Fisica e o teatro

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7 Física na Escola, v. 2, n. 1, 2001 A ciência nunca andou separada da arte; vários grandes cientistas tiveram algum tipo de engajamento artístico, e vários pensadores engajaram-se na ciência. Este artigo apresenta uma proposta para tornar o ensino da física na escola também uma atividade artística. Física e Teatro A rquimedes, Einstein, Curie, Darwin, Freud, Galileu, Oswaldo Cruz, Robert Fulton... são nomes distantes, no tempo e no espaço, de nossos alu- nos, certo? Errado! Pelo menos não para os alunos do Colégio Arnaldo, escola da rede particular de ensino de Belo Horizonte. Desde 1998, du- rante o Prêmio Janssen de Teatro, todos os alunos do 1º ano do ensino médio têm um contato muito forte com esses e outros grandes nomes que marcaram a história da hu- manidade. Tal prê- mio consegue sin- tetizar a beleza e competitividade de um festival de tea- tro ao mesmo tempo que é uma das mais impor- tantes atividades pedagógicas da escola. Atividades de teatro, de certa ma- neira, já não são novidade no universo da educação básica, principalmente quando incentivadas por professores da área de humanas. O inovador nesta proposta é a utilização do teatro como estratégia de avaliação e aprendiza- gem, além de um caráter competitivo, já que os grupos (de alunos) estão concorrendo, paralelamente ao pro- cesso pedagógico, em um concurso nos moldes do internacionalmente conhecido “Oscar”. Outro diferencial do projeto está baseado no fato de ter sido idealizado por professores de física, em conjunto com uma profes- sora de história e os professores de artes cênicas da escola. Em especial, esta atividade de tea- tro surgiu da necessidade de se abor- dar a história dos fatos durante as aulas de física e na importância de explorarmos o aluno em toda a sua essência. Para falar a verdade, qual- quer conteúdo, independente da disciplina, deveria ser abordado dentro de um contexto histórico pertinente. Afinal a ciência, assim como a nossa própria história, também é construída por seres humanos. Este trabalho vem fazendo parte das avaliações pon- tuadas dos alunos, pois nós professores acreditamos que a prova escrita não deve ser a única ma- neira de se avaliar a aprendizagem do aluno. Ou melhor, certas habilidades e competências que desejamos propor- cionar aos nossos estudantes são melhor avaliadas com atividades prá- ticas dessa natureza, ao invés de uma prova escrita e individual. E tratando- se de uma peça de teatro, o trabalho se torna muito mais do que uma avaliação, talvez possamos afirmar que ele passa a ser um rico momento de aprendizagem. Um trabalho nesses moldes se jus- tifica, pois estamos proporcionando ao aluno um desenvolvimento de seu potencial artístico no campo da interpretação e da produção literária para teatro, além de permitir-lhe conhecer a vida e a obra de grandes cientistas e descobrir que a ciência é Renato Júdice ([email protected]) É mestrando da Faculdade de Educação da UFMG em Belo Horizonte – MG. Glênon Dutra ([email protected]) É pós-graduando do CECIMIG/UFMG em Belo Horizonte - MG. Proporciona-se ao aluno o desenvolvimento de seu potencial artístico e permitir- lhe conhecer a vida e a obra de grandes cientistas e descobrir que a ciência é feita por homens de carne e osso, não muito diferentes deles próprios

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A ciência nunca andou separada da arte; váriosgrandes cientistas tiveram algum tipo deengajamento artístico, e vários pensadoresengajaram-se na ciência. Este artigo apresentauma proposta para tornar o ensino da físicana escola também uma atividade artística.

Física e Teatro

Arquimedes, Einstein, Curie,Darwin, Freud, Galileu,Oswaldo Cruz, Robert

Fulton... são nomes distantes, notempo e no espaço, de nossos alu-nos, certo? Errado! Pelo menos nãopara os alunos do Colégio Arnaldo,escola da rede particular de ensinode Belo Horizonte. Desde 1998, du-rante o Prêmio Janssen de Teatro,todos os alunos do 1º ano do ensinomédio têm um contato muito fortecom esses e outros grandes nomesque marcaram ahistória da hu-manidade. Tal prê-mio consegue sin-tetizar a beleza ecompetitividade deum festival de tea-tro ao mesmotempo que é umadas mais impor-tantes atividadespedagógicas da escola.

