir da vintena de versos desta passagem da Odis-séia, se propõe a traçar toda a história da alma com inspira-ção neopitagórica. Afora estes, temos no segundo grupo: aTeologia de Cornutus .- que passa em rápida revista os deu-ses do panteão grbgo para explicar, principalmente com arecurso da etimologia, quais realidades, físicas ou morais,suas figuras simbolizam, sempre embasado na exegeseestóica —; a Vida e poesia de Homero do Pseudo-Plutarco —que procura mostrar a originalidade de Homero frente à

373 6

Page 20: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

filosofia grega com alegorias físicas e principalmente morais,de onde teriam saído os princípios de todas as escolas demoral —; os escólios ou notas que fizeram sobre diversosmanuscritos homéricos abordam também o sentido profun-do do texto; e Eustato, arcebispo de Tessalônica, morto cercade 1198, considerando a Ilíada e a Odisséia "poemas edu-cativos nos quais convém se inspirar em muitas circunstân-cias da vida " (Buffiere, 1956, p. 78), tende a insistir naslições de moral homéricas" .

Como a filosofia, a exegese de Homero começa pela fi-sica, para só depois abordar os problemas morais da esferahumana. Os primeiros alegoristas misturam Homero eHesiodo, familiarizados que estão com os deuses claramen-te alegóricos deste último: Abismo, Amor, Éter, Oceano, e ocasal Urano-Gea, ou o céu abraçando a terra (Decharme,1904, pp. 2ss.). Desde o século VI a.C., os exegetas, em fun-ção de teorias como as de Anaximandro e Xenófanes —que, por outro lado, é o grande crítico de Homero antes dePlatão 1ó — fazem de Homero um físico. Mais tarde a tendên-cia se acentua e chega a assumir um novo aspecto quando, apartir de passagens de Homero como "Oceano, o pai dos deu-ses, e Tétis, sua mãe" e "Oceano, que é a origem de todos osseres", Heráclito, o retor, Sexto Empírico, Pseudo-Plutarco eoutros passam a acusar Tales, por exemplo, de ter copiadoHomero (Buffiere, 1956, pp. 86-8). A exegese física, nesseperíodo inicial, é dominada pelo sistema de Teagenes deRégio, que encontra os elementos sob as máscaras dos deu-ses e tornou-se clássico, e pelo de Metrodoro de Lampsaque,que também vê nos mitos da epopéia a transposição de fenô-menos cósmicos, mas sob os nomes dos heróis (o éter seriaAgamemnon e não Zeus; o sol,Aquiles; a terra, Helena) e nãoparece ter tido continuadores. Teagenes, contudo, interpre-tando a batalha dos deuses do Canto XX da Ilíada" como aluta dos elementos no universo, em que Apolo, Hélios, eHefesto são o fogo; Posidão, a água; Hera, o ar e assim pordiante — o que, na verdade, é mais uma sistematização, poiscertas identificações já eram bem antigas (Buffiere, 1956,

p. 104) — não deixa de fazer com que alguns deusesencarnem noções morais. Não exige, de fato, grande esforçode qualquer leitor de Homero, qualquer que seja sua dispo-sição exegética, fazer com que Atena simbolize a sabedoria ea coragem refletida diante da loucura de Ares etc. De qual-quer forma, este gramático que viveu em Régio nos fins doséculo VI lança as bases da exegese alegórica nas linhas emque iria durar até a morte do helenismo.

***

Ao considerar o mito sob um prisma pedagógico, Platãovê com reservas a exegese alegórica. Como foi visto no Capí-tulo I, ele toma o mito como a única possibilidade de se apro-ximar da verdade em certas circunstâncias. Mas ao mesmotempo ele restringe singularmente o número de mitos váli-dos. Só o filósofo pode compor os mitos autênticos: para bemconstruir a história em imagens é preciso primeiro conhecera realidade que se quer exprimir nessa história, o que excluios sofistas e os poetas, que ignoram essa realidade e nãopodem colocar por trás da imagem o pensamento matriz.Platão aceita, contudo, os mitos tradicionais, mas só ondeo conteúdo fabuloso é moral: um mito deve ser rejeitado sefalta com o respeito pela divindade 18. Nota-se, entrementes,que não é outra a disposição do exegeta ao procurar descar-tar a letra das passagens míticas menos respeitosas, mas,concebendo o mito como instrumento pedagógico, Platão con-sidera, por exemplo, irrelevante a possibilidade de haveralegoria na passagem da Ilíada em que Hera é agrilhoadapor Hefesto a mando de Zeus, pois "uma criança não tem con-dições de discernir o que é alegórico do que não é" (Repúbli-ca, 378). De qualquer forma, a alegoria se presta a todas asmanobras e permite aos hábeis achar nos poetas os ensina-mentos mais inesperados (Protágoras, 316). NoFedro, embo-ra o mito tenha a eficácia de um encantamento (Fedro, 114d),sua exegese alegórica é vista como perda de tempo (Fedro,229c-230a). Colocando-se contra a exegese alegórica, Platão

393 8

Page 21: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

visa diretamente ao postulado fundamental dela: pois, paraele, Homero e os poetas não conhecem nada, em domínioalgum, e simplesmente não há o que decifrar. Os argumen-tos contra a "cria" de Homero são minuciosamente desen-volvidos no livro X da República (595a-608b), centradosem que a poesia é uma imitação, e a imitação é derrisória econdenável 10 .

Ao contrário de Platão, Aristóteles não vê no mito deHomero e Hesíodo uma ficção arbitrária e desprovida dealcance didático, mas a expressão alegórica de um ensina-mento racional, a lembrança deformada de antigas especu-lações filosóficas (Metafísica, XI, 8, 13), chegando a descobrirno Canto VIII (18-27) dalltada uma formulação alegórica desua própria teoria do primeiro motor (Movimento dos ani-mais, IV). Ele aceita, ao lado desta alegoria fisica, a possibi-lidade de uma alegoria psicológica e moral na ligação queHomero atribui a Ares e Afrodite (Odisséia, VIII): "Pareceque não é sem razão que o primeiro mitólogo imaginou aunião deAres eAfrodite, pois todos os guerreiros se mostraminclinados ao amor dos homens ou das mulheres" (Política,1270a). Além disso, nos Problemas homéricos, Aristótelesteria interpretado o episódio homérico do gado do sol (Odis-séia, XII) tomando-o como os dias do ano, e sua morte peloscompanheiros de Ulisses como uma figura do tempo perdido(Buffiere, 1956, pp. 243-5). Para Aristóteles, o filósofo é"filomito", pois os elementos maravilhosos do mito, intrigan-do sua curiosidade, o solicitam a encontrar explicações e ver-dades ocultas, e é nesta direção que ele explica, além daunião entre Ares e Afrodite, já mencionada, por que a Terraé considerada como uma mãe e o Céu ou o Sol assimilados aum pai (Geração dos animais, I, 2, 716a), por que se diz queAtena rejeitou a flauta (Política, VIII, 6, 1341b) etc. Há quese lembrar também que Palaifatos, discípulo de Aristóteles,está na origem da tradição da exegese alegórica histórica.

No que se refere a esse período — que pode ser chama-do de pré-estóico na história da exegese alegórica com a mes-ma propriedade que se emprega o termo "pré-socrático" na

história da filosofia — cabe mencionar ainda Antístenes,contemporâneo de Platão, que interpreta os episódioshoméricos a partir da moral cínica, querendo extrair umamoral de Homero. Sua fórmula — que expressa de maneiranova a oposição entre o sentido óbvio, aberto a multidão, e osentido verdadeiro, oculto, e que os estóicos retomarão — éque há uma distinção entre aquilo que o poeta falou segun-do a opinião e a verdade (distinção tão antiga quanto, pelomenos, Parmênides, mas nova neste âmbito). Diógenes, dis-cípulo deAntístenes desenvolve uma extensa exegese alegó-rica moral do mito de Medéia (a partir da Teogonia deHesíodo, v 956), transformando-a em heroína cínica. Masalém de Medéia e mais de Héracles e Circe, é principalmen-te em Ulisses que encontram aplicação os princípios moraiscínicos: indiferença à dor, à fome, aos insultos, A. vitória pelaascese, pelo treino, sobre as mais duras fadigas. Ulissesé para Antístenes uma espécie de Sócrates mítico, modelode resistência e de renúncia2Ó . Ulisses, junto com uma boaparte da herança cínica, será importante também para osestóicos.

Foram os estóicos21 que deram A. interpretação alegóri-ca de Homero um impulso definitivo, marcando-a de umaforma que, malgrado muitas resistências, se ampliou e che-gou quase ao início da Idade Média. A concepção estóica serápreponderante também nos mitógrafos renascentistas. Nãonos chegou, no entanto, nenhum de seus tratados completos,sendo disponível apenas o que se encontra principalmentenuma obra muito curta de Cornutus, o Compêndio de teolo-gia grega, redigida na época de Nero, e seus princípios ealguns exemplos de sua aplicação conforme consignados porCicero — adversário dos estóicos — no discurso que ele atri-bui ao estóico Lucílius Balbus no De natura deorum (23, 60-8, 71) e que, embora fictício, é fiel ao pensamento deste(Decharme, 1904, p. 261; Pépin, 1958, pp. 125-7; Buffiere,1956, pp. 71, 138). Balbus coloca os deuses e heróis princi-palmente como forças elementares da natureza, às vezescomo disposições da alma ou insignes benfeitores da ordem

414 0

Page 22: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

social — como Héracles, Castor e Pólux e Esculápio. Esteprocesso de divinização dessas forças naturais é examinadapor Zenão, Cleanto e Crisipo, que vêem na transposiçãoantropomórfica tal como aparece na fabulação popular ma-nifestação de superstitio; discernir a verdadeira naturezados, deuses, eis a religio. Cada um dos três grandes mestresdo Pórtico acrescenta a esta exegese sua nota pessoal.

Para os estóicos, o que fora a princípio no pensamentogrego o destino, a força irracional que distribuía aos homenssua sorte, passa a ser a razão universal, inteligência ou von-tade de Zeus, segundo a qual ocorreram, ocorrem e ocorrerãoos eventos. O destino do universo é assim como o de uma pes-soa, aplicado a si como a um ser individual, que tem começo efim. O destino não é o encadeamento das causas e efeitos,mas a causa única que faz, ao mesmo tempo, a união detodas as causas no sentido em que compreende em sua uni-dade todas as razões seminais pelas quais se desenvolveucada ser particular. Este mundo unido, feito de logoi ourazões, constitui uma espécie de universo de forças (ou depensamentos divinos ativos) que ocupa o lugar do mundoplatônico das idéias. Os principais destes logoi, os que presi-dem os fenômenos da terra ou do mar, são divindades popula-res conhecidas pelos mitos, Héstia ou Posidão etc. (Bréhier,1962, pp. 467-8). Todo ser, por outro lado, é resultado dedois princípios, um ativo (TO noioõv), outro passivo (TOnáo (ov); o primeiro é a matéria (úM) sem qualidade, o outroé a qualidade (noioT(lq) e dá forma à matéria. Agente epaciente são dois princípios inseparáveis na formação de umser único, e o agente forma é, ao mesmo tempo, princípio eforça ativa que contém as partes. Cada ser, pois, é caracteri-zado por um espírito que lhe é próprio e o torna no que é.Cada indivíduo é concebido à imagem de um vivente, quetraz em si todo o princípio de atividade, e onde há atividadehá um sopro vital. Assim, a qualidade é um agente e onv€Upforma a substância da qualidade. A matéria é despojada dequalquer qualidade; esta, sob ação divina, muda, e os quatroelementos se produzem, sendo que Deus, que age sobre a

matéria, é corpóreo. O princípio ativo é às vezes concebidocomo único (Deus), às vezes como múltiplo e se resolvendonaquelas qualidades elementares ou nos dois elementos ati-vos, fogo e ar. O princípio passivo é, ora um substrato semqualidade, ora os dois elementos passivos, terra e água. Osquatro elementos são ao mesmo tempo a substância indeter-minada, a matéria. Esses corpos são os elementos de todas ascoisas. Transformam-se uns nos outros, se estendem, se dila-tam, se condensam. Os corpos, mesclando-le intimamente àmassa substancial, se unem e se movem, e os elementos ati-vos dão a eles a qualidade e a vida. Há diversos modos deunião entre os corpos: superposição (ri páOeoiq), quando ossólidos ou líquidos só se tocam com a superfície; confusão(oúyXuaiq), quando os corpos se penetram um no outro eformam uma mesma massa; ou mescla (uikiq), quando elesse misturam. Dessas três espécies de união as duas primeirassó são possíveis entre corpos líquidos e fluidos, enquanto a úl-tima se aplica tanto aos sólidos quanto aos líquidos. Os flui-dos penetram em toda a massa da substância que formam, enesta união nada perdem de sua mobilidade e tensão; comum contínuo movimento de expansão, percorrem a matéria ecomunicam a todo o conjunto do qual fazem parte a atividadee a vida que neles reside. A tensão aumenta o volume semdestruir a unidade nem a continuidade; e não se pode pôr ne-nhum limite a essa expansão e penetração recíproca dassubstâncias. Esta teoria, primeiro formulada por Crisipo,visa a explicar as relações entre agente e paciente. O soproque age sobre um outro corpo deve, na realidade, penetrarnesse corpo passivo, permanecendo idêntico a si mesmo.

Na cosmologia estóica são dois os significados da pala-vra Kgopogp o conjunto do céu e da terra, e Deus, o fogo ori-ginário do qual provém a ordem das coisas. O mundo, comotodos seres vivos, nasce de um germe animado por um soprovital (nveúpO). O germe e o sopro têm origem no fogo primi-tivo, pois é do fogo que tudo vem e é nele que tudo se resolve.O fogo originário é idêntico ao KO(auoq: é um deus incorrup-tível e indegenerável, é espírito puro e sem corpo. Com um

4 2 43

Page 23: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

ato de vontade forma o mundo, e neste sua própria indivi-dualidade persiste. O mundo não atinge pouco a pouco, masrepentinamente, a perfeição. Neste quadro, os astros sãoseres vivos que se alimentam de emanações da terra; o mun-do nasce e se destrói pelo fogo, e tudo se repete: existiránovamente um Sócrates, e assim por diante (Bréhier, 1962,1970; Rebechesu, 1924).

Nos deuses que compõem o panteão e dividem sob aégide de Zeus o domínio do mundo, podem-se ver os diversosaspectos que, segundo a fisica estóica, assume o Deus supre-

mo para assimilar-se aos elementos que ele governa. Isto émais ou menos claro conforme o deus — mas se se pode per-manecer na dúvida sobre a interpretação precisa de algummito, não se pode desconhecer que na vida dos deuses toda aciência fisica é figurada, assim como na vida dos heróis sãode certo modo representados os ensinamentos da moral(Rebechesu, 1924, pp. 25-7; Decharme, 1904, pp. 262-70).

Desta forma, a teologia ocupa, no conjunto das doutri-nas estóicas, uma posição central. Ela é a conclusão da fisi-ca e o prefácio da ética. "A questão dos deuses", diz Crisipo,"é a última das questões naturais; é por isto que demos aesta parte de nossos ensinamentos o nome de iniciações(Te1eT d)". E no início de cada um de seus tratados de moral,Crisipo nunca esquece de Zeus, o Destino, a Providência(Plutarco, Contradições estóicas, 9, 1035a-c).

Ao acomodar os deuses de Homero, Hesíodo e dos mi-tos órficos à sua fisica e à sua teologia, os estóicos — comode certa forma já fizera o sofista Pródicos (Buffiere, 1956,p. 139, n. 5) — procuram mostrar como os deuses são cria-dos pelo homem a partir dos movimentos dos astros, do re-torno periódico das estações etc., como o homem adota ascriações dos poetas como os titãs de Hesíodo e eleva à divin-dade seus benfeitores humanos (Héracles, os Dióscuros etc.).Os ensinamentos sobre os deuses nos viriam por uma triplavia: fisica, dos sábios; mítica, dos poetas; política, dos deusesdas cidades, todas contendo aspectos fragmentários e com-plementares da verdade, esta em última análise consistindo

na doutrina estóica, com a qual, como mostra sua exegese,concordam os deuses da fisica, da poesia e do culto. Trata-sede uma exegese desprovida de preocupações apologéticasou morais. Se a Platão repugnava a aventura de Ares eAfrodite, a única coisa que incomoda Zenão no adultério sãosuas conseqüências sociais (Buffiere, 1956, pp. 138-41).

Além de Zeus, que seria a alma do mundo, desempe-nhando no mundo o mesmo papel que a alma no homem

22 ,três divindades preocuparam particularmente a exegeseestóica: Héracles, Dioniso e Hefesto.

Cleante — como sabemos por Cornutus, Teologia,cap. 13 — interpreta Héracles como sendo, no universo, arazão segundo a qual a natureza é poderosa e soberana, sen-do esta considerada sob seu aspecto forte e potente. Essa for-ça se estende aos heróis, cujo vigor fisico e intelectual é umaparticipação nessa energia divina. De onde, talvez, o nomede Héracles — ` HpQcKXI)Ç, das duas raízes, "herói" e "chamas"(Buffiere, 1956, p. 145).

Dioniso é o sopro divino que faz nascer e nutre; é sem-pre a alma do mundo, mas considerada numa de suas fun-ções particulares, a de dar e manter a vida. Quando essesopro de vida penetra e percorre a terra, toma o nome espe-cial de Deméter: seu efeito vivificador sobre os frutos sechama Coré ou Perséfone (Plutarco, Sobre Ísis e Ostris,cap. 40, 367c).

Hefesto é o fogo, Zenão distingue o fogo "comum", quedevora e consome, do fogo "artista" ou "criador", que con-serva. A alma dos seres vivos é feita deste segundo fogo,que também compõe os astros, o sol, a lua. Ele é Hefesto que,como todas as outras divindades, é apenas um aspecto oufunção particular do deus único, o Zeus estóico; Hefesto éentão a alma do mundo, considerada como fogo criador(Diógenes Laércio, VII, I, 4).

Essa identificação das divindades e a diversidade desuas manifestações específicas, leva a acentuadas variaçõesem relação à tradição exegética. Crisipo, por exemplo, repor-tando-se talvez ao canto XIV da Iltada, sobre a partilha do

4544

Page 24: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

mundo (no livro I de Sobre os deuses, resumido por Filodemo,De pietate, cap. 13), diz que "Zeus é o ar em torno da terra,Hades o ar obscuro, Posidão o que circula através da terra edo mar", quando tradicionalmente Zeus é o fogo, Posidão aágua e Hades o ar. Mas para Crisipo os três são o ar enquan-to princípio ativo que percorre toda a matéria, na verdadeuma mistura de ar e de fogo que ele chama mais freqüen-temente de nveOpQc.

Os deuses com que lidam os estóicos já não são simples-mente os que se apresentam em Hesíodo e Homero, pois alonga tradição alegórica que os precede de certa forma jáimpõe determinadas relações: o Pórtico já toma Hera eHades, por exemplo, transformados pela exegese anteriorem elementos da natureza, e os toma como equivalentes doar atmosférico, modificando entretanto essencialmente afigura. Esses deuses são transformados emstoikéia, passan-do a constituir parte do corpo do universo: Posidão e Herasão o sopro divino que anima o mar ou o ar, são a alma quese oculta nessa matéria, alma esta que é também matéria,sopro de fogo, mas matéria quase espiritualizada

2a

Um dos principais recursos da exegese estóica éa etimologia. ATeologia de Cornutus e as Alegorias homéri-cas do retor Heráclito se apóiam amplamente no Sobreos deuses de Apolodoro, uma antologia de etimologias torna- ,das correntes, a maioria desprovida de qualquer rigor

24 .Em Apolodoro, por exemplo, Pan é o universo (TO nâv), eCornutus, seguindo-o, assim interpreta os atributos de Pan:se Pan tem as pernas velosas e busto humano, é porque aparte inferior do mundo, a terra, é coberta de uma vegeta-ção espessa, enquanto sua parte superior, o éter, é a sede doprincípio diretor (TO nyepOVIKQcv) e razoável (XoyIKgv). Se Pantransborda de lascividade é porque o mundo está repleto des-sas "razões seminais" que, provocando o acoplamento dosseres, dão nascimento ao infinito das vidas que se renovamsem cessar, e daí por diante (Cornutus, Teologia, XXVII).

Esta tendência, intensa nos estóicos, já existia em todaa Antigüidade. Não faltam traços disso no próprio Homero

(Odisseu — odioso / ' Oõuoeúq — wóuoáo, Odisséia, I, 62).Euripides, nas Bacantes (286-97), se recusa — pela boca deTirésias - a admitir a versão comumente aceita do nasci-mento de Dioniso, cujo, saído antes do fim da gestação deSemele fulminada, é encerrado na coxa de Zeus. Euripides,precedendo a famosa fórmula de Max Muller de que a mi-tologia é uma doença da linguagem, levanta o papel quepoderia ter tido na constituição do mito uma palavra mal en-tendida. A palavra pgpçcq/coxa deve ser entendida acertada-mente como ópripoq/refém 2'. E Esquilo tortura o nome deHelena num coro do Agamemnon (68i) para que este nomeestigmatize a esposa infiel. Esta tragédia foi escrita, aliás,na época da grande querela entre as escolas de Heráclito eDemócrito sobre a origem da linguagem. Os heracliteanossustentavam que as palavras se aplicavam às coisas porrelação natural, enquanto que para Demócrito a linguagemera pura convenção (o Crátilo de Platão nos oferece ecos des-sa discussão). Os estóicos, como no que tange à física, assu-miram a posição heracliteana. Para Crisipo, é o primeiroestágio de sua formação que as palavras reproduzem as coi-sas: são os primeiros sons — letras ou silabas — que imitamos objetos, e sobre essas onomatopéias se armam em segui-da os nomes 2G

A par das visões físicas e intenções científicas nos poe-tas criadores de mitos, os estóicos vêem também intençõesmorais ou psicológicas. Assim, certas divindades se explica-riam de duas maneiras. Afrodite, por exemplo, a partir deuma antiga etimologia, a deusa aparece "saída da espuma"marinha, espuma que é o símbolo da semente animal: o mo-vimento e a umidade são as condições necessárias da pro-criação dos seres vivos (Cornutus, XXIV, 133). Procura-setambém no nome de Dioné, mãe de Afrodite, a idéia do úmi-do (explicando-se o nome por õcepóv = Úypóv) e nos epítetosgeográficos de Kipris e de Kythéréia, a do fenômeno de con-cepção (KÚecv) na mulher (Cornutus, XXIV, 135). Esta é aparte fisica. Eis a moral: Afrodite é simplesmente a paixãodo amor, e seu nome quer dizer que o amor faz suas vítimas

4746

Page 25: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

perderem a cabeça (64)Oiveiv) (Escoliasta, Teogonia, 196).Também o julgamento de Páris se presta à dupla interpre-tação:Atena é o fogo, Hera, o ar úmido, Afrodite, a "mistura"(oúyKpQcoiç). Houve um tempo, mesmo depois da aparição daterra e do mar, em que os elementos estavam animados deum movimento desordenado em que tanto o fogo queimavatudo como a água inundava o universo. A querela das deu-sas é portanto um conflito dos elementos. O prêmio que elasdisputam, um pomo, é o mundo, que como o pomo é de formaesférica. Ora, este prêmio, por instigação de Zeus, a Inteli-gência Divina, é atribuído a Afrodite, isto é, à "mistura" queune, concilia e estabelece a harmonia entre as coisas. JáCrisipo, no 101 livro de suas Morais, dizia que Páris,refletindo um dia sobre a direção que devia dar à sua vida,tendo que escolher entre a guerra, figurada porAtena, a deu-sa armada, a realeza, de que Hera é o modelo, e o amor, per-sonificado por Afrodite, se decidiu pelo amor (ver Decharme,1904, pp. 347-49).

Entre todas as divindades, a única que tem um só econstante significado para os estóicos é Hermes: o mensagei-ro de Zeus é o "intérprete " (Opnveúç), o que anuncia e expli-ca aos homens o pensamento divino. E o Àóyoç, a razão quenos faz participar desse pensamento, e que nos foi enviada docéu (Cornutus, XVI, 62-3).

Assim como a exegese alegórica cínica sofreu críticasde Platão, o alegorismo estóico teve que se haver com a críti-ca religiosa epicurista. Dessa oposição por parte de Epicuro,contudo, temos apenas testemunhos indiretos, necessáriocomo um discurso (fictício) de Veleio (em Cicero, De natura

deorum), ou um opúsculo de Filodemo. Veleio ataca a ra-cionalização científica dos mitos, que faz da mitologia deHomero e Hesíodo um tratado de fisica que não quer dizerseu nome. Para Epicuro — cujos deuses são apenas uma for-ça, que não recobre nada de material, são incorruptíveis etêm a eternidade como privilégio necessário de sua nature-za perfeita — as lendas divinas são histórias sem nenhumfundo de realidade, meras divagações de Homero e dessa

"turba poética" a que ele se refere com desprezo (Plutarco,Morais, 1087a; ver também Festugiere, 1960). Por outrolado, entre os gramáticos alexandrinos, que também consti-tuem oposição ao alegorismo estóico, Aristarco de Sarno-trácia destaca com engenho o caráter artificial da interpre-tação alegórica e procura reduzir os mitos ao seu sentidoliteral, reclamando, em nome dos direitos da poesia, que asnarrativas dos poetas sejam reconhecidas como de purosmitos. Ao método alegórico ele opõe uma exegese filológica ese propõe a esclarecer Homero por si mesmo (ver Pépin,1958, pp. 169-72).

Paralelamente às críticas à exegese estóica, junto àexegese neoplatônica (ou neopitagórica) 27 , a outra tendênciaexegética dominante no período reúne o alegorismo históri-co e o evemerismo 28 .

A exegese histórica pretende ver nos mitos fatos histó-ricos mal compreendidos ou ampliados. Esta tendência podeser rastreada pelo menos até os sofistas do século V. Atribui-se ao aristotélico Palaifatos a paternidade senão da tendên-cia, ao menos de sua forma mais bem acabada. Encontramostraços dela em muitos autores, de Estrabão a Plutarco,assim como em Heráclito e nos escólios. Eis sua idéia geral:se examinarmos detalhadamente algum episódio homérico,é preciso inverter o percurso do poeta e procurar o fato realde onde ele partiu, despojando assim o mito de seus orna-mentos fabulosos e pondo a nu a história. Palifatos não negaos deuses, pois raramente critica mitos divinos, restringin-do-se aos heróicos, particularmente os que têm a interven-ção de seres monstruosos para destacar sua inverossimi-lhança. Como Evemero, ele pretende ter feito uma vastainvestigação, com longas viagens aos lugares em questão,interrogando os velhos, e assim por diante29 . Um exemplo desua prática é a seguinte discussão sobre os centauros: notempo de Ixion, rei da Tessália, manadas de touros selvagenserravam sobre o monte Pélion devastando as plantações.Atraídos pela recompensa oferecida pelo rei a quem os ven-cesse, alguns jovens de uma ladeia ao pé da montanha

4948

Page 26: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

— aldeia chamada Nefele, a Nuyem — montaram em cava-los (que até então apenas eram atrelados aos carros) paracaçar os touros e crivá-los de flechas: de onde o nome decentauros ou espeta-touros. As pessoa diziam que eles pare-ciam formar um corpo só com suas montarias: "Eis oscentauros que desceram das Nuvens!" (ver Buffiere, 1956,p. 233).

Evemero, por outro lado, pretende em sua exegese sefazer a história das religiões e mostrar a origem da crençanos deuses. Seu ponto de partida é o aspecto da teologiaestóica segundo o qual muitos deuses da mitologia não sãomais que homens divinizados por serviços marcantes pres-tados à sociedade, reduzindo assim os poemas de Homero eHesíodo a manuais de proto-história (Pépin, 1958, pp. 147-

49). Evemero veicula sua tese através de um romance, aHis-tória sagrada (ou Inscrição sagrada/ ' Iepà ' Avg(ypi?4rj —entre 330 e 240 a.C.), inspirado na Atlântida de Platão(Decharme, 1904, p. 374), na tradição da viagem fantásticada sátira menipéia 30 , em que o narrador desembarca namaravilhosa Pankaia e, em sua capital, Panara, no templode Zeus Tricórnio, depara com uma antiga inscrição em queconstam os antigos feitos dos deuses e suas origens huma-nas 31 . Aidéia de que os deuses são originariamente homensdivinizados em recompensa de suas façanhas e benefíciosnão era inteiramente nova. Derivava em parte da tendência,que reinou sempre na Grécia, de heroicizar os grandes ho-mens. O que importa, segundo Festugière (1960, p. 17), é oextraordinário êxito que obteve esta doutrina. A obra deEvemero foi uma das mais lidas nos séculos III e II, o que éprovado pelo fato de entre tantas obras gregas que se ofere-ciam ter sido precisamente esta a que Enio traduziu para olatim no século II, primeira tradução em prosa latina de umlivro grego.

Ao lado dessas práticas, desenvolve-se ainda, de ma-neira geral, uma exegese moral e psicológica diversada estóica praticada por pensadores de diversas escolas,inclusive neoplatônicos como Plutarco, Díon Crisóstomo e

Máximo de Tiro, sempre pretendendo ver a obra de Homerocomo livros de moral. Para Dion Crisóstomo, Homero é tãomoralista quanto Sócrates, com a diferença de que um falaem versos e o outro em prosa. Homero, ao invés de discursar,por éxemplo, sobre a venalidade e a impiedade, se limita amostrar Pândaros (Ilíada, VII, 351) flechando Menelau paraagradar a Páris. Os vícios e defeitos são assim encarnadosem personagens. Além disso, Homero propõe um tipo idealde humanidade: cínicos e estóicos, principalmente, tomavamUlisses como padroeiro, sendo que para os últimos, além deum campeão de força, Ulisses é um espírito "iniciado na sa-bedoria celeste"

32 .

O tema central da moral antiga do conflito na almaentre a razão e os instintos, do piloto contra as ondas, estáfigurado na epopéia homérica por Atena e Hermes contraAres e Afrodite, sendo os monstros de Ulisses as paixões.Homero teria sido o primeiro a dividir a alma em três par-tes, divisão que se tornou clássica entre os gregos a partir dePlatão (Buffiere, 1956, pp. 257ss.). Dentro dessa perspec-tiva, há os deuses da sabedoria e da razão — Atena eHermes 33 — da loucura e da paixão — Ares e Afrodite —, eassim por diante. Nessa tradição, é de grande importância oepisódio de Ulisses e das sereias, a longa sucessão de cujasexegeses passa inclusive pela Dialética do Iluminismo deAdorno e Horkheimer34 . Na exegese moral" desta passagem— que, como no caso das alegorias físicas, não é apenasestóica mas uma mistura da colaboração de diversas escolas— conservada em detalhe por Eustato (1707, 40), Ulisses, aose expor ao canto das sereias impedindo sua tripulação defazer o mesmo, age como o mestre censurando e interditan-do aos discípulos a experiência do mal. O sábio pode experi-mentar esses prazeres perigosos (é preciso mesmo que osconheça), mas não sem tomar infinitas precauções (Odisséia,XII, 51): seus pés e mãos ficam atados pelos laços da sabedo-ria, "laços interiores que o sábio atou à própria alma". E "acera" com que Ulisses sela os ouvidos de seus companheiros"é a colheita da abelha industriosa, e o recipiente do doce

5150

Page 27: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

licor" e "tem a doçura do mel" (Odisséia, XII, 49), e designapor sua vez a própria filosofia, cuja aquisição é laboriosa masa possessão doce. Ulisses é o filósofo e as sereias são o pra-zer, a poesia e o estudo, que podem reter o filósofo na contem-plação afastando-o da ação 36. Este triplo simbolismo é anti-go p

deixa traços na literatura latina e em alguns autorescristãos: para Pitágoras o canto das sereias figura os praze-res da mesa e do amor, aos quais o rico se entrega comintemperança enquanto o uso honesto e temperado dos mes-mos pode ser comparado ao harmonioso concerto das Musas(Porfírio, Vida de Pitágoras, 39); autores cristãos comoJerônimo e Clemente (ver Buffiere, 1956, p. 384) vêem nassereias a encarnação da voluptuosidade, que leva à perdição;Plutarco vê nelas a poesia, retomando a querela poesiaversus filosofia e as restrições pedagógicas de Platão(Buffiere, 1956, pp. 385-86); e Cicero (De finibus, V, 49) vênelas a tentação do estudo e do conhecimento, o prazer desaber (aqui, como no Gênese, via serpente e Eva, as sereiasoferecem o conhecimento).

A outra grande tendência da exegese alegórica antigaé a neoplatônica. Ela guarda uma relação tão estreita com aestética da mesma escola quanto a existente entre a fisica ea exegese alegórica estóicas. Pois ao modificar a noção esté-tica de Platão, Plotino cria neste âmbito as condições para areabilitação de Homero. Para Plotino a arte não é uma cópiada natureza, o artista não toma o modelo a partir dos obje-tos visíveis, mas em si mesmo. As criações artísticas não sãomenos belas que as da natureza, mas têm apenas menorbeleza que o pensamento do artista. O artista já não repr6-duz, como queria Platão, um simulacro da idéia, mas a pró-pria idéia (Plotino, Enéades, V, I, 8). Ao mesmo tempo, aindaque reconhecendo o interesse dos mitos didáticos de Platão,os neoplatônicos atribuem mais valor aos mitos de Homero,pois se os do primeiro representam o esforço do entendimen-to humano para pôr a doutrina ao alcance das inteligênciassimples, os do segundo, que são de uma outra essência, maisdiretamente inspirados, emanam da própria divindade e se

dirigem às almas que já estão num alto grau de cultura, lhesoferecendo o meio mais seguro de se aproximar do "incog-noscível". Eles permitem uma visão dos mistérios divinos.São como o espelho onde se contemplam as verdades sobre-naturais, mas um espelho37 que, no entanto, dá uma ima-gem que precisa ser corrigida.

A teoria dos mitos em Plotino (Enéades, V, I, 7) é soli-dária de uma teoria da imagem, reflexo do objeto. Arelaçãoentre mito e verdade é semelhante à relação entre o temploou a estátua e o deus, unidos por um laço de certa formamágico; algo que se dá no mundo da matéria e pretenderefletir as realidades inefáveis do mundo espiritual. Mas oespiritual não pode se refletir na matéria sem sofrer degra-dações profundas, o Eterno não pode aparecer, como dizProclo (In Rempublicam, I, 71ss.), a não ser através das vi-cissitudes do tempo; o Imutável, a não através da mudança.Para remontar desse universo da sensação ao universo dasIdéias, é preciso operar uma conversão total, traduzindo"matéria" por "espírito", "tempo" por "eternidade " , apelandosempre à noção contrária38 . Eis por que o mito, como a natu-reza só pode dar uma imagem invertida das realidades ver-dadeiras, e também por que não se pode permitir a todosos olhos a contemplação do infinito: o espetáculo só é possí-vel para as almas purificadas pela filosofia a ponto de ope-rar a restauração necessária. Além disso, sendo de origemdivina, os mitos homéricos agem sobre a alma fazendo comque esta os receba como um choque que a põe em estado deaprofundar seu conteúdo secreto, aproximando-a da uniãocom a divindade. E um efeito análogo ao da contemplaçãodos mistérios, podendo-se mesmo dizer que, nesta perspec-tiva, os mitos homéricos são uma verdadeira iniciação(Nuo-r(xyw íçc)

39 . Entre as duas formas de revelação, malgradotodas as diferenças, há uma semelhança importante: o véusabre a verdade — esta só é acessível a um pequeno númerode iniciados. Antes o mistério era interdito, depois passou asê-lo seu significado, e como esta noção nova do segredo foitransportada para os mitos, na explicação alegórica destes

5352

Page 28: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

encontram-se termos tirados da linguagem dos mistérios(Buffiere, 1956, pp. 49-50). Que Homero tenha voluntaria-mente ocultado sob os arcanos de seus mitos a mensagemdos deuses que trazia aos homens é uma idéia freqüente-mente expressa na época de Plutarco, e as razões dadas sãode ,ordem ao mesmo tempo religiosa, psicológica e estética(Buffiere, 1956, pp. 3 7-8).

Para Máximo de Tiro, em seu discurso, "Quem se expri-me melhor sobre os deuses, poetas ou filósofos?" (Homilia,IV, cap. III), a penumbra do mito torna mais bela a verda-de. Os filósofos ensinam abertamente, os poetas imagetica-mente. A "simplicidade infantil da alma de nossos ances-trais" se opõe à incredulidade e malícia da idade adulta, queveicula em prosa vulgar as mesmas noções que eram expres-sas em versos através de ficções40 . A poesia é o escudo deouro de Aquiles, a filosofia o escudo de couro de Ajax: a utili-dade pode ser a mesma, mas não o atrativo. Da penumbraem que o neoplatonismo mergulha o mito, S. Agostinhovai tirar sua concepção e aplicá-la à Bíblia 41 . Dante, os tro-vadores (o trobar clus) e toda a Idade Média vão concebera poesia como a arte de esconder a verdade sob o véu dossímbolos.

Os neoplatônicos imprimiram à exegese de Homerouma orientação nova. Buffiere (1956, p. 393) chama a aten-ção para como "deste poeta, o mais humano e um dos menosmísticos, eles tiraram tesouros de misticismo com virtuosis-mo de prestidigitadores". Exegetas como Numeio e Porfíriovêem na descrição da gruta das ninfas toda a escatologianeoplatônica; no mito de Circe, suas crenças sobre a encar-nação; em Ares e Afrodite presos na rede de Hefesto, o corpoe a alma acorrentados um ao outro pelo demiurgo. AIlíadae a Odisséia passam a ser poemas místicos em que as almassubstituem os heróis de carne. A guerra de Tróia é o comba-te das almas sobre a terra em torno da beleza, figurada porHelena, e Ulisses simboliza a alma caída dos céus na "gera-ção" , vinda para a terra se encarnar, mas chamada a voltarum dia à sua pátria celeste. A longa errância de Ulisses nomar figura esse exílio da alma no país da matéria.

A espiritualização do panteão homérico é levada a caboatravés de diversas soluções: Máximo de Tiro faz dos deusesintermediários entre os humanos e a divindade verdadeira;Plotino assinala a dinastia Urano-Crono-Zeus às suas trêshipóstases divinas; Porfírio limita-se a espiritualizar ligeira-mente a teologia do Pórtico. Quem integra profundamenteao pensamento religioso do neoplatonismo os deuses deHomero são Sirano e Proclo, já no início do século VA.D. Doprimeiro, mestre do segundo, nada nos chegou exceto as fre-qüentes referências de seu discípulo, cuja teologia em algunsde seus aspectos passamos a examinar.

A alegorização que Proclo faz de Homero — uma di-gressão dentro do comentário mais amplo sobre a Repúblicade Platão — é subscrita por uma teoria de linguagens múlti-plas organizadas numa hierarquia onde cada linguagemexiste numa relação hermenêutica com outra acima de si.Assim, em princípio, não existe texto que não seja aberturapara uma série infinita de subtextos crescentemente opacos(ver Lamberton, 1986). Ele multiplica ao infinito os interme-diários entre Deus e o mundo material, tirando sem cessarnovas séries de seres umas de dentro das outras: do Um pro-cedem as Hênades, delas as três tríades do mundo inteligí-vel e assim por diante, sendo que nenhum dos deuseshoméricos têm acesso a esse mundo puro de pensamento. Ea alma que serve de intermediária entre a inteligência e osensível, tocando, por sua natureza, a Deus, ao Indivisível,à Eternidade, mas ligada, por sua ação, ao tempo e à divisão.Ela é uma das quatro últimas do mundo sensível, sendo asoutras o próprio Deus ou o Um, causa final e fonte de todabondade; a Inteligência, causa ativa, que é o demiurgo uni-versal; e o paradigma no qual se inspira o demiurgo. Ames-ma idéia divina, servindo de modelo ao demiurgo, pode dartanto um deus como um demônio ou um mortal: a imagemse enfraquecendo e se degradando à medida que se afasta doparadigma, e quando se chega ao fundo da série quase nadaresta do esplendor do modelo de que se partiu. Por aí Procloexplica as imperfeições dos deuses da fitada. O mito se refe-re ao mundo sensível, com uma linguagem onde intervêm o

555 4

Page 29: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

tempo, o espaço, o movimento e a geração, noções contingen-tes que turvam seu sentido profundo.

Em sua exegese, Proclo retoma principalmente aexegese física dos estóicos, adaptando-a: substitui as forçasmateriais de seus predecessores por poderes espirituais, masdeixa Hera ligada ao ar, Posidão A. água e assim por diante.Vejamos como isto ocorre na adultério de Ares eAfrodite (se-gundo Buffiere, 1956, p. 548): Afrodite, força de união, pre-

side a reconciliação dos contrários e é também a causa detoda beleza. Na Odisséia seu marido é Hefesto, demiurgo domundo sensível. Inferior a ela na escala das realidades divi-nas, o subdemiurgo precisa de sua condição de propiciadorade harmonia e beleza para a confecção do universo sensível.Ares, princípio de luta e contradição, é naturalmente hostila Afrodite, e por isto sua aproximação é qualificadora deadultério. Ao acorrentá-los um ao outro, Hefesto é o demiur-go realizando a união dos contrários no mundo do devir. Oriso dos deuses assinala sua alegria diante dessa harmoniarealizada. Mas se tal união persiste, há de perturbar as leisdo mundo do devir, onde devem reinar o nascimento e a mor-te, a mudança e o escoamento. Eis por que ela é rompida porHefesto a pedido de Posidão. Uma comparação desta exegeseA. antiga exegese física (ver Buffiere, 1956, pp. 168ss.) mos-tra a fidelidade de Proclo à tradição: ele se limita a transfor-mar em realidades ideais os princípios naturais e a adaptá-los à sua escala.

Desde os neoplatônicos a exegese alegórica, em outroscontextos culturais e religiosos — notadamente no meiojudaico-cristão — é praticada a partir dos pressupostos pró-prios à tradição com algumas variações de ordem teórica evoltada também para um novo objeto: a Bíblia. Como istofoge de nosso objetivo — que é a interpretação alegórica dosmitos clássicos e suas categorias principais, fisica e moral,que junto com a política são as mesmas em Francis Bacon —

a abordagem aqui será preponderantemente panorâmica,com ênfase nos aspectos que de certo modo constituem umacontinuidade entre a prática exegética antiga e a renascen-tista — que retoma os mitos clássicos.

Filon de Alexandria, historiador greto judeu da épocado imperador Adriano é talvez o primeiro a atribuir um con-teúdo duplo à Escritura, o sentido natural das fórmulas e osentido oculto da qual elas são símbolo. Cada verdade seriasuscetível de uma tripla apreensão: diretarpente, A. luz divi-na, ou indiretamente em cada uma de suas duas sombras,literal e alegórica, sendo esta, embora igualmente trevosaem relação A. iluminação divina, mais instrutiva. Filon reto-ma um princípio estóico cuja melhor formulação se deve aoretor Heráclito, de que a alegoria é o antídoto complementarindispensável dos textos homéricos que, sem ela, não seriammais que impiedade. Na afirmação de Filon, o sentido lite-

ral do texto sagrado por si só apresentaria uma dificuldadeinsolúvel, uma inépcia, uma contradição e, sobretudo, umaafirmação indigna de Deus42 .

Para Pépin43 há, esquematicamente, quatro classes deatitudes cristãs diante da alegoria: a primeira (na ordemcronológica) é a dos que se inspiram com grande fidelidadena interpretação alegórica tal como se dá no Novo Testamen-to sem nada dever de importante à exegese figurada dopaganismo (o autor da Epístola de Barnabé e Hipólito deRoma); a segunda é a dos que utilizam amplamente os pro-cedimentos e lições do alegorismo pagão em sua própria ex-plicação da Bíblia (Clemente de Alexandria); a terceira con-siste em não usar interpretação alegórica da Bíblia ehostilizar vigorosamente e alegoria pagã (Tertuliano); aquarta, em aplicar a alegoria na Bíblia mas desqualificar omesmo procedimento quando os pagãos os aplicam aos seuspróprios textos (Origenes, Eusébio, Agostinho). Os apologis-tas pagãos (Celso, Porfirio, o imperador Julião), ao contrário,enriquecem a interpretação alegórica clássica de Homero eHesíodo e proíbem a exegese figurada desde que ela tome aBíblia por objeto (Pépin, 1958, pp. 260-61). Entre a quarta

5657

Page 30: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

postura e os apologistas pagãos seus contemporâneos esta-belece-se, obviamente, uma dura e destemperada polêmica:Orígenes afirma que os mitos gregos possuem uma ignomí-nia intrínseca que alegoria alguma pode anular, enquantoCelso procura provar, através da exegese alegórica dos mi-tos clássicos, as origens gregas do demônio cristão. Procuraem Homero e Hesíodo a personagem de Satã, cuja existên-cia, aliás, ele nega44 . E bom lembrar, entretanto, que tantopara Orígenes como para Porfirio — que aqui se distancia deCelso — o alegorismo ultrapassa o plano naturalista ou sim-plesmente moral e remete a realidades conhecidas comosubstancialmente religiosas, através de imagens significan-tes, além das palavras e dos conceitos. E através dessasnuanças que se pode acompanhar o curso de tradiçãoneoplatônica de certa forma se fundindo à exegese patrísticaenquanto a estóica deságua na mitografia renascentista —que receberá também sua dose da herança neoplatônica,mas via outra esfera, a do ocultismo, engrossando o caldo datradição hermética.

Pépin observa que entre a época de Xenófanes e a deAgostinho, a mitologia suscitou todas as reações possíveis, ejá estava então pré-formada toda a reflexão que a IdadeMédia e a época Moderna dedicou ao assunto (Pépin, 1958,p. 476). Mas devemos ainda nos deter rapidamente em al-gumas nuanças medievais desta problemática, pois que umdos processos mentais que consideramos "medievais" porexcelência é a visão simbólico-alegórica do universo 45 . ParaBeda, as alegorias aguçam o espírito, reavivam a expressão,adornam o estilo (Eco, 1989, p. 75). Tanto a Antigüidadecomo a Idade Média tinham mais ou menos clara a diferen-ça entre uma alegoria produtiva ou poética, e uma alegoriainterpretativa (que tanto podia ser aplicada aos textos sacroscomo aos textos profanos). Auerbach, que insiste na diferen-ça entre os métodos figural e alegórico, entende por este ométodo filoniano, caro à primeira patrística, mas reconhecetambém que o que ele toma como procedimento figural é aalegoria da época de Dante, que estende às personagens da

história profana a prática usada para as personagens da his-tória sacra (Eco, 1989, pp. 77-8).

Sem que entremos nas minúcias cerradas das teoriasmedievais da alegoria, aqui nos interessa lembrar que haviana Idade Média uma disputa entre a poesia e o cristianismosemelhante em muitos aspectos à quela disputa entre poe-sia e filosofia da época de Platão. O currículo da escola degramática ou universidade medieval conservava um eloininterrupto com o das escolas que durante o Império Roma-no tinham se adaptado para fazer uso do material bíblico epatristico, bem como clássico. Na escola de gramática cristã,o processo de adaptação foi particularmente importante.Poetas latinos como Virgílio e Ovídio permaneciam os auto-res mais importantes do currículo. E era impossível compre-ender sua poesia sem um considerável conhecimento da mi-tologia pagã, à qual a Igreja se opunha totalmente. Nestadisputa, como na antiga, uma solução possível foi o conceitodo mito como alegoria. Ele foi elaborado pelos mitógrafospagãos e cristãos, ininterruptamente, desde o fim do Impé-rio até o século XVII, e culminou no De genealogia deorumgentilium (Sobre a genealogia dos deuses pagãos), a grandecompilação de Boccaccio interpretando alegoricamente asentidades mitológicas clássicas em defesa dos estudos clás-sicos em geral e da poesia clássica em particular4ó . É nesteespírito, através da própria obra de Boccaccio e, principal-mente, da de Natalis Comes, que a tradição da exegese ale-górica do mito clássico chega à Inglaterra renascentista e aFrancis Bacon47 .

Mas este é um lado apenas da questão. A alegoria,como Jano, tem duas faces, uma hermenêutica e a outra re-tórica, faces que podem ser gêmeas, mutuamente antagôni-cas, uma delas pode ser máscara, entre outras possibilida-des. Vamos nos aproximar agora de sua face retórica, voltadageralmente para o pólo de produção, não para o da leitura.

Como um tropo, um recurso retórico incidental ouornamento, a alegoria já tinha sido, nos tempos romanos,sujeita à categorização, como em Quintiliano (Instituições

595 8

Page 31: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

oratórias, VIII, vi, 44-59), que entende o termo num sentidobem amplo, derivado da etimologia. A alegoria, ele observa,apresenta ou (1) uma coisa em palavras e outra em signifi-cado ou ainda (2) algo absolutamente oposto ao sentido daspalavras (aut aliud verbis aliud sensu ostendit aut etiaminterim contrarium). Sob (1)ele discute o uso da metáfora,símile e charada (aenigma) de uma maneira que mantémuma relação direta com o uso moderno do termo "alegoria".Sob (2) ele discute figuras nas quais o efeito é produzido porum elemento de ironia, quer ele assuma a forma de sar-casmo, asteísmos (para Quintiliano uma forma urbana dagraça — cf. Curtius, 1957, p. 49), contradição ou provérbios.De uma maneira geral, a alegoria, tecnicamente, em retó-rica, não é senão uma cadeia de metáforas codificadas eextraídas uma da outra; ou, em outras palavras, "é a metá-fora, que é continuada como tropo de pensamento, e consistena substituição do pensamento em causa, por outro pensa-mento, que está ligado, numa relação de semelhança, a essepensamento em causa" (Lausberg, 1972, p. 249).

Na história das teorias do discurso, existem duas tradi-ções distintas, a retórica, ou a tradição gramatical da alego-ria composicional, e a hermenêutica, ou tradição filosófica daalegoria interpretativa, e elas se opõem como uma teoria daprodução e uma teoria da compreensão48 . A interpretaçãoalegórica é, historicamente, a maneira de ler da filosofia, istoé, sua maneira de tomar textos não-filosóficos ou figuraisfilosoficamente; a escrita alegórica, pelo contrário, é exata-mente figuração que se toma a si mesma seriamente como fi-losofia, isto é, como uma espécie de interpretação cujo texto énão Homero ou Hesíodo, mas o próprio cosmos, ou a alma, ouo começo e o fim das coisas. O problema com a alegoria comouma "estratégia" poética é que ela é sobreprodutiva, suas fi-guras estão sempre extravasando os arcabouços conceituaispelos quais elas são interpretáveis como correspondendo aisso ou àquilo. O problema com a alegoria como interpreta-ção é que ela é redutiva e disjuntiva, ela de fato oblitera o quediverge do esquema que ela mapeia sobre o texto e só pode

lidar com pedaços e partes de um texto às expensas do todo,negando a realidade do texto 49 . A alegoria, enfim, comooutros artificios e empreitadas no universo do discurso, nosfala de um antigo tema: a dificuldade de pôr o discursohumano sob controle — talvez o que Platão quis dizer com" fraqueza do logos " (Sétima carta, 342e).

A alegoria tem uma espécie de "razão" cuja astúcia me-nos é produzir conhecimento e verdade que poder e dissemi-nação de entendimento autoritário. Sua lógica é "estratégi-ca" ao invés de demonstrativa. É uma lógica de apropriaçãoem contraste com a proposição, que é uma lógica de exclusão.A lógica de exclusão é a que opera na República de Platão,onde a autodefinição da filosofia, sua autoconstrução comouma instituição ou estado, depende do banimento de Homeroe da sujeição do discurso à regra da necessidade ("se e ape-nas se" 50). A interpretação alegórica— neste contexto poesiaversus filosofia — traz Homero de volta, mas não em seuspróprios termos. Ventriloco, o exegeta substitui a narrativa,com todas suas implicações e convenções próprias, por umargumento "ex-machina": o que vale, diz ele, não é o texto, ocorpus, aquilo que se tem diante de si, mas algo que ele ga-rante estar por trás e que seria a "alma" do corpus aparente,esse corpo feito boneco. E essa alma ou sopro vivificadornada mais é que sua voz. E, como ocorre nos shows de ventri-loquia, tanto melhor quanto menos aparecer o movimento deseus lábios e maior parecer a autonomia do boneco. Obser-ve-se ainda que o corpo escamoteado pela fachada de bonecode ventríloquo não pode ser um corpo anódino qualquer, quetalvez se prestasse melhor a isto, sem maior resistência, masdeve ser justamente um corpo denso e poderoso, que trans-fira força e prestígio ao discurso ventríloquo que o invadee dele se apropria — nada menos que um Homero. E, comonota Kermode (1980, p. 144), uma vez que um texto é cre-ditado com alta autoridade, ele é estudado intensamente;uma vez que ele é tão estudado ele adquire mistério ou se-gredo. A tradição passa por muitas transformações, mas ela

60 61

Page 32: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

é contínua; renovações do saber não destroem, mas promo-vem segredo, e o culto renascentista da sabedoria esotéricasobreviveu ao novo literalismo da Reforma51 . A crença deque um texto pode ser uma proclamação aberta, disponívelpara todos, coexistia confortavelmente com a crença de queelq era um repositório de segredos.

Em sua outra face, no entanto, a elaboração alegóricaenquanto estratégia poética não dispõe da mesma eficácia.São criações fracas, corpos frágeis que já nascem com defei-tos próprios às suas convenções literárias. Tal como a sátira— com a qual tem algo em comum 52 — ela não chega a seruma narrativa, mas é um argumento envergando trajes ecom modos de narrativa. Não lhe cai bem o figurino. O estiloargumentativo não se mimetiza satisfatoriamente na ação— ele pode perfeitamente desnarratizá-la, mas não ocupacom determinação o vazio conquistado. Veja-se quanto a istoo que diz A. Candido sobre a voga da ficção alegórica nos sé-culos XVII e XVIII:

Naquele tempo o enfoque alegórico estava no fim de um dos seusmomentos de maior aceitação, e entrava aliás como componentede qualquer leitura, mesmo tratando-se de obra não declarada-mente baseada em alegoria. Muito mais do que em nossos dias,os personagens, as ações, os enredos, eram submetidos a umaespécie de segunda leitura, que tendia a identificar, atrás e aci-ma deles, outros sentidos de natureza mais elevada (...). O "man-to diáfano da fantasia" se tomava um sistema de chaves paraabrir os esconderijos da sólida verdade, e deste modo se justifica-va, tranqüilizando as consciências e as potências.Daí ter sido o século XVII um tempo rico em ficção alegori-zante, para muitos a forma suprema a que o gênero poderia

aspirar. Mas os seus produtos são pífios vistos de hoje, poisquando a camada alegórica deixava de ser uma espécie de lei-tura possível de qualquer texto, para se tornar objetivo prin-cipal e consciente dos autores, o resultado foi quase semprepéssimo e mesmo nulo. De fato, a alegoria anti-ficcional apesar

das aparências, na medida em que nela a ficção é um pretexto eum veículo, a ser dissolvido quanto antes pelos fluidos da noçãoe da informação (moralmente conservador), que devem suplan-tar a aparência romanesca. Importantes seriam a idéia abstra-ta ou o princípio ético, integrantes do sistema ideológico de umdado tempo; e isto faz com que a alegoria se torne fetichizadorae fique presa demais ao seu momento histórico, sendo um códi-go contingente que perde o interesse para a posteridade, mes-mo quando esta possui a chave do segredo. (Candido, 1987,pp. 85-9)

A alegoria, assim, por um lado, o de sua face exegética(ou hermenêutica — se, malgrado as observações de Pépin,consideramos interpretação como uma das possibilidadessemânticas de hermenéia), desnarratiza o texto narrativo,tira-o da esfera das preocupações estéticas com as caracte-rísticas formais (descartando o que Mukarovsky (1978)denominava a função estética da língua), e o situa no fulcrode interesse daquilo que Gadamer chamava de Sache emquestão — o verdadeiro assunto do texto, isto é, sua capaci-dade de lançar luz sobre assuntos de importância para nós.Em outras palavras: pode o texto de Homero lançar luzsobre assuntos de importância filosófica?53 Por outro lado,mesmo considerada apenas em face de elaboração, depara-mos nela com a ambigüidade básica entre ocultar e revelar,sendo que o ocultar consiste em uma forma específica e tor-tuosa de revelar. E, no que nos interessa aqui, há a irrupçãodessa "segunda instância" de produção, de elaboração queenvolve o próprio aspecto exegético como um recurso deretórica ao lançar mão de seus procedimentos como um meiode comunicação e que faz parte, na verdade, de toda a tradi-ção da ventriloquia apropriadora, da exegese estóica às lei-turas que fez Bacon da "sabedoria dos antigos". É esta am-bigüidade que vamos examinar em seguida, a propósito dastradições hermética e retórica no contexto do Renascimentoinglês.

636 2

Page 33: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

NOTAS DO CAPÍTULO II

O termo "símbolo" é empregado com predileção, para a exegese dos mitoshoméricos, pela escola neoplatônica ou neopitagórica — as duas se confun-dem freqüentemente. O termo é tomado às vezes num sentido estrito edesigna um objeto preciso, que evoca uma realidade precisa (as abelhasno Antro das Musas de Porfirio são o "símbolo" das almas puras, o próprio'antro é o "símbolo" do mundo sensível); às vezes num sentido mais vago,para designar o conteúdo de toda uma cena mítica: "Homero nos diz sim-bolicamente" equivale então às outras expressões : "Homero nos diz sobforma de enigma... de mistério... de alegoria". Note-se que o uso modernoparece reservar de preferência aos objetos o nome de símbolo. É imprópriofalar do simbolismo de um mito: o mito é um princípio, um conto, umacena, com vários personagens o mais freqüentemente. É cada personagemtomado à parte que tem o valor de símbolo, ou mais exatamente, os aspec-tos ou atributos do personagem — o tridente de Poseidão etc. (Buffiere,1955:59-60).

2 Porfirio, Vida de Pitágoras, 42, arrovõás noieTa8ai TOl ecoïç KaTà TO

OÚç TCOV KnWNáTWV.• Jâmblico, Vida de Pitágoras, 83, 6'nws pi) ánò TOO iXr1TOO níVfTçn.' Proffrio, Vida de Pitágoras, 42, ËvOeúrev yQtp rlViTrero TiuâV TOÚS ecoas

Ka újVeïV Tij pOUOIKfl, pÜTI yap áiá tTWV Kopeí.5 O aspecto supersticioso é mais flagrante no famoso preceito da abstinência

de favas, que seria originalmente um simples tabu.o Esta questão é discutida a propósito de Platão no Capítulo I desta tese e

mais adiante.Permanece uma confusão habitual entre mito e alegoria quando, por exem-plo, se fala indiferentemente de mito e alegoria da caverna de Platão.

• Esta palavra não se encontra antes de Cícero (Orat., 27) e, depois dele,o primeiro escritor grego que conhecemos que a emprega é Plutarco. EmSobre a leitura dos poetas, 4, p. 19f, Plutarco opõe ao termo antigo de hipnóiao de alegoria em termos de transição: "(...) O que os antigos chamavam de`significações ocultas' e que chamamos hoje de `alegoria' (...)". Ao mesmotempo surge o verbo áAÀrlyopeïv, com o sentido de "interpretar alegorica-mente". Plutarco, em Sobre Isis e Osiris, via em Cronos uma disposiçãoalegórica — iUrlyopoüoi — de tempo. Mas antes de Plutarco, já Estrabâoe Heráclito (o retor) conheciam o termo, que já consta no tratado Do subli-me, de autor desconhecido, dos últimos anos do reinado de Tibério. Na mes-ma época o termo aparece em Fílon de Alexandria e mais tarde é emprega-do por São Paulo. (Ver Decharme, 1904:270-1; Pépin (1958:87-8; Buffiere,1955:45-6.)

o Este termo aparece com o uso de sub-sentido em, por exemplo, Xenófones,Banquete, III, 6, e Platão, República, II, 378d.

10 Quanto à definição de aloÀgyopi 'i, os autores são unânimes em defini-lacomo a figura de retórica que consiste em dizer uma coisa para fazer com-preender outra. Por exemplo, Quintiliano, Inst. Orat., VIII, 6, 44 e IX, 2, 92.Alegoria é, assim, "dizer o outro".

11 Para Decharme (1904:371-2), não se deve confundir a interpretação histó-rica, que respeita os deuses, com o evemerismo, que os suprime. ParaSchelling e Creuzer, cujas concepções serviram a todo o romantismo ale-mão, toda a mitologia é a transcriação figurada de um fundo de verdade aser decifrado, tendo a verdade sido travestida para ser mais persuasiva ouporque foi vedada aos indignos, ou por ter mais valor quando alguém adescobre por si mesmo, ou ainda porque o homem, incapaz de achar a ver-dade, cria a ilusão de participar de sua confecção. Para Schelling a alegoriase divide em histórica, física, moral (onde ele dá como exemplo oDe sapientiaveterum, de Bacon), metafísica, psicológica e religiosa.

12 Em Alegorias homéricas, cap. 5, cf. Buffiere (1955:47).13 Inst. Orat., IX, 2, 46. A própria metáfora difere pouco tla imagem; segundo

Aristóteles, a diferença está na presença ou ausência da conjunção "como".Por exemplo, quando Homero diz que "Aquiles se lança como um leão", éuma imagem, quando diz: "este leão se lança", é uma metáfora.Isto é, no mesmo período em que, como vimos no Capítulo I, está se deli-neando a oposição entre mythos e logos.

' Mencionando um plagiário de sua época, Rabelais, no prólogo de Gargantua,cita quatro dos autores mais importantes das fontes acima mencionadas,com os nomes um pouco estropiados: "Croiez uous en entre foy qu'oncquesHomère escrivent l'Iliade et l ' Odyssée, pensast es allegories lesquelles de luiont calfreté Plutarche, Héraclide Ponticq, Eustatie, Phornute, et ce que d'iceulxPolitian a dérobe" (Rabelais, 1953:27).

• Xenófanes repudia o antropomorfismo, princípio importante da religiãohelênica, com colocações do tipo: "Se os bois e leão tivessem mãos, e se sou-bessem desenhar como os homens, eles representariam também as formase os corpos dos deuses tais como são eles mesmos: os cavalos os fariam àsemelhança dos cavalos, os bois à semelhança dos bois" (Frag. 15 Diels).Afora esta passagem, há outras três da Ilíada em que tradicionalmente sevêem os deuses-elementos: o enlace de Zeus e Hera no monte Ida, que seriaa junção do éter e do ar no espaço celeste (mais tarde os neoplatônicos atornarão uma união absolutamente mística no mundo imaterial) — sendoque sobre esta "identidade" de Hera há inclusive um jogo etimológico emPlatão, Crátilo, 404b-c; os grilhões de Hera, que Cornutus, Pseudo-Plutarco,Heráclito e outros interpretam como uma alegoria dos quatro elementos; ea divisão do mundo entre Zeus, Hades e Posidão — respectivamente fogoou éter, água e ar, sendo a terra comum aos três.

18 Ver, por exemplo, a crítica às metamorfoses dos deuses, pois o disfarce épróprio de quem não é perfeito ou é presa de temor (República, 380d-381e).

• Ver Capítulo I. Também cf. Cornford (1981:233ss.), cap. IX, "0 conflito en-tre a filosofia e a poesia".

20 Ver Buffiere (1956:372-4) e Pépin (1958:105-11). Ver também Stanford(1968): noAúTponoç é o epíteto específico de Ulisses (Odisseu) em Homero."Uma característica notável é seu virtual monopólio de epíteto em rroÀúentre a figuras homéricas masculinas" (p. 248).

21 A transição entre as teorias dos estóicos e as dos alegoristas anteriores aPlatão é efetuada por um discípulo deste, Xenócrates: o Um ou mônada,princípio masculino, no papel de pai, é o Nous que reina no Céu, é primeiro

64 65

Page 34: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

deus, é Zeus; a dfade ou dualidade é o princípio feminino, não dos deuses,rainha das regiões "sob-o-céu " , alma do todo. Ao lado desses deuses supre-mos, mônada e diade, espírito e alma, há divindades subalternas, percor-rendo os elementos materiais: Posidão percorre o úmido; Deméter, a terraetc. Como veremos, além de preludiar todas as variações dos estóicos, eleanuncia também Plotino e Jâmblico, pondo sobre os elementos o Espírito ea Alma, a manada e a dfade (Buffiere, 1955:152-3).

22 ,Crisipo procura demonstrá-lo à moda estóica por excelência: através daetimologia (ver Buffiere, 1956:141-2, notas 12 e 13).

23 Os neoplatônicos, como veremos a seguir, avançam esta exegese fazendodas divindades uma alma que, embora continue sendo a alma dos elemen-tos, passa a ser inteiramente estrangeira ao mundo da sensação. Posidãocontinua a presidir o mar, mas como realidade do mundo inteligível. Háassim três estágios da exegese alegórica das divindades mitológicas: os deu

-

ses considerados como elementos pelos primeiros exegetas contemporâneosdos físicos pré-socráticos; os deuses almas particulares mas ainda mate-riais para os estóicos; os deuses transportados para o mundo inteligível pe-los neoplatônicos. Cf. Buffiere (1956:153-4).

24 Buffiere (1956:60-1) dá alguns exemplos a respeito de Zeus, Artemis eApolo.O caso dos ciclopes é bem representativo: da palavra KÚKÀwtp, tomada lite-ralmente, vem a lenda do olho único, de forma redonda, que distingue osciclopes. Zenão, querendo rejeitar esta lenda, repudia a explicação, retendoda palavra apenas a primeira parte, KÚK)iOÇ, onde ele encontra expressa aidéia do movimento circular e periódico do fogo celeste (Escoliasta, Teogonia,

verso 139).as Não eram incomuns esses casos de indignação poética a retificar passagens

mais sombrias de algum mito. Talvez o mais conhecido seja o de Píndaro,na Primeira Olímpica, I, 59, ao negar a versão dominante do mito de Tântalo,sobre o canibalismo dos deuses, que devoram Pélops, modificando-a.

2s Cf. Buffiere (1956:63). 0 neoplatônico Proclo vai identificar tão profunda-mente a palavra e o objeto que assinalará aos nomes um tipo de hierarquia,a mesma que para os seres: os nomes dos seres divinos são de essênciadivina, os dos seres inteligíveis se situam no plano dos inteligíveis, os quedesignam as opiniões têm o valor de simples aparências. E assim como osestóicos interpretam os nomes homéricos segundo as necessidades de suaexegese, que faz dos deuses forças naturais, os neoplatônicos os deformampara lhes acomodar às suas visões pessoais sobre as intenções ocultas dopoeta: o Ida se torna o "lugar das idéias

" ; Ilion é relacionada ao nome damatéria, pois a Guerra de Tróia é o símbolo da luta das almas encarnadasna matéria que querem voltar à verdadeira pátria; Helena, a esposa recon-quistada, se torna "a que seduz os espíritos" dos homens e não seus senti-dos etc. Assim, desde os primeiros discípulos de Heráclito até Proclo, aetimologia não cessa de vir em socorro da exegese alegórica (Buffiere,1956:64-5 — ver as notas para os termos gregos).

27 As duas tendências que sempre se encontravam reunidas na mesma pes-soa. Cf. Buffiere (1956:393).

28 Para Pépin (1958:147), o alegorismo histórico seria um subcaso da tendên-cia mais abrangente do alegorismo realista — que ele opõe ao alegorismo

desvairado, que vê em Homero, além de um historiador, um naturalista,um geógrafo e, de maneira geral, um sábio de bom senso que consignou emseus poemas dados positivos de uma escritura tão límpida que uma exegesebem equilibrada é suficiente para decifrar. Ver a este propósito Buffiere(1956:204-227), cap. IX — Homère savant infaillible, em que temos oHomero astrônomo, o Homero físico, o Homero navegador, geógrafo etc.

zo Cf. Buffiere (1956:233); sobre os intrincados problemas bibliográficos daobra de Palaifatos, ver Buffiere (1956:231-3).

3o Ver no Capítulo I, a propósito da sátira menipéia, inclusive, o papel interme-diário que a sátira de maneira geral tem na relação narrativa/argumento.

31 Evemero também parodiou vários mitos. Por exemplo: Cadmos era um co -

zinheiro do rei de Sidon e Harmonia, uma flautista do mesmo rei com quemfoge (Decharme, 1904:381). Entre as várias vezes em que a paródia se en-contra com a exegese alegórica, uma das mais notáveis é quando Lucianode Samósata, com base nos métodos cínicos-estóicos — dos quais faz umpastiche — mostra que em Homero o parasitismo é uma arte (Pépin,1958:144-45).

32 Ver Buffiere (1956:255). Ulisses já era assim considerado pelos sofistas. Ver,por exemplo, Platão, Hipias menor, 364c.

3a Já em Platão (Protágoras, 32I), Protágoras, contando o mito de Epimeteu,põe estes deuses no mesmo plano; representam a "habilidade artística".

34 Para Adorno e Horkheimer (1985), na Odisséia prefigura-se a Ilustração,os monstros míticos "representam contratos petrificados, reivindicações pré-históricas" (p. 63) e Ulisses — como para os estóicos e cínicos — é um heróiparadigmático cuja astúcia é o "recurso do eu para sair vencedor das aven-turas: perder-se para se conservar" (p. 57). Na engenhosa exegese psicológi-ca de Paul Diel (1976) — também na linha moral dos cínicos e estóicos —,em que os mitos não só contêm "uma compreensão do funcionamento evolu-tivo e involutivo da psique, mas também a advertência de uma luta contraa involução" (p. 31) e em que "cada função da psique é representada poruma figura personificada, e o trabalho intrapsíquico de sublimação ou per-versão se encontra expresso na interação dos personagens significativos"(p. 37), tal como em Adorno e Horkheimer (e na exegese alegórica patrística)— ver adiante o conceito de "figura", há também prefiguração: aqui a mito-logia é uma pré-ciência psicológica e a psicologia profunda o meio decifrador(p.40).

as Há também uma exegese histórica e uma neoplatônica importantes. VerBuffiere (1956:236 e 473).

3s Para Máximo de Tiro, neoplatônico do século II A.D., Ulisses é um sábioplatônico, tendo Homero posto a moral em ação. Cf. Buffiere (1956:386).

a Note-se que, a propósito do universo simbólico do homem medieval, J.Huizinga (1978:184) cita as palavras de São Paulo aos coríntios: "Agoravemos obscuramente, como através de um espelho, depois veremos dire-tamente" (Videmus nunc per speculum in aenigmate, tune autem facie adfatiem). Na persistência de imagens como esta, vemos a tradição neopla-tônica desaguar na exegese patrística.

33 Note-se a curiosa analogia entre este aspecto da teoria neoplatônica, deque o mito é uma imagem invertida das realidades ideais, e o fato da

676 6

Page 35: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

divinação antiga distinguir duas categorias de sonhos: teoremáticos, ouvisões claras, e alegóricos, que requeriam interpretação. O sentido dossonhos alegóricos podia ser direto ou inverso: assim, para um escravo,sonhar que era posto na cruz, era o anúncio da liberdade (da qual a morte ésímbolo). (Cf. Bouché-Leclercq, 1979-82:291ss., apud Buffiere, 1956:56).

3 ° Buffiere (1956:35-6). Esta aproximação entre os mitos homéricos e os mis-térios é bem anterior a Proclo. Já se encontra nas Alegorias homéricas'de Heráclito, que chama Homero de "o grande Hierofanta do céu e dosdeuses, aquele que abriu às almas humanas as sendas celestes que lheseram inacessíveis e fechadas" (cap. 76, pp. 100-09). 0 termo "hierofanta"

(iepoO vrgq) designa o único participante das cerimônias de iniciação quesabe a razão do que se faz e explica a quem ele quiser.Também para Estrabão, I, II, 8, os mitos, principalmente os de Homero,são filosofia em imagens. A filosofia veio mais tarde e não pode servir maisdo que a uma elite; a poesia permanece o melhor guia para o grande públi-

co.41 Ver em Marrou (1938:489ss.) e Buffiere (1956:43).42 Pépin (1958:217-34). "Onde deveria a alegorização lícita cessar?

" — per-

gunta Frank Kermode em The genesis of secrecy – on interpretation of

narrative — "A patrística comum diz que em lugar nenhum. A alegoria é amaneira patrística de lidar com potencial hermenêutico inexaurível

" pois

"dizer que todas as narrativas possuem `potencial hermenêutico' é outra

maneira de dizer que elas devem ser obscuras " (p. 45), ou melhor, devem

possuir uma espécie de "obscura radiãncia " (p. 47).47 O mesmo autor observa que a palavra á)J~gyopíâ está ausente do Novo

Testamento, mas que isto não significa que a prática alegórica lhe seja des-conhecida, pois já no vocabulário do grego clássico o termo comporta umagrande variedade de quase sinônimos dos quais os autores do Novo Testa-mento fazem uso freqüente. Erich Auerbach (1973) — "Figura" — observa

que Sto Agostinho emprega "figura" e rejeita enfaticamente "alegoria "

(pp. 38-9). Sto. Agostinho rejeita o espiritualismo alegórico abstrato e de-senvolve toda sua interpretação do Velho Testamento da realidade históri-ca conreta, mas tem um idealismo que remove o evento concreto, completa-mente preservado como ele é, do tempo, e o transpõe para uma perspectivade eternidade (p. 42). Os termos gregos alegoria e tipo são também usados,

ao lado da palavra latina figura para prefiguração histórica; alegoria geral-

mente se refere a algum significado mais profundo e não apenas à profeciafenomenal, mas os limites são fluidos, pois figura e figuralites freqüente-

mente se estendem além da profecia figural (...). A interpretação figuralestabelece uma conexão entre dois eventos ou pessoas, o primeiro dos quaissignifica não apenas a si mesmo mas também o segundo, enquanto o segun-do abrange ou preenche o primeiro (...). Na medida em que na interpreta-

ção figural uma coisa passa por outra, uma coisa representa e significa a

outra, a interpretação figural é `alegórica' no sentido mais amplo. Mas eladifere da maioria das formas alegóricas que nos são conhecidas pela histo-ricidade do signo e do que ele significa. A maioria das alegorias que encon-tramos na literatura ou na arte representam uma virtude — e.g., sabedoria—, ou uma paixão — ciúme —, uma instituição — justiça —, ou na maioria

uma síntese bem geral do fenômeno histórico (paz, a pátria) — nunca umevento definitivo em sua plena historicidade (pp. 53-6). Podemos dizer, gros-so modo, que o método figural na Europa remonta às influências cristãs,enquanto o método alegórico deriva de fontes pagãs antigas, e também queo primeiro é aplicado em primeiro lugar a material cristão e o segundo amaterial antigo. Não estaremos indo longe demais se afirmarmos que a vi-são figural é a predominantemente medieval-cristã, enquanto que a visãoalegórica, modelada nos autores pagãos ou de espírito não-cristianizado daantigüidade tardia, tende a aparecer onde as influências antigas, pagãs oufortemente seculares são dominantes. Mas tais observações são muitogerais e imprecisas, pois os muitos fenômenos que reflgtem uma interpene-tração de diferentes culturas por mais de dois mil anos não admitem tãosimples classificações. Numa época muito antiga, material profano e pagãotambém era interpretado figuralmente: Gregório de Tours, por exemplo,usa a lenda dos Sete Adormecidos como figura para a Ressurreição; o retor-no de Lázaro de entre os mortos e o resgate de Jonas da barriga da baleiatambém eram comumente interpretados neste sentido. Na alta Idade Mé-dia, as Sibilas, Virgílio, as personagens da Eneida, e mesmo as do ciclolegendário bretão (por exemplo, Galaad na Demanda do Santo Graal) ti-nham interpretações figurais, alegóricas e simbólicas. Todas essas formas,aplicadas ao material clássico, bem como cristão, ocorrem na obra que en-cerra e resume a cultura da Idade Média: a Divina comédia (embora a for-ma figural predomine e determine a estrutura de todo o poema (pp. 63ss.).Ver a este propósito também "Farinata e Cavalcante" emMimesis (Auerbach,1971). 0 alegorismo paulino, ao introduzir na exegese a noção de tempo,associando — nos termos das categorias de Schelling — a noção de profetismoà de alegoria, cria uma alegoria profética — a "figura", em outros termos, ePépin (1958:478-79) cita como exemplo de sua aplicação a textos pagãos ocaso da IVa Écloga de Virgílio, onde são levantados traços da mensagemevangélica. (Cf. também Curtius, 1957:54). 0 método figural pode ser tam-bém identificado com o da allegoria in factis em termos da oposição entreallegoria in verbis (simbolização ao nível das palavras, as possibilidades desimbolização inerentes ao discurso, os tropos) e allegoria in factis(simbolização dos referentes, na ocorrência, eventos e personagens da His-tória Sagrada) — Cf. Strubel (1976).

44 Pépin (1958:453). Que se lembre quanto a isto que Justine defendia a tesede que os mitos pagãos são uma deformação dos mistérios cristãos pelosdemônios que os conheciam antecipadamente (ver Gandillac, 1960:53).

95 Ver Huizinga (1978) e Eco (1989), especialmente "Símbolo e alegoria".Além,é claro, do Livro de Curtius (1957). Cabe aqui esta distinção entre alegorismoe simbolismo embora até o século XVIII, como para a tradição medieval,esses dois termos tenham sido considerados praticamente sinônimos (verPépin, 1958:93ss., e, para uma discussão mais ampla, Todorov (1979:203-23). Até fins do século XVIII, a palavra símbolo é sinônimo de uma série deoutros termos como alegoria, hieróglifo, cifra, emblema etc., ou designa osigno puramente arbitrário e abstrato. E Kant que, na Crítica do juízo,inverte essa utilização e dá à palavra símbolo um sentido muito próximo do

68 69

Page 36: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

moderno. Longe de caracterizar a razão abstrata, o símbolo é próprio damaneira intuitiva e sensitiva de apreender as coisas. Ver também osaforismos de Goethe (1936) — aforismos 1.112, 1.113, 279 e 314.

45 Boccaccio via a poesia clássica como primordialmente narrativa, e primor-dialmente preocupada com os eventos e personagens da mitologia clássicae, para ele, toda narrativa de mérito era fabula e uma fábula é uma elocuçãoarticulada que, sob a aparência de ficção, é exemplar e demonstrativa, eque revela o propósito de seu autor apenas quando a concha de ficção éremovida. (XIV, ix).

" As características mais específicas da alegoria no Renascimento inglês vãoser examinadas mais detidamente no Capítulo V — sobretudo a propósitodo The Faerie Queene de Edmund Spenser, e da tradução da Odisséia deGeorge Chapman — e são diferentes das da alegoria medieval do tipo en-contrado, por exemplo, no Roman de la Rose (ver p. 30), onde a alegoriaconsiste de "quadros vivos" — o Bom Acolhimento, o Doce Perdão etc. — emais do que alegoria propriamente dita é uma personificação alegórica, queocorre quando noções abstratas e coletivas aparecem como personagenscapazes de falar e agir (e se assemelha à prosopopéia, em que as coisastornam-se homens e passam a agir, como em Camões, em que o giganteAdamastor é o cabo ao sul da Africa). Huizinga (1978:192-93) nota, contu-do, que "não há verdadeiro contraste entre a alegoria medieval e a mitolo-gia do Renascimento. As figuras mitológicas são mais velhas que o Renasci-mento. Vênus e a Fortuna, por exemplo, nunca tinham completamentedesaparecido, e a alegoria, por sua vez, mantém-se em voga por muito tem-po depois do século XV, especialmente na literatura inglesa. Na poesia deFroissart, o Doce Semblante, a Deusa, o Perigo, a Desculpa, discutem comfiguras mitológicas como Atropos, Clato etc. A princípio as últimas são me-nos vivas e coloridas que as alegorias, são ocas e sombrias e nada têm declássico. Gradualmente, o sentimento renascentista modificou-as inteira-mente. Os seres do Olimpo e as ninfas levam a melhor e as personagensalegóricas desvanecem-se à medida que a glória poética daAntigüidade maisse faz sentir."

u Cf. Todorov (1976). No artigo "L'herméneutique ancienne", Pépin (1976:291-300) mostra que o verbo herméneuein designa tanto, senão mais, a ativida-de de produção de discursos que a de sua compreensão. É neste sentido quepara Schleiermacher, "o parentesco da retórica e da hermenêutica consisteem que todo ato de compreensão é a inversão de um ato de discurso" e que éa partir de categorias retóricas que Sto. Agostinho funda a primeirahemenêutica cristã (ver Todorov, 1976:289).

49 Para Jon Whitman (1987) nem uma das tradições pode ser o que pretendeexceto convertendo-se na outra. A escrita alegórica deve procurar serconceitualmente coerente sem desfigurar-se, minar-se como "literatura";a interpretação alegórica deve ser suficientemente flexível para permitir àfiguração sua densidade e excedente de significado como uma narrativa ouação dramática, como "literatura".

50 A linguagem da filosofia é, em geral, o discurso argumentativo que, ao con-trário da narrativa mítica, se dirige à razão e não às emoções (cf. Capítulo I).

Aqui é oportuno lembrar que, tanto quanto a poesia e a linguagem do mythosem geral, é às emoções que visam os artifícios retóricos. A divisão ou oposi-ção entre retórica e poética, entre a arte da comunicação cotidiana, do dis-curso em público e a arte da evocação imaginária, é tipicamente aristotélicae é neutralizada com a fusão de ambas, isto é, quando a retórica se transfor-ma na techne poética (de "criação"), o que ocorre na época de Augusto, comOvídio e Horácio (ver Barthes, 1975:155-56).A propósito da expressão do pensamento conceitual em prosa, diz ainda N.Frye (1973:329):"A filosofia começa em provérbios e axiomas, e em diversas épocas produ-ziu o diálogo dialético de Platão e os Upanishades, o modelo estreitamenterelacionado de pergunta-objeção-resposta de S. Tomás, as disposições qua-se matemáticas de idéias em Spinoza, os aforismos de Bacon (o qual notaque os aforismos são um sinal de vitalidade em filosofia), e, em nossos dias,as proposições numeradas do Tractatus de Wittgenstein. Todos esses sãoclaramente, pelo menos em parte, esforços para purificar a comunicaçãoverbal, livrando-a do conteúdo emocional da retórica; todos, contudo, im-pressionam o critico literário como artifícios retóricos."Frye acrescenta em seguida que existe uma retórica conceitual que se procu-ra, como a retórica suasória, separando emoção e inteligência, mas tentandopôr fora a metade emotiva. Busca o livro e o leitor individual como sua com-panheira busca a audiência; sua meta é o entendimento, assim como o alvoda persuasão é a ação ou a reação emotiva.

51 Lutero era hostil à alegoria e achava que a Bíblia era um plenum herme-nêutico. Há aqui um movimento contra a interpretação: a Escritura comoum texto auto-interpretativo ao qual nenhum comentário pode acrescentarnada, um texto que preenche seus próprios vazios.

52 Veja-se, por exemplo, como a estrutura básica da sátira de Swift, Gulliver'stravels, é alegórica: a ilha dos pigmeus, a ilha dos gigantes, a ilha voadora ea ilha dos cavalos racionais são todas alegorias de aspectos da condiçãohumana numa forma de jornada para outro mundo. Em muitos dos poemasde Blake também a alegoria e a sátira estão presentes juntas, mas a distin-ção é imperceptível:I wander thro' each charter'd street/Near where the charter'd Thames doesflow /And mark in every face I meet Marks of Weakness, marks of woe.Londres aqui é tanto a alegoria de um estado de espírito como uma cidadereal cujo modo de vida ofendia os princípios religiosos de Blake.

Ss Note-se aqui uma preocupação semelhante à das discussões em torno da"literatura engajada".

7 0 71

Page 37: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

III — OCULTAR/REVELAR

A glória de Deus é ocultar as coisas;a do rei é descobri-las.

Provérbios, XXV, 2

OCULTAR

Aforma do ocultamento, o artificium occultandi, como é sabi-do, pode por si revelar algo do oculto (que, aliás, o é em fun-ção de uma revelação, isto é, de um novo velamento). Assim,o véu da alegoria, manifestação disfarçada de uma verdadesecreta, pode ser descartado como involucra que é peloexegeta e/ou iniciado que, no entanto, deve reconhecer o con-teúdo oculto pelo seu aspecto manifesto. Há nisso toda umatradição, a chamada tradição hermética (termo que se tor-nou superlativo de fechamento, velamento, no uso cotidia-no). Como a ciência hermética por excelência é a alquimia',tomemos dela um exemplo representativo: o acróstico dovitríolo, designação comum a vários sulfatos, especialmenteo ácido sulfúrico, e que é uma das substâncias mais impor-tantes para os alquimistas, que a têm como palavra-chaveda alquimia (Burckhardt, 1972, p. 101). 0 acróstico origi-

nal, atribuído às vezes a Basile Valentin, monge beneditinonascido em 1390 na Alsácia2 , é:

Visitetis Interiora Terrae Rectificando Invenietis Occultum La-pidem Veram Medicinam ("Visita as entranhas da terra indoreto e acharás a pedra oculta, verdadeira medicina".)

E o marquês de Palombara, em 1680, gravou numaplaca de mármore em sua porta a inscrição:

Villae Ianuam Trahando Recludens Jason Obtinet LocuplesVellus Medae ("Jasão, ao passar a porta de villa, descobriu econquistou o precioso tosão de Medéia") (Alleau, 1953, p. 12;Valentin, 1956, p. 21)

As alusões alegóricas se sucedem: Canseliet (apudAlleau, 1953, p. 11) relaciona a porta do marquês ao deusbifronte Jano (Janua é, em latim, a Porta); Medéia, por suavez, é uma entidade central no simbolismo alquímico, sim-bolizando o aspecto obscuro da natureza 3 ; Rectificando, quesignifica "indo reto", no contexto, ao lado de seu sentido físi-co, geométrico, está como que brandindo seu aspecto moral;"as entranhas da terra" leva ao tema do metal oculto na ter-ra por Deus 4 ; e assim por diante.

Em ambos os acrósticos as primeiras letras de cadapalavra formam o termo VITRIOLUM, vitríolo, o agentequímico secreto que desempenha um papel capital na Gran-de Obra alquímica (ver Alleau, 1953, p. 12). No Dicionáriomito-hermético de Dom Pernety (1972) 5 , logo no início doverbete Vitriol, encontra-se a advertência de que nada émais enganoso do que tomar literalmente as palavras dosSábios, de que não nos devemos deter nas palavras, mas nosentido que elas escondem. Assim, toda a obra e sua matériaestão contidas nas palavras do acróstico, dizem eles, mas otermo vitríolo é equívoco e pode estar designando todos osvitríolos tanto naturais quanto artificiais, extraídos dospirites, dos minerais, das águas vitriólicas ou dos metais;pode ser o vitríolo romeno, que participa, no sistema de cor-respondências metal-planeta, de Marte, ou o húngaro, queparticipa de Vênus, e daí por diante e, portanto, devemosmanter-nos em guarda contra a aparente ingenuidade des-ses Autores. Depois de algumas conjecturas químicas,Pernety prossegue:

7 2 73

Page 38: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

É preciso não nos surpreendermos com todas essas peças que osFilósofos pregam nos ignorantes e naqueles a quem o amor dasriquezas tiraniza o bastante para os fazer arriscar os bens reaisque possuem na busca de montes de ouro que lhes são prometi-dos. Aqueles que querem penetrar no sentido oculto destas pala-vras, Visitetis etc, devem estudar a Natureza e seus procedimen-tos, combiná-los com o que dizem os Autores Herméticos, e verem seguida se o que eles dizem da matéria da obra pode convirao que a Natureza emprega como semente dos metais (...). Estarem seguida bem convencidos, tanto pela experiência diária quan-to pelo que dizem os Filósofos, de que não se deve tomar os doisextremos, mas o meio que participa dos dois (...).

A preocupação com o velar, com o ocultar, permeia todaesta passagem e está presente ostensivamente em todos ostextos alquímicos. A alquimia é uma ciência hermética,"oculta" 6 e é peculiaridade dos autores alquimistas escreve-rem de modo velado, lançando mão de alegorias, enigmas eusando intercambialmente cinqüenta ou mais nomes parauma coisa, ao mesmo tempo em que dão ao mesmo nomemuitos significados, constituindo uma terminologia que con-funde os termos proposital e constantemente (cf. Silberer,1971, p. 119). A alquimia se oculta porque não quer se diri-gir a qualquer um. Para os alquimistas, a "Arte Real" pres-supõe uma inteligência inusitada e uma grande elevação dealma, virtudes sem as quais sua prática encerra um grandeperigo espiritual. Assim, Sinésio, um alquimista provavel-mente do século IV, escreveu: "Os verdadeiros alquimistas seexprimem apenas por simbolos, metáforas e imagens, a fimde não serem compreendidos senão pelos santos, sábios ealmas dotadas de inteligência (...)" (Burckhardt, 1972,p. 28). Como toda "arte sagrada " , isto é, "como toda doutri-na que conduz à sublimação do ser " , a alquimia se fundasobre uma iniciação por parte de um mestre (Burckhardt,s./d., p. 65). Para M. Eliade (1979a, p. 127), a linguagemalquímica é provavelmente uma "linguagem secreta" comoa que é encontrada tanto entre os xamãs das sociedades

arcaicas como entre os místicos das religiões históricas; "lin-guagem secreta " que é ao mesmo tempo expressão de senti-mentos que não podem ser transmitidos através da lingua-gem cotidiana, e comunicação críptica do sentido oculto dossimbolos. O "sagrado", observa Alleau (1953, p. 93), é inse-parável da "sociedade secreta" e de uma "linguagem secre-ta" . A maior parte do tempo, as palavras dessa linguagemdevem-se à profana, mas elas recebem um sentido especialcujo conhecimento só é transmitido ao iniciado.

Aqui cabe lembrar que enquanto as origens da quími-ca moderna foram as pesquisas químicas, metalúrgicas, deordem artesanal, as origens da alquimia foram as pesquisasteúrgicas, de ordem sacerdotal (Alleau, 1953, p. 97). Estadistinção permite considerar duas categorias de textos e desimbolos: uma que corresponde a um vocabulário técnicopré-científico bem como a receitas muito diversas, a outrafundada sobre uma língua especial, secreta, que segueregras de elaboração muito próximas das do "jargão", doantigo argot' . Tal distinção é enfatizada também por G.Bachelard (1957, pp. 52-3), que salienta ser a alquimiamais uma iniciação moral que intelectual. "Antes de a julgardo ponto de vista objetivo, com base nos resultados experi-mentais, é preciso julgá-la do ponto de vista subjetivo, porseus resultados morais", como iluminação espiritual e inicia-ção moral. Trata-se de uma magia que não é taumatúrgica.A letra não comanda o espírito. "É preciso uma adesão docoração, não dos lábios" (Bachelard, 1957, p. 53).A confusãoé freqüente porque, como adverte Alleau (1953, p. 29),esquecemos que amiúde na Antigüidade e na Idade Média aexperiência religiosa era constantemente ligada à experiên-cia científica e, sem ter esse fato em mente, incorremos, noexame dos textos, em incessantes contradições. Quer se tra-te da física grega, da cabala hebraica, da astrologia caldaica,da ciência extremo-oriental das mutações ou da alquimiaocidental, todas essas técnicas, todos esses sistemas repou-sam num fato universal e comum: a iniciação a mistérios.E preciso, então, a par das metas e princípios explicitos da

7 4 75

Page 39: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

alquimia tradicional, tal como eram postos ainda no Renas-cimento, a saber, o crescimento dos minerais, a transmuta-ção dos metais, o Elixir e a obrigação do segredo, ter emmente o caráter alegórico do texto alquímico. Pois como ob-serva Sherwood Taylor, em A survey ofgreek alchemy (apudEliade, 1979a, p. 113), os textos dos antigos alquimistasmo§tram que "esses homens não estavam interessados emfabricar ouro e, na realidade, não falavam de ouro real. Oquímico que se pusesse a examinar essas obras experimen-taria a mesma sensação de um pedreiro que quisesse extra-ir informações práticas de uma obra de franco-maçonaria".

Assim, na Introdução deAspects de l 'alchimie traditio-nelle8 , René Alleau (1953, pp. 34-6) situa a alquimia comopertencendo mais à história das religiões que à história daciência. E, se se admite que a fmalidade dos alquimistas eraa iluminação, explica-se assim facilmente a verdadeira ra-zão da obscuridade dos textos alquímicos. Esses textos sedirigiam ao mesmo tempo a outros alquimistas, aos " iniciá-veis" e aos profanos, correspondendo a cada categoria de lei-tores um sentido do texto. Por outro lado, graças à interme-diação de uma "chave comum", o significado técnico exatodos termos era imediatamente compreendido pelos alqui-mistas iniciados, por outro, subsistia uma transmissão even-tual que tinha a finalidade de separar o "iniciável" do profa-no. Esta divisão, não podendo se produzir no nível de umainterpretação mais ou menos exata, correspondia a umarigorosa alternativa lógica: ou bem os textos eram estudadostais quais e sem fixar a termos desconhecidos valores arbi-trários, ou bem o leitor, imbuído de preconceitos, considera-va esses símbolos como facilmente compreensíveis, lhes apli-cava uma interpretação qualquer e decifrava a priori essescriptogramas. No primeiro caso, a coerência racional coloca-va graves problemas, no segundo, a coesão das explicaçõesse estabelecia sem muita dificuldade. Assim, o "iniciável"

não compreendia, ao passo que o profano, acreditando com-preender, se vedava, na medida em que interpretava a priorios textos, todo acesso a uma penetração verdadeira. Quanto

ao "iniciável", presa de contradições avassaladoras, se perse-verasse, "graças às trevas do segredo, poderia entrever a luzdo sagrado e receber a `chave ' da iniciação verbal" . A pertur-bação do equilíbrio do mecanismo lógico da consciência pro-fana do estado de vigília parece, portanto, constituir o prin-cípio didático da alquimia, tal como em certas religiões doExtremo-Oriente como a interpretação chinesa da doutrinada iluminação e o budismo zen.

Seguem-se algumas prescrições explícitas de véu dosigilo em textos alquimistas clássicos:

É preciso velar aos tolos e revelar aos sábios e não de outraforma, pois isso seria danação (em Turba philosophorum' )Coragem, portanto, Filhos da Ciência, procurem e acharão in-falivelmente este Dom muito excelente de Deus, que é reserva-do para vocês apenas. E vocês, Filhos da iniqüidade, que têmmá intenção, fujam para bem longe desta Ciência, porque ela évossa inimiga, ela é feita para vossa perda e vossa ruína, queela vos causará muito certamente. Pois a providência divinanão permitirá jamais que vocês usufruam deste Dom de Deus,que está oculto para vocês, e que vos é proibido. (Geber, 1976,p. 127)

10

Em seus escritos, os Filósofos se exprimem de maneiras dife-rentes, mas sempre enigmáticas. Eles nos legaram uma ciêncianobre entre todas, mas velada completamente para nós por suapalavra nebulosa, inteiramente oculta sob um véu impenetrá-vel. E no entanto eles têm razão em agir assim. (Roger Bacon,1974, p. 15)11

Não me dirijo a todos, mas apenas aos que admiram o Senhorem suas obras e que Deus julgou dignos.Que aquele que temouvidos para entender esta comunicação divina receba os se-gredos que me foram transmitidos pela graça de Deus e que elenão os revele jamais aos que são indignos. (Alberto, o Grande,1974, p. 51)Falei o suficiente, escrevi o suficiente. Mais, não se pode ensi-nar de tão claro, de tão limpo, a menos que se queira ser traga-do pelo inferno por revelar os segredos interditos pelo Criador

7776

Page 40: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

em relação aos frutos colhidos da árvore que fica no centro do

paraíso. (Basile Valentin, 1977, p. 248)12

E realmente não se sabe que nossa Arte é uma arte cabalista?Quero dizer que ela só é revelada de boca e que é plena de mis-térios: e tu, pobre idiota que és, serás suficientemente simplespara crer que ensinaríamos abertamente e claramente o maior

e mais importante de todos os segredos e para tomar nossaspalavras ao pé da letra? Eu te asseguro de boa fé que aqueleque quiser explicar o que os alquimistas escreveram segundo osentido comum e literal das palavras, se encontrará enredadonos descaminhos de um labirinto de onde não se desvencilharájamais; porque ele não terá o fio de Ariadne para se conduzir epara sair; e quaisquer despesas que ele fizer nesse trabalho,será dinheiro perdido. (Arthéfius, citado porAlleau, 1953, p. 30)

Esta insistência no velamento e na revelação em opo-sição a um temido des-velamento, que é característica detoda a ciência hermética, sendo mais ostensiva na literatu-ra alquímica e que, quando não é a origem da produção ale-górica é o álibi da exegese alegórica, é explicada de diversasmaneiras nem sempre excludentes e cuj as análise mais de-tida não cabe aqui. Há, em primeiro lugar, e de maneiramais geral, o temor da perseguição da Igreja — a mesmacausa, aliás, de Descartes proclamar-se um "filósofo dissimu-lado" — pois não se tratava de uma época confortável parauma religião que era mais baseada em requisitos morais doque no medo do inferno (apesar da passagem acima citadade Basile Valentin), na expectativa de recompensas e emsinais externos visíveis. Outro fator importante é que doponto de vista hermético, como salientaAlleau na passagemacima sobre "iniciáveis" e profanos, uma linguagem real-mente clara não seria, na natureza das coisas, nem ' possívelnem recomendável de um ponto de vista educacional. E,sobretudo, sendo uma ramificação ou uma "dimensão opera-dora" do Hermetismo (Burckhardt, 1972, p. 27), a alquimiaintegra-se na tradição mística, em que o ocultar é elemento

básico, arraigado na própria origem do termo "místico", quevem de "mistério", do grego myein, que significa "calar-se".

Certas concepções centrais dos alquimistas, no entan-to, nunca deixaram de transpirar e circular através da lite-ratura, sobretudo de obras de cunho satírico. Entre as maisconhecidas destas, The Canon's Yeoman's Tale, de Chaucer,do século XIV, e The Alchemist, de Ben Jonson, de 1615, hána literatura popular inglesa uma forte e persistente tradi-ção de sátira alquímica 13 . Nesta última obra, a concepçãoalquímica básica, que se encontra na Summa perfectionis, deGeber (acima mencionada em tradução francesa), de que "oque a Natureza não é capaz de aperfeiçoar num largo espa-ço de tempo, podemos, com a nossa arte, levar a termo empouco tempo", está claramente formulada no ato II, cena 2

14

A alquimia, como toda tradição viva, atrai para si todoelemento aparentado a seu próprio "cosmos " , e é assim queela faz uso freqüentemente, em suas expressões teóricas, demitos 15 e de símbolos provenientes de outras tradições. Elaguarda, entretanto, traços característicos, por um lado e, poroutro, ela não esgota mas é apenas parte da tradição hermé-tica tal como esta se apresenta na Inglaterra elizabetana.Alguns autores (Alleau, 1953, p. 38, por exemplo) evitammesmo o termo "hermetismo", alegando que o nome deveriaser reservado à filosofia posterior à escola neoplatônica deAlexandria ou, num sentido ainda mais restrito, a esta esco-la ela mesma.

De qualquer forma, naquela época, o oculto ocorre nasmais diversas instâncias, e de diversas maneiras. Como ob-serva J. Delumeau (1984, p. 126, v. 2), quando Leonardo eMichelangelo deixavam obras inacabadas, esboços, que sim-bolizavam o momento criador, é preciso lembrar que do ina-cabado ao esotérico vai apenas um passo. Pico de Mirandolainsistia em que é preciso não ensinar tudo, que as mais altasverdades devem ficar envoltas no mistério. E uma época desucesso dos Hieroglifica (compostos por um obscuro alexan-drino entre os séculos II e IV e descobertos em 1419 por um

78 79

Page 41: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

padre florentino), charadas, acrósticos, divisas alegóricas elivros de emblemas; a moda da mitologia era ao mesmo tem-po a moda de um sistema simbólico.

A tradição hermética propriamente dita, em sua reto-mada renascentista, é inseparável da prática da magia talcomo se apresenta no Picatrix, o clássico manual de magia eastrologia da última época helenística (Cassirer, 1951,p. 144; Yates, 1987, p. 62). Yates (1987, p. 94) procura mos-trar como malgrado Marsílio Ficino, que traduziu do gregopara o latim na metade do século XV o Corpus hermeticum'

6 ,querer diferenciar suas canções planetárias "naturais" dasinvocações demoníacas ao Sol que se encontraram noPicatrix 17 , há uma continuidade entre a velha e a nova ma-gia. Ambas assentam nos mesmos pressupostos astrológicos,empregam em seus métodos os mesmos agrupamentos desubstâncias materiais, que servem de talismã e invocações,são magias pneumáticas, que crêem no spiritus como umcanal das influências superiores e inferiores e, finalmente,são ambas integradas num elaborado contexto filosófico.Enquanto a magia doPicatrix é apresentada num quadro dereferências filosófico genérico, a magia natural de Ficinobaseia-se principalmente no neoplatonismo.

Yates vê a magia da Renascença como a continuidadeda magia medieval e como a transformação dessa tradiçãoem algo novo:

Esse fenômeno é exatamente paralelo àquele que Warburg eSaxl descobriram e estudaram: o fato de que as imagens dosdeuses foram preservadas, através da Idade Média, em manus-critos astrológicos, e chegaram à Renascença naquela formabarbarizada, sendo então reinvestidas de sua forma clássicagraças à redescoberta e à imitação das obras de arte clássicas.Do mesmo modo, a magia astral degenerou na tradição medie-val e foi reinvestida na Renascença de sua forma clássicagraças à redescoberta da teurgia neoplatônica. A magia deFicino, com seus hinos ao Sol, suas Três Graças num contexto

astrológico e seu neoplatonismo, esta mais próxima, no modode ver, na prática e na forma clássica, do imperador Julianoque do Picatrix. Todavia, a substância chegou a Ficino atravésdoPicatrix e de obras semelhantes, e foi por ele transformada edevolvida à forma clássica, graças a seus estudos de grego.(Yates, 1987, pp. 94-5)

Yates chama a atenção também para outro aspectoimportante desta configuração: a crença de'Ficino 18 na pre-tensa antigüidade dos textos herméticos que, de certa forma,os resguardaria — como prefigurações — ante a verdadecristã: ocorre que Lactâncio (que também vira em HermesTrismegisto um profeta gentio) escreveu suas Instituiçõesdivinas no contexto do império de Constantino, superficial-mente cristianizado, e nessa sua obra apologética trata depersuadir os pagãos a se tornarem cristãos, ressaltando osaspectos do paganismo próximos do cristianismo, ou que oprofetizam. Entre a época de Lactâncio e a de Agostinho,houve, no império do apóstata Juliano, uma reação pagãpara expulsar a nova religião adventícia, e um retorno àreligião filosófica "do mundo" e aos cultos de mistério, Agos-tinho, que escreveu depois da reação pagã, rejeitou a con-cepção otimista de Lactâncio, segundo o qual HermesTrismegisto foi um santo profeta do cristianismo mas confir-mou o erro da data. Ficino, acreditando na grande antigüi-dade do Corpus hermeticum, e seguindo o parecer deLactâncio, não remonta em seus estudos, segundo pensa, àantigüidade de um priscus theologus que profeticamentecontemplara a verdade cristã (e autorizara a prática da ma-gia), mas ao tipo de gnose filosófica pagã, com influênciasegípcias e mágicas que caracterizara a reação anticristã sobJuliano (ver Yates, 1987, pp. 72-3).

O sincretismo religioso é característico da Renascença,quando chega-se quase a identificar a tríade neoplatônicae a Trindade e se considera o culto ao Sol, teórica e historica-mente, como uma religião afim à cristã 19 . O humanista Paolo

8 0 81

Page 42: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Cortese publica em 1503 um Resumo de dogmática — apre-sentação das verdades cristãs ao gosto do tempo — no qualdescreve o inferno à maneira pagã, chama a Sto. Agostinho"profeta pítico da teologia" e diz que S. Tomás de Aquino é o"Apolo da Cristandade " (ver Delumeau, 1984, p. 20, v. 2).

Existe ainda uma considerável influência medieval noocultismo e na magia da Renascença: os interesses pitagori-zantes de Nicolau de Cusa, aArs Magna de Raimundo Lúlioe a magia natural mais prática e empírica de Roger Bacon eAlberto Magno participam desse panorama sincrético do sé-culo XVI, mas seu dado específico e característico consistiana Cabala e nos livros herméticos, bem como na revivescên-cia neoplatônica centrada na Academia Florentina, que teveampla influência no ocultismo daquele século.

Neste panorama deve, finalmente, ser considerado umaspecto de grande importância que é o ponto de intersecçãoentre o mago e o cientista. Pois o lugar do mago no universodinâmico e infinito da Renascença é bem diferente daqueleque ocupava no universo finito e estático medieval, ondetoda a magia, por incrementar movimento e mudança, impli-cava malignidade, desarrumando a casa arrumada do Se-nhor. M. Haydn (1966)

101chama a atenção para o fato de que

a palavra "experiência" é quase tão popular no século XVIquanto "razão" no XVIII. A experiência é "a mãe de todasabedoria" e "senhora de todas as coisas" (expressões co-muns entre os defensores da magia natural e alquimia, comoParacelso etc.). Ela é importante tanto para os magos, queprocuram aprender os segredos da natureza amplamente,através de iluminação, revelação e iniciação num corpode antigo conhecimento esotérico, como para os empiristasradicais, que se concentram nos fatos particulares da na-tureza, pois se para eles um conhecimento sintético da natu-reza é impossível, é preciso se deter na descoberta de fatosnaturais particulares que podem ser de utilidade prática.Neste sentido, Paracelso, Jerôme Cardan e John Dee ilus-tram a ambigüidade de serem simultaneamente o que um

observador do século XX pode chamar de cientista e charla-tão, enquanto já empiristas medievais como Roger Bacon eAlberto Magno nunca distinguiram claramente entre ciên-cia empírica e insight realmente científico. Na verdade hátoda uma coincidência de pontos de vista e metas entreempiristas e magos que os diferencia em muitos aspectos dasvisões medievais e humanistas. Francis Bacon não é "moder-no" por seu desprezo às matemáticas, que fundam a ciênciamoderna com a matematização da física operada porGalileu. E, ao mesmo tempo, Francis Bacon é "moderno" jus-tamente por seu desprezo às matemáticas que, no seu con-texto, a seu ver, representavam apenas a numerologia, a ca-bala e outras tradições mágicas e místicas. Mesmo Newtonainda vasculharia as seções mais esotéricas da literaturaalquímica com a esperança de que contivessem os verdadei-ros segredos — cf. Westfall, "Newton and the hermetictradition" , citado por Eliade (1979a, p. 136).

O Dr. Faustus, de Marlowe, com seu pacto demoníaco,é filho dos magos-cientistas desse período. F. Rossi (1968,p. xii) nota também que

embora tendamos a esquecer, os grandes elizabetanos,Shakespeare, Spenser, Marlowe e Sidney, não tiraram suacosmologia nem de Ramus nem dos fisicos atomistas, mas dastradições medievais escolásticas e mágico-platônicas (...). Mui-tos autores do início do século XVII revelam um acúmulo de in-fluências conflitantes: cultura clássica e as exigências de umanova lógica; experimentalismo científico e pesquisas mágico-alquímicas; teorias atomistas da matéria e a busca da pedrafilosofal; mitologia clássica e a evocação de demônios; moralidadepagã e evangélica; agitação política e ideais contemplativos.

Por isso, se formos aferir, nos termos do Capítulo I, sea tradição hermética propõe uma sabedoria ou um conheci-mento, a diferenciação entre ambas no contexto que exa-minamos será tão problemática quanto a que ocorre nessa

8 2 83

Page 43: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

época entre o mago e o cientista. Vale lembrar, naqueles ter-mos, que a literatura alquímica, por exemplo, com toda a suarecorrência às narrativas dos mitos clássicos, é em sua maiorparte composta por diálogos, vindo a seguir o estilo argu-mentativo propriamente dito.

, A par desta coalescência entre o que chamamos hojede "mágico" e de "científico" , há uma firme insistência dagrande maioria dos autores que dela participam numa dife-renciação entre magia "natural" e magia "negra" . Vimos queMarsilio Ficino era cioso de tal distinção. Pico de Mirandola(1942) declara:

A magia tem duas formas, uma das quais depende inteiramen-te do trabalho e da autoridade dos demônios, uma coisa quedeve ser abominada (...) e uma coisa monstruosa. A outra, quan-

do é adequadamente realizada, não é nada mais que a perfei-ção definitiva da filosofia natural (...). A primeira é a mais bai-xa das artes, a segunda é a mais sagrada e mais alta filosofia.

Afirmações similares são feitas por Paracelso,Agrippa,John Dee etc. (cf. Haydn, 1966, pp. 134-35). Para E. Garin,

a insistência nessa distinção integra uma vontade de reto-mar tudo aquilo que a teologia medieval tinha combatido emostra a profundidade da ruptura renascentista:

(...) uma radical mudança na visão do homem, e, portanto, dassuas relações com o ser, toda aquela ampla gama de temas quetinham sido refutados, condenados e exorcizados como ímpios ediabólicos, passam a um primeiro plano, revelam a suafecundidade e purificam-se, mas sem perder a sua significação

originária. Assim, vemos como grande parte da investigaçãorenascentista se preocupa em analisar cuidadosamente as dife-renças entre a verdadeira e a falsa magia, a verdadeira e a fal-sa astrologia, a verdadeira e a falsa alquimia, porque se intuique ali reside o novo caminho que dará ao homem o domínio

sobre a natureza. ( Haydn, 1966, p. 134)

REVELAR

A razão e o bom senso não precisam de artifícios e falam por si mesmos;e que necessidade há de rebuscar os termos

quando quereis falar em sã consciência?Vossos discursos tão brilhantes,frívolo adorno da humanidade,

são insultos como o vento nebuloso a sussurrar entre as folhas secas.

. Goethe, Fausto, 350(em que Fausto, desvairado por toda a ciência escolar e

buscando refúgio na magia, critica a retórica)

O período renascentista 21 , por outro lado, é caracteri-zado também pelo humanismo, ou melhor, pela tradiçãohumanista que, como vimos, se opõe ao universo medievalmas também à tradição hermética que, partindo da priscatheologia pode ser considerada humanista apenas no quetoca a recuperação de textos antigos, pois de resto trata deassuntos de filosofia, ciência ou magia, além de religião, quenão são humanistas. Ao contrário do que ocorre na tradiçãohermética, o humanista latino tem uma noção correta dacronologia, visando a época dourada da retórica latina, talcomo a representa Cícero, sem transpor essa data para umanebulosa antigüidade próxima do Dilúvio, com uma cronolo-gia fictícia, como aquela por meio da qual se dá à priscatheologia um falso realce, numa outra tradição, e se distorcea abordagem da filosofia grega. E da retórica como era vistae praticada então que passamos a traçar um rápido esboço.

Em primeiro lugar, a teoria retórica, tal como se dá naInglaterra elizabetana, não depende, contudo, apenas datradição clássica, representada pelas principais obras lógi-cas e retóricas de Aristóteles, Cícero e pelosDiálogos de Pla-tão22 , mas também da considerável influência das teoriasmedievais de gramática, retórica e dialética que, é claro, têmum viés principalmente clássico mas, em seu desenvol-vimento e aplicação em adequação à época, levam duasgrandes tendências: a que enfatiza o aspecto estilístico da

84 85

Page 44: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

retórica, particularmente na antiga escola de declamações ecomposição de cartas e a que dá proeminência ao aspectoinventivo da retórica, especialmente nas disputas dosescolásticos. Na primeira tendência a retórica parece se con-fundir ou se subordinar à gramática e à poética, na segundaparece se combinar com a lógica e a dialética 23 . Na primei-ra, a' atenção voltada para o estilo ou modo de expressão nalinguagem decorre das amenidades do discurso cortesãoelizabetano, da voga da arte epistolar, da admiração pelodrama e poesia da Itália. Na segunda, a demanda é do siste-ma inglês de tribunais, do movimento de juristas para atua-lizar a commom law inglesa, da crescente importância dodebate parlamentar e das discussões diplomáticas, bemcomo do debate de púlpito anglicano-puritano (Wallace,1943:186; Travelyan, 1958). 0 grupo de teóricos da primeiratendência restringia a retórica às partes do estilo e digres-são. Para que o artista da prosa possa descobrir seus argu-mentos e estruturá-los como uma unidade, ele deve se diri-gir à lógica e à dialética. Como estas disciplinas lidam com atópica tradicional de achar argumentos e com a metodologiade julgar inferências e arranjar as idéias tanto nas partesmenores de uma composição, como a sentença, como no dis-curso todo, o teórico da retórica deve restringir sua exposi-ção às artes do estilo e enunciação com ênfase nos tropos eesquemas. Tampouco a ética lhes diz respeito, e portantoeles aparecem como "cientistas" e construcionistas estritos.Representante típico desta tendência é Henry Peacham que,em Garden of eloquence (1577), restringe a discussão às do-ces harmonias da fala e aos misteriosos poderes da persua-são que funcionam "after a most wonderfull manner". Suapreocupação é o singular, o distintivo e brilhante e a expres-são (Wallace, 1943, p. 191-93).

Para os teóricos da segunda tendência, a retórica éuma arte completa, independente de falar e escrever prosa.Seguindo a tradição clássica da teoria retórica, eles vêem acomposição e digressão do discurso abrangendo cinco opera-ções principais: invenção ou descoberta das idéias e argu-mentos apropriados para a audiência e ocasião: organização

e arranjo das idéias num todo articulado; controle da lingua-gem e da dicção com vistas à clareza, impressão e distinçãode estilo; retenção e memorização do que deve ser enuncia-do; e finalmente a digressão do discurso. O mais representa-tivo teórico desta tendência, Thomas Wilson, em Art ofrhetorique (1533), define a retórica como "an art to set forthby utterance of words, matter at large ... that may throughreason largely be discussed " (apud, Wallace, 1943, p. 189).Abrange todas as questões, menos as das ciências físicas.Suas finalidades são ensinar, deliciar e persuadir. Divide-seem invenção, disposição, elocução, memória e pronuncia-mento ou digressão (Wallace, 1943, p. 187-89).

Esta nítida divisão entre lógica e retórica era realiza-da conscientemente por ambas as facções e um resultado sig-nificativo da divisão do discurso em compartimentos estrita-mente lógicos e retóricos é a gradual conscientização porparte do acadêmico elizabetano de duas operações mentaisna composição que passam a lhe parecer inteiramente dife-rentes. Uma operação literal ou racional, abrangendo os pro-cessos de descoberta, arranjo e júlgamento ou crítica, e umaoperação imaginativa, sugerida em termos de "vestimenta" ,"ornamento" etc. Wallace (1943;. 195-96) observa que atéa formulação da retórica por Bacoú a operação imaginativanão é posta em termos mais analíticos e dotada de escopomais amplo.

Esta bipartição e confronto razão/imaginação (e mesmotambém entre res e verba), de certa forma é do mesmo teorde outros semelhantes que vimos até aqui, como mythos/logos, verdade/ficção e ciência/poesia — mas é prudente evi-tar identificações abruptas e integrais, uma vez que, no quetoca a esta última dualidade, por exemplo, para ficarmosapenas nesta comparação, e de modo breve, obviamente nãosó os termos razão e poesia e imaginação e ciência não seopõem irredutivelmente como também é bom lembrar que aimaginação neste quadro da teoria retórica se reduz apenasA. operação de adorno. De qualquer forma, dentro deste qua-dro é que para Ramus toda grande obra de literatura, como

86 87

Page 45: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

todo discurso efetivo, tem sua base na dialética, porque éuma expressão da busca da verdade pelo homem e é suscetí-vel à análise lógica. A insistência ramista nos aspectos lógi-cos da literatura pode ter influenciado Spenser, Greene eSidney, e quanto à retomada desta problemática em A defe-sa da poesia deste último, voltaremos a discutir no CapítuloIV, bastando-nos por ora situá-lo na ou aparentá-lo à pen-dência platônica com a poesia. Lembremos aqui que Platão,também por motivos filosóficos e pedagógicos, repudiou aretórica como repudiou a poesia. Tal alinhamento com a poe-sia (e com o mythos) a que a retórica se vê constrangida aoser confrontada com a lógica, não deve nos fazer esquecer,entretanto, que sua finalidade, a persuasão, a insere nitida-mente no estilo argumentativo" .

Feito este delineamento, resta mencionar a existênciade um ponto de intersecção — que vindo da Renascença ita-liana alcança o horizonte elizabetano (lembremos que aRenascença inglesa ocorre um século depois da italiana) —entre o ocultar da tradição hermética e o revelar (que maisseria um transmitir) da tradição retórica. O método de dis-posição que F. Bacon chamava de acroamático ou enigmáti-co que, de certa forma, participa dessa coalescência, seráabordado no capítulo seguinte, a propósito das relações en-tre Bacon e as duas tradições em questão. O outro elementoem que se une retórica e hermetismo é a arte da memória.Esta, inventada pelos gregos e passando para a tradiçãoeuropéia através de Roma, é desenvolvida e cultivada naIdade Média no contexto da retórica, da qual a memóriaé uma parte. Para os humanistas, no entanto, ela é algomedieval no que esta concepção lhes é negativa. Erasmodesaconselha o uso do que chama de memória artificial eMelanchton chega a proibir os estudantes de empregaremquaisquer dispositivos mnemotécnicos (Yates 1969, p. 132-34) 25 . Mas ela encontra grande receptividade, por outro lado,no movimento neoplatônico iniciado por Marsilio Ficino ePico de Mirandola no fim do século XV, menos adverso à Ida-de Média que o humanismo. E através do neoplatonismo

renascentista a arte da memória se transforma numa artehermética ou oculta. A inserção da arte clássica da memóriana tradição hermético-cabalista é obra principalmente deGiulio Camillo, elaborador de uma retórica em que se procu-ra fazer corresponder as articulações oratórias do discursoàs estruturas fundamentais do ser, de maneira que as pala-vras pronunciadas constituam apenas o último eco e o pro-longamento extremo das idéias eternas, sua manifestaçãocorpórea2ó . Nas páginas iniciais de seu tratado de memória,L'idea del theatro, encontra-se a seguinte passagem:

Mercurius Trismegistus diz que a fala religiosa, plena de Deus,é violada pela intrusão do vulgar. Por esta razão os antigos ...esculpiam uma esfinge em seus templos ... Ezequiel foi repre-endido pelos Cabalistas ... por ter revelado o que havia visto ...(L'idea del theatro, pp. 8-9, apud Yates, 1969,p. 154)

Assim, com o recurso de Ficino e PicO,, da magia e dacabala, do hermetismo e cabalismo implícitos no chamadoneoplatonismo renascentista27 , Camillo transforma a arteclássica, cuja origem remontaria a Simônides, numa arteoculta. Posteriormente, esta transformação vai ser retoma-da e elaborada por Giordano Bruno — em seu De umbrisidearum (1582) — de uma forma consideravelmente maiscomplexa e mais intensa, mais extremamente mágica e maisextremamente religiosa, em que a oratória ciceroniana ésubstituída por uma suposta antiga religião mágica egípcia(cf. Yates, 1969, cap. 9).

Mas o que nos interessa aqui, sobretudo, no âmbitodesta peculiar intersecção, é a alusão de Bruno, em seus úl-timos tratados de memória — Figurato Aristotelici physiciauditas (1586), que ensina como memorizar a física deAristóteles através de uma série de imagens mitológicas; eLampas triginta statuarium (provavelmente escrito em1588), em que ele aplica o método do Figuratio à teoriade que os mitos dos antigos contêm verdades de filosofia na-tural e moral. Ele certamente conhecia a Mythologia de

8 8 89

Page 46: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Natalis Comes (Yates, 1969, p. 282), mas inova ao introdu-zir a memória em sua teoria da mitologia. Ele reverte a afir-mação usual, de que os antigos ocultavam os arcanos nosmitos, afirmando, pelo contrário, que eles justamente expli-cavam verdades através dos mitos no sentido de torná-lasmais facilmente lembradas (Yates, 1969, p. 282-83). AoLampas triginta statuarium Bruno atribui um triplo poder;como antigas e verdadeiras afirmações em forma mitológicade antigas e verdadeiras filosofias e religiões que ele estariarevivendo; como imagens de memória contendo em si inten-ções de poder no sentido de dominar essas verdades; comoimagens de memória artisticamente mágicas através dasquais o mago crê se pôr em contato com inteligências divinase demoníacas. E esta obra pretende também, no interior deseu sistema de memória, refutar a filosofia aristotélica, quedeveria supostamente memorizar (Yates, 1969, p. 283-84).Isto antecipa de certo modo o uso que Francis Bacon fará damitologia clássica como veículo para transmitir uma filoso-fia anti-aristotélica, nesse mesmo território em que o véu daalegoria é também ambiguamente a cortina do palco do es-petáculo retórico (cf., por exemplo, Rossi, 1968, p. 207ss.). Eo que examinaremos a seguir, no Capítulo IV.

NOTAS DO CAPÍTULO III

' Cf. Yates (1987:174). Interessa-nos aqui a manifestação da tradição hermé-tica na era elizabetana; a alquimia propriamente dita é privilegiada nãoapenas por ser central àquela tradição, mas principalmente pelas relaçõesde Bacon com ela, em suas críticas e concordâncias em relação a noçõesbásicas e, sobretudo, no que toca ao simbolismo de algumas exegeses demitos clássicos, como será visto no Capítulo IV.

z Trata-se de pseudónimo alegórico que evoca o rei poderoso, o monarca mag-nífico, pelo qual os alquimistas designavam alegoricamente o fruto maravi-lhoso de seus trabalhos. O primeiro vocábulo vem do grego 13ç aiXeúç/Rei,e o segundo corresponderia ao genitive do latim valens, ualentis/poderoso,possante. Jacobus Tollius, filólogo e alquimista holandês do século XVII,em seu pequeno tratado, Sapientia insaniens sive promissa chemica (A sa-bedoria louca ou as promessas químicas), leva adiante a interpretação donome identificando Basile, royal, ao Mercúrio dos Filósofos, e Valentin —que Tollius preferia Valendo, vindo de "ser forte", "potência", "que penetra,

engendra, alimenta, transforma, renova tudo". (Quer se trate do gerundiveativo ou do adjetivo verbal, o sentido permanece o mesmo: tornando forte,que é preciso tornar robusto). E "da Ordem Beneditina", que sempre acom-panha o nome, porque "ele dispensa aos metais imperfeitos, seus irmãosdestituídos, a Bendição celeste, isto é, sua puríssima essência divina".

• Ver Pernety (1972:219); Burckhardt (sid.:132).Anatureza teria duas orien-tações: uma, indo do centro espiritual para a multiplicidade, ligada às pai-xões humanas, a outra, indo da exuberância à unidade espiritual. A primei-ra é comparada aqui à maga Medéia, a outra, à Sofia, A Sabedoria. Ambassão mulheres; em relação com a vontade ativa do homem, elas são amanteou noiva: "Mas ai de quem, como Jasão, se deixa seduzir pela perigosa con-quista e se abandona à natureza, esta grande maga, áo invés de permane-cer fiel à sua noiva, a divina sabedoria. Bem-aventurado, ao contrário, aqueleque, unido à Sabedoria, pode seduzir sem perigo essa terrível encantadorapara obter os segredos que ela não pode lhe recusar, e, em possessão doTosão de Ouro, volta para sua casta esposa (...)".

• Cf. Eliade (1979); Valentin (apudAlleau, 1953, Introdução): "(...) Eu me pusa aprender e também a seguir esta ciência fundamental, que o Criador ocul-tou nos metais e minas da terra (...)".

5 O título completo da obra é Dictionnaire mytho-hermétique, dans lequel ontrouue les allegories fabule uses des poètes, les méthaphores, les énigmes etles termes barbares des philosophes hermètiques expliques. Foi publicadoem 1787, mas é repositório de uma tradição bem anterior a essa data.

• Este termo, "oculto", como "ocultismo" ou mais especificamente "esoterismo",está ligado a um fenômeno historicamente situado da metade do século pas-sado aos dias atuais. Embora o termo "oculto ", segundo o Oxford Dictionary,tenha sido usado pela primeira vez em 1545, com o significado de "o quenão é apreendido ou apreensível pela mente; além do alcance da compreen-são ou do conhecimento comum", e tenha em 1633 recebido um significadoadicional, ou seja, o estudo de "assuntos considerados científicos na Anti-güidade e na Idade Média e que envolviam o conhecimento do uso de expe-dientes de Katureza seéi sqa ou misteriosa (como mágica, alquimia, astrolo-gia, teosofia)", o seu emprego no sentido corrente de "ocultismo" vem demeados do século XIX e se r ere a uma moda criada por um seminaristafrancês, Alphonse Louis Const t, conhecido pelo pseudônimo de EliphasLévi. O termo "ocultismo" foi ciia Io por esse seminarista. Cf. Eliade(1979:56ss.). E. Cansiliet (apudAlleáu, 1953:9) une-se a Alleau e a RenéGuénon (principalmente emLe thésophisme, histoire d'une pseudo-religion)para criticar acerbadamente o "ocultismo" moderno, sendo que, para esteúltimo, apenas no Oriente permaneciam vivas as antigas tradições esoté-ricas, além do que, qualquer tentativa de práticas ocultas pelo homem mo-derno acarretaria sérios riscos mentais e mesmo físicos. Cf. Eliade (1979:70).Alleau (1953:98). 0 autor segue descrevendo procedimentos conuns às so-ciedades secretas na China e observa que no Ocidente, o antigo argot, oumais exatamente, o "jargão", parece ter sido composto por procedimentosfonéticos e anagramáticos, por derivação sinonímica, por deformação de pa-lavras gregas e árabes, pela adição de sufixos familiares ao patois, bemcomo por procedimentos semânticos na medida em que o "jargão" é uma

919 0

Page 47: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

linguagem metafórica composta de palavras comuns tomadas alegórica ouenigmaticamente.

8 O ponto de vista tradicional, da alquimia como uma técnica ao mesmo tem-po operatória e espiritual, é defendido contemporaneamente por autorescomo Fulcanelli, Eugène Canseliet e o próprio Alleau.

9 La tourbe (1977:36). Obra anônima caótica e obscura que relata uma espé-cie de concílio mantido pelos filósofos —Anaxímenes, Empédocles, Sócrates,Zenão, Platão etc. —, para fixar os termos do vocabulário hermético. Tra-duzida em meados do século XII do árabe para o latim.Geber é o nome ocidental de Djâber Ibn Hayyân, alquimista muçulmano dasegunda metade do século VIII, que era para Roger Bacon o "magister

magistrorum, o melhor dos mestres" (Introdução de Charles Gustave Burg,pp. 7-14, v. I). A obra citada é na realidade um escrito apócrifo assinadoGeber mas redigido no século XIII.

11 Em Lettre sur les prodiges de la nature et de l'art, Bacon diz:Não há dúvidas que fórmulas e caracteres mágicos são coisas falsas, duvi-dosas ou mesmo irracionais. Os filósofos se servem delas em suas obrassobre as operações da natureza e da arte para esconder seus segredos dosindignos.

12 Valentin, no entanto, escreveu em alemão e não em latim, o que, segundoCaanseliet — na Introdução de Les douze clefs de la philosophie, pp. 19-20— configurava o que se pode chamar de um sacrilégio. Pois "a fim de evitara vulgarização tão perigosa quanto inútil e facilitar, por outro lado, os in

-

tercâmbios entre eles, era para os sábios de todas as ordens uma lei desabedoria só escrever em latim, o que até o século XVIII foi raramente trans-gredido". Cf., por exemplo, o prefácio de um antigo tradutor francês deHermes Trismegisto:(...) Et quant à moy, encore que it sois peu verse en la langue Latine, & que

mon esprit soit petit, i'ay tasché de traduire de la langue Arabisque en laLatine ces sept traictez d'Hermes appellé triple pour sa sagesse, lesquels pource qui est del'art, & practique sont cachez en tous les livres des Sages aux

ignorans. (Trimégiste, 1977:49)ls Cf. Linden (1974) que procura examinar as afirmações de F. Bacon relati-

vas à alquimia contra o fundo dessa tradição satírica. Por outro lado, pode-mos encontrar certas colocações ou alusões alquímicas não satíricas emDante, Rabelais, Shakespeare etc. e a permeação da literatura pela temáti-ca hermética na Idade Média e Renascimento encontra pararelo, de algu-ma forma, no uso que autores franceses e alemães fizeram da teosofia e doocultismo nos períodos pré-romântico e romântico da primeira metade doséculo XIX (Achim vonArmin, Der Kronenwachter, 1817; Balzac, Séraphita,1834 etc.) e no que, na segunda metade do mesmo século, e já sob a égide deEliphas Levi — ver nota 6 —, Papus etc., fizeram Baudelaire, Verlaine,Lautréamont e Rimbaud.

" Surly: The egg's ordained by nature to that end, And is a chicken in potentia.Subtle: The same we say of lead, and other mettals, Which would be gold, if

they had time.Mammon: And that Our art doth further.

" Ver ainda em The alchemist exegeses alegóricas de mitos clássicos comopor exemplo:The dragon's teeth (are) mercury sublimate,Thet keeps the whiteness, hardness, and the biting;(The alembic) and then sowed in Mars his field. (II, i, 96-8)

is O conjunto de escritos atribuídos a Hermes Trismegisto, basicamente oPimandro, em 1471, e o Asclépio, em 1496, o que provocou uma voga euro-péia de Hermes Trismegisto nas últimas décadas do século XV. Cf. Garin(1989:135ss.).

" Esta reivindicação, praticamente generalizada na época, de uma magia na-tural que se opõe — ou que nada tem a ver — com a necromancia, seráexaminada logo adiante em algumas de suas implicações.

18 Não só de Ficino. Delumeau (1984:113, v. 1) mostra como "os humanistas`otimistas"' (embora, como veremos, estivessem certos em sua cronologia"clássica") "basearam numa cronologia defeituosa uma das teses-mestrasda Renascença: aquela que afirma haver um fundo de verdade religiosacomum a todos os povos e que caldeus, persas, gregos, egípcios e judeusantigos tinham possuído os elementos essenciais da Revelação". No Capí-tulo IV veremos como F. Bacon participa desse "imbróglio" cronológicorenascentista em sua datação da "sabedoria dos antigos".

19 VerYates (1987:96), que nota, inclusive, que uma obra de arte pagã renascen-tista não é só pagã, pois conserva ressonâncias cristãs, como se pode ver naVênus de Boticelli, que se parece à Virgem. Quanto à magia, para compre-ender as tênues e delicadas relações entre magia e religião na Renascença,é muito importante a percepção de que exite em atividade uma tendênciano sentido do misticismo "astrologizante" e, inversamente, no sentido da"misticizante" astrologia (...). Há uma experiência renascentista em que édifícil distinguir o momento em que o supercelestial se amalgama ao celes-te, daí descendo ao terrestre. Quando é que a luz supernatural, bebida daTrindade pelas hierarquias, torna-se a luz do Sol, com a qual todo o céu seilumina e que é bebida através do spiritus, na magia? (Yates, 1987:149)

20 Haydn (1966) separa um período que ele chama de Contra-Renascença daRenascença clássica ou revivescência humanista. A Contra-Renascença seoriginaria como um protesto contra os princípios básicos da Renascençaclássica, bem como contra aqueles do escolasticismo medieval. Tal partiçãodesse período já se encontra, de forma semelhante, no conceito de períodomaneirista que A. Hauser (1976) faz intermediar o Renascimento clássico eo período barroco. Existem outras partições ainda, conceitos como o"renascimento do século XII" (em Curtius, 1957:117, por exemplo) etc.Delumeau (1984:345-46, v. 1) lembra que J. Michelet foi quem primeiroconsideou a Renascença como um período de história da Europa (no volumeVII de sua Histoire de Frmi'ce,1885). Três teses passaram a historiografiados séculos XIV–XV–XVI: a Renascença começou na Itália; o seu fator do-minante foi o despertar da Antiguidade; ela assinala o fim da civilizaçãomedieval e o início da idade moderna. Dois autores muito contribuíram paraa difusão destas teses: G. Voigt eprincipalmente J. J. Burckhardt.De qualquer forma, ã Renascença foi redescoberta, reavaliada e reabilitadano século XIX, ao que tudo indica, depois de um período de mitificação evalorização da Idade Média pela reação romântica à Revolução Francesa.

9 2 93

Page 48: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Assim, pode-se dizer que, como vimos com o "ocultismo" no início deste ca-pítulo, a "Renascença" e "Idade Média", bem como suas inúmeras subdivi-sões, são também conceitos modernos.

21 Para autores como Haydn e Hauser, o humanismo caracteriza a primeirafase, propriamente "renascentista" da Renascença.

22 A tradição clássica será considerada no próximo capítulo, em função da re-lação de Bacon com ela.

23 Wallace (1943:135), ver também Jardine (1974:4-5): no contexto em ques-tão, a dialética é bem mais ampla do que o que chamamos de "lógico" hoje (oestudo formal da inferência). Ao menos em teoria, ela cobre todo o estudodo discurso racionalmente construído.A lógica, como a retórica, no trivium, era uma arte de comunicação.Rodolphus Agricola (1485) muda o curso. Para ele, como para Sócrates, afunção primeira da lógica não era comunicar a verdade, mas pesquisá-la. Adialética busca o conhecimento e a retórica é restrita aos métodos de apre-sentação. Nas reforma educacionais de Petrus Ramus, a partir da alegaçãode que na Invenção e no Arranjo a retórica repetia o trabalho melhor feitopelos lógicos em seu tratamento do inventio e judicium, resta à retórica oestilo e a digressão (cf. Dixon, 1977:46).

24 Embora nas manifestações literárias concretas as coisas não se separemsempre com tanta nitidez. Muitos poemas curtos elizabetanos são uma ora-ção demonstrativa, um panegírico sobre a virtude e a beleza de uma dama,ou uma engenhosa censura zombeteira: "My mistress' eyes are nothing likethe sun... " . Veja-se, por exemplo, a écloga de Abril no Shepheards calender,de Spenser: o Argumento do poema anuncia que ele é "purposely intendedto the honor and prayse of our most gracious sovereigne", apropriadamentereferida como "Elisa, Queene of shepheardes all". Seguem-se usos da tópicalaudatória (por exemplo, a linhagem da dama), de exórdio, narração e con-clusão. Em "Valediction forbidding Mourning", de Donne, o próprio título jáexplicita o propósito retórico. O poeta lírico pode também escrever persua-sivamente, no modo deliberativo ou mesmo judicial.Na narrativa, depois de 1700, a persuasão também está presente, não sóna prosa polêmica de Swift e Burke, mas também nos romances de Fielding,Sterne e principalmente Dickens, mestre da "prosa de auditório", prosa comoa do orador, escrita para ser ouvida.

25 Encorajada por Cícero e peloAd Herenium — onde é minuciosamente siste-matizada — a arte da memória é criticada por Quintiliano e são essas críti-cas que ecoam em Erasmo. Quintiliano preferia o método dialético, damemorização por "ordem dialética", do "geral" aos "especiais", numa apre-sentação esquemática, que vai ser propugnado por Ramus.

26 Sobre o "teatro da memória" de Giulio Camillo, verYates (1969, cap. 6).27

À p. 39 de L'idea, por exemplo, Camillo retoma a interpretação de Porfíriono De antro nynpharum — cf. Capítulo II — da gruta das ninfas do CantoXIII da Odisséia como a mistura dos elementos. A gruta representaria umestágio da criação em que os elementos são misturados para formar coisascriadas ou elementata. Este estágio é ilustrado com citações de comentáriocabalista sobre o Gênesis.

IV — CONHECIMENTO DA SABEDORIA:

BACON E OS ANTIGOS

The wisest of the Ancients consider'dwhat is not too Explicit as the fittest for Instruction

because it rouzes the faculties to act.I name Moses, Solomon, Esop, Homer, Plato.

William Blake, carta (23/8/1799) ao Dr. Trusler

(...) Mas esta demonstração,devo lhe dar como um homem de idade que fala aos mais jovens,

sob a forma de história?Ou devo expô-la racionalmente?

Platão, Protágoras, 320c.

N os capítulos anteriores o percurso foi basicamente diacrôni-co: passagem do mythos ao logos, evolução da exegese alegó-rica, tradições hermética e retórica (embora tenha se discu-tido também sincronicamente a relação mythos/lógos, aduplicidade hermenêuticalretórica da alegoria e as tradiçõeshermenêutica e retórica no contexto elizabetano). Agora aprioridade se inverte em prol do eixo sincrônico: trata-se delocalizar a empreitada alegorista de Bacon no panorama desua época. Para tanto não cabe aqui, é claro, traçar exausti-vamente ainda que um esboço da renascença inglesa, bas-tando para nossos finsdiscussão dos aspectos a eles relaci-onados. Estes, além /de certas caracteristicas mais geraiscomo a reação contra a escolástica — que nos importa por

9 4 95

Page 49: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

estar envolvida em algumas exegeses "democriteanas" deBacon, como se verá adiante — ou as relações entre as pos-turas empírica e mágica etc., consistem sobretudo na esferada problemática myhtos/lógos — que se manifesta aquinuma vigorosa retomada da polêmica platônica — e no quetoca a alegoria, principalmente enquanto exegese dos mitosclássicos. Além disto, será examinada mais especificamente,embora de modo breve, a relação de Bacon com as tradiçõesretórica e hermética vistas no capítulo anterior.

Em suas linhas mais gerais e resumidamente, o perío-do elizabetano tem em comum com o movimento das idéiasna Itália e França a partir da renascença italiana (ou maisespecificamente do "contra-renascimento " na concepção deHaydn ou do "maneirismo" , como quer Hauser, enquantoperíodo que justamente problematiza a harmonia clássica doRenascimento propriamente dito) uma acentuada ênfase norelativismo e no pragmatismo. O prestígio da experiência éentão semelhante ao da razão no século XVIII. Contra a au-toridade consagrada da escolástica ergue-se a primeira pes-soa do singular do empirismo, e o "Aristoteles dixit" ou "foiEle que disse" vai cedendo lugar ao "tenho observado", "vi"(cf. Haydn, 1966, p. 217ss.). O cientista tem que ter contatodireto com o objeto de seu estudo; o observador político devese fiar naquilo que constitui sua experiência pessoal e ime-diata; a alma deve se entender com Deus com base em tê-Loexperimentado. Maquiavel enfatiza a venta effetuale eMontaigne insiste em lidar só com "o que posso apalpar".Não a teoria, mas a prática e o fato; não o universal, mas oparticular; ao invés do especulativo, abstrato, lógico, o intui-tivo, instintivo, pragmático. Acredita-se na simplificação daciência e na importância da "humildade" (que para Bacon,no trato com a natureza, é arma para dominá-la), tanto nanatureza como entre os homens, para promover o progressocientífico. Apela-se a um retorno aos primeiros princípios,

96

tanto no sentido histórico de uma revivescência das antigas"filosofias naturais" e "tradições secretas" como no sentidoliteral de deixar a especulação e a teoria e voltar-se para aobservação da natureza mesma. Algumas destas tendênciassão mais acentuadas entre os empiristas praticantes do ocul -

to, outras entre os empiristas naturalistas' . (Estas subdivi-sões são características da época, pois na era elizabetana umprotestante pode ser tomista, um humanista papista, umcientista mágico — cf. Lewis, 1954, p. 63.) E preciso lembrartambém que a versatilidade era um ideal da época, havendouma relativa compactidão daquele mundo de conhecimento,política, leis, história, filosofia, poesia e ciência. Além do que,a maioria dos escritores eram não só homens de letras mastinham carreiras nos mundos político, acadêmico ou clerical(Cox, 1968, p. 19). Bacon é extremamente representativo detudo isto.

Caracteriza igualmente o cenário elizabetano, bemcomo mais amplamente renascentista, o aspecto da ciênciado particular que enfatiza o homem e as coisas "como são",essa insistência pragmática dos empiristas na distinção en-tre o ideal e o real, entre o que deveria ser e o que é, que seexprime tanto no Quixote de Cervantes, como nas palavrasde Bacon (1905, p. 140) de que "We are much beholden toMachiavel and to others, that write what men do and notwhat they ought to do", e que consistem talvez numa tenta-tiva pioneira de desdemonização do "Old Nick".

E neste contexto que explicações mecânico-materialis-tas — que substituíam o animismo do início da Renascença— começam a ser "sentidas como fatos", como fornecendoaquela imagem da realidade satisfatória para as demandasde então. Só quando se interpreta qualquer fenômeno —uma cor, um movimento, uma condição, uma atração — emtermos de movimentos de átomos é que se está dando umaexplicação de como as coisas realmente ocorrem, a explica-

"filosófica". Todas as outras explicações são portanto, porum lado, vulgares, supersticiosas e superficiais, ou por outro,"aristotélicas" ou "escolásticas"' . A escolástica — ainda mais

97

Page 50: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

que Aristóteles — torna-se então uma espécie de fantasma.Todas as explicações do tipo escolástico parecem à nova "es-cola" obstáculos à verdade por impedirem investigação ulte-rior através de linhas experimentais. Bacon 3 é um dos quetem a sensação de ter ultrapassado as colunas de Héraclesda viagem intelectual ao descartar aquele pensamento pre-dominantemente metafisico, preocupado com Ser e Essên-cia, Causa e Fim etc.

Convém neste ponto separar radicalmente a posturaanti-escolástica dos humanistas — representantes da pri-meira Renascença ou Renascença propriamente dita – dados magos e/ou cientistas e filósofos naturais — figuras domaneirismo ou Contra-Renascença. Não se trata meramen-te da posição em relação aos textos antigos, como observa G.Gusdorf (1967, p. 64)4 — que como vimos era comum tam -

bém A. tradição hermética, entre os próprios empiristas comrelação, por exemplo, aos atomistas e, como veremos, à posi-ção de Bacon sobre a sabedoria dos antigos — mas no sen-tido salientado por C. S. Lewis (1954, pp. 29ss.) de que oataque dos humanistas A. filosofia medieval e a Aristótelesnão se dá nos termos em que uma nova filosofia ataca umaantiga, mas nos termos "inconfundíveis em que em todos ostempos o homem meramente literário, o beletrista, ataca afilosofias . De qualquer forma, a escolástica estava morta eisto talvez em nenhum outro lugar apareça com tal nitidezcomo no poema de John Dorme The first anniversary 6 , ondeo poeta "metafísico" de certa forma dobra o sino dos finadossobre a escolástica.

O novo ideal científico é utilitarista. Entre Montaigne,Maquiavel e os artesãos técnicos, Bacon é o grande arautodeste aspecto:

Now the true and lawful goal of the sciences is none other thanthis: that human life be endowed with new discoveries andpowers. (NEW ORGAN, I, lxxxi)

E nesse horizonte o papel da literatura, da poesia,é bem demarcado: ou a ficção nada vale ou se procura seu

valor prático. Uma época de esforço determinado e prolon-gado para se chegar a uma visão do mundo "verdadeira"através de linhas científicas só poderia ser enérgica com arelação "verdade" e "ficção", e a posição da poesia, principal-mente, era precária. Pois em poesia o pensamento não épuro, trabalha em aliança com os sentimentos e a vontade.Nas palavras de Bacon, ela "subjects the shows of things tothe desires of the mind" — o que é o exato reverso do proces-so chamado ciência. A poesia aparece então.para certos filó-sofos como a inimiga da "verdade". Esta passa a ser cada vezmais coisa da "filosofia", e a prosa no estilo argumentativoseu meio adequado. E nestas circunstâncias que surge o Anapology for poetry, de Sir Philip Sidney, em 1595. Mais dire-tamente, há um ataque dos puritanos contra a poesia ou,mais especificamente, contra a paganização da poesia, quecorresponde ao movimento similar iniciado pelo Concilio deTrento nos países católicos (cf. Spingarn, 1963, pp. 169-70),mas a controvérsia vem de antes da Reforma e de longe daInglaterra. Ela já se encontra no De genealogia deorum (Ca-pítulos XIV e XV) de Boccaccio, na apologia da poesia feitapor Albertino Musato no século XIII e, antes disso, no Deaudiendis poetis de Plutarco 7 . Na verdade, trata-se ainda dacontrovérsia platônica s . A defesa da poesia não é, portanto,uma defesa desta contra a prosa mas da ficção contra o fato.O termo poetry/poesia cobre geralmente toda a escrita ima-ginativa em prosa ou verso. O que está em questão é o direi-to de inventar. Já há uma justificativa da poesia, dentro datradição da justificativa alegorista, no Discourse of englishpoetrie (1586) de William Webe 9 : o poeta educa, ensina pormeio da verdade alegórica oculta sob as fábulas agradáveisque ele inventa, mas seu primeiro objetivo deve ser tornaressas fábulas realmente agradáveis; a poesia é assim umaforma agradável de instrução. Para Sidney, a poesia, como aprimeira luz para a ignorância, floresceu antes de qualqueroutra arte ou ciência. Os primeiros filósofos e historiadoreseram poetas e obras como os Salmos de David e os Diálogosde Platão eram na realidade poesia. Entre os gregos e os

9998

Page 51: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

romanos, o poeta era visto como sábio ou profeta 10 . Na defi-nição desta arte tão antiga e universal, Sidney concordasubstancialmente com o aristotelismo renascentista. A poe-sia é uma arte de imitação, uma imagem falante cuja finali-dade é ensinar e agradar. Não importa se em verso ou emprosa. O verso tem a vantagem de ser mnemônico e maiscompacto. A fala e a razão são o que distinguem o homem dabesta, e tudo o que serve para polir e aperfeiçoar a fala éaltamente recomendável. No caso da poesia, o essencial éque ela invente imagens notáveis dos vícios e virtudes paraensinar agradavelmente. Retomando diretamente a contro-vérsia da época de Platão'

1, Sidney se pergunta a quem deve

ser dada a palma: ao poeta, ao filósofo ou ao historiador.Enquanto o filósofo ensina apenas pelo preceito, e o

historiador apenas pelo exemplo, o poeta emprega ambos,conceito e exemplo. O que o filósofo diz que deve ser feito éfigurado perfeitamente pelo poeta em alguém que o fez,unindo assim a noção geral com a instância específica (comojá vimos no "Homero educador" do Capítulo II). E o historia-dor lida com instâncias específicas, com vícios e virtudes tãoamalgamados que o leitor não pode achar um padrão paraimitar. O poeta torna a história razoável, dá exemplos per-feitos de vícios e virtudes para imitação humana, faz a vir-tude triunfar e o vício fracassar, como a história raramenteo faz. Nesta última distinção, Sidney parte da passagem emque Aristóteles (Poética, ix, 1-4) explica que a poesia é maisfilosófica e de valor mais sério que a história porque o poetanão lida com o particular mas com o universal — com o quedeve ser ou pode ser, não com o que é ou foi. Mas, seguindoMinturno e Scaliger (cf. Spingarn, 1963, p. 173), Sidney vaiaté a estética de Plotino — isto é, à outra grande réplica àsrestrições platônicas a par da aristotélica — alegando que,diferente de todas as artes, que têm as obras da naturezacomo seu principal objeto, apenas o poeta é um segundo cri-ador criando uma segunda natureza ainda superior à origi-nal, povoada de heróis como Orlando e Enéias.

A concepção do ético como estético por excelência e dodelightful teaching — que, como observa Lewis (1954,p. 346), pode facilmente escorregar para a teoria absurda deque as cenas e pessoas do poema são meros exemplos, comosímbolos de álgebra — assinala uma tendência da épocapara a valorização do argumentativo da qual não está exclu-ída a revivescência da sátira na década de 1590 12 nem tam-pouco a presença da alegoria, tanto na produção poética —como em Spenser — como na exegese praticada porChapman em suas traduções de Homero. Em 1553, já Wil-son, no Livro III de suaRhetorike, justifica os poetas antigoscom os argumentos alegóricos clássicos: suas fábulas apa-rentemente sem sentido eram molduras para conteúdos deimportância ética, filosófica, científica ou histórica; os poetasantigos eram sábios, legisladores espirituais, reformadoresque, descrentes da eficácia da fraqueza com um públicoignorante, transmitiam os significados ocultos sob o véu defábulas agradáveis, unindo assim o delighful teaching quevamos encontrar em Sidney a uma teoria poética integrantedo legado da Idade Média13 ao criticismo da Renascença —que era um dos lugares-comuns da época. Sidney, entretan-to, minimiza a interpretação alegórica propriamente dita,que é, porém, retomada e enfatizada por Harrington em suaApologie of poetrie, que assimila a concepção medieval dostrês significados da poesia, literal, moral e alegórico

l4

The faerie queene (1590), de Edmund Spenser, é a últi-ma grande expressão dessa tradição alegórica. O poema pre-tende ser um equivalente inglês do poema cavalleresco culti-vado na Itália porAriosto e Tasso 15 , desenvolvendo, contudo,uma versão patriótica do tema arthuriano. Ariosto e Tasso,todavia, não reivindicavam conteúdo alegórico para Orlandofurioso e Gerusalemme liberata, enquanto The faerie queenecontém elementos consideráveis de alegoria política e moral,de alegoria no sentido mais restrito, como no Livro I, em quese descreve a vitória da revolução protestante na Inglaterrasob o mito de S. Jorge matando o dragão, e de prosopopéia oupersonificação, mais caracteristicamente medieval, como —

100 101

Page 52: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

no final do Livro I — quando o herói Red Cross é quase con-vencido a matar-se por um velho eremita cujo nome é Deses-pero. A obra de Spenser é valorizada, no entanto, sobretudopor suas virtudes miméticas e narrativas, sendo que seu ele-mento alegórico surge como um desenvolvimento tardio e jáesmaecido, principalmente se comparado a um exemplarvigóroso do século XIV como o Piers Plowmon, de WilliamLangland, quando a alegoria corresponde a uma organizaçãocoerente da experiência. Para Langland, a idéia de ver umaúnica situação concreta simultaneamente sob vários aspec-tos é ainda plausível, até natural, e as várias visões ainda seintegram para formar um todo contínuo significativo. Piers,o lavrador simples, vivendo numa época de grave crise so-cial, pode ser apresentado sob o disfarce da Caridade e atéser transformado na figura de Cristo sacrificado na Cruz. Osheróis de Spenser, embora ilustrativos de virtudes específi-cas, não deixam de ser tipos de homens e não símbolos de pu-ras abstrações intelectuais. Guyon, por exemplo, o herói doLivro II, pode possuir e ilustrar as qualidades de um homemmoderado, mas não é uma personificação alegórica da pró-pria temperança.

Ao lado desse enfraquecimento da alegoria mais pro-priamente medieval (em prol de um maior vigor mimético enarrativo, e também com a introdução de um material ale-górico mais especificamente renascentista e elizabetano1ó ),as traduções homéricas de George Chapman, entre 1594 e1616, podem completar o breve quadro aqui proposto.

Tal como veremos em Bacon, Chapman, apesar de de-pender bastante de edições renascentistas importantes dosclássicos e principalmente de mitógrafos como NatalisComes 17 , desenvolve uma exegese razoavelmente pessoal.Sua predileção pelas antíteses, pelas figuras retóricas, seusimprudentes anacronismos e coloquialismos, entre outrascaracterísticas (cf. Ure, 1955, p. 319), assinalam não ohomérico mas o elizabetano. Mas diferentemente de muitosacadêmicos renascentistas, Chapman não vê Homero comouma alegoria contínua cujo último detalhe açucarado cobre

uma pílula moral. Ele começa com a visão tradicional, masrompe com esta ao conceber a alegoria como evolucionária ecomplexa ao invés de estática e esquemática. E. C. S. Lewisatenta não só para certas passagens curiosamentearistotelizantes da tradução da Ilíada, como a inclinação dacabeça de Zeus em assentimento (Il., 525) relacionada à dou-trina do primeiro motor, como também para interpolaçõesousadas, como o Homero de Chapman dando lições de pru-dência civil e doméstica a partir de uma çoncepção meioestóica meio maquiavélica do Grande Homem 18 . A rápidaabordagem que se segue de alguns elementos do aspecto ale-górico no empreendimento de Chapman se atém à traduçãoda Odisséia e se apóia num estudo exaustivo de George F.Lord (1956) — Homeric Renaissance, the Odissey of GeorgeChapman.

Chapman aceita explicitamente o caráter alegórico daobra homérica no sentido da "ortodoxia" — a expressão é deBush (1932, p. 100) — de sua época. Escrevendo a seupatrono, ele alega ser a Odisséia não uma mera fantasia ouficção, "but the most material and doctrinal illations ofTruth; both for manly information of Manners in the young;all presumption of Justice, and even Christian pietie, in themost grave and high governed" ("Epistle dedicatorie " , apudLord, 1932, p. 33). E essas " ilações " , secretas que são, te-riam sido expressas cripticamente em alegoria, como ummeio de ocultar esses mistérios dos olhos do "vulgo" (Lord,1932, p. 34).

No geral, os episódios da Odisséia são lidos dentro dastradições exegéticas; o episódio de Circe, por exemplo, emChapman é lido mais uma vez como uma alegoria moral dotriunfo da sabedoria, mas talvez a característica principal datradução exegética de Chapman seja, como quer Lord (1932,pp. 39ss.), ter escapado da visão tradicional cristalizada deUlisses, o herói politrópico que não encontra um esforçobem-sucedido de re-criação até Joyce. Toda tradição pós-homérica quebra a complexa personalidade de Ulisses emvários tipos simples — o político, o vilão sofisticado, o

102103

Page 53: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

sensualista, o viajante filosófico etc. Mas Chapman — comomostra Lord — faz o que nenhum acadêmico, crítico, autorde comentários, intérprete alegórico ou tradutor contempo-râneo, medieval ou antigo já fizera: concilia o que muitosdeles mantinham ser o idealismo moral de Homero com ins-tâncias do comportamento imoral de Ulisses por eles ignora-das; suprimidas ou distorcidas para a adequação de suasvisões ao poema. Para Chapman, depois da queda de TróiaUlisses fica profundamente dividido interiormente entrea paixão e o julgamento, o que traz à tona a arena internade seu caráter. Aqui, à semelhança da visão de Adorno eHorkheimer e também do tipo de exegese psicológica de Dial(ver Capítulo II), a principal missão ou tarefa de Ulisses é aconquista de si mesmo.

Assim, de maneira semelhante à de Spenser ao se afas-tar da alegoria medieval, Chapman abandona a tradição ale-górica homérica. Em ambos, entretanto, permanece a justifi-cativa básica da poesia como "ensino agradável", que éexplicitamente a de Sidney: a narrativa a serviço da argu-mentação, pois o mythos por si só nada vale, não se mantém.Como forma artística, a poesia elizabetana não é "clássica"nem "romântica" . Ela se dirige à razão como um guia moraluniversal, o poeta interpreta a natureza e influencia a açãodos homens. O poeta elizabetano está continuamente arrazo-ado, persuadindo, demonstrando analogias e conexões lógi-cas; até sua imageria e ritmo se combinam em argumento 19 .

Temos agora elementos que ajudam a situar a emprei-tada exegética de Bacon. Antes de nos atermos finalmente aela, resta ainda algo a dizer sobre as relações entre Bacon eas tradições retórica e hermética vistas no Capítulo III.

BACON E A TRADIÇÃO RETÓRICA

Em relação à teoria retórica clássica a de Bacon pareceem parte aristotélica, em parte platônica. Como Aristóteles,Bacon observa, analisa e classifica todo conhecimento, indica

as deficiências em algumas instâncias com a intenção deremovê-las por um método de investigação aplicável a todasas ciências. Vê a retórica como uma arte prática útil no con-trole das vontades e portanto das ações dos homens. Mas dáa ela um propósito moral e neste aspecto sua teoria se asse-melha à platônica 20 . Mas ele discorda da comparação quePlatão faz no Górgias (462-65) entre a retórica e a culinária,empregando, ao invés, o argumento de Aristóteles (Retórica,1355a 38) de que o bem prevalece naturalmente (Deaugmentis, VI, 3). No que toca aos meios de persuasão Baconestá mais próximo de Platão do que de Aristóteles, como omostra a similaridade entre o "encantamento da alma" dePlatão e a afirmação de Bacon de que a retórica "recomendsreason to imagination " , isto é, sejam quais forem as provaslógicas, políticas e éticas empregadas, a mente do auditóriodeve ser preenchida com imagens (Wallace, 1943, p. 174).Por outro lado, tanto Bacon como Aristóteles falam daaudiência como composta de tipos, não de indivíduos. Nestesentido, os Essays estão para a retórica de Bacon como os ca-pítulos sobre o caráter para a aristotélica, emboraAristótelesfale de homens típicos e Bacon de qualidades típicas; e aquiambos se aproximam de Platão, para quem a retórica organi-za "homens e discursos, e seus tipos e afeições" em diferentesclasses, pois uma alma é persuadida por uma forma de argu-mento e outra não (Fedro, 271).

Como Cícero, Bacon está mais interessado na inven-ção, vendo a fase mais fundamental do discurso na descober-ta e seleção de idéias aptas. Para Bacon, memória e disposi-ção são assuntos de investigação independente da retórica,para Cícero são partes de um sistema retórico. Quanto aoestilo, para Cícero ele é importante, mas para Bacon é parterelativamente insignificante da retórica. Onde a eloqüênciapara Cícero significa exaltação da linguagem, para Baconsignifica a expressão que deriva da percepção de um oradorde uma grande ocasião. Para Bacon, talvez mais do que paraqualquer outro teórico retórico até sua época, os preceitos

105104

Page 54: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

retóricos têm sua origem e sanção na audiência (cf. Wallace,1943, pp. 181-83).

Quanto aos seus contemporâneos, Bacon se afasta de-les implícita e explicitamente 21 a propósito de várias ques-tões. No que toca à invenção, por exemplo, ele se opõe aretóricos como Ramus e Wilson — para quem a invenção éuma' maneira de dispor o material exigido para convenceruma audiência — distinguindo a invenção das artes (experi-ência aprendida e interpretação da natureza) da invençãodos argumentos, restringindo o uso do termo para a primei-ra: inventar é descobrir o que não sabemos, e não lembrar oque é sabido (cf. Rossi, 1968, p. 153; Wallace, 1943, pp. 37-42; Jardine, 1974, pp. 69-70). De maneira geral, descreven-do a retórica como a "ilustração da tradição", Bacon parece-ria estar classificado na categoria dos retóricos conhecidacomo dos "estilistas " (ver capítulo anterior), mas enquantopara estes o aspecto "ornamental" da retórica deriva de suaseparação da lógica e do fato de ela ser uma arte que vemdepois da lógica pressupondo esta e as regras da inventio edispositio, para Bacon a retórica é uma das artes que consti-tuem a lógica e sua função é estender e defender o impérioda razão. Além disso, a polêmica de Bacon contra uma for-ma de conhecimento que favoreça a verbosidade ao invés dapesquisa séria o opõe radicalmente a uma interpretação daretórica como mero ornamento (cf. Rossi, 1968, p. 179;Wallace, 1943, p. 205). Entre os teóricos de seu tempo, em-bora Wilson e Vicars cheguem a cogitar de que a estruturada prosa possa ser funcional (cf. Wallace, 1943, p. 214), éBacon quem aprecia plenamente a relação entre formae função. Ao tratar a dispositio não como um adjunto da re-tórica ou da lógica, mas como uma instância separada de or-dem e método, ele vê a estrutura de todo discurso em prosagovernada pelo assunto, propósito e audiência. Isto vale tan-to para o discurso científico como para a elocução retórica.

Mas o aspecto mais distintivo da teoria retórica deBacon é a sua associação com a imaginação 22 , associação quea torna uma arte da "razão insinuativa". As imagens da

retórica se insinuam na mente atingindo a imaginação, deforma que as mensagens da razão resultam em ações positi-vas. Assim, a retórica pode "tornar visível a virtude " . A tare-fa da persuasão retórica é impedir a imaginação de tomar opartido dos afetos e "formar uma confederação entre Razãoe Imaginação contra os afetos". As paixões conhecem apenasganhos presentes, enquanto a razão vê mais longe e reconhe-ce ganhos futuros também. O que é presente atinge mais aimaginação, por isto a retórica deve empenhar-se em tornaros ganhos futuros tão visíveis quanto os presentes, trazendoassim a imaginação para o lado da razão. Para este fim, odiscurso retórico deve se adaptar às demandas da audiência.Esta idéia baconiana de que a retórica faz uso peculiar daatividade imaginativa talvez só encontre precedente na opi-nião de Platão de que a retórica encanta a alma, com a dife-rença de que Platão não tenta sugerir as peculiaridadesespecíficas do encanto nem mostrar que a atividade imagi-nativa pode ser ligada às necessidades da razão prática bemcomo servir aos fins da criação poética

23 .A ênfase baconiana no papel da audiência no processo

retórico de comunicação leva a um elemento central do pre-sente estudo: o véu como meio de comunicação. Para Baconhá um método de comunicação para cada assunto. Não sepode usar o mesmo método para a matemática — a maisabstrata e simples das ciências — e a política — a mais posi-tiva e complexa; e tampouco empregar o mesmo método parauma audiência conhecedora e uma ignorante do assunto.Para apresentar idéias novas para uma audiência desprepa-rada é necessário o uso de metáforas e similitudes, de analo-gia, ou as idéias serão rejeitadas como paradoxos 24 . Mas nocaso da analogia, ela pode ser empregada também para umaaudiência preparada e, mais ainda, iniciada. Trata-se doarranjo acroamático25 ou enigmático, um método de ordenare lidar com as idéias que se manifesta em obscuridade deexposição e desenvolvimento. Como o método iniciativo, elesepara os ouvintes vulgares dos seletos, mas diferentemen-te do método progressivo, ele emprega uma maneira de

106 107

Page 55: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

elocução mais secreta que a maioria (De augmentis, VI, 2). Aambigüidade desta forma de comunicação está em sua fun-ção ambivalente. Ela é ao mesmo tempo um véu para verda-des ocultas e uma luz sobre verdades já descobertas; ela é "aarte de ocultar" e também um "método de instrução" 26 . Poroutro lado, Bacon considera que os antigos empregaram essetipo'de elocução obscura com julgamento e discrição, mas emtempos mais recentes ele foi degradado por muitos "que otomaram como uma luz falha e enganadora para passar adi-ante sua mercadoria falsificada" 27 .

Finalmente, quanto ao outro elemento em que a retó-rica se mistura ao hermetismo, a arte da memória (confor-me visto no Capítulo III) tal como é desenvolvida no âmbitodesta coalescência, Bacon enfatiza a crítica de sua explora-ção para mero efeito, no qual vê algo de feira, um truque cir-cense (De augmentis, I, 648; Advancement of learning, III,398). Entretanto, sua interpretação da natureza adapta amnemônica retórica e filosófica do século XV a seus própriosfins da mesma maneira que transplanta, de maneira geral,vários outros conceitos e doutrinas tipicamente retóricas 28

para o campo científico e que, como veremos em seguida,aproveita certos elementos da magia e alquimia ao mesmotempo em que tece duras críticas a estas.

BACON E A TRADIÇÃO HERMÉTICA

Esta pode ser vista resumidamente sem que se percamseus contornos, definidos que são.

Na classificação proposta acima por Haydn, Bacon si-tua-se claramente no grupo dos empiristas naturalistas, aoestabelecer como modelo para sua Nova Ciência as artes me-cânicas e seus procedimentos progressivos e de colaboração,e por ser um constante detrator do grupo ocultista. O vocabu-lário de Bacon, no entanto, traz a marca distintiva da tradi-ção hermética, com implicações que vão além de uma meraatração descompromissada pela terminologia e imageria

dos alquimistas, como quer Haydn (1966, p. 264)29 . Baconfala de assimilação, nutrição, geração e irritação de substân-cias no processo de conservação ou mutação; ele usa freqüen-temente o termo "fixação" com suas tradicionais conotaçõesalquímicas"

Os laços de Bacon com a tradição alquímica são parti-cularmente evidentes no uso que ele faz de suas noções tipi-camente alquímicas: a de que as transmutações de umasubstância em outra só podem ser conseguidas pela introdu-ção como acréscimo de elementos estranhos sobre uma dadasubstância, e a de que os atributos de uma substância podemser vistos como "seres específicos " ou "naturezas " indepen-dentes separadas, podendo ser acrescentados, removidos outrocados à vontade. E quando ele enfatiza a dificuldade deintroduzir mais de uma natureza numa única substânciade uma vez, ele está se referindo a um problema caracteris-ticamente alquímico. Ele afirma que o fogo pode produzirsubstâncias não-existentes previamente e esta crença tam-bém era partilhada pelos alquimistas, os quais, segundo eleadmite, aparte seu uso errôneo do fogo, pesquisavam para osmesmos fins que ele (ver Capítulo III; Rossi, 1968, pp. 15-6;Novum organum, II, 7). E neste seu envolvimento com a tra-dição alquímica que se inserem certas concepções suas comoa de que a matéria pode ser reduzida a mercúrio e enxofre,de que o ar é conversível à água e de que é possível prolon-gar a vida humana indefinidamente (Rossi, 1968, p. 16;Temporis partus masculus (ed. Ellis, Spedding, Heath), III,532-33; Novum organum, II, 7). E mesmo teorias básicas dafilosofia de Bacon podem ser rastreadas até fontes mágicase alquímicas renascentistas. E o caso do ideal da dominaçãocientífica do homem sobre a natureza, e a idéia do homemcomo "servo e intérprete" da natureza como oposta à defini-ção tradicional do homem como "animal raciocinante". Umateoria básica da filosofia renascentista era a da ausência deuma natureza específica no homem e sua habilidade de ad-quirir a natureza de sua escolha31 . Mas para Bacon os pode-res do homem não são infinitos, estando sujeitos às leis da

10 8 109

Page 56: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

natureza. No sentido de consolidar seu limitado poder, o ho-mem deve se adaptar à natureza, submeter-se a seus coman-dos e assisti-las no desenvolvimento de suas operações. Sóassim ele pode obter a verdadeira dominação da natureza,porque para dominá-la, ele deve tornar-se seu "servo e intér-prete" (Novum organum, I, 1, 4, por exemplo). Neste senti-do, Bacon critica no empreendimento mágico e alquímico,além de seus métodos não-progressivos e não-cooperativos(aos quais opõe os das artes mecânicas, embora a estas tam-bém faça restrições, cf., por exemplo, Novum organum, I, 75,88), suas tentativas de substituir o esforço humano por algu-mas gotas de um elixir ou uma combinação fácil de substân-cias (cf. Rossi, 1968, p. 32). Mas embora sejam numerosasas restrições e até invectivas de Bacon contra essa tradição,ele não deixa de louvar o caráter experimental de suas pes-quisas (cf., por exemplo, De augmentis, I, 456-57; Novumorganum, II, 31) e tampouco abre mão, como veremos emseguida, do recurso a diversas concepções mágicas e alquími-cas em suas exegeses alegóricas dos mitos clássicos.

INTERPRETAÇÕES

No decorrer de sua obra, Bacon adota diversas atitudesem relação aos mitos clássicos. No Temporis partus mascu-lus, anterior a 1603, Bacon ataca violentamente a culturatradicional.Apossibilidade dos antigos possuírem sabedoriaoculta é de pouco interesse para aqueles "que preparam coi-sas úteis para o futuro da raça humana" (ver Rossi, 1968,p. 95) Em Cogitationes de natura rerum, de 1604, há umaapresentação direta do naturalismo materialista democri-teano. Em Cogitationes de scientia humana, de 1605, Bacondesenvolve duas teorias expostas na obra anterior em suasinterpretações das fábulas de Proteu e Saturno, que consti-tuem a 70 e 80 cogitationes. Nas 40, 60 e 100 cogitationesBacon interpreta os mitos de Métis, da Irmã dos Gigantes ede Midas em termos políticos de inspiração maquiavélica

(ver Rossi, 1968, pp. 81-2). Nas interpretações de proteu eSaturno, em termos de filosofia natural, Bacon adota umaatitude decisivamente materialista, ao lado da noção a serdesenvolvida no curso de suas obras, da importância para ahumanidade da vontade de dominar a natureza, da qual de-vem derivar a arte de dominá-la e a de resolver seus maisprofundos mistérios (ver Rossi, 1968, pp. 82-3). E no Cogita-tiones de scientia humana que a distinção de Bacon entretópicos científicos e religiosos, que vai ser um tema básico noDe sapientia veterum, se delineia claramente. Já noAdvancement of learning, publicado em 1605, ele sugere —mas não afirma — que a fábula precedeu a interpretação ecritica Crisipo por atribuir, em suas interpretações, concep-ções estóicas aos poetas antigos 32 . No Cogitata et visa, de1607, e no Redargutio philosophiarum, de 1608, Bacon vol-ta a atacar, como no Temporis partus masculus, a tese dasabedoria oculta nas fábulas antigas e aqueles que reportamsuas teorias àAntigüidade para lhes conferir certa solenida-de; no Redargutio Bacon considera a hipótese de as fábulasantigas serem remanescentes sagrados de tempos melhores,mas nega a importância de tal hipótese. No Sapientiaveterum, publicado em 1609 — embora mantenha críticascomo a dirigida a Crisipo no Advancement - Bacon está fir-memente convencido de que o véu das fábulas é um elo en-tre a sabedoria antiga e os séculos seguintes. Esta obra sededica exclusivamente à interpretação de trinta e um mitos,na qual estão presentes as teorias filosóficas naturalistasmaterialistas democriteanas já expostas no Cogitationes denatura rerum e no Cogitationes de scientia humana. Depoisdo De sapientia veterum, no Novum organum (I, 22), publi-cado em 1620, há uma variante de uma passagem doCogitata et visa (III, 604-5); no De dignitate et augmentisscientarum publicado em 1623, Bacon não apenas traduz apassagem correspondente do Advancement mencionada aci-ma para o latim como retorna em vários pontos ao seu trata-mento do problema no prefácio do De sapientia veterum,além de incluir a interpretação de três mitos deste último

11 0 111

Page 57: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

que tinham sido omitidos no Advancement 33 . Assim, se nasobras iniciais a função dos mitos era primordialmente peda-gógica, e a possibilidade de um significado alegórico era pro-blemática e subordinada, já no De sapientia a função peda-gógica representa apenas um argumento adicional a favordo significado alegórico. No prefácio desta obra, Bacon dizque as falhas que possam existir na interpretação deste sig-nificado só podem ser atribuídas à ignorância dos intérpre-tes. Quanto às teorias que formam a base filosófica das in-terpretações de Bacon no De sapientia, ele já as tinhaexposto no Temporis partus masculus, Cogitationes de scien-tia humana e Cogitata et visa. Por outro lado, essas interpre-tações dependem estreitamente da tradição exegética dosmitos clássicos tal como se dá nos inúmeros manuais da épo-ca, como os de Boccaccio, Comes e Aliaciati, inspirados porPlutarco, Luciano, Cornutus, Macróbio e outros, bem comopelos neoplatônicos e pelos escritos alquimicos (ver Rossi,1968, pp. 88, 92-3). Como veremos, Bacon utiliza estas fon-tes não só para o relato dos mitos mas muitas vezes tambémpara sua interpretação.

No De sapientia veterum são desenvolvidos principal-mente quatro temas filosóficos 34 : a importância da distinçãoentre teologia e filosofia, entre fé e ciência; as vantagens donaturalismo materialista35 ; a função da pesquisa filosófica ea necessidade do método; a defesa de um realismo político,inspirado por Maquiavel36 . Em seguida examinamos esteselementos mais detidamente a propósito da interpretação deBacon do mito de Prometeu e, um tanto brevemente em re-lação à sua interpretação dos mitos de Pan e Estige.

Ao tratar do mito de Prometeu — o mais extenso noDe sapientia — Bacon desenvolve não só o primeiro tema —distinção entre filosofia e teologia — como também toca noterceiro — função da pesquisa filosófica —, além de fazer ob-servações de caráter moral e psicológico. Este mito, da mes-ma forma que é central na exegese baconiana é, em geral,particularmente vigoroso no Renascimento, cujo pensamen-to mais característico — conforme nota Cassirer (1951,

p. 123) —, insatisfeito com a expressão abstrata, tende amanifestar-se através de uma expressão gráfica e simbólica.Ele não foi alheio ao pensamento medieval; está, entre ou-tros, em Lactâncio e Sto. Agostinho, como uma espécie desimulacro pagão do motivo bíblico da Criação37 . A crençacristã vê Deus como o verdadeiro Prometeu. Boccaccio é oprimeiro a desviar-se desta concepção quando apresentauma dupla criação e interpreta Prometeu à maneira deEvemero 38 ; ele distingue uma criação pela qual o homem foichamado à existência, e outra pela qual se conferiu a essamesma existência um conteúdo espiritual. Nesta perspecti-va, Prometeu representa um herói humano, o herói cultural,o portador da ciência e da ordem moral e política que refor-mou os homens lhes dando uma nova essência.

O pensamento renascentista — como foi visto no Capí-tulo III — vai transferindo com ênfase crescente a atividadeformadora ao sujeito individual, sendo que na esteira deFicino, Charles de Bouelles toma o mito de Prometeu comovínculo entre sua filosofia da natureza e sua filosofia doespírito, convertendo o homem em seu próprio criador e amo.Para ele, o homem se conquista e se possui a si mesmo,enquanto o homem meramente natural permanece sempresujeito a um poder estranho de que é eterno tributário(Charles de Bouelles, De sapiente, cap. VIII, apud Cassirer,1951, p. 128). Assim, a partir do Renascimento, o Prometeumedieval núncio de Cristo e de sua Paixão, torna-se o titãagrilhoado, emblema da consciência em luta com o arbitrá-rio, símbolo familiar do líder progressista e reformador, queé como aparece em Comes (Mythologiae sive explicationisfabularum, IV, 6).

A narrativa do mito, em Bacon, é a seguinte:Tendo criado o homem com barro mesclado a partes de

diversas espécies animais, Prometeu quis proteger sua obracom algum beneficio, para não ser apenas o fundador do gê-nero humano mas também seu benfeitor. Assim, ingressan-do escondido no céu, acendeu um feixe de arbusto de férulano carro do Sol e trouxe o fogo para os homens que, ingratos,

11 2 113

Page 58: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

o denunciaram a Jove, recebendo deste em recompensa nãosó o livre uso do fogo mas também a perpétua juventude.Este último dom, contudo, foi posto no dorso de um asno que,no caminho de volta, sentindo muita sede, aproximou-se deuma fonte guardada por uma serpente que só lhe permitiubeber em troca de sua carga, tendo a instauração da juven-tude passado assim dos homens às serpentes em troca de umgole d'água.

Prometeu, entrementes, que não perdera sua malícia,reconciliou-se com os homens e, para vingar-se de Jove, pre-parou-lhe um sacrifício fraudulento: ofereceu sobre o altardois touros pondo sob a pele de um a carne e a gordura deambos enquanto a pele do outro cobria apenas ossos e palha,deixando a escolha a Jove. Este, tendo deliberadamente es-colhido a parte fraudada para poder vingar-se, o fez prejudi-cando o gênero humano, cujas obras o atemorizavamcrescentemente. Ordenou a Vulcano que fabricasse umamulher jovem e atraente à qual cada deus conferiu seu dote— e que por isto foi chamada Pandora (f1CcvZ66pâ( = "todosos dons") — e lhe pôs nas mãos um vaso belíssimo onde esta-vam todos os males com a esperança escondida no fundo.Pandora convidou Prometeu a abrir o vaso, mas ele, caute-loso e astuto, recusou. Ela procurou então o irmão de Prome-teu, Epimeteu, que sendo de índole totalmente diversa da deseu irmão, abriu o vaso. Ao ver todos os males escaparem, eleainda tentou, tardiamente, fechar a tampa do vaso, mas seuesforço só serviu para conservar no fundo a esperança.

Finalmente, Prometeu acrescentou ao seu rol de gravesdelitos o de tentar violar Minerva, o que levou Jove aagrilhoá-lo e condená-lo a um tormento infinito: conduzidoao monte Cáucaso e preso a uma coluna de modo a ficar imó-vel, o titã tinha seu fígado devorado por uma águia diaria-mente, pois o órgão voltava a crescer durante a noite na pro-porção da parte bicada. Parece, porém, que o suplícioterminou quando Héracles, num cântaro de barro que lhehavia sido dado pelo Sol, atravessou o oceano até o Cáucaso elibertou Prometeu depois de ter matado a águia a flechadas.

Bacon acrescenta ainda que entre alguns poucos eramorganizadas corridas com archotes em honra de Prometeucujo vencedor, ou seja, o primeiro que chegasse ao fim dopercurso com o archote aceso, recebia a palma da vitória.

Antes de examinarmos a exegese que se segue, situe-mos a narrativa na tradição ao menos quanto a algunsaspectos básicos. Em linhas gerais, Bacon segue a versãode Comes (1567, IV, 6), cujas fontes seriam, entre outras,Apolodoro, Bibliotheca, II, 5, 10; Homero, Ilíada, I, 396;Hesíodo, Teogonia, 633; algumas das quais podem ter servi-do diretamente a Bacon (cf. Bacon (1965), "Della sapienzadegliAntichi", ed. De Mas, p. 187). Entre as demais varian-tes mais conhecidas do mito, a de Bacon se diferencia deci-didamente da que Platão atribui a Protágoras (Protágoras,320-324) e apresenta inúmeras diferenças em relação às deHesíodo e Esquilo, a começar pela ordem dos atos de Prome-teu — o roubo do fogo e a oferenda fraudulenta (este últimoepisódio inexistente em Esquilo), que em Hesíodo ocorremna ordem inversa, além de inúmeras outras diferenças, comoa aliança de Prometeu com Zeus na guerra contra Titãsem Esquilo e a posse inicial do fogo pelos homens de ouro emrelações fraternais com os deuses em Hesíodo. Em comumcom o Prometeu de Hesíodo, o de Bacon tem característicasnítidas de um trickster ou deceptor: a passagem do sacrificiofraudulento 39 na versão de Bacon já se inicia com a atribui-ção de "malícia" (verum Prometheus a malitia sua non abs-cendens, p. 101). Mas enquanto para Hesíodo o titã é menosum benfeitor que o artífice da decadência da humanidade (arestituição do fogo por Prometeu é, em Hesíodo, uma repa-ração pela perda do próprio fogo, que fora o preço da vanta-gem gastronômica no sacrifício obtida mediante fraude(além da Teogonia, ver Os trabalhos e os dias, 47ss.), a con-cepção de Bacon coincide com a de Esquilo em que a deca-dência é substituída pelo progresso.

Na versão de Bacon, após criar o homem com barro epartes de diversas espécies animais 40 e roubar o fogo parabeneficiar sua criação, Prometeu é denunciado a Jove pelos

11 4 115

Page 59: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

homens, que recebem deste como recompensa, além do livreuso do fogo, a juventude perpétua que, por causa de sede doasno que a transportava, é perdida e passada para as ser-pentes. Este episódio não é de origem clássica e pareceser uma interpolação medieval de inspiração hermética (aserpente guardiã da fonte é uma imagem da tradição hermé-tica)'ecoando uma simbologia bíblica (o papel da serpente naqueda do homem no Genesis). Por outro lado, no que toca àtradição hermética, um episódio extremamente importanteem Bacon, como veremos — a violação de Minerva — nãoexiste no verbete "Prometeu" de Pernety, onde a intervençãoconsiste em transportar o titã ao céu para que ele escolhaalgo que contribua para a perfeição de sua obra. O episódiode Pandora, por sua vez, segue em linhas gerais — comalguns desvios — a tradição que parte de Hesíodo (Os traba-lhos e os dias, 57-101, complementado por uma passagemmais breve na Teogonia, vv. 570-90), em cuja narrativa,aliás, como demonstram Dora e Erwin Panofsky (1975), a"caixa de Pandora" não é caixa e nem de Pandora, tendo seconsagrado esta última versão a partir de um Erasmo deRoderdã. São estes os desvios: em Bacon, como em Erasmo,o recipiente chega junto com Pandora como possessão destae não de Epimeteu, como em Hesíodo, e não se trata de umagrande jarra (Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 90: rriüos — oudolium, em latim, cf. Panofsky (1975), p. 19), mas de umpequeno vaso

41

Já a libertação de Prometeu por Héracles segue a tra-dição, encontrando-se tanto em Hesíodo como em Esquilo

42 ,mas a violação de Minerva parece não ter fonte clássica.Minerva — além da já citada passagem de Pernety — inter-vém também no mito em algumas versões mais tardias: nasÉclogas de Virgi1io43 , admitindo Prometeu no Olimpo na oca-sião em que ele rouba o fogo; e em Proclo que, ao interpretarPandora em termos neoplatônicos como alegoria da "forçairracional da vida " que vincula a "alma racional" ao corpo,recorre à Minerva (ou Atena) em seu comentário de Os tra-balhos e os dias quando diz que "Há uma certa habilidade

artística na parte feminina irracional de nossas almas por-que a imaginação é hábil e capaz de formar imagens, e istobem pode supor-se que seja um ensinamento de Minerva"(Panofsky, 1975, pp. 155-56).

Quanto à referência final às corridas com tochas emhonra a Prometeu, não encontramos nenhuma fonte clás-sica, embora de forma bem geral a palma da vitória (de res-to uma prática então generalizada nos certames desporti-vos) possa ser relacionada às coroas de ramos que, assimcomo os anéis, a humanidade teria adotado em honra de Pro-meteu, que se coroou, por ordem de Zeus, com uma coroa desalgueiro enquanto Héracles optou por uma de oliveira —segundo Ateneu, Esquilo e Apolodoro, apud Graves (1975, I,pp. 149-50).

Vejamos agora a interpretação. A fábula se refere àcondição humana (Prometheus, sive status hominis) e Pro-meteu significa a Providência 44 , pois os antigos atribuíam acriação do homem à Providência. 0 homem aparece aquicomo o verdadeiro centro do mundo, pois todas as coisas lhesão subordinadas e, em sua ausência, a natureza pareceriasem fim algum. A revolução periódica dos astros lhe servempara distinguir as estações e determinar um ponto no espa-ço; os ventos para navegar e mover moinhos; as plantas eanimais para alimento e vestimenta etc. A massa que formao homem tem caráter composto porque ele, entre todas ascoisas do universo, é a mais complexa e composta, e por istojustamente os antigos o chamavam de mundo menor —microcosmo. O corpo humano, de fato, resulta da mistura,mais orgânica possível, de todos os seres da natureza, masos alquimistas tomaram o elegante termo microcosmo numsentido literal e grosseiro ao reencontrarem no homem todosos minerais, vegetais e todas outras coisas ou qualquer subs-tância correspondente. O homem, no entanto, nascedesprotegido, privado de tudo. Prometeu, ao lhe dar o fogo,está lhe fornecendo um instrumento de ajuda para quasetodas as necessidades e usos humanos, do qual se valem demuitas maneiras as artes mecânicas e a ciência.

11711 6

Page 60: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

A própria descrição da maneira como foi roubado o fogoé adequada à substância da coisa representada. O uso do ar-busto de férula indica que o fogo é produto da fricção de umcorpo em outro, fricção que diminui a massa da matéria e apõe em movimento para receber o calor dos corpos celestes.

Quanto à denúncia que os homens fazem de Prometeua Jove. Por que esta aprovação de um gesto de ingratidão?Deve haver nisto um sentido oculto. O significado de alego-ria deve ser o de que é positivo que os homens denunciem aomesmo tempo sua natureza e a arte, e seria infausto que nãoo fizessem. Pois os que se gabam da potência da naturezahumana e das artes que possuímos e querem fazer passarcomo perfeita a ciência que professam e cultivam, são os pri-meiros a faltar com respeito à natureza divina, com a perfei-ção da qual pretendem equiparar-nos; e são também os maisinfrutíferos porque, crendo terem já chegado ao máximo daperfeição e exaurido sua tarefa, não procuram outra. Os que,pelo contrário, denigrem a natureza, acusam as artes e la-mentam continuamente o estado do saber, não só revelamum ânimo mais modesto, como se sentem estimulados a fa-zer novas descobertas. Exemplo da postura de estagnação éa honra que se presta ainda à filosofia aristotélica quandomuito mais dignos de aprovação são Empédocles eDemócrito, que sustentaram a obscuridade de todas as coi-sas e a proximidade entre o falso e o verdadeiro. Assim, oshomens devem estar cientes de que: toda acusação contra anatureza e as artes agrada aos deuses, pois é o mesmo quepedir novas graças e dons à bondade divina; que toda acusa-ção feita a Prometeu, que é o mestre, e à sua autoridade, pormais áspera e violenta, é mais útil do que perder-se em vãscongratulações; e que a ilusão da riqueza é uma das causasprincipais da pobreza.

Quanto ao dom da juventude permanente, parece queos antigos esperavam encontrar as maneiras e remédios ne-cessários para retardar a velhice, mas incluíam este benefí-cio entre os que os homens já teriam tido mas, por preguiçae negligência, teriam deixado escapar, e não entre aqueles

que lhes teriam sido sempre negados. Eles pareciam quererdizer que, com o justo uso do fogo e a condenação vigorosados erros das artes, não faltava aos homens condições paraconseguirem este dom, mas que eles próprios dele se priva-ram, pondo-o na garupa de um asno vagaroso. Este repre-senta a mera experiência, com toda sua incerteza e lentidão.Então, se as faculdades dogmática e empírica não se conci-liam, a quem caberia a tarefa de trazer aos homens os novosdons dos deuses? As asas ligeiras de pássaro da filosofia abs-trata ou à experiência lenta do asno da experiência? E de sesupor que se um homem conseguisse seguir a experiênciaprocedendo numa norma certa e com método, sem se deixarlevar pela sede de experimentos e não seria um portador inú-til dos novos dons da generosidade divina. O dom ter passa-do para as serpentes — que parece apenas um acréscimoornamental — representa a vergonha dos homens por nãoterem conseguido obter com o fogo e com as outras artes osdotes com os quais a natureza agraciou tantos outros ani-mais. A reconciliação dos homens com Prometeu, por suavez, põe em relevo a inconstância dos homens nos novos ex-perimentos. Se estes não dão certo rapidamente, a empresaé logo abandonada para que se retorne às vias antigas, comas quais se reconciliam.

Depois de descrever a condição humana no que toca asartes e coisas intelectuais, a parábola passa a tratar da reli-gião, quando se conta que à cultura das artes acompanhou oculto aos deuses, que foi, no entanto, subitamente dominadopela hipocrisia. Sob a imagem do sacrificio duplo se oculta afigura do homem realmente religioso, a oferenda verdadei-ra, e do hipócrita, a oferenda falsa.

Seguem-se então os costumes e condições da vida doshomens. Pandora indica o prazer sensual e voluptuoso que,pela introdução das artes, da cultura e do luxo na vida civilacendeu-se como que pelo dom do fogo. Por isto se atribuia Vulcano a fabricação da volúpia, porque representa tam-bém o fogo. Da fabricação da volúpia advieram infinitosmales, danosos à alma, ao corpo e Afortuna dos homens e dos

11 8 119

Page 61: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Estados, pois da mesma fonte vieram as guerras, os tumul-tos e as tiranias. Mas o melhor da fábula está na elegantedescrição do estado duplo da existência humana em Prome-teu e Epimeteu. Os seguidores deste são imprudentes,sofrem as conseqüências de suas ações impensadas e têmcomo único consolo a vã esperança. Os de Prometeu, pelocontr'ário, são prudentes e evitam muitos males e desventu-ras, mas se privam de muitos prazeres, devem lutar contraa inclinação natural e são atormentados por contínuos temo-res e infinitos pensamentos que, por sua ligeireza, são repre-sentados pela águia, e só os deixam em paz na calada danoite. Pouquíssimos reúnem os beneficios das duas virtudes:as vantagens da prudência e a isenção de temores. Este é umestado que só pode ser produzido com a ajuda de Héracles,isto é, da força e constância de ânimo, que se mantém pre-parado para qualquer eventualidade e imperturbável dian-te de qualquer perigo, podendo assim olhar o futuro semtemor. A força de Héracles une a audácia de Epimeteu à pru-dência de Prometeu. Não é uma virtude inata, pois tal forçanão pode ser fornecida pela natureza. Na fábula, ela derivado Sol além dos oceanos: vem da sabedoria, que é como o Sol,e da meditação sobre a inconstância da vida humana, que écomo navegar nas ondas do oceano. E a embarcação deHéracles é um frágil cântaro de barro, o que significa que oshomens não devem usar como desculpa a fragilidade de suanatureza, pois, como disse Sêneca: "A verdadeira grandezaé aliar à fragilidade do homem a firmeza de um deus" (Veremagnum habere fragilitatem hominis, securitatem dei)(Epist., 53).

Bacon volta então a um evento anterior. A violação deMinerva, crime que custou a Prometeu a pena de dilacera-mento do fígado. Seu significado é que os homens, vaidososde sua ciência e artes, tentam às vezes rebaixar a sabedoriadivina ao nível dos sentidos e da razão, e disto segue-se umaperpétua dilaceração da mente. E preciso distinguir, comtoda modéstia possível, a coisa humana da divina e os orá-culos dos sentidos dos da fé, para não cair numa religiãoherética e numa filosofia fabulosa.

Resta a corrida com as tochas, que também se refere àsartes e ciências e significa que sua perfeição não depende daagudeza e habilidade de um só, mas da sucessão. O progres-so só pode ser alcançado por equipes de cientistas e não porpesquisadores solitários. Tais corridas parecem ter sidointerrompidas há muito tempo e é preciso retomá-las, isto é,com os homens descartando a liderança de uma elite paratrabalhar em cooperação.

Bacon conclui que embora a fábula qonclame os ho-mens a despertarem e porem à prova forças e também seupróprio revezamento e a não se fiarem exclusivamente emalguns poucos, há muitos pontos referentes aos mistérios dafé cristã: antes de tudo a navegação de Héracles sobre o cân-taro de barro para libertar Prometeu, que significa o verbode Deus que vem encarar-se para redimir o gênero humano.Mas neste ponto, diz, somos impedidos de continuar o discur-so pelo escrúpulo de não acender no altar de Deus um fogoque lhe seja estranho.

Vamos agora examinar a exegese baconiana em seuspontos principais. Logo no início, ao atribuir à Providência acriação do homem, Bacon já procura interpretar o mito emtermos de consenso de mitos pagãos e teologia cristã, masisto veremos mais detidamente a propósito da libertação dePrometeu mais adiante. Em seguida, Bacon diz que a fábulaparece indicar que o homem é o verdadeiro centro do mun-do, "ao menos no que diz respeito às causas finais" (quodhomo veluti centrum mundi sit, quatenus ad causas finales,p. 105). E preciso lembrar aqui que a expressão "causasfinais" se encontra no centro dos ataques de Bacon aAristóteles e que, como nota H. B. White (1968, p. 123) —ver também Novum organum, II, 48 —, quando Bacon negaque as causas finais possam ser conhecidas no sentido uni-versal45 , ele ao mesmo tempo afirma que elas podem serconhecidas em relação ao homem, sendo portanto o únicodomínio do pensamento em que é legítima a busca das cau-sas finais o da filosofia política. Mas aqui não parece ser esteo caso, pois a expressão é usada para indicar a relação do

120121

Page 62: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

homem com a natureza: ele é o centro dela como causa finalde seus atributos e movimentos (revolução periódica dosastros, ventos, planetas, animais etc.) 46 . Aqui parece queestamos diante de um lapso de rigor terminológico ou de umafrouxamento "literário" com a expressão sendo usada me-taforicamente...

Em seguida Bacon faz a consideração do homem cornoum microcosmo e critica o uso que os alquimistas fazem des-te termo47 . A crítica aos alquimistas é uma constante em suaobra, como já vimos antes e voltaremos a ver a propósito daviolação de Minerva. A passagem seguinte traz outro temarecorrente na obra de Bacon: a ênfase no método e na impor-tância da ciência e das artes mecânicas. E freqüente emBacon o contraste entre o caráter infrutífero da culturatradicional e a natureza progressiva das artes mecânicas(ver, por exemplo, Novum organum, I, 74) e, sobretudo, elevê nos aspectos coletivos e progressivos das artes mecânicasaquilo que as distingue da magia, além de serem um modelopara a pesquisa em diversos campos do conhecimento. As-sim, a descrição que se segue da coincidência entre como ofogo é roubado na fábula e a maneira de obtê-lo na realida-de, destaca o aspecto técnico 4S .

Bacon acrescenta então uma passagem que não se en-contra na tradição: a denúncia de Prometeu. Esta teria doissignificados, o primeiro de caráter religioso — a denúncia daciência como arrogância frente a Deus (que diz respeito aotema da separação filosofia/teologia, desenvolvido mais àfrente) — e o segundo se traduziria num movimento sadiocontra o conformismo com o atual estado do conhecimento.Aqui Bacon inclui uma crítica a Aristóteles, opondo-o aEmpédocles e Demócrito. Tal oposição já se encontra noTemporis partus masculus, em que pré-socráticos comoAnaxágoras, Empédocles, Pitágoras e Demócrito, que nãoseparavam a filosofia da ciência física, têm mais importân-cia que seus sucessores. Em Valerius terminus, Advance-mente of learning, Cogitata et visa e Redargutio philoso-phiarum, a filosofia pré-socrática é a mais "saudável" e

Demócrito o mais penetrante pensador até então, pois rejei-ta as causas finais, deixa a mente fora da natureza, evitaformas abstratas e aceita positivamente a matéria formadacomo fonte de todas as coisas e de suas atividades (Works, VI,42, 224; VII, 26, 29, 67, 70, 72-3, 112, 117). Para Bacon, afilosofia de Aristóteles é um exemplo de filosofia dogmáticae de racionalismo sofístico que tenta resolver todos os proble-mas através de habilidade verbal49 .

Outra interpolação de Bacon no mito, e que reúnevários de seus interesses, é o da perda do dom da juventudepermanente. Bacon de fato acreditava na possibilidade de seprolongar a vida humana indefinidamente (Rossi, 1968,p. 16), mas o importante aqui é a narrativa dos eventos, queele utiliza para veicular suas críticas à incerteza e lentidãoda "mera experiência". Na perspectiva da nova ciência deBacon existem dois tipos de experimentos, os "de luz" e os "defruto '50 . O primeiro manifesta o princípio científico, o outroa operação da lei em funcionamento e ambos se esclarecemmutuamente. O segundo não deve ser confundido com astentativas simplesmente empíricas, cujos autores, ansiososquanto aos frutos da prática, desperdiçam as oportunidadesde conhecer suas causas naturais (cf. Anderson, 1971,p. 183; Jardine, 1974, pp. 136-37). Esta ansiedade estátambém expressa na reconciliação dos homens com Prome-teu, isto é, no abandono da empresa que não dá certo rapi-damente e retorno às vias antigas. Bacon descreve a mesmafalha na interpretação do mito de Atalanta (Atalanta sivelucrum), em que critica igualmente o hábito de se abandonaro curso natural da pesquisa científica por "experimentos quevisam resultados imediatos. Também em Orpheus sivephilosophia, a busca desastrosa de Orfeu por Eurídice signi-fica a precipitação impaciente dos que abandonam a trilhabatida do experimento.

Depois de passar pelo episódio do sacrificio falcatruosoem termos religiosos, Bacon se volta aos "costumes e condi-ções da vida dos homens" a propósito do mito de Pandora

123122

Page 63: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

(Post statum Religionis, parabola se vertit ad mores e huma-na vita conditiones, p. 114). Já no Valerius terminus, Baconafirmava a vantagem de substituir as disputas tradicionaissobre a natureza mais elevada por um naturalismo moralbaseado em pesquisa histórica e psicológica realista nos fe-nômenos morais" . O mito de Pandora integra o conjunto dosmitos — Cassandra, Nêmesis, Dioniso, as Sereias, entre ou-tros — com os quais Bacon procura delinear uma fenomeno-logia psicológica e ilustrar certos aspectos básicos de sua éti-ca. Pandora representa as paixões. Nas interpretações dosmitos de Orfeu e das Sereias, Bacon procura mostrar que afilosofia capacita o homem a resistir às suas paixões ou igno-rando-as ou reconhecendo sua existência e superando-as éti-ca e racionalmente. A passagem no mito de Prometeu sobrea caixa de Pandora ilustra estas duas atitudes — em Prome-teu e Epimeteu — enfatizando suas respectivas limitações. Afigura de Héracles fornece a síntese e a superação: é força econsistência, unindo a audácia de Epimeteu à consciência dePrometeu. A postura nela simbolizada não é congênita, masobtida através de reflexão. Por outro lado, com Héracles,Bacon passa das considerações morais e psicológicas — comoexplicita no final da exegese — para a esfera da religião. PoisHéracles, singrando o oceano sobre um cântaro, "simboliza overbo de Deus que vem encarnar-se como sobre uma frágilembarcação para redimir o gênero humano 752 . Bacon repeteesta interpretação no ensaio Of adversity53 :

(...) que Héracles, quando foi libertar Prometeu (o qual repre-sentava a natureza humana) atravessou toda a extensão do oce-ano numa panela ou num cântaro de barro, descrevendo assima situação do cristão que navega na frágil barca da carne atra-vés das ondas do mundo.

Voltando à violação de Minerva, Bacon ressalta a sepa-ração entre filosofia e teologia, que é central em seu pensa-mento e é examinada também a propósito do mito de Penteu.

Antes dele, Nicolau de Cusa desenvolvera uma epistemolo-gia que levava à conclusão de que nosso conhecimento deDeus é diferente em espécie de nosso conhecimento do mun-do, mas no `século XVI esta distinção não estava clara eBacon reforçou-a separando vigorosamente os objetos doconhecimento, as coisas humanas e naturais das coisas divi-nas. No Cogitata e visa, a mistura entre ambas estimuladapela aliança do aristotelismo com a teologia é apontada comomais perniciosa que uma guerra aberta entre ciência e reli-gião (cf. Cogitata et visa, 595-97 e Valerio terminus, 218).Além deste significado, a violação da deusa, em outro mito— o de Erictônio — por Vulcano, traz outro diferente: o daarte que viola a natureza e gera monstros. Bacon opõe aosmétodos de pesquisa impacientes, dogmáticos e ilusórios dosalquimistas, que violam Minerva ao invés de conquistá-la,uma atitude de respeito humilde e paciente diante da natu-reza expressa em sua fórmula de que para dominar a esta ohomem deve ser seu servo e intérprete.

Finalmente, Bacon se refere à corrida de tochas insti-tuída em honra de Prometeu. Ela significa uma concepção dotrabalho científico que é um dos pontos básicos do projeto deBacon para a reforma do conhecimento e que talvez seja oque mais o diferencie, em termos de modernidade, de outrospensadores seus contemporâneos como ele cientes da impor-tância da pesquisa científica. Trata-se do caráter público ecooperativo da ciência, feita de contribuições individuais emvista de um sucesso geral que é patrimônio de todos. É nes-ta concepção que está a profunda separação entre Bacon, porum lado, e Agripa, Cardano, Della Porta e outros filósofos,cientistas e magos renascentistas que, como Bacon, percebe-ram o significado revolucionário das grandes descobertas doCinquecento e enfatizaram o valor prático da pesquisa, masque continuaram a conceber a obra científica como trabalhosolitário. Bacon chama a abordagem cooperativa traditiolampadis ou methodus ad filios 54 , e ela se encontra no cernede sua utopia científica, a Nova Atlântida 55 , delineada nosmoldes da "Casa de Salomão", instituição utópica que reali-za esta concepção baconiana.

12 4125

Page 64: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Encerrada a interpretação, Bacon volta a tecer brevesconsiderações de ordem religiosa que são interrompidas soba alegação final de que levar adiante tal discurso (de inter-pretação racional da providência do divino) seria acenderum fogo estranho no altar de Deus 5ó , isto é, infringir a sepa-ração entre filosofia e teologia.

* * *

É através da interpretação do mito de Pan — Pan sivenatura (ampliada em 1623 no De augmentis scientiarum) —que Bacon coloca sua posição sobre o naturalismo materia-lista. NoAdvancement of learning (Works, III, 354), Bacon seremete à doutrina "referente à contextura e configuraçãodas coisas" e à doutrina "referente aos princípios e origensdas coisas". Sua interpretação do mito de Pan ilustra a pri-meira, ao passo que a de Cupido — Cupido sive atomus —ilustra a segunda" .

Bacon parafraseia o mito iniciando pelo significado ale-górico, como ponto pacífico: os antigos, sob a figura de Pan,descreveram toda a natureza, deixando em dúvida apenas aorigem. Uns o fazem nascer de Mercúrio, outros de uma re-lação promíscua que Penélope teria tido com todos os preten-dentes. Mas esta segunda versão é descartada, pois Pan éum dos deuses mais antigos, tendo existido muito antes deUlisses; e Penélope foi venerada naAntigüidade justamentepor sua castidade matronal. Há ainda uma terceira supostagênese: ele seria filho de Jove e Hybris, a insolência. Qual-quer que tenha sido seu nascimento, diz-se que ele tinhacomo irmã as Parcas. Pan era representado com cornos quese elevavam até o céu, áspero e veloso em todo o corpo e coma barba particularmente longa. Era biforme: humano naparte superior, animal na inferior, com patas caprinas. Comoemblemas de seu poder, trazia na mão esquerda uma gaitade sete tubos; na mão direita um cajado de pastor, curvo earredondado na parte superior; e vestia um manto curto depele de pantera. Eram-lhe atribuídos os seguintes poderes

ou prerrogativas: era deus dos caçadores, dos pastores, detodos os camponeses, protetor dos montes, além de núnciodos deuses ao lado de Mercúrio. Líder e guia das ninfas, sefazia acompanhar dos sátiros e, mais velhos que estes, dossilenos. Tinha ainda o poder de produzir certos terrores, es-pecialmente vãos e supersticiosos, chamados pânicos. Nãohá lembranças de muitos feitos seus, a não ser de quandodesafiou Cupido para lutar sendo derrotado, e de quandoconseguiu prender com uma rede o gigante Tifão. Conta-setambém que quando Ceres, triste com o rapto de Proserpina,penetrou no bosque e todos os deuses foram em seu encalço,Pan a encontrou por acaso enquanto caçava. Ele ousou tam-bém disputar com Apolo uma competição musical, sendo con-siderado vencedor pelo juiz, Midas, que por isto ficou comorelhas de asno, as quais ocultava de todos. Praticamentenada se diz dos amores de Pan, sendo-lhe atribuída apenasa paixão por Eco, considerada também sua esposa, e pelaninfa Syrinx, por quem se enamorara ao ser atingido poruma seta vingadora de Cupido. E não teve filhos, exceto umahipotética filha, Iambe, que deveria divertir os hóspedes comhistorietas burlescas e que ele teria tido com Eco.

A paráfrase do mito, como foi diversas vezes demons-trado (ver, por exemplo, Jardine, 1974, pp. 180ss. e Lemmi,1933, pp. 61-74) é quase literalmente tomada por Bacon deComes (1567, V, 6). Segundo mostra Jardine (1974, p. 181),os três detalhes da narrativa de Bacon que não se encontramno capítulo dedicado a Pan em Comes, estão em outros trêscapítulos: em III, 6, De Partis, Comes identifica as Parcascomo irmãs de Pan; em IX, 15, De Mida, Comes se refere àdisputa entre Pan e Apolo; em III, 16, De Proserpina, eleidentifica Iambe como a filha de Pan e Eco.

Em relação aos relatos tradicionais, Bacon omite aconsorte de Mercúrio na concepção de Pan, que segundo al-guns era Dryope, filha de Dryops e neta de Apolo, ou a ninfaOeneis; ou ainda Amaltéia, a Cabra, ou mesmo Penélope(cuja "castidade matrônica " , segundo Graves (1975, v. 2,pp. 373-74) — apoiando-se em Servius, Pausânias, Cícero,

12 6 127

Page 65: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Tzetzes e outros — não era uma unanimidade clássica —Hinos homéricos a Pan, 34ss.; Escoliasta sobre os Idílios deTeócrito, i, 3; Heródoto, ii, 145). Quanto à vida amorosa dePan, a tradição lhe atribui ainda a sedução de diversasninfas além de Eco e de Eufreme, preceptora das Musas,bem como a tentativa de violar Pitys e uma orgia com todasas'Mênades. Ainda neste âmbito, Bacon não menciona a se-dução de Selene. Quanto à sua descendência constam tam-bém Lynx — com Eco — e Crotus, o Arqueiro no Zodíaco —com Eufeme (Graves, 1975, v. 1, pp. 101-3). Tampouco émencionada na versão de Bacon a suposta morte de Pan —ver o verbete Pan na Oxford companion to classic literaturee em Graves (1975).

Eis a interpretação de Bacon: Pan, como o próprionome diz, representa a universalidade das coisas ou a natu-reza. Seu nascimento de Mercúrio significa que provém dapalavra divina; se do "intercurso promíscuo" de Penélopecom os pretendentes, sua origem está na mistura e confusãodas sementes das coisas. A terceira sugestão, contudo, a queo aponta como filho de Jove e Hybris, trata do estado domundo depois da queda de Adão, e exposto à morte e à cor-rupção. Esta terceira hipótese demonstra que os gregos de-vem ter sido influenciados pelos mistérios hebreus, que osalcançaram através do egípcios. Mas as três versões podemser acolhidas como verdadeiras, segundo a distinção dos fa-tos e das épocas, pois é verdade que este Pan que intuímos,contemplamos e honramos mais do que deveríamos, saiu doverbo divino mediante a matéria confusa e pela interposiçãoda prevaricação e da corrupção. A natureza e o destino dascoisas são com propriedade postos como irmãos, porquea cadeia das coisas naturais traz consigo o nascimento, aduração e a morte, a depressão e a proeminência, a desgraçae a fortuna.

Os cornos com que o mundo é representado são maisgrossos nas bases indicando uma forma piramidal da nature-za. Os indivíduos são infinitos e se agrupam em espécies, quetambém são múltiplas e por sua vez se agrupam em gêneros,

cujo número vai diminuindo conforme se dirige aos gênerosmais universais, de modo que a natureza parece quererencontrar-se enfim na unidade. E é significativo o fato de oscornos de Pan chegarem até o céu, pois o cimo da natureza, asidéias universais, alcançam de certa forma a Deus, assimcomo se passa da metafísica à teologia natural.

O corpo da natureza é veloso devido aos raios das coi-sas, que são como os pelos da natureza, e quase todas as coi-sas são mais ou menos radiantes; como se observa na facul-dade da visão e em qualquer operação à distância, poisqualquer coisa que opera à distância deve emitir raios. Abarba é a parte mais pronunciada de Pan, pois os raios doscorpos celestes operam e penetram mais de longe. Assim, osol, quando sua parte superior está obscurecida por umanuvem, emite os raios pela parte inferior e parece ter barba.O corpo é biforme devido à natureza diversa dos corpos su-periores e inferiores, os primeiros representados na partehumana, os segundos na forma de animal. A descrição daspartes do corpo exprime a participação da espécie, pois ne-nhuma natureza é simples, mas sim formada de duas partes:o homem tem algo de animal, o animal algo de planta, aplanta algo de inanimado. As patas caprinas indicam o mo-vimento ascendente dos corpos terrestres às regiões do ar edo céu, pois o equilíbrio da cabra nas montanhas remete àgravitação das coisas no globo inferior.

Dos símbolos que traz nas mãos, a gaita (ou flauta)representa a harmonia das coisas, enquanto o cajado indicaas vias da natureza, umas diretas, outras não; assim suaparte posterior é encurvada porque todas as obras da natu-reza divina no mundo correm por vias tortuosas, como a ven-da de José no Egito. Também no governo humano, os benefí-cios para o povo não são obtidos diretamente 58 . As vestes depan são uma pele de leopardo porque suas manchas repre-sentam o céu coberto de estrelas, o mar de ilhas, a terra deflores, o que significa que as coisas, embora singulares, sãovariegadas em sua própria superficie.

12 8 129

Page 66: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

O oficio de Pan é a caça porque todo ato natural, todomovimento ou processo, não é outra coisa que uma caçada.As artes e ciências vão à caça de suas obras, as ações doshomens perseguem suas finalidades e todas as coisas da na-tureza vão em busca de sua presa, que é seu alimento, ou deprazeres, que são sua recreação. Pan é o deus dos campone-ses porque estes, mais que quaisquer, vivem segundo a na-tureza, e preside especialmente os montes porque é do altodestes que a natureza mais esplendidamente se oferece àvista. E que Pan seja núncio dos deuses, é alegoria divina,pois logo depois do verbo de Deus, a própria imagem do mun-do é índice da sabedoria e potência divinas. Em torno de Panestão as ninfas, que são as almas, e os sátiros e silenos, ou avelhice e a juventude, etapas de todas as coisas.

A idéia do terror pânico se refere ao fato de a naturezater produzido em todos os viventes sentimentos de medo des-tinados a preservar a vida mas, ao lado dos temores saudá-veis, provocou também outros que são inúteis, como assuperstições, sobretudo em tempos dificeis e incertos.

No que toca ao desafio de Cupido, ele significa que amatéria tem uma certa inclinação a dissolver o mundo eretornar ao Caos primordial, mas a mais forte concórdia dascoisas, simbolizada por Amor ou Cupido, submete a malíciae a violência da matéria. O episódio da captura de Tifão nasredes também se refere aos vastos e insólitos movimentos damatéria. A descoberta de Ceres, por quem todos os deusesprocuravam em vão, significa que para descobertas úteis osfilósofos abstratos (simbolizados pelos deuses maiores) sãode menos ajuda que Pan, ou a experiência e o conhecimentoda natureza. O episódio da competição musical ensina quehá uma dupla harmonia, similar à música: a da providênciadivina e a razão humana. O governo do mundo e das coisasnaturais, bem como os desígnios mais íntimos de Deus sãoestranhos e dificeis de entender, e esta ignorância é simboli-zada pelas orelhas de asno.

Que a vida amorosa de Pan se resuma basicamente emseu matrimônio com Eco, é porque amar é querer algo e Pan,

representando o universo da natureza, não carece de nada.Eco representa a verdadeira filosofia, pois seu discurso con-siste em repetir e ecoar, reproduzir fielmente a voz da natu-reza, sem nada acrescentar de seu a esta. Finalmente, que omundo não tenha prole se refere à sua perfeição e auto-sufi-ciência, e neste sentido Iambe, às vezes erroneamente toma-da como filha de Pan, é um símbolo dessas doutrinas vãs quevagam pelo mundo e das quais muito se fala, que permane-cem infrutíferas e que embora sejam às vezes agradáveis,são no mais das vezes aborrecidas e inoportunas.

No estudo acima citado, Jardine procura mostrar queesta interpretação também traz sinais inquestionáveis dainfluência de Comes e outros mitógrafos, embora reconheçasua consistência59 . A interpretação naturalista de Pan é tra-dicional. Já vimos no Capítulo II que para Apolodoro eCornutus as pernas velosas e o busto humano do deus sereferem à vegetação da parte inferior da terra e ao éter, sededo princípio diretor. Também em Macróbio (Saturnais, I, 22)se encontra este tipo de interpretação, no caso identificandoPan ao sol. Vamos procurar nos ater sobretudo às colocaçõesque, no mais das vezes específicas de Bacon, referem-se aaspectos de seu próprio pensamento.

Depois de identificar Pan à natureza, Bacon situa suaorigem como nascido da Palavra de Deus e da matéria —criada por Deus — para a confusão da qual a Queda contri-buiu60 . Que o mundo se origine nessa mistura confusa dassementes das coisas, por outro lado, é algo que vai ao encon-tro da teoria baconiana de um substrato material no qual asformas são impressasó1 . Na descrição dos cornos de Pan, queatingem o céu, representando a pirâmide do universo, Baconfala de uma passagem (transitus, p. 22) da metafísica à teo-logia, o que se afasta de sua concepção de divisão clara entreambas. Referindo-se a esta passagem, Anderson (1971,p. 61) diz que os cumes ou formas universais da naturezaalcançam "de certo modo, mas apenas de certo modo, Deus.Os cumes das coisas não manifestam a natureza real nema vontade íntima de Deus, contudo estas são reservadas àPalavra revelada". E a concepção de Bacon, mas o texto não

13 0 131

Page 67: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

é assim explícito; pelo contrário, diz: cum summitates naturasive idea universales etians ad divina quodammodopertingant (p. 22), e a ênfase pode ser dada tanto paraquodammodo como para pertingant.

A interpretação da forma meio homem e meio bode dodeus, indicando a diferença entre os corpos celestes e terres-tres; especifica, para Rossi, que esta diferença não é, comoestipula Aristóteles, uma diferença de espécie62 . O Pan deusda caça também traz outra recorrência em Bacon: todo pro-cesso natural, bem como as ciências e as artes, constituemformas de caça. Uma das etapas do método baconiano depesquisa científica chama-se justamente Venatio Panis. Noepisódio do encontro de Ceres, trata-se novamente da críti-ca da filosofia abstrata, já vista a propósito do mito de Pro-meteu e que integra a reforma baconiana do conhecimento.A mesma crítica se encontra, finalmente, no casal Pan/Eco,isto é, o discurso que reproduz fielmente a natureza comosendo a verdadeira filosofia, escrita como se ditada pelo pró-prio mundo, sem nada acrescentar de seu. Este últimoaspecto — que pertence exclusivamente à interpretaçãobaconiana e diz respeito à sua própria filosofia — é, na con-clusão da fábula, mais uma vez enfatizado na figura deIambe, com seu discurso infrutífero, que pode às vezes serdivertido mas termina sempre por aborrecer.

Para exemplificar brevemente o quarto tema principaldo De sapientia veterum — a defesa de um realismo politico,inspirado por Maquiavel — tomaremos a interpretação domito de "Estige, ou os tratados" (Styx sive foedera). Assimcomo no início do Capítulo II ingressamos no domínio daexegese alegórica através de um preceito ao invés de umanarrativa propriamente dita, deixaremos agora este domíniopor uma via semelhante: trata-se aqui de uma "tradição

63

que se encontra em muitas fábulas". E a tradição de um tipode juramento que era feito pelos deuses quando não queri-am de modo algum deixar aberta a via do arrependimento.

Esse juramento não invocava o testemunho de uma potên-cia celeste nem se apoiava num atributo divino, mas citavao Estige, um dos rios infernais. Esta, e nenhuma outra fór-mula sacramental, era considerada segura e inviolável, poiso perjuro não poderia ascender ao convívio dos deuses poralguns anos.

Aqui Bacon se atém a um mínimo de elementos emrelação à tradição, referindo-se somente ao juramento. Nãomenciona que Estige significa "o odioso" , mas que segundoHesíodo (Teogonia, 360, 383-97) era uma das ninfas fluviaisou náiades filhas de Oceano que, em conseqüência de suaajuda a Zeus na batalha contra os titãs, foi honrada no sen-tido em que um juramento pelo Estige passava a ser invio-lável mesmo pelos deuses. Ainterpretação de Bacon parte deque a fábula parece se referir aos pactos e tratados que osantigos soberanos celebravam entre si. Tais tratados sãosempre pouco seguros, ainda quando garantidos pela soleni-dade e santidade do juramento, que se tornam meras forma-lidades externas a darem brilho, dignidade e reputação, aoinvés de confiança, segurança e garantia de execução. Mes-mo os laços de parentesco ou de favores mútuos não podemrefrear a sede de poder dos reis, e como acima deles não háautoridade a quem devem prestar contas de suas condutas,nunca faltam pretextos para infringir um pacto e impor suavontade. Existe apenas uma garantia do juramento feito,que não se identifica com nenhuma divindade celeste: é aNecessidade, o perigo público e a dependência mútua daspartes. A Necessidade é o rio fatal de onde não se volta. Oateniense Ifícrates invocava esta divindade nos tratados,dizendo abertamente o que nos outros permanecia tácito.Diante da proposta dos espartanos de inúmeras precauçõese sanções para assegurar a execução de um tratado, elerespondeu:

Só pode haver um vínculo e uma só razão de segurança entrevocês e nós: vocês devem demonstrar ter nos feito concessõestais a ponto de não poderem nos ferir se quiserem. ó4

132 133

Page 68: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

Por fim, a pena de ser suspenso dos banquetes dos deu-ses exprime para os antigos a perda dos direitos e das prer-rogativas, da abundância e da felicidade do poder.

Para Rossi (1968, p. 115), dentre o conjunto de inter-pretações de naturalismo político maquiavélico de Bacon —Métis, Ciclopes, o pretendente de Juno, Eudimião, Narciso,Acteáo, Perseu, Aquelo, Diomedes e Estige — é nesta aná-lise em que é mais forte a influência de Maquiavel. Baconatribui explicitamente a matriz de seu realismo políticoa Maquiavel, prestando tributo, como já vimos antes, a"Machiavel and to others that write what men do and notwhat they ought to do "65 , além de demonstrar simpatiapelos modelos clássicos de Maquiavel — Tácito, Políbioe Tucídides —, como ao dizer embora "as éticas de Platão eAristóteles sejam muito admiradas... as páginas de Tácitorespiram uma observação mais viva e verdadeira das moraise instituições

"66. Para Bacon, o mito de Estige, e principal-

mente as palavras de Ifícrates, sintetizam os requisitos deinterdependência e equilíbrio de poder essenciais às relaçõesentre Estados.

NOTAS DO CAPÍTULO IV

' Cf. Haydn (1966:222). Ver também, sobre o emaranhado do platonismo e doneoplatonismo na Renascença, pp. 325ss. A este propósito, Lewis (1954) —"New learning and new ignorance " — mostra que quando Drayton

(Polyolbion, V.178) diz que não iria "play the humorous Platonist" susten-tando que o pai de Merlin era um incubus daemon é porque o platonismoprimeiramente significa para ele a doutrina de que a região entre a terra ea lua está povoada de criaturas aéreas que são capazes de uniões férteiscom nossas próprias espécies. O platonismo é para ele um sistema dedemonologia.

z VerWilley (1967, p. 7);.Bréhier (1962, v. 2, p. 512). Para Glanvill, por exem-plo, a filosofia aristotélica prevalecera até serem desenterradas "the moreexcellent Hypotheses of Democritus and Epicurus" (Vanity of dogmatizing,1661, p. 146).Bacon é o buccinatur novi temporis na Inglaterra, enfrentando a noção daciência natural como conhecimento proibido. Certas forças naturais sem-pre foram temidas, mas durante os séculos cristãos a natureza adquireum aspecto satânico. As teologias paulina e augustiniana representam a

natureza (incluindo o homem) como depravada desde o Pecado Original esob maldição divina. Bacon se propõe a demonstrar que a ciência éprometeica e não mefistofélica (sobre a importância do mito de Prometeuna imageria renascentista, ver mais adiante a propósito das exegesesbaconianas).(...) se a Idade Média foi a época dos comentadores, o Renascimento tam-bém não considerou que a explicação das grandes obras da Antigüidade eraincompatível com a expressão do pensamento pessoal. Os humanistas pro-curaram a nova medida do homem numa nova leitura dos textos clássicos.O comentário muda de orientação e às vezes de ponto de aplicação, mas ocaminho da descobertade si passa pelas obras-primas dos antigos. (Gusdorf,1967, p. 64)

8 Para Lewis vemos em nossa época as ciências retaliarem as humanidadescomo estas outrora retaliaram a metafísica. Esta pendência, como se veráadiante, não é alheia aos desdobramentos da antiga polêmica platônica so-bre a utilidade — pedagógica ou de outro tipo — da poesia em Sideny etc.Ver também Haydn (1966, pp. 167-68, n. 26), onde se discutem vários pon-tos de vista — de Whitehead e outros — sobre a extensão do componentehumanista no avanço renascentista da ciência.

e John Donne, a selection of his poetry, London, Penguin, 1967. A seguintepassagem do poema menciona inequivocamente quase todos os argumen-tos relativistas e descentralizadores que sucederam a escolástica:And new Philosophy calls all in doubt,The Element of fire is quite put out;The Sun is lost, and th'earth, and no man witCan well direct him where to look for it.And freely men confesse that this world's spent,When in Planets, and the FirmamentThey seek so many new; they see that thisIs crumbled out again to his Atomies.'This all in peeces, all cohaerence gone;All just supply, and all Relation:Prince, Subject, Father, Sonne, are things forgot,For every man alone thinkes he hath gotTo be a Phoenix, and that there can beeNone of that kinde, of wich he is, but hee.This is the worlds condition now...Ver Curtius (1957, pp. 222ss.). Musato, em sua polêmica com Giovanino deMântua, recorre ao alegorismo afirmando que os mitos pagãos informam omesmo que a Escritura Sagrada, mas sob a forma de disfarce enigmático.Sobre Plutarco, ver Lewis (1954, p. 319).Cabe aqui lembrar que são duas as contribuições de Platão para este deba-te. No Capítulo I lidamos com a condenação da poesia enquanto artemimética ou representacional, tal como se dá na República. A arte imita anatureza e é portanto cópia da cópia, além de seus transtornos pedagógi-cos. Mas por outro lado, no Íon e no Fedro, ao tratar da inspiração, Platãonega que a poesia seja uma arte, na medida em que é produzida por aliena-ção divina da mente por homens que não sabem o que fazem (o que já se

134 135

Page 69: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

encontra no Platão socrático da Defesa de Sócrates). Esta segunda críticaplatônica pode ser assimilada por um pensador elizabetano como Bacon emsua concepção da faculdade da imaginação e do lugar desta no seu projetode reforma do conhecimento, enquanto, por outro lado, é forte a influênciado neoplatonismo na Inglaterra elizabetana. E para Plotino, não se descar-tam as artes na base de seu caráter mimético uma vez que os próprios obje-tos naturais são imitações mas as artes não imitam simplesmente o queelas vêem mas re-ascendem àqueles princípios (TQ(KOUS) dos quais a natu-rezá mesma é derivada. (Uma outra resposta à restrição platônica ao cará-ter mimético da poesia é a de Aristóteles em sua Poética: a poesia não copiaas particularidades da natureza, ela destaca e representa suas caracterís-ticas gerais. O mito poético mostra o que aconteceria necessariamente ouprovavelmente ou possivelmente e todas as situações de uma certa espé-cie. Ela revela o universal e é portanto mais científica que a história. Aeste propósito, a posição de Bacon – explicitamente anti-aristotélica demaneira geral — é que a poesia é feigned history e o propósito do invento énos dar some shadow of satisfaction naqueles pontos em que the nature ofthings doth deny it.)

9 Ver Spingarn (1963, p. 167). Há uma série de ataques e defesas da poesiaantes de Sidney, como a Schoole ofabuse (1579) de Gosson e a Defence ofpoetry, musick, and stage plays (1580) de Lodge. Ambas as posições têm,curiosamente, o mesmo ponto de vista – a poesia é um grande dom e deveser desprezada apenas quando abusada — e de fato, como mostra Spingarn(1963, pp. 170ss.), através da era elizabetana há uma similaridade de pon-tos de vista entre os que atacam e os que defendem a poesia; ambos oslados, como lembra Lewis (1954, p. 318) sempre compostos por protestan-tes. O debate será inovado com a introdução do aristotelismo da crítica lite-rária italiana por Sidney.

10 Sigo aqui o resumo de Spingarn (1963, pp. 171ss.). Ver também Lewis (1954,p. 343) para as influências diretas de Minturno e Scaliger e, por trás deles,de Plotino.

11 Ao responder às várias objeções feitas contra a poesia, principalmente porGosson e Cornelius Agrippa (em De van. et incert. scient., Cap. V), Sidney(1956, pp. 38ss.) se refere especificamente a Platão — "An apology forpoetry" — e à exclusão do poeta da República com os argumentos básicos deque os Diálogos são poesia e que Platão certamente estaria se opondo aos"abusos" da poesia grega de então.

12 Ver Salingar (1973, pp. 74ss.). Note-se que Summer's last will and testament(1592), de Nashe — um dos grandes estimuladores dessa revivescência dogênero —, é uma sátira expressa num prolongado debate alegórico.

19 0 leitor medieval também acreditava numa sabedoria oculta do poeta, mascomo talvez ele houvesse aprendido que os múltiplos significados das Escri-turas nunca anulavam o sentido literal, ele não permitia que a sabedoriaoculta obscurecesse o fato de que o texto diante dele era "uma história no-bre e divertida". Ele presenciava os cercos, chorava com as heroínas e tre-mia com os monstros. Ver Lewis (1954, pp. 28-9).

14 Cf. Spingarn (1963, p. 175). Este autor assinala que o golpe fatal na inter-pretação alegórica foi desferido por Bacon. E cita a passagem do Livro II do

Advancement of learning onde este procura mostrar que as fábulas eramanteriores às interpretações. Com isto, Spingarn parece desconhecer queBacon mais tarde mudou de opinião a respeito disto, sobretudo no Deaugmentis e no De sapientia veterum, no que, aliás, está dentro da visão desua época (seu Literary criticism in the Renaissance é de 1899, antes dasrevisões de Anderson, Rossi e outros estudiosos de Bacon). De qualquer for-ma, o "golpe fatal" vem com o desenvolvimento do classicismo, quando omodo alegórico de interpretação da poesia deixa de ter qualquer efeito so-bre a crítica literária. Pois os críticos alegóricos viam o enredo (ou fábula)como uma mera cobertura agradável para a pílula de doutrina (moral etc.).Os neoclassicistas, limitando o sentido e a aplicação da definição deAristóteles da poesia como imitação da vida, viam a fábula como o meiodessa imitação, e o mais perfeito segundo ela fosse mais verdadeira e minu-ciosamente uma imagem da vida. Na crítica, portanto, o desenvolvimentodo classicismo é mais ou menos coextensivo com o desenvolvimento da con-cepção do enredo (ou fábula) como um fim em si.

15 Para Lewis (1954, p. 38), o The faerie queene, formalmente considerado, éa fusão de duas espécies: a alegoria medieval e a épica romântica mais re-cente dos italianos.

30 Haydn (1966, pp. 538ss.) menciona o extenso levantamento de Denis SauratemLiterature and occult tradition das similaridades entre conceitos do Thefaerie queene e da tradição cabalista, além de detectar a presença deDemócrito no An hymne in honour of beautie, de Spenser.

17 A propósito da influência da mitografia de Comes nos autores renascentistas,F. L. Schoell (1926) mostra que embora o livro de Comes tenha primeira-mente sido publicado em 1551, não foi até 1581 que ele alcançou populari-dade na Europa, quando duas edições apareceram, uma em Veneza e outraem Frankfurt.

18 Lewis (1954, p. 517). Por exemplo, Hécuba diz de Heitor: "policy was hisundoing" (xxiv, 214); ou quando Agamemnon sacrifica (i, 315-19 nos é ditocomo "the politick king made show respectes to heaven". Em Chapmen hátambém um simbolismo moral que não há em Homero. O significado de queele reveste a glutoneria é um exemplo. O que emerge desse simbolismo moralé a preocupação com a ordem — moral, social e política. Se a lealdade doindivíduo e esta ordem falha, não apenas seu próprio espírito, mas a pró-pria existência da civilização é ameaçada. Esta era uma profunda preocu-pação dos elizabetanos.

19 Esta atitude com a literatura, em parte clássica, em parte medieval, eramoldada pelos princípios do decorum, termo que significava consistência eadequação de estilo, cada detalhe numa composição sendo adequada a seupropósito, ocasião, audiência, sua matéria, personagens e convenções for-mais. Isto se relaciona também ao gosto neoplatônico pela "proporção" si-métrica, trazido à Inglaterra elizabetana da Itália por livros como o Courtierde Castiglione. Ver Ure (1955, pp. 90ss.).

20 Cf. Wallace (1943, p. 172). Aqui a filiação é explícita: "Plato said elegantly...'that virtue, if she could be seen, would move great love and affection', and itis the business of rhetoric to make pictures of virtue and goodness, so theymay be seen" (De augmentis, VI, 3); cf. Fedro, 250.

136 137

Page 70: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

21 Às vezes só explicitamente, como Rossi (1968, p. 145) mostra a propósitoda interpretação de "axioma" e do uso da dicotomia em Ramus, de quem,sobretudo, incorpora as três regras básicas em seu novo método indutivovoltado para a descoberta das formas.

22 The duty and office of rhetoric is to apply the dictates of reason to theimagination for the better moving of the will. (...) For the end of logic is toteach a form of argument to secure reason, and not to entrap it; the endlikewise of moral philosophy is to procure the affections to fight on the sideof reason, and not to invade it; the end of rhetoric is to fill the imaginationwith observations and images, to second reason, and not to opress it. (Deaugmentis, VI, 3)Para Bacon a i maginação é uma faculdade racional e sua função preponde-rante sobre outras faculdades dá origem à poesia — isto na abertura do

Advancement of learning, pois no decorrer da obra ele vai desconfiando dopoder da imaginação e chega a negar à poesia um lugar em seu esquema de

conhecimento (Advancement of learning, III, 382). A imaginação criativanão pode ter lugar na composição da prosa se a retórica atinge sua meta,que é assegurar o primado da razão. Esta só usa a i maginação para coisasfuturas e remotas aparecerem como presentes (De augmentis, VI, 3). Cf.Wallace, 1943, pp. 37-42, 1967, pp. 67-95; Harrison, 1972, pp. 257-58.

23 Cf. Wallace (1943, p. 217); Rossi (1968, p. 181); Harrison (1972, p. 260).Para Lisa Jardine (1974, pp. 218-19) a retórica é "subserviente" à i magi-nação, como a lógica o é ao entendimento. A retórica é guiada por, ou explo-ra, a capacidade de fazer imagens da mente, exatamente como a lógica fazcom sua capacidade raciocinante.

24 No De sapientia veterum, em sua exposição dos sentidos ocultos dos mitosantigos, Bacon faz uso exclusivamente da analogia. Eudimião, por exem-plo, é o favorito do príncipe e a lua é o príncipe; a caverna de Eudimião é acasa do favorito, e o crescimento de seu rebanho é a generosidade do prínci-pe. Em cada um dos 31 mitos que analisa nesse livro, Bacon estabelece estetipo de relação de identidade entre dois contextos desiguais.

25 Bacon parece estar empregando o termo no sentido aplicado na Idade Mé-dia às obras conservadas de Aristóteles. Dirigidas aos ouvintes que comodiscípulos eram capazes de seguir as leituras complexas do mestre, eramvistas como exemplo de ensinamento profundo dirigido a uma audiênciaseleta. Cf. Wallace (1943, p. 20).

26 Esta ambigüidade será mais detidamente examinada adiante, a propósitodas diferentes atitudes de Bacon no decorrer de sua obra em relação à ale-goria.

2T De augmentis, VI, 2. Nos Essays, "Of seeming wise " , Bacon (1963, p. 68) serefere mais minuciosamente aos que usam esse método no sentido de tur-varem as águas para elas parecerem profundas:(...) some are so close and reserved, as they will not show their wares but bya dark light; and seem always to keep back somewhat; and when they knowwithin themselves they speak of that they do not well know, would neverthelessseem to others to know of that which they may not well speak.Ver Wallace (1943, pp. 20, 76, 134); Rossi (1968, p. 175).

28 Cf. Rossi (1968, p. 214). De acordo com sua concepção da função da imagi-nação no interior da retórica, Bacon aceita a antiga tese de que as imagensativas se imprimem na memória e — como observa F. Yates (1969, p. 358)— a idéia tomista de que as coisas intelectuais são melhor lembradas atra-vés das coisas sensíveis. Jardine (1974, p. 71, n. 2) alega que para Bacontais métodos têm um lugar apenas na oratória, onde facilitam a recupera-ção do material apropriado.

28 As vezes, Bacon cita os alquimistas explicitamente:(...) and if it be true likewise that (which) the Alchemists do so much inculcate,that Vulcan is a second nature, and imitateth that dextrously andcompendiously which nature worketh by ambages and lenght of time (...)( Works, 92). 'Ele é propenso também a usar a expressão alquímica tried by fire ou proofby fire, como na passagem seguinte durante uma discussão do Ídolos doTeatro:But for that going to and for to remote and heterogeneous instances, by whichaxioma are tried as in the fire, the intellect is altogether slow and unfit(Novum organum, I, xlvii).

8o Ver, por exemplo, Novum organum, II, 40. Cf. Rossi (1968, pp. 14-5). Rossiprocura mostrar como as tendências atomista e materialista de Bacon olevam às vezes a usar certos termos alquímicos num contexto que alteraseu sentido original.

31 No parágrafo 3 de seu De dignitate — apud Lewis (1954, p. 13) — Pico,numa passagem antecipadora do existencialismo moderno, sugere que ohomem não tem natureza específica nenhuma mas cria sua própria nature-za por seus atos. Ver também, a propósito da mesma veia em HermesTrismegisto, Garin (1989, p. 136).

32 I do rather think that the fable was first, and the exposition devised, thanthe moral was first, and thereupon the fable formed. For I find it was anancient vanity in Chrysippus, that troubled himself with great contention tofasten the assertions of the Stoics upon the fictions of the ancient poets: butyet that all the fables and fictions of the poets were but pleasure and notfigure, I interpose no opnion. (Advancement of learning, III, 345, BACON,

1859)a8 Ver Rossi (1968, p. 258). Rossi procura explicar estas mudanças de atitude

com base na hostilidade dos círculos científicos em relação a Bacon e seuresultante isolamento intelectual derivados da violência de sua forma depersuasão. Ansioso em realizar seu plano de reforma do conhecimento, eleteria visto que só poderia consegui-lo moderando seus ataques contra a tra-dição. Ver a este propósito também Magalhães Vilhena (1960, pp. 181-84;1961, pp. 25-8; 1962, pp. 21-35; 1965, pp. 465-502).

34 Além de inúmeras reflexões psicológicas e morais retomadas nas segundase terceira edições do Essays.Magalhães Vilhena (1965, p. 472) observa que "materialismo" é uma pala-vra que só aparece no início do século XVIII, e que os materialistas eramantes chamados de mecânicos, isto é, pessoas que consideravam a naturezado ponto de vista mecânico. Este materialismo macanicista seria o que, emprimeira instância, aparenta Bacon aos jõnios.

138 139

Page 71: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

as Ver Rossi (1968, p. 96). Para o levantamento completo das exegesesbaconianas feito por Rossi ver pp. 258-59.

87 Cf. Cassirer (1951, p. 126). Ver, por exemplo, Lactâncio, Divin. Institut.,II, 11; Sto. Agostinho, De Civ. Sei, XVIII, 8; Tertuliano, Apolog., 18;

Fulgéncio, Mythologicon, II, 9. Em Sto. Agostinho, Prometeu, mais do quesímbolo da divindade, continua a ser interpretado como o "reformador

" queinventou todas as artes e instrumentos da vida civil. Os Pais da Igrejaabordam Prometeu também figuralmente, coma pré-figuração de Cristo:sofre na carne por seu amor aos homens; o suplício do Cáucaso é a Paixãodo Calvário; o bico da águia é o golpe da lança no coração; as Oceânides(em Esquilo) são as santas mulheres ao pé da Cruz etc. Tertuliano, ao anun-ciar aos gentios o Deus dos mártires, exclama: "Eis aqui o verdadeiro, oDeus onipotente lacerado pelos blasfemos" (verus Prometheus, Deusomnipotens, blasphemiis lancinatus) — ver Séchan (1960, p. 13); Decharme(1904, pp. 106-7). Para Cassirer (1951, pp. 123-26) — o motivo de Prome-teu, depois de se enlaçar várias vezes na Antigüidade com a filosofia — noProtágoras (320-324) de Platão, nas interpretações alegóricas dos neopla-tônicos — se encontra com o motivo cristão de Adão, fundindo-se a esteantes de emergir novamente no Renascimento.

as Em De genealogia deorum, Lib. IV, Cap. IV. Já um contemporâneo deLucrécio, Diodoro Sículo, interpretara Prometeu desta maneira: o titã se-ria, na verdade, o inventor dos nupei com os quais se acende o fogo —Bibliot. histórica, V, 67, 2.

39 Que para Robert Graves (1975, p. 145) não é mítica, mas uma anedotacômica. Para este aspecto negativo de Prometeu — e de seus feitos — verDion Crisostomo, Logoi, VI — que responsabiliza Prometeu por ter deter-minado, com o dom das artes, a profunda corrupção da vida social.

4o Em Platão, Protágoras, 320d, a matéria-prima é uma mistura de terra, fogoe tudo o que se pode combinar com o fogo e a terra; enquanto na tradiçãohermética — Pernety (1972, p. 296) — o homem é feito apenas de barro,sendo o fogo roubado do céu e usado em seguida para animá-lo.

41 "Huic foemine inter manus vasculum elegans posuerunt ", De sapientia,p. 102. O mesmo vasculum aliás de Natalis Comes (1567, IV, 6).

42 Para Graves (1975, verbete "Prometeu"), a libertação de Prometeu pareceter sido uma "fábula moral" inventada por Esquilo, não um mito genuíno.Embora na Teogonia de Hesíodo ela também ocorra, ainda que apenas paramaior glória de Héracles, que abate a águia com o consentimento de Zeus,seu pai.

4a Éclogas, vi, 42 — "Sérvio sobre as Éclogas de Virgílio", apud Graves (1975, I,p. 145).

44 Ilpourl8eús rl npq iJ v8ávw, Prometeu é também "o que reflete de ante-mão", assim como Epimeteu é "o que reflete em retardo" ou "em reação". Aprovidência é previdência e por isto sabedoria.

4s A procura de causas finais nas ciências da natureza é perfeitamente esté-ril; pois, como uma virgem consagrada a Deus, ela nada dá à luz. (Causarumfinalium inquisitio steriles, et, tanquam virgo Deo consacrata, nihil parit)(De augmentis, III, 5).

46 O tema da centralidade e dignidade do homem, com já vimos, encontra-seem Pico, Ficino e no Prometeu de Bouelles. Nestes, o homem é exaltado nãocomo um ente, mas como pensador, e sua posição privilegiada não é frutoda vontade divina, mas da livre-escolha do homem que, à diferença de to-das as outras coisas criadas, não tem uma natureza, mas se faz a si mesmo,ilimitadamente. Este conceito de um homem privado de natureza, no en-tanto, é substancialmente estranho ao pensamento de Bacon, para quem opoder do homem não é de modo algum infinito: ele é obsessus legibus naturae,submisso às leis da natureza (De Int. Naturae Sent., XII, 1) e nenhum po-der humano pode escolher ou romper os nexos causais que regulam a reali-dade natural (ver o final daDistributio operis). O homem, para Bacon, deveprolongar a obra da natureza, da qual se torna senher apenas ao se fazerservo e intérprete (Novum organum, I, 1). Esta colocação é central na obrade Bacon.

47 Bacon emprega tanto o termo microcosmo — originário da antiga medicinagrega — como mundus minor — mais empregado na Idade Média, sobretu-do por Tomás de Aquino. Ver De sapientia, p. 106. Cf. dicionário filosóficoLalande, verbete macrocosme.

48 Em sua interpretação do mito de Dédalo (Dedalus sive mechanicus), no en-tanto, Bacon refreia um pouco seu entusiasmo pelas artes mecânicas aoconsiderar seu uso na produção de instrumentos de morte e destruição. Elevai enfatizar as vantagens da moderação na pesquisa científica. Para Bacon,aliás, a moderação é sempre recomendável, exceto na esfera da política.

4° No minucioso exame que Fulton Anderson faz da relação entre Bacon eAristóteles, ele observa duas caracterísitcas principais nos ataques de Bacon:em primeiro lugar, Bacon não se dirige tanto à filosofia aristotélica quantoa certas manifestações de aristotelismo medieval: e em segundo, é impossí-vel separar a critica de Bacon das doutrinas peripatéticas do resto de suafilosofia, que é baseada quase inteiramente na substituição da tradição aris-totélica por uma nova filosofia. Cf. Anderson (1971, pp. 190-216). SobreDemócrito, ver principalmente a interpretação do mito de Cupido —Cupidosive atomus. A necessidade da incerteza, afirmada nos pré-socráticos men-cionados, é discutida minuciosamente nas primeiras páginas de Scalaintellectus sive filum labyrinthi, cf. ed. De Mas, v. 1, pp. 57-8.

50 Na terminologia renascentista, os termos "experimento" e "experiência " sãopraticamente equivalentes. Bacon, de maneira geral, contrasta "experimen-to" com "acidente". O termo "experimento " cobre todas as situações delibe-radamente procuradas pelo investigador como uma fonte de observação. Aocontrário do uso moderno do termo, os "experimentos" de Bacon não sãogeralmente designados para testar a verdade ou falsidade de uma teoriacientífica. Qualquer observação ilustrando algum aspecto do tópico sob con-sideração que possa provar ser útil no futuro por derivar uma teoria é umexperimento. Qualquer observação de beneficio prático imediato é um ex-perimento. O primeiro é um experimento "de luz", o segundo "de fruto".

51 Ver Rossi (1968, p. 109). Aqui também é enfatizado o tema desenvolvidomais adiante a propósito da violação de Minerva: a distinção entre as me-tas da teologia e da filosofia. Pois a tarefa de definir a virtude mais elevada— para Bacon o ideal cristão da charitas — pertence à teologia, enquanto a

140141

Page 72: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

pesquisa filosófica realista deve se concentrar na descoberta de uma virtu-de realista sobre a qual a sociedade humana poderia ser estabelecida.

52 Ver p. 120, ed. De Mas, p. 197. Um interessante exemplo de como podemse fundir na poética elizabetana motivos cristãos e da mitologia clássica seencontra na análise que Patrick Mahony (1987, pp. 220-31) faz dos poemasde Ben Jonson "On my first son" e "On my first daughter" em termos domito grego de Narciso e Eco e das representações de Deus Pai e Filho.É preciso lembrar também que, por outro lado, para Bacon — como para oRenascimento inglês em geral — além das figuras mitológicas clássicas,também certas figuras bíblicas eram emblemáticas, sobretudo Salomão, querepresentava a sabedoria como Héracles o valor. Ver, por exemplo, emSpenser, The faerie queene, V, i, 26. Pode-se acresecntar a este rol de associ-ações entre temáticas clássicas e cristãs — a partir da curiosa tese de Ma-galhães Vilhena (1965, p 468 e n. 1) de que a atração de Bacon pelas teori-as corpusculares de Demócrito não é estranha às suas preocupaçõesteológicas — o fato de que já Sto. Agostinho considerava o atomismo deDemócrito de alguma forma mais religioso no sentido cristão e o opunha aomaterialismo de Epicuro.

52 Cf. a excelente tradução portuguesa de Alvaro Ribeiro, F. Bacon (1952,p. 51).

sa VerDe augmentis, VI, 2 (ed. De Mas, II, 301) eSentenças sobre a interpreta-da natureza, 11 e 12 (ed. De Mas, I, 75-6).

55 Assim como o Nov um organum se opõe ao antigo Organum de Aristóteles, aNew Atlantis se opõe à Atlãntida de Platão no Crítias. Cf. White (1968,p. 112).

5s Este "fogo estranho" da exegese é uma imagem bíblica: em Levítico, 9-10a;os filhos de Asrão, Nadab e Abiú "apresentam perante Iahweh um fogo es-tranho, o que não lhes havia sido determinado. Saiu então de diante deIahweh, uma chama que os devorou, e pereceram na presença de Iahweh".

57 É através da interpretação do mito de Cupido — mais tarde ampliada noDe principiis — que Bacon discute o atomismo (seguindo na verdadeLucrécio, I, 668 e 770), ao mesmo tempo em que defende concepçõesmecanicistas e critica a filosofia grega, com ênfase particular em Demócrito.Nesta exegese o aspecto narrativo propriamente dito é reduzido ao mínimojá na paráfrase do mito, que se resume a referências à genealogia e ao as-pecto da divindade em questão.

58 Esta passagem, completa, é como se segue:Assim em todos os governos humanos mais prudentes, os governantes po-dem introduzir e insinuar o que desejam para o bem do povo mais facilmen-te através de pretextos e meios indiretos; por isto todo bastão de comandodeve ser encurvado na parte superior. (pp. 24-5).A concepção maquiavélica é aqui evidente, e se encontra também, a estepropósito, no Ensaio VI, "Da simulação e da dissimulação". Ensaios.

ss Jardine (1974, p..181). Ainterpretação de Comes e dos mitógrafos em geralera basicamente eclética e pretendia ser enciclopédica, apoiando-se em to-das as fontes disponíveis. Comes e Boccaccio contrastam interpretações al-ternativas das características físicas e dos emblemas de Pan, oriundas dediversas fontes, sem sugerir que uma possa ser mais provável que as outras.

so Para Rossi (1968, p. 259) esta concepção do papel da Queda na CriaçãoDivina tem pouco em comum com a de Sto. Agostinho (De civ., XI, 18) ou S.Tomás (Summa, II, 47) em que o pecado é visto como necessário à har-monia da Criação Divina, tendo se derivado provavelmente do Timeu dePlatão.

61 Ver a este propósito Jardine (1974, p. 184) e também a versão ampliada domito no De augmentis, onde esta referência está mais explícita.

s2 Rossi (1968, p. 259), a partir deDescriptioglobi intellectuales eThema coeli."Inclinações, paixões e noções" sendo comuns tanto aos corpos celestes comoaos terrestres.

ea É também uma tradição que é interpretada a propósito da corrida com tochasno mito de Prometeu.

G4 Esta frase se encontra também em Apophtegma, 144.s5 Works, III, 430. Em defesa do realismo político, Bacon diz ainda que "it is

not possible to join serpentine wisdom with colombine innocency, except menknow exactly all the conditions of the serpent, his baseness and going uponhis belly" (Advancemente of learning, XXIII, 13).

ss Temporis partus masculus, III, 538. Dean (1968, p. 233) observa que ape-nas na época de Bacon esses autores clássicos passaram a receber a aten-ção que antes era dada a autores como Valerius Maximus e Salústio, queenfatizavam o moral e o teatral em suas histórias.Vale observar também que para Bacon os exemplos históricos suplantamas antigas fábulas como meio de comunicação de sabedoria prática(cf. III, 453).

14 2 143

Page 73: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

V — CONCLUSÃO

E is, portanto, o Bacon "literário" no cerne de sua filosofia.Pois, antes de tudo, o exame destas três exegeses — e desuas relações com pontos centrais do pensamento filosóficodo autor — mostra a importância deste estilo de exposiçãono propósito de Bacon em impressionar e persuadir semantagonizar, no sentido de realizar seu projeto de reforma doconhecimento. Tal estilo não só foi responsável pela ampladifusão de sua filosofia como também pode ter cumprido umpapel protetor análogo à "dissimulação" de Descartes, poisas dificuldades com discursos inovadores que pretendessemser diretos existiam tanto na França católica como na Ingla-terra anglicana de então. E, taxilbém como ocorre com Des-cartes, uma coisa é o Bacon de seus contemporâneos, outra éo Bacon lido no século XVIII — matriz importante do natu-ralismo para os iluministas, mas por isto mesmo simplifica-do pela leitura destes, que perde matizes, pois mesmo duran-te sua vida, com a alternância de certas condições, Baconpôde ser ora mais, ora menos direto. De sapientia e Deprincipiis são as obras que contêm as exposições mais coe-rentes e completas do pensamento de Bacon quanto ao ma-terialismo e muitas de suas concepções neste âmbito depen-dem do estudo destas exegeses para se tornarem claras

l .Mas, além de lançar mão dos antigos mitos para popularizar

seu plano de reforma científica, Bacon os considera realmen-te como uma forma primitiva de expressão usada por umahumanidade ainda incapaz de se exprimir em discurso argu-mentativo que, no entanto, contêm uma sabedoria antiga eperdida que deve ser recuperada. Rossi observa que estaconfluência de motivos diversamente inspirados só pode serconciliada à luz do pragmatismo de Bacon, e também quesua crença numa bem-aventurança primeva a ser recupera-da pela filosofia (o próprio título de sua básica —Instauratiomagna — expressa o desejo por uma renovação do passado)se liga, por outro lado, à idéia do Pecado Original. Pois seuprojeto de reforma é investido de um caráter religioso, tendopor objetivo redimir o homem do Pecado Original ereintegrá-lo em seu poder sobre todas as coisas criadas 2 .

Este tema do Pecado Original — no contexto elizabe-tano de amálgama de temáticas clássicas e bíblicas, vistoaqui a propósito do mito de Prometeu — assim abriu espaçopara uma identificação entre a tradição judaico-cristã e adoutrina platônica. Pois assim como o Genesis mostra o ho-mem corrompido pelo Pecado Original, no Timeu platônico,o fato de o universo ter sido copiado da idéia divina pelodemiurgo, o corrompe. E em ambas as concepções o homempode ascender acima de suas imperfeições e atingir a perfei-ção celestial. E esta identificação que se encontra naApologyforpoetry de Sidney, para quem, mais importante que a cren-ça aristotélica de que a poesia é mais instrutiva que a histó-ria ou a filosofia, é a doutrina neoplatônica de que a poesia éo esforço do homem para superar seu eu decaído e atingir aperfeição 3 . E interessante observar que quando Bacon con-sidera a abordagem não-argumentativa, poética, dos anti-gos, como uma "redenção parcial" em relação ao Pecado Ori-ginal, ele está também se inserindo, de certa forma, nestaconcepção. Além de que, para ele, o aspecto imagético domito serve também ao lado especificamente retórico de suaconcepção: o uso peculiar que a retórica faz da atividade ima-ginativa. A poesia propriamente dita, a parte do entendi-mento humano que se refere à imaginação (como a históriase refere à memória e a filosofia à razão —The advancement

144145

Page 74: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

of learning, II), é sistematicamente voltada para uso porBacon sob a orientação de seu propósito filosófico principal,pois como já vimos, para Bacon, como para Platão, a poesiaé ou um instrumento ou um perigo. Por isto é apenas "decerta forma" que ele se insere na visão elizabetana expressaacima por Sidney. E nesta perspectiva de uso que ele aproxi-ma a' poética da retórica, a qual, tornando-se uma arte da"razão insinuativa", pode "tornar visível a virtude" (ver Ca-pítulo IV, p. 107).

E lembremos também que ao lado da exegese alegóri-ca, Bacon, no sentido, contrário, recruta também o estilonarrativo a serviço do logos ao compor sua narrativa utópi-ca, a Nova Atlântida. Já se disse (White, 1968, cap. VII,pp. 108ss.) que esta utopia seria uma obra acroamática emque Bacon teria feito o que atribui aos antigos no De sapien-tia: uma alegoria retórica ou composicional4 , em que trans-mitiria veladamente algumas de suas concepções. De qual-quer forma, é estranho que Bacon abrace com tanta ênfase orealismo político de Maquiavel, valorizando claramente aconcepção do que é contra o deveria ser (o que, aliás, consti-tui mais uma diferença sua com a poesia — ao menos nostermos aristotélicos desenvolvidos por Sidney — ver acima,p. 99) e seja também o autor de uma das "utopias clássicas".A Nova Atlântida, contudo, diferentemente das outras uto-pias, não propõe uma organização política e social ideal parao secretário de Bacon, W. Rawley, que apresenta a obra aopúblico,

Nesta fábula pensou também Sua Senhoria em um corpo deleis ou no melhor dos Estados, ou em uma comunidade exem-plar. Mas, prevendo tratar-se de empresa prolongada, desviou-

-o seu desejo de compilar a História natural, colocada muitos

graus antes desta obra.

Mas não caberia perguntar se o Lord Chancelar, realis-ta político adversário do "deveria ser", não nos deixou umaobra deliberadamente inacabada no sentido exotérico queJ. Delumeau (ver Capítulo III, p. 77) atribui, ao menos

potencialmente, a certas obras de Leonardo e Michelangeloe que seria uma característica da época?

E, por último, não se pode esquecer que Bacon equacio-nava "aforismo" — forma eminentemente argumentativa —a "parábola" e "fábula"' . Bacon usou extensivamente os afo-rismos — em sua época estabelecidos principalmente deGaleno, pela sua exaustiva aplicação A. lei civil, e pelo seuuso na observação do homem na sociedade, isto é, na policyrenascentista, ou prudentia. Nestas três instâncias, o afo-rismo não é apenas uma observação nem um gênero artísti-co, mas um incentivo à ação (e constitui uma forma de comu-nicação de grande importância na obra de Maquiavel). Maso que nos importa aqui, sobretudo, é o caráter desnarrati-zante desta forma.

Assim, argumentar através da narrativa e considerara veiculação de sabedoria por meio da desnarratização extre-mada do aforismo são apenas mais duas ambigüidadesenvolvendo este suposto cientista medieval e mago renas-centista, precursor da ciência moderna precisamente porse opor ao que a caracteriza; realista político admirador deMaquiavel e autor de uma utopia; que vê no véu um métodode exposição; que localiza nos antigos aprisca theologia her-mética e atribui ao mesmo tempo a ambigüidade e maturi-dade do mundo aos tempos modernosa ; e cujo projeto de res-tauração do conhecimento quer redimir o homem do PecadoOriginal e restituir-lhe o domínio sobre a natureza atravésde uma ciência reformada (como se se tratasse de provarnovamente do fruto do conhecimento, mas desta vez agrade-cendo o repasto ao Senhor com a prece de praxe, embora cor-rendo o risco de "acender fogos estranhos em Seu altar").

NOTAS DO CAPÍTULO V

' Anderson (1971, cap. V e VI), por exemplo, neste estudo sobre Bacon, aoabordar o materialismo deste, parte exatamente de sua interpretação dafábula; Rossi (1968, p. 132) chama a atenção para o interesse da relaçãoentre as teorias físicas expostas nessas obras e no De augmentis.

14 6 147

Page 75: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

z Cf. Rossi (1968, pp. 130-31). Daí sua condenação aos alquimistas e magospor quererem conquistar o mundo por meio de milagres e não pelo suor dorosto. Também seu ataque a Aristóteles, cuja filosofia infrutífera é um obs-táculo à recuperação do bem-aventurado controle do universo. A filosofiatradicional queria "imprimir sua marca na realidade, ao invés de descobrira de Deus" — ao invés de, como vimos na fábula de Pan, aprender a lerhumildemente o grande livro do mundo.Há ainda uma outra ambigüidade na relação de Bacon com a sabedoria dosmitos e com os tempos antigos na medida em que ele afirma a superiorida-de do presente sobre o passado — ver Nouum organum, I, 84 (reproduzidoadiante, na nota 6) sobre a juventude e a velhice do mundo. Isto se relacio-na à sua refutação das filosofias tradicionais. Os mitos são expressão de

um passado perdido, refletindo a redenção parcial dos pecados, mas a este-rilidade da filosofia grega e de seus herdeiros perpetua a perda do poderoriginal do homem sobre a natureza.Neither let it be deemed too saucy a comparison to balance the highest pointof man's wit with the efficacy of nature, but rather give right honour to theMaker of that maker, who, having made man in his own likeness, set himbeyond and over all the works of that second nature; which in nothing heshoweth so much as in poetry, when with the force of a divine breath hebringeth things forth far surpassing her doings, with no small argument tothe incredulous of that first accursed fall of Adam, sith our erected witmarketh us know what perfection is and yet our infected will keepeth usfrom reaching unto it. (Sidney, 1956, p. 8)Observe-se em meio às referências ao Gênesis, os conceitos platônicos e neo-platônicos de sopro divino e perfeição. Cf. Tillyard (1966, pp. 33-4).

' Na tradição gramatical, em oposição à alegoria hermenêutica da tradiçãofilosófica — cf. Capítulo II, pp. 57-8. Para a discussão da utopia comosubgênero da sátira, ver Capítulo I, pp. 21-2.

5 The advancement of learning, III, 448. Na época de Bacon o aforismo era

um recurso bastante considerado por assegurar controle firme mas flexívelsobre um argumento inteiro. No Dr. Faustus de Marlowe, por exemplo(II, 42-50):Why Faustus, has thou not attaind that end? Is not thy commom tallk foundAphorismes? Are not thy billes hung up as monuments...?Bacon empregou esta forma em Maxims of the Law (1596), onde ela é i m-portante porquewe see that all the ancient wisdom and science was wont to be deliueered inthat form, as may be seen by the parables of Solomon, and by the aphorismsof Hippocrates, and the moral verses of Theognis and Phocylides; but chieflythe precedent of the civil law, which hath taken the same course with theirrules, did confirm me in my opinion. (7.321)Para um estudo do aforismo em Bacon ver Vickers (1968, pp. 60-5) e co-mentários de Jardine (1974, pp. 176-78).VerNovum organum, I, 84:Deve-se entender mais corretamente por antigüidade a velhice e a maturi-dade do mundo e deve ser atribuída aos nossos tempos e não à época emque viveram os antigos, que era a do mundo mais jovem. Com efeito, aquelaidade que para nós é antiga e madura é nova e jovem para o mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO; HORKHEIMER1985 Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar.

ALBERTO, O GRANDE1974 Le compose des composes. Milano, Arché.

ALLEAU, R.

1953Aspects de l'alchimie traditionnelle. Paris, Minuit.ANDERSON, F.

1971 The philosophy of Francis Bacon. Ney York, Octagon.ANÓNIMO

1977Le tourbe des philosophes. Paris, Jobert.ARENDT, H.

1987 Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras.ARISTÓTELES

1944Art rhétorique et art poétique. Paris, Garnier.AUERBACH, E.

1971 Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. SãoPaulo, Perspectiva. (Estudos, 2.)

1973 Scenes from the drama of european literature. Massachussets, PeterSmith.

BACHELARD, G.1957 La formation de l'esprit scientifique. Paris, Vrin.

BACON, FRANCIS1657 De sapientia veterum. Lugduni Batavorum, J. Maire (Bibliothèque

Nationale, Paris – microfilme).

148 149

Page 76: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

1859 The works of Francis Bacon. Ed. Spedding, Ellis, Heath, London (fac-simile Friedrich Frommann Verlag Gunther Holyboog, Stuttgart-Bad

Cannstatt, 1963).1905 Works (Philosophical works). Reprinted from the texts and translations

of Ellis and Spedding, edited by John M. Robertson. London.

1952 Ensaios. Lisboa, Guimarães.1963 Essays. New York, Washington Square Press.

1965 Opere filosofiche. Ed. De Mas, Bari, Laterza.

1973 Novum organum. São Paulo, Abril.

BACON, ROGER1974 Miroir d'alchimie. Milano, Arche.

1977 Lettre stir les prodiges de la nature et de l'art. Paris, Echelle.

BAKHTIN1970 La poétique de Dostoievski. Paris, Seuil.

1978 Esthétique et théorie du roman. Paris, Gallimard.

BALDWIN, C. S.

1971 Ancient rhetoric and poetic. Conn., Greenwood.

BARTHES, R.1972 Mudar o próprio objeto. In: _.Atualidade do mito. São Paulo, Duas

Cidades.1975 A retórica antiga. In:- Pesquisas de retórica. Rio de Janeiro, Vo-

zes.BEER, G.

1986 Darwin's plots. s.l. Cambridge University Press.

BENJAMIN, W.1980 0 narrador, observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: - Os

pensadores. São Paulo, Abril, v. XLVIII.1986 Documentos de cultura/documentos de barbárie. São Paulo, Cultrix/

Edusp.BIDNEY, D.

1966 Myth, symbolism and true. In: VIcxERY (org.) Myth and literature.Lincoln, University of Nebraska Press.

BLOCH, E.

1972 La philosophie de la Renaissance. Paris, Payot.

BOCCACCIO, G.1472 De genealogiis deorum gentilium. s.l., s.ed.

BOUCHÉ-LECLERCQ, A.1989-82Histoire de la divination da ps l'antiquité. Paris, s.ed., apud Buffiere,

1956, p. 56.BRÉHIER, E.

1962 Historia de la filosofia. Buenos Aires, Sudamericana, v. 1 e 2.

1970 La théorie des incorporels dans l'ancien stolcisme. Paris, Vrin.

BROCH, H.1966 L'héritage mythique de la littérature. In: Création littéraire et

conaissance. Paris, Gallimard.BUFFIERE, F.

1956 Les mythes d'Homère et la pensée grecque. Paris, Les Belles Lettres.BURCKHARDT, T.

s./d. L'alchimie, science et sagesse. Paris. Planète.1972 Alchimie, sa signification et son image du monde. Milano, Thoth.

BURNET, J.1950 Greek philosophy. London, Macmillan.

BusH, D.1932 Mythology and the Renaissance tradition in english poetry.

Minneapolis, University of Minnesota Press.

CAMPBELL, J.1976 The masks of God: occidental mythology. London, Penguin.

CANDIDO, ANTONIO

1987 A timidez no romance. In: A educação pela noite & outros ensai-os. São Paulo, Ática.

CANSELIET, E.1953 Introdução a Frère Basile VALENTIN (1956).

CASSIRER, R.1951 Indivíduo y cosmos en la filosofia del Renascimiento. Buenos Aires,

Emecé.CHASSANG, A.

1948 Historia de la novela y sus relaciones con la historia en la antigüedadgriega y latina. Buenos Aires, Joaquin Gil.

CÍCERO

1961 De natura deorum academica. Massachussets, Harvard UniversityPress.

COMES, N.

1567 Mythologie, sive explicationis fabularum libri decem. Veneza, s.ed.CORNFORD, F. M.

1981 Principium sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Gulbenkian, Lisboa.

Cox, M.

1968 The background to english literature: 1603-60. In: From Donne toMarvell. London, Penguin.

CURTIUS, E. R.1957 Literatura européia e Idade Média latina. Rio de Janeiro, INL.

DAUMAS, M. (ORG.)1957 Histoire de la science, des origines au Xx' siècle. Paris, Pléiade.

15 0 151

Page 77: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

DEAN, L. F.1968 Sir Francis Bacon's theory of civil history writing. InEssencial articles

for the study of Francis Bacon. London, Sidgwick & Jackson.

DECHARME, P.1904 La critique des traditions religieuses chez les grecs, des origines au

temps de Plutarque. Paris, Picard et Fils.

DELU1y1EAU, J.1984 A civilização do Renascimento. Lisboa, Estampa.

DE MAN, P.1971 Lyric and modernity. In: Blindness & insight, essays in the

rhetoric of contemporary criticism. NewYork, Oxford University Press.

DETIENNE, M.1981a Les maitres de verité dons la Grèce archa'ique. Paris, Maspero.

1981b L'invention de la mythologie. Paris, Gallimard.

DIEL, PAUL1976 El simbolismo en la mitologia griega. Barcelona, Labor.

DIXON, P.1977 Rhetoricl. London, Methuen.

DONNE, J.1967A selection of his poetry. London, Penguin.

Eco, U.1989 Arte e beleza na estética medieval. São Paulo, Globo.

ELUDE, M.1979a Ferreiros e alquimistas. Rio de Janeiro, Zahar.

1979b Ocultismo, bruxaria e correntes culturais, ensaios em religiões com-paradas. Belo Horizonte, Interlivros.

ESQUILO1976 Prometheus bound. London, Penguin.

FARRINGTON, B.1952 Francesco Bacone, filosofo dell'età industriale. Torino, Einaudi.

1960 The philosophy of Francis Bacon. Chicago, University of Chicago Press.

FESTUGIERE, A. J.1960 Epicuro y sus dioses. Buenos Aires, Eudeba.

FORD, B. (ED.)1955 The age of Shakespeare. London, Penguin.

FRIEDRICH, H.1978 Estrutura da lírica moderna. São Paulo, Duas Cidades.

FRYE, N.1973 Anatomy of criticism. New Jersey, Princeton University Press.

1978 The secular scripture. Massachussets, Harvard University Press.

FUNK & WAGNALLS STANDARD DICTIONARY1972 Funk & Wagnalls standard dictionary of folklore, mythology and

legend. New York, Funk & Wagnalls.

GANDILLAC, M.

1960 Mythe et allégorie. In: Revue Philosophique, Paris, n. 2, avr.(juin.GARIN, E.

1988 O Zodíaco da vida, a polêmica sobre a astrologia do séc. XIV ao séc.XVI. Lisboa, Estampa.

1989 Idade Média e Renascimento. Lisboa, Estampa ;

GARNER, B. C.

1970 Francis Bacon, Natalis comes and mythological tradition. In: Journalof the Warburg and Courtland Institutes, xxxiii.

GEBER

1976 La somme de la perfection ou l 'abregé du magistere parfait. Paris, LaMaisnie, second livre, deuxième partie, XXX.

GOETHE1936Máximas e reflexões. Paris, Gallimard.

GOLDSCHMIDT, V.

1963 A religião de Platão. São Paulo, D.E.L.GRAVES, ROBERT

1975 The greek myths. London, Penguin. (2 vols.)GUENON, RENÉ

1921 Le théosophisme, histoire d'une pseudo-religion. Paris, s.ed.GUSDORF, G.

1967 Les origines des sciences humaines. Paris, Payot.1969 La révolution galiléenne. Paris, Payot.

HALL, A. R.1972 The scientific revolution 1500-1800. Boston, Beacon Press.

HARRISON, J. L.

1972 Bacon's view of rhetoric, poetry and the imagination. In: VICKERS, B.,ed. Essential articles for the study of Francis Bacon. London, Sidgwick& Jackson.

HARVEY, P. (ED.)1946 The Oxford companion to classical literature. London, Oxford

University Press.HAUSER, A.

1976 O maneirismo. São Paulo, Perspectiva.HAYDN, M.

1966 The Counter-Renaissance. Massachussets, Peter Smith.

152 153

Page 78: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

HEIDEGGER, M.1961 Qu'apelle-t-on penser? Paris, P.U.F.

HERACLITO1962 Allegories d'Homère. Paris, Les Belles Lettres.

HESÍODO1967 Théogonie et Les travaux et les jours. Paris, Les Belles Lettres.

HIGIIET, G1672 The anatomy of satire. New Jersey, Princeton University Press.

1973 The classical tradition. New York, Galaxy.HOWELL, W. S.

1956 Logic and rhetoric in England, 1500-1700. New Jersey, Princeton

University Press.HUIZINGA, J.

1978 0 declínio da Idade Média. São Paulo, Verbo/Edusp.

JARDINE, L.1974 Francis Bacon, discovery and the art of discourse. Cambridge,

Cambridge University Press.JOLLES, A.

1976 Formas simples. São Paulo, Cultrix.JONSON, B.

1956 The alchemist. New York, Collier.

KERMODE, FRANK1980 The genesis of secrecy – on interpretation of narrative. Massachussets,

Harvard University Press.KIRK, G. S.

1977 The nature of greek myths. London, Penguin.

LA TOURBE1977 La tourbe des philosophes. Paris, Jobert. (obra anônima)

LACOUE-LABARTHE, P.1970 La fable (littérature et philosophie). In: Poétique, Paris, n. 1, pp. 51-

63.LAMBERTON, R. L.

1986 Homer the theologian: neoplatonist allegorical reading and the growthof the epic tradition. Berkeley, University of California Press.

LAUSBERG, H.1972 Elementos de retórica literária. Lisboa, Gulbenkian.

LEMMI, C. W.1933 The classic deities in Bacon: a study in mythological symbolism.

Baltimore.

154

LÉVI-STRAUSS, C.1964 Le cru et le cuit. Paris, Plon.

LEWIS, C. S.1954 English literature in the sixteenth century excluding drama. Oxford,

Oxford University Press.LINDEN, S. J.

1974 Francis Bacon and alchemy: the reformation of Vulcan. In: Journalof the History of Ideas. 35 (4), Oct./Dec. 1974.

LORD, G. F.1956 The Renaissance, the "Odissey" of George Chapman. London, Chatto

& Windus.

MACRÓBIO1937 Les saturnales. Paris Garner.

MAGALHAES VILHENA, V.1960 Bacon et 1'antiquité. In: Revue Philosophique. Paris, pp. 181-84.1961 Bacon et 1'antiquité. In: Revue Philosophique. Paris, pp. 25-8.1962 Bacon et 1'antiquité. In: Revue Philosophique. Paris, pp. 21-35.1965 Bacon et 1'antiquité. In: Revue Philosophique. Paris, n. 2, pp. 465-

502.MAHONY, PATRICK

1987 Ben Jonson's "best pieces of poetry" and a comparison of their symbolicnuclear principle. In Psychoanalysis and Discourse. London,Tavistock.

MARLOWE, C.1956 The tragical history of doctor Faustus.New York, Collier.

MARROU, H. I.1938 Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris, s.ed.

MCRAE, R.1961 The problem of the unity of the sciences. From Bacon to Kant. Toron-

to, University of Toronto Press.MIRANDOLA, PICO DE

1942 Of the dignity of man. In: Journal of the history of ideas, III(3):352-53, June (trad. Elizabeth L. Forbes).

MuKARovsKY, J.1978 A denominação poética e a função estética da lingua. In: Círculo lin-

güístico de Praga. Porto Alegre, Globo.MURRAY, G.

1937 Literature of ancient Greece. New York, Appleton.

NESTLE, W.1940 Vom Mythos zum Logos. Die Selbstentfaltung des griechischen Denkens

von Homer bis auf die Sophistik and Sokrates. Stuttgart, s.ed.

155

Page 79: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

OsAKABE, H.1979 Argumentação e discurso político. São Paulo, Kairós.

Ov1DIo1953 Les metamorphoses. Paris, Garner.

OXFORD

1975 Oxford companion to classic literature. Oxford, Oxford University

, Press.

PANOFSKY, DORA; PANOFSKY, ERWIN

1975 La caja de Pandora, aspectos cambiantes de un simbolo mitico. Bar-

celona, Barral.PANOFSKY, ERWIN

1976 Significado nas artes visuais. São Paulo, Perspectiva.

PEPIN, J.1958 Mythe et allégorie, les origines grecques et les contestations judeo-

chrétiennes. Paris, Aubier.1976 L'herméneutique ancienne. In: Poétique, Paris, n. 23, pp. 291-300.

PERNETY, D.1972 Dictionaire mytho-hermetique. Paris, Den&el.

PLATÃO

1969 Oeuvres completes. Paris, Pléiade.

PLOTINO

1960 Ennéades. Paris, Les Belles Lettres.

PoE, E.A.

1938 The complete tales and poems of Edgar Allan Poe. New York, Modern

Library.

RABELAIS

1953 Gargantua. Paris, Pleiade.

REBECHESU, F.1924 L'interpretazione stoica del mito. Castello, "Atanòs" di Todi.

RICHARDS, I. A.

1932 Science and poetry. London, s.ed.

Rossi, P.1968 Francis Bacon, from magic to science. London, R&KP.

RUTHVEN, K. K.1976 Myth. London, Methuen.

SALINGAR, L. G.1973 The elizabethan literary Renaissance. In: The age of Shakeapeare.

London, Penguin.

SCHAERER, R.1958 L'homme antique. Paris, Payot.1969 La question platonicienne. Neuchâtel, Vrin.

SCHOELL, F. L.1926 Ètudes sur l'humanisme continental en Angleterre. Paris, Champion.

SCHOLLES, R.; KELLOGG, R.1977A natureza da narrativa. São Paulo, McGraw-Hill.

ScHum., P.-M.

1947 Ètudes sur la fabulation platocienne. Paris, P.U.F.1949 Pour connaire la pensée de Bacon, Paris, Bordas.

S&CHAN, L.1960 El mito de Prometeo. Buenos Aires, Eudeba.

SENA, J.1963 A literatura inglesa. São Paulo, Cultrix.

SEWELL, E.

1960 Bacon and Shakespeare: postlogical thinking. In: The orphicvoice, poetry and natural history. London, R&KP.

SIDNEY, P.1956An apology for poetry. In: English critical essays, XVI-XVIII centuries.

London, Oxford University Press.SILBERER, H.

1971 Hidden symbolism of alchemy and the occult arts. New York, Dover.SPENSER, E.

1984 The faerie queene. London, Penguin.SPINGARN, J. E.

1963 Literary cristicism in the Renaissance. New York, Hartcourt, Brace &World.

STANFORD, W. B.1968 The Ulisses theme, a study in the adaptability of a tradicional hero.

Oxford, Basil Blackwell.STRUBEL, A.

1976 "Allegoria infactis" e "allegoria in verbis". In: Poétique, Paris, n. 23.

THORNDIKE, L.

1953 The attitude of Francis Bacon and Descartes towards magic and occultscience. In: Science medicine and history. London, Oxford UniversityPress, v. 1.

TILLYARD, E. M. W.1966 The elizabethan world picture. London, Penguin.

TODOROV, T.1969 A narrativa primordial. In: _ As estruturas narrativas. São Pau-

lo, Perspectiva.

15 6 157

Page 80: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

1976 Présentation. In: Poétique, Paris, n. 23.

1979 Símbolo e alegoria. In: Teorias do símbolo. Lisboa, Edições 70.

TOLLIUS, JACOBUS

1699 Sapientia insaniens sive promissa chemica (A sabedoria louca ou as

promessas químicas). Amsterdã, apud Canseliet, Introdução a Frère

Basile VALENTIN (1956).TRAVELYAN, G. M.

1958 History of England. London, Longmans.

TRISMEGISTE, HERMES

1977 Les sept chapitres. Paris, Joubert.

URE, P.

1955 Chapman as translator and tragic playwright. In: The age ofShakespeare. London, Penguin.

VALENTIN, B.1956 Les douze clefs de la philisophie. Paris, Minuit.

1977 Le char trionphal de l'antimoine. Paris, Retz.

VERNANT, J.P.1965 Mythe et pensée chez les grecs. Paris, Maspero.

VEYNE, P.

1984 Acreditavam os gregos em seus mitos?. São Paulo, Brasiliense.

VICKERS, B.1968 Francis Bacon and Renaissance prose. Cambridge, Cambridge

University Press.VICKERS, B. (ED.)

1972Essential articles for the study of Francis Bacon. London, Sidgwick &

Jackson.

WALLACE, K. R.1943 Francis Bacon on comunication and rhetoric. s.l. The University of

North Carolina Press.1967 Francis Bacon on the nature of man's soul. Chicago, University of

Illinois Press.WARD, A. W.

1907 The Cambridge modern history. s.l. Cambridge University Press, v. 1.

WEINRICH, HARALD

1970 Structures narratives du mythe. In: Poétique, Paris, n. 1, pp. 25-34.

1973 Le temps. Paris, Seuil.WHITE, H. B.

1968 Peace among the willows, the political philosophy of Francis Bacon.Hague, Martinus Nijhoff.

WHITMAN, JON

1987 Allegory: the dynamics of an ancient and medieval technique.Massachussets, Harvard University Press.

WILLEY, B.1967 The seventeenth century background, studies in the thought of the age

in realtion to poetry and religion. London, Chatto and Windus.

YATES, F.

1969 The art of memory. London, Penguin.1987 Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo, Cultrix.

159158

Page 81: FINKER, Raul ConhecerESaberEmFrancisBacon

perdida que deve serrecuperada."A alegoria é interpretadaenquanto artificio retóricoclássico por Francis Bacon.Segundo ele, os antigosocultavam o conhecimentoquando recorriam à alegoria,superando o elementoargumentativo em função donarrativo.

O objetivo do trabalho de Fikeré a interpretação alegórica dosmitos clássicos e suas categoriasprincipais, física e moral. Oautor concentra-se na alegoriados antigos, vista comoprocedimento observado noRenascimento inglês porBacon, que não deixou,paradoxalmente, de recorrer aela em sua própria obra, comoartifício retórico.

Raul Fiker é, além de escritor,professor de Filosofia daUNESP - Araraquara, SãoPaulo. Publicou Vico, o

precursor, ensaio (1994, SãoPaulo, Moderna), e Oequivocrata, poesia (1976, SãoPaulo, Massao Ohno), entreoutros.