Fiodór Dostoievski - O grande inquisidor

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  • 2O GRANDE INQUISIDOR Fiodor Dostoivski

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  • 3O GRANDE INQUISIDOR

    - preciso, sob o ponto de vista literrio, que o meu poema tenha umprembulo. A aco passa-se no sculo XVI; bem sabes que era costume,nesta poca, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. No falo deDante(1). Em Frana, os clercs de la basoche(2) e os monges davamrepresentaes em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, ossantos, Cristo e Deus. Eram espectculos ingnuos. Na Nossa Senhora deParis, de Vtor Hugo, o povo convidado, no tempo de Lus XI, em Paris, eem honra do nascimento do Delfim, para uma representao edificante egratuita: O Bom Juzo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistrioaparece a prpria Virgem a pronunciar o seu bom Juzo. No nosso pas,em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos,representaes deste gnero, inspiradas sobretudo no Velho Testamento.Alm disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas emque figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exrcitoceleste. Nos mosteiros traduziam-se e copiavam-se estes poemas, ecompunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominao dos Trtaros.Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A

  • 4Virgem no Inferno com quadros duma audcia dantesca: a Virgem visita oInferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e v os condenados e os seustormentos; entre outros, h uma categoria muito interessante de pecadores:os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: so aquelesde que at Deus se esquece - expresso esta duma profundeza e dumaenergia notvel. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deuse pede o perdo de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distino; oSeu dilogo com Deus dum interesse extraordinrio; suplica, insiste e,quando Deus Lhe mostra os ps e as mos do Filho furados pelos pregos eLhe pergunta: Como poderia eu perdoar aos seus verdugos? -, ordena atodos os santos, a todos os mrtires, a todos os anjos que se ponham dejoelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, semdistino. Obtm, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desdeSexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno,agradecem a Deus e gritam: Senhor, a Tua sentena justa!. Pois bem: omeu poemazito teria sido deste gnero, se o tivesse escrito nessa poca.Deus aparece; no diz nada; s passa. Rodaram quinze sculos, depois queprometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: Cedovoltarei; quanto ao dia e hora, o Filho mesmo no os conhece; s o sabemeu Pai que est nos Cus, segundo as prprias palavras que pronunciouna Terra. E a humanidade espera-O com a mesma f que outrora, f maisardente ainda, porque j quinze sculos passaram depois que o Cu deixoude dar penhores aos homens: Cr no que te diz o corao; os Cus no dopenhores. verdade que se produziam ento numerosos milagres: os santosrealizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Cus visitava certos justos, aacreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo no dorme; ahumanidade comea a duvidar da autenticidade destes prodgios. Nestemomento, nasceu na Alemanha uma heresia terrvel que negava osmilagres. Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja,evidentemente!), caiu sobre as fontes das guas, que se tornaramamargas. A f dos fiis redobrou. As lgrimas da humanidade elevam-separa Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e tm esperana n'Elecomo outrora... J h tantos sculos que a humanidade roga com ardor:Senhor, digna-Te aparecer-nos, j h tantos sculos que para Ele voseus gritos, que, na Sua misericrdia infinita, quis descer junto dos fiis. Jantes tinha visitado, pelo que nos dizem os bigrafos, alguns justos,mrtires e santos anacoretas. Entre ns, Pintchev(3), que acreditavaprofundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que curvado aopeso da Sua cruz e com humilde aparncia, o Rei dos Cus te percorreu, terra natal, a abenoar-te toda.Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor emiservel, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama

  • 5ingenuamente. A aco passa-se em Espanha, em Sevilha, na poca maisterrvel da Inquisio, quando todos os dias, para glria de Deus, seacendiam as fogueiras e os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-f. Oh! no foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em todaa Sua glria, subitamente, como um relmpago que brilha de Oriente aOcidente. No; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em quecrepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericrdia, volta paraentre os homens com a forma que tinha durante os trs anos de vidapblica. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamentena vspera, em presena do rei, dos cortesos, dos cavaleiros, dos cardeaise das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar umacentena de hereges, ad majorem gloriam Dei(4). Apareceu suavemente,sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicao domotivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atrado por umafora irresistvel, o povo comprime-se Sua passagem e segue-Lhe ospassos. Silencioso, passa pelo meio da multido com um sorriso decompaixo infinita. Tem o corao abrasado de amor, dos olhos se Lhedesprendem a Luz, a Cincia, a Fora que irradiam e nas almas despertam oamor. Estende-lhes os braos, abenoa-os, e uma virtude salutar emana doSeu contacto e at dos Seus vestidos. Um velho, cego de criana, gritadentre o povo: Senhor, cura-me e ver-Te-ei; cai-lhe uma escama dosolhos e o cego v. O povo derrama lgrimas de alegria e beija o cho queEle pisa. As crianas deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todosgritam: Hossana! Ele, deve ser Ele, no pode ser seno Ele! Pra no adroda Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixozinho branco,com uma menina de sete anos, filha nica de um homem importante. Amorta est coberta de flores.- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multido para a me cheia delgrimas.O padre que viera ao encontro do caixo olha com ar perplexo e franze osobrolho. De repente, ouve-se um grito e a me lana-se-Lhe aos ps: Ses Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braos. O prstito pra,pousam o caixo nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua bocaprofere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se.Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar deespanto; segura nas mos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto nocaixo. Na gente que assiste, h perturbao, gritos e choros. Nesteinstante, passa pela praa o cardeal grande inquisidor. um velho alto,quase nonagenrio, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha,porm, uma centelha. No tem o vesturio pomposo com que no diaanterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigosda Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e aguarda do Santo Ofcio seguem-no a respeitosa distncia. Pra diante da

  • 6multido e observa-a de longe. Viu tudo, o caixo pousado perante Ele, aressurreio da criana - e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessassobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro claro. Aponta-O com odedo e ordena aos guardas que O prendam. To grande o seu poder e tohabituado est o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que amultido se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silncio demorte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um s homem, o povo inclina-seat o cho diante do velho inquisidor que o abenoa sem dizer palavra eprossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifcio daInquisio, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega anoite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar est todo perfumadode loureiros e limoeiros. De sbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro docalabouo e o grande inquisidor aparece, com um archote na mo. Est s ea porta se fecha por trs dele. Pra no limiar, considera longamente a FaceSagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:- s Tu, s Tu? - E, como no recebe resposta, acrescenta rapidamente: -No digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? J o sei de mais.No tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porquevieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o queacontecer amanh? Ignoro quem s e nem quero sab-lo: s Tu ousomente a Sua aparncia? Mas amanh hei-de condenar-Te e sersqueimado como o pior dos herticos e o mesmo povo que hoje Te beijava osps se precipitar amanh, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira.Sabes tudo isso? Talvez - diz ainda o velho, pensativo, com os olhos semprefixos no Preso.- No compreendo bem o que isso quer dizer, Iv - objectou Aliocha, quetinha escutado em silncio. - uma fantasia, um erro do velho, um estranhomal-entendido?- Admite essa ltima hiptese - respondeu lv, rindo - se o realismomoderno te tornou a esse ponto refractrio ao sobrenatural. Seja como tuquiseres. verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que asua ideia lhe tenha perturbado o espirito j h muito. Pode ser, enfim, umsimples delrio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginaoexcitada pelo corrente auto-de-f. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nosimporta? O que preciso notar somente que o inquisidor revela finalmenteo seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.- E o Preso no diz nada? Contenta-se em olhar?- Decerto. No tem outra coisa a fazer seno calar-se. O prprio velho lhefaz observar que no tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao quedisse antigamente. Na minha humilde opinio, esta talvez a caractersticafundamental do catolicismo romano: Tudo foi transmitido por Ti ao papa,tudo depende agora do papa; no venhas incomodar-nos, antes do tempo,pelo menos. Tal a doutrina deles; em qualquer caso, a dos Jesutas;

  • 7encontrei-a nos seus telogos. Tens Tu o direito de nos revelar um s dossegredos do mundo donde vens? - pergunta o velho que logo responde emlugar do Outro: No, no tens o direito de o fazer, porque esta revelaose juntaria de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade quetanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelaes infringiriam aliberdade da f, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima detudo, h quinze sculos, esta liberdade da f. No disseste Tu muitasvezes: Quero tornar-vos livres? Pois bem: l os viste, aos homenslivres - acrescenta o velho, com um ar sarcstico. Sim, custou-nos caro -prossegue, olhando-o, com severidade, mas, enfim, sempre completmosem Teu nome esta obra. Foram necessrios quinze sculos de rude trabalhopara instaurar a liberdade; mas est pronto, e bem pronto. No crs? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas bomsaberes que nunca os homens se julgaram to livres como hoje, e, contudo,depuseram a nossos ps, humildemente, a sua liberdade. esta a nossaobra, na verdade; a liberdade que Tu sonhavas?- No compreendo outra vez - interrompeu Aliocha; uma ironia dele, uma troa?- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido aliberdade, com o objectivo de tornar os homens felizes. Porque agora,pela primeira vez (fala da Inquisio, bem entendido), que se pode pensarna felicidade dos homens. So, por natureza, uns revoltados; podem osrevoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, no Te faltaram conselhos,mas no Te importaste, puseste de parte o nico meio de obter a felicidadepara os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido aobra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direitode ligar e desligar; no poderias agora pensar em nos retirares esse direito.Porque vieste incomodar-nos?- Que significa isso: No Te faltaram avisos e conselhos?- Mas o ponto capital do discurso do velho.O Esprito terrvel e profundo, o Esprito da destruio e do nada - continuaele - falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te tentou. verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as trsperguntas, ou, para falar como as Escrituras, as tentaes que repeliste?Se jamais houve na Terra um milagre autntico e retumbante, foi no diadessas trs tentaes. Basta o facto de se terem formulado as trsperguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam dasEscrituras, que era preciso reconstitui-las, imagin-las de novo para as prl outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sbios da Terra,homens de Estado, prelados, homens de cincia, filsofos, poetas, e se lhesdizia: Imaginai, redigi trs perguntas que no somente correspondam importncia do acontecimento, mas exprimam ainda, em trs frases, toda ahistria da humanidade futura; achas que este arepago da sabedoria

  • 8humana poderia imaginar alguma coisa de to forte e de to profundo comoas trs perguntas que te props ento o poderoso Esprito? Elas provam,sozinhas, que se tratava do Esprito eterno e absoluto, no dum espritohumano transitrio, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda ahistria posterior da humanidade; so as trs formas em que se cristalizamtodas as contradies insolveis da natureza humana. Nesse momento,ningum deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje,como passaram quinze sculos, vemos que tudo fora previsto nas trsperguntas e se realizou a tal ponto que impossvel juntar ou cortar uma spalavra.Decide Tu prprio quem tinha razo, Tu ou aquele que Te interrogava.Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com asmos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e asua ignomnia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhesfaz medo, porque nada h nem nunca houve to intolervel para o homem epara a sociedade! Vs estas pedras neste rido deserto? Transforma-as empes e a humanidade seguir os Teus passos, como um rebanho dcil ereconhecido, mas sempre com medo que a Tua mo se retire e que o po selhe acabe.Mas no quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando queele era incompatvel com a obedincia comprada como os pes. Replicasteque o homem no vive s de po; mas, sabes que em nome do poterrestre o Esprito da Terra se levantar contra Ti, lutar e Te h-de vencer,e que todos o ho-de seguir gritando: Quem se pode comparar com abesta que nos d o fogo do Cu? Ho-de passar os sculos e a humanidadeproclamar, pela boca dos seus homens de cincia e dos seus sbios, queno h crimes e que, por conseguinte, no h pecados: s h famintos.Alimenta-os e s depois podes exigir que sejam virtuosos! Eis o que seh-de inscrever no estandarte da revolta que abater o Teu templo.Elevaro em vez dele um novo edifcio, uma segunda torre de Babel que,sem dvida, como a primeira, ficar por terminar; mas poderias ter poupadoaos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Ho-de virprocurar-nos, depois de se terem esforado, durante mil anos, por construira sua torre. Ho-de procurar-nos debaixo do cho como outrora, nascatacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguiro denovo) e ho-de clamar: Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinhamprometido o fogo do Cu nada nos deram. Ento havemos de acabar atorre, porque para tal s preciso comida, e ns os alimentaremos, em Teunome, claro, e lho faremos crer. Sem ns, estaro sempre com fome.Nenhuma cincia lhes dar o po enquanto estiverem livres; e ho-de dep-la a nossos ps, a essa liberdade, e diro: Fazei de ns escravos, masalimentai-nos. Compreendero, enfim, que a liberdade inconcilivel como po da Terra discrio, porque nunca ho-de saber reparti-lo entre si!

  • 9Tambm se ho-de convencer da sua impotncia para se tornarem livres,porque so fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o po doCu; e, vamos l uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terraaos olhos da fraca raa humana, eternamente ingrata e depravada? Milharese dezenas de milhares de almas Te ho-de seguir por causa deste po, masque h-de ser dos milhes e dos bilies que no tiverem coragem de preferiro po do Cu ao po da Terra? No serias Tu amigo seno dos grandes e dosfortes, para quem os outros, a multido inumervel, que fraca, mas que Teama, serviria apenas de matria explorvel? Mas ns somos tambm amigosdos seres fracos. Embora depravados e revoltados, ho-de tornar-sefinalmente dceis. Ho-de admirar-nos e ho-de julgar-nos deuses portermos consentido, pondo-nos frente deles, em assegurar a liberdade quetemiam e em domin-los; tal ser, por fim, o seu medo de serem livres. Masdir-lhes-emos que somos Teus discpulos, que reinamos em Teu nome.Engan-los-emos de novo, porque nessa altura no deixaremos que Teaproximes de ns. E esta impostura que constituir o nosso sofrimento,porque seremos obrigados a mentir. este o sentido da primeira perguntaque Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdadeque punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Setivesses consentido no milagre dos pes, terias acalmado a eternainquietao da humanidade - indivduos e colectividade - : diante de quemse inclinar? Porque no h para o homem que ficou livre cuidado maisconstante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual seincline. Mas no quer inclinar-se seno diante de uma fora incontestada,que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal.Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reuna nosomente alguns fiis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pelamesma f. Esta necessidade do comum na adorao o principal tormentode cada indivduo e da humanidade inteira, desde o comeo dos sculos. para realizar este sonho que tem havido os extermnios a gldio. Os povosforjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: Abandona os vossosdeuses, adorai os nossos; seno, ai de vs e dos vossos deuses! E serassim at o fim do mundo, mesmo quando j os deuses tiveremdesaparecido; prostrar-se-o diante dos dolos. No ignoravas, no podiasignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repelistea nica bandeira infalvel que Te ofereciam e que teria curvado, semcontestao, todos os homens diante de Ti, a bandeira do po terrestre;repeliste-a em nome do po celeste e da liberdade! V o que fizeste depois,e sempre em nome da liberdade! No h, torno a dizer-Te, anseio maisdoloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possvel um ser aquem entregue este dom da liberdade que o desgraado traz ao nascer.Mas, para dispor da liberdade dos homens, necessrio dar-lhes a paz daconscincia. O po garantia-Te o xito; o homem inclina-se diante de quem

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    o d, porque coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie daconscincia humana, deixar o Teu po para seguir quem cativou a suaconscincia. Nisto tinhas Tu razo, porque o segredo da existncia humanaconsiste, no somente em viver, mas tambm em encontrar um motivo deviver. Sem uma ideia ntida do fim da existncia, o homem prefereabandon-la e, embora estivesse rodeado de montes de po, antes seriacapaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugarde Te apoderares da liberdade humana, foste alarg-la ainda mais!Esqueceste que o homem prefere a paz, e at a morte, liberdade dediscernir o Bem e o Mal? Nada h de mais sedutor para o homem do que olivre arbtrio, mas nada h tambm de mais doloroso. E, em vez deprincpios slidos que tivessem tranquilizado para sempre a conscinciahumana, escolheste noes vagas, estranhas, enigmticas, tudo o queultrapassa a fora dos homens; agiste, portanto, como se os no amasses,Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdadehumana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao sermoral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado,voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez dadura lei antiga, o homem devia, da por diante, discernir, de corao livre, oBem e o Mal, no tendo para o guiar seno a Tua imagem; mas no previasque por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade,porque estava esmagado pelo fardo terrvel da liberdade de escolher? Ho-de gritar que a verdade no estava em Ti; de outro modo, no os teriasdeixado em to angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantosproblemas insolveis. Preparaste assim a runa do Teu reino; no deves,portanto, acusar ningum dessa runa. Era isto, contudo, o que Tepropunham? H trs foras, as nicas que podem subjugar para sempre aconscincia destes fracos revoltados: so o milagre, o mistrio, aautoridade! A todas trs afastaste, dando assim um exemplo. O Espritoterrvel e fecundo transportara-Te ao pinculo do templo e dissera-Te:Queres Tu saber se s Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque est escritoque os anjos O ho-de sustentar e segurar e no Se ferir; ficars ento asaber se s o Filho de Deus e provars assim a Tua F em Teu Pai. Masrepeliste a proposta e no Te precipitaste. Mostraste nessa altura umaaltivez sublime, divina, mas os homens, raa fraca e revoltada, no sodeuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Teprecipitares, terias tentado o Senhor e perdido a F que n'Ele tinhas. Comgrande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaado na Terra que vinhassalvar. Mas haver muitos como Tu? Podes admitir por um instante que oshomens teriam a fora de resistir a semelhante tentao? prprio danatureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, peranteas questes capitais e dolorosas, entregar-se livre deciso do esprito? Oh!Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as

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    idades, atingiria as regies mais longnquas, e esperavas que, seguindo oTeu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre.Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre,porque sobretudo o milagre o que ele busca. E, como no era capaz depassar sem ele, forja novos milagres, os seus prprios milagres, e inclina-sediante dos prodgios dum mago, dos sortilgios de uma feiticeira, mesmoque seja um revoltado, um hertico, um mpio confesso. No desceste dacruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troa: Desce da cruz eacreditaremos em Ti. No o fizeste, porque no querias escravizar de novoo homem com um milagre; desejavas uma f que fosse livre e no inspiradapelo maravilhoso. Era-Te necessrio um livre amor, no os transportes dumescravo aterrado. Ainda a fazias uma ideia elevada dos homens, porque soescravos, embora tenham sido criados rebeldes. V e ajuza, aps quinzesculos: quem elevaste at junto de Ti? Posso jurar-to: o homem maisfraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo queTu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade.Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Tiprprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais deacordo com o Teu amor. So cobardes e fracos. Que importa que seinsurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? oorgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre.A alegria dos garotos acabar e custar-lhes- cara. Derrubaro os templos einundaro a Terra de sangue; mas percebero por fim, essas estpidascrianas, que no so mais do que fracos revoltados incapazes de manter asua revolta durante muito tempo. Derramaro lgrimas absurdas ecompreendero que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troar deles, comcerteza. Ho-de cham-Lo com desespero e esta blasfmia torn-los- aindamais infelizes porque a natureza humana no suporta a blasfmia e acabasempre por se vingar. A inquietao, as perturbaes, a infelicidade, eis aquio que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade!O Teu eminente profeta diz, na sua viso simblica, que viu todos os queparticipavam da primeira ressurreio, e que havia doze mil para cada tribo.Para serem to numerosos deviam ser mais do que homens, deviam serquase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados agafanhotos e a razes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos daliberdade, do livre amor, do sublime sacrifcio em Teu nome. Mas lembra-Tede que no eram seno alguns milhares e quase deuses; e o resto? culpadeles, dos outros, dos fracos homens, o no terem podido suportar o quesuportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de no poder conter doresto terrveis? S vieste para os eleitos? Nesse caso, um mistrio,incompreensvel para ns, e teramos o direito de o pregar aos homens, deensinar que no importam nem a livre deciso dos coraes nem o amor,mas sim o mistrio, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a

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    aprovao da sua conscincia. Foi o que ns fizemos. Corrigimos a Tua obrafundando-a sobre o milagre, o mistrio, a autoridade. E os homensalegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavamlivres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. No verdade quetnhamos razo para proceder assim? No era amar a humanidade,compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmoo pecado sua fraca natureza, contanto que fosse com permisso nossa?Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas emsilncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? prefervel que Tezangues, porque no quero o Teu amor: eu mesmo no Te amo. Porque ohei-de dissimular? Sei a quem falo, conheo o que tenho a dizer-Te, vejo-onos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez oqueiras ouvir da minha boca; aqui o tens. No estamos contigo, mas comele, e j h muito tempo. H exactamente Oito sculos que recebemos deleesta ltima ddiva que Tu afastaste com indignao quando ele te mostravatodos os reinos da Terra; aceitmos Roma e o gldio de Csar e declarmo-nos os nicos reis da Terra, se bem que no tenhamos tido tempo at agorade ultimar a nossa obra. Mas, de quem a culpa? O trabalho ainda est noprincpio, est longe do termo e a Terra ter ainda muito que sofrer, masns atingiremos o nosso objectivo, seremos csares; pensaremos ento nafelicidade universal.No entanto, poderias ter empunhado o gldio de Csar. Por que motivoafastaste esta ltima ddiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderosoEsprito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhordiante de quem se inclinem, um guarda da conscincia e o meio definalmente se unirem em concrdia num formigueiro comum, porque anecessidade da unio universal o terceiro e ltimo tormento da raahumana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendncia parase organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos dehistria gloriosa, mas, medida que se tm elevado, tm sofrido mais,porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da uniouniversal. Os grandes conquistadores, os Tamerlo e os Gengisco, quepercorreram a Terra como furaces, encarnavam tambm, sem disso teremconscincia, esta aspirao dos povos para a unidade. Aceitando a prpurade Csar, terias fundado o imprio universal e dado a paz ao mundo. Comefeito, quem pode dominar os homens seno aqueles que lhes dominam aconscincia e dispem do po? Tomamos o gldio de Csar e, ao faz-lo,abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! ho-de passar ainda sculos delicena intelectual, de v cincia e de antropofagia, porque por isso queho-de acabar, depois de terem edificado sem ns a sua torre de Babel.Ento a besta vir ter connosco, de rastos, lamber os nossos ps, reg-los- com lgrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no aruma taa em que estar gravada a palavra Mistrio! S ento a paz e a

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    felicidade reinaro entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas soapenas um escol, ao passo que ns daremos o repouso a todos. De resto,entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram deesperar, quantos levaram e continuaro a levar para outros pontos as forasdo seu esprito e o ardor do seu corao, quantos acabaro por se insurgircontra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos oshomens felizes, cessaro as revoltas e chacinas que so inseparveis da Tualiberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que no sero verdadeiramentelivres seno abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremosa verdade ou mentiremos? Eles prprios se convencero de que falamos averdade, porque se ho-de lembrar da escravatura e da perturbao em queos tinha lanado a Tua liberdade. A independncia, o pensamento livre, acincia, ho-de perd-los num tal labirinto, ho-de p-los em presena detais prodgios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruiro asi prprios, outros, rebeldes, mas fracos, multido de cobardes e demiserveis, se ho-de arrastar aos nossos ps em clamores: Sim, tnheisrazo, s vs possus o seu segredo e a vs regressamos; salvai-nos de nsmesmos! Sem dvida, ao receberem de ns os pes, vero bem que so osseus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu prprio trabalho, para osdistribuirmos, sem nenhum milagre; vero bem que no mudamos aspedras em po, mas o receb-lo das nossas mos dar-lhes- mais prazer doque o prprio po. Ho-de lembrar-se de que outrora esse po, fruto do seutrabalho, se lhes mudava em pedra nas mos, ao passo que depois, quandovoltaram a ns, as pedras se transformaram em po. Compreendero ovalor da submisso definitiva. E, enquanto o no compreenderem, oshomens sero infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para estaincompreenso? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradasdesconhecidas? Mas o rebanho se reunir de novo, voltar obedincia e,ento, ser para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda,uma felicidade adaptada s criaturas fracas que eles so. Havemos depersuadi-los de que no se orgulhem, porque foste Tu, ao elev-los, quemlho ensinou; havemos de provar-lhes que so dbeis, que so umaslamentveis crianas, mas que a felicidade infantil a mais deliciosa.Tornar-se-o tmidos, no nos perdero de vista e apertar-se-o a ns,cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da me. Ho-desentir uma receosa surpresa e mostrar-se-o orgulhosos da energia e dainteligncia que nos tero permitido domar a inumervel multido dosrebeldes. A nossa clera f-los- tremer, encher-se-o de timidez, e os olhosse lhes velaro de lgrimas como nas crianas e nas mulheres; mas, a umsinal nosso, passaro com a mesma facilidade para o riso e para a alegria,para o radioso jbilo das crianas.Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas derepouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos,

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    coros e danas inocentes. Oh! permitir-lhes-emos at que pequem, porqueso fracos, e por isso nos ho-de amar como crianas. Dir-lhes-emos quetodo o pecado ser redimido, se o cometerem com permisso nossa; poramor que os deixaremos pecar e sobre ns recair o castigo. Ho-de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecadosdeles. No tero para ns nenhuns segredos. Segundo o grau de obedincia,permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou asamantes, que tenham filhos ou no os tenham; e ho-de escutar-nos comalegria. Ho-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da suaconscincia; resolver-lhes-emos todos os casos e ho-de aceitar a nossadeciso com alegria, porque lhes poupar o grave cuidado de escolherempor si prprios, livremente. E todos sero felizes, milhes de criaturas,excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto ns, os depositrios do segredo.Os felizes ho-de contar-se por bilies e haver cem mil mrtires sob acarga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrero pacificamente,suavemente se extinguiro em Teu nome, e no Alm nada encontraroseno a morte. Mas guardaremos o segredo: embal-los-emos, para suafelicidade, com uma recompensa eterna no Cu. Porque, se houvesse outravida, no seria decerto para seres como eles. Profetiza-se que Tu voltarspara vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nsdiremos que s se salvaram a si prprios, ao passo que ns salvmos omundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mo ataa do martrio, ser desonrada; que os fracos se revoltaro de novo, lherasgaro a prpura e desnudaro seu corpo impuro. Ento eu melevantarei e mostrarei os bilies de felizes que no conheceram o pecado. Ens, os que tivermos tomado sobre ns as faltas deles, para sua felicidade,erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: No Te receio; tambm estive nodeserto, tambm vivi de gafanhotos e de razes; tambm abenoei aliberdade com que favoreceste os homens, tambm me preparava parafigurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardentedesejo de completar o nmero. Mas dominei-me e no quis servir umacausa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra.Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes.Suceder o que Te disse e edificar-se- o nosso imprio. Repito-Te: amanh,a um sinal que eu fizer, vers o dcil rebanho trazer brasas para a fogueira aque hs-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se algum mereceumais que todos a fogueira, esse algum s Tu. Amanh, queimar-Te-ei.Dixi.Iv parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lheum sorriso nos lbios.Aliocha tinha escutado em silncio, com extrema emoo. Por vrias vezestinha querido interromper o irmo, mas tinha-se contido.- Mas... absurdo! - exclamou, corando. - O teu poema um elogio a Jesus,

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    no uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste daliberdade? Ser assim que temos de a entender? essa a concepo daIgreja ortodoxa? Roma, e nem toda ainda, so os piores elementos docatolicismo, os inquisidores, os Jesutas. No existem personagensfantsticas como o teu inquisidor. Quais so esses pecados dos outros queele toma sobre si? Quais so esses detentores do mistrio que se carregamde maldies para bem da humanidade? Quando que se viu coisasemelhante? Conhecemos os Jesutas, diz-se muito mal deles; mas sosemelhantes aos teus? De modo algum! simplesmente o exrcito romano,o instrumento da futura dominao universal, tendo frente um imperador,o pontfice romano... Eis o ideal que eles tm; no h a nenhum mistrio,nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobia dos vis bensterrestres... uma espcie de futura servido em que deles seriam todos osbens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo no acreditem em Deus. O teuinquisidor no mais do que uma fico.- Espera, espera - disse-lhe rindo lv. - Como tu te exaltas! Uma fico?Seja, evidentemente. No entanto, crs tu que todo o movimento catlico dosltimos sculos seja inspirado somente pela sede do poder, que no tenhaem vista seno os bens terrestres? No o Padre Paisius quem te ensinaisso?- No, no, pelo contrrio. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo astuas vistas... mas no era precisamente a mesma coisa.- A est uma informao preciosa, apesar do teu no era precisamente amesma coisa. Mas por que razo os Jesutas e os inquisidores se teriamunido s em vista da felicidade terrestre? No se poder encontrar entre elesum mrtir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supeque entre esses seres, que no anseiam por outra coisa seno pelos bensmateriais, h um s como o meu velho inquisidor que viveu de razes nodeserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir aperfeio; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vtudo claro, reconhece que medocre felicidade a de chegar a uma liberdadeperfeita, quando milhes de criaturas continuam para sempre na desgraa,fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes dbeis revoltadosnunca podero acabar a sua torre e que no foi para tais gansos que ogrande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudoisto, o meu inquisidor volta para trs e junta-se s pessoas inteligentes. impossvel?- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quasezangado. - No so tal inteligentes, no tm mistrios nem segredos... Oatesmo, eis o segredo. O teu inquisidor no cr em Deus.- Bem, suponhamos que assim. Adivinhaste, finalmente. isso mesmo,todo o segredo est a. Mas no um sofrimento, pelo menos para umhomem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e no

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    deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-seclaramente de que s os conselhos do grande e terrvel Esprito poderiamtomar suportvel a existncia dos dbeis revoltados, esses seres de aborto,criados por troa. Compreende que deve escutar o Esprito profundo, esteEsprito de morte e de runa e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude,levar conscientemente os homens para a morte e para a runa, enganando-os durante todo o caminho, para lhes no revelar onde os levam e para queos pobres cegos tenham a iluso da felicidade. Nota isto: a fraude em nomede Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a suavida! No isto uma infelicidade? E se houver algum, se houver um shomem semelhante frente deste exrcito vido do poder apenas para osvis bens, no bastar isto para que se d uma tragdia? Mais ainda: bastaum nico chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia directriz docatolicismo romano, com os seus exrcitos e os seus jesutas, a ideiasuperior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homemdeste tipo frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre ospontfices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama toobstinadamente a humanidade, sua maneira, exista ainda agora em vriosexemplares, no por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento,duma liga secreta, organizada j h muito tempo para guardar o mistrio,ocult-lo aos desgraados e aos fracos para os tornar felizes. Deveseguramente ser assim; fatal. Imagino mesmo que a maonaria tem ummistrio anlogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que oscatlicos odeiam tanto os maes; vem neles concorrentes, vem nelesuma disperso da ideia nica, quando deve existir apenas um rebanho comum nico pastor. Mas basta: no quero ter, com esta defesa do meupensamento, o ar de um autor que no suporta a tua crtica.- Talvez tu sejas tambm mao - disse de sbito Aliocha. - No acreditasem Deus - continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido tambm queo irmo o contemplava com ar de troa. - Como acaba o teu poema? -prosseguiu ele, baixando os olhos. - No h mais nada?- H. O fim que eu tinha pensado era este: O inquisidor cala-se, espera ummomento a resposta do Preso. O Seu silncio oprime-o. O Cativo escutou-osempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a nolhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa,mesmo que fossem palavras amargas e terrveis. De repente, o Presoaproxima-se em silncio do nonagenrio e beija-lhe os lbios exangues. Maisnenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lbios; vai at porta, abre-a e diz: Vai e nunca mais voltes... nunca mais. E deixa-o ir,nas trevas da cidade. O Preso vai.- E o velho?- O beijo queimou-lhe o corao, mas persiste na sua Ideia.

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    Notas:1 Poeta Italiano, autor, entre outras obras, de Vita Nuova e d'A DivinaComdia, de que existe traduo portuguesa, viveu de 1265 e 1321.2 Funcionrios Judiciais.3 Poeta russo, defensor da santidade da Rssia; viveu de 1803 a 1873.4 Para maior glria de Deus.

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