Atividades de teatro, de certa ma-neira, já não são novidade no universoda educação básica, principalmentequando incentivadas por professoresda área de humanas. O inovador nestaproposta é a utilização do teatro comoestratégia de avaliação e aprendiza-gem, além de um caráter competitivo,já que os grupos (de alunos) estãoconcorrendo, paralelamente ao pro-cesso pedagógico, em um concursonos moldes do internacionalmenteconhecido “Oscar”. Outro diferencialdo projeto está baseado no fato de tersido idealizado por professores defísica, em conjunto com uma profes-sora de história e os professores de

artes cênicas da escola.Em especial, esta atividade de tea-

tro surgiu da necessidade de se abor-dar a história dos fatos durante asaulas de física e na importância deexplorarmos o aluno em toda a suaessência. Para falar a verdade, qual-quer conteúdo, independente dadisciplina, deveria ser abordado dentrode um contexto histórico pertinente.Afinal a ciência, assim como a nossaprópria história, também é construídapor seres humanos. Este trabalho vem

fazendo parte dasavaliações pon-tuadas dos alunos,pois nós professoresacreditamos que aprova escrita nãodeve ser a única ma-neira de se avaliar aaprendizagem doaluno. Ou melhor,certas habilidades e

competências que desejamos propor-cionar aos nossos estudantes sãomelhor avaliadas com atividades prá-ticas dessa natureza, ao invés de umaprova escrita e individual. E tratando-se de uma peça de teatro, o trabalhose torna muito mais do que umaavaliação, talvez possamos afirmarque ele passa a ser um rico momentode aprendizagem.

Um trabalho nesses moldes se jus-tifica, pois estamos proporcionandoao aluno um desenvolvimento de seupotencial artístico no campo dainterpretação e da produção literáriapara teatro, além de permitir-lheconhecer a vida e a obra de grandescientistas e descobrir que a ciência é

Renato Júdice ([email protected])É mestrando da Faculdade de Educaçãoda UFMG em Belo Horizonte – MG.

Glênon Dutra ([email protected])É pós-graduando do CECIMIG/UFMGem Belo Horizonte - MG.

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Proporciona-se ao aluno odesenvolvimento de seu

potencial artístico e permitir-lhe conhecer a vida e a obra

de grandes cientistas edescobrir que a ciência é

feita por homens de carne eosso, não muito diferentes

deles próprios

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feita por homens de carne e osso, nãomuito diferentes deles próprios.

O projeto é voltado basicamentepara os alunos da 1a série do ensinomédio e consiste na montagem, pre-paração e realização de uma peçateatral, onde todas elas devem ter umcaráter biográfico. O trabalho acon-tece em uma única série para que nãose torne repetitivo (caso fosse obriga-tório ao longo dos três anos que com-põem o ensino médio). No entanto,alguns alunos insistem para ter umanova chance na 2a ou 3a série. Foi es-colhida especificamente a 1a série poisé quando os alunos têm seu primeirocontato “oficial” com as disciplinasfísica, química e biologia. Então, nadamelhor do que promover uma apre-sentação daqueles “nomes” que apa-recerão freqüentemente durante o seucurso.

Cada turma é dividida em trêsgrandes grupos e cada um dessesgrupos tem o direito de escolhersobre qual pessoa vai trabalhar.Como, em média, as turmas da es-cola, onde vem sendo desenvolvidoo trabalho, têm quarenta alunos porsala, limitamos em quatorze o nú-mero máximo de integrantes. A par-tir do segundo ano do início do pro-jeto, estabelecemos também que osgrupos deveriam ser mistos, ouseja, ter no máximo 70% de inte-grantes do mesmo sexo. Isso pro-move uma maior socialização en-tre meninos e meninas e, principal-mente, acaba com as dificuldades deum aluno ter que interpretar umapersonagem de sexo oposto ao seu.

O processo desenvolve-se duran-te todo o primeiro semestre do ano,sob a coordenação dos professores deartes cênicas e com a orientação dosprofessores de física, história, químicaetc. Os grupos já são divididos noinício do ano e logo após escolheremo cientista a ser representado inicia-se o processo de pesquisa biográfica.Posteriormente, o texto é escrito e co-meçam os ensaios, culminando comas apresentações na primeira quinze-na de junho. E por falar em ensaio, éimportante ressaltar que eles sempreacontecem fora do horário de aula,onde cada grupo tem reservado atéduas sessões por semana. Tais ensaios

iniciam-se mesmo antes do roteiro dapeça ficar pronto, já que os profes-sores do Núcleo Cênico fazem um tra-balho inicial de desinibição e detécnicas básicas de teatro.

Dentro do grupo, os alunos sãosubdivididos em cinco funções: sono-plasta (executa a trilha sonora), ilu-minador (executa a iluminação), con-tra-regra (cuida dos objetos de cena eda troca de cenários), dramaturgo(escreve o texto dramático) e atores.O objetivo, a princípio, é que todos osalunos participem das peças comoatores, portanto as funções sãocumulativas, exceção feita à sono-plastia e à iluminação, que podem terum ou dois integrantes do grupoatuando.

A avaliação é feita em duas eta-pas, uma que talvez possa ser deno-minada de pedagógica e outra artís-tica. A primeira delas é feita, princi-palmente, pelos professores de artescênicas que acompanham todo o pro-cesso de todos os grupos. Eles avaliamdesde a seriedade, a freqüência e a pon-tualidade nos ensaios até o desem-penho individual na função. O textoescrito pelos alunos é primeiramenteavaliado pelo professor de portuguêse depois por todos os professores decada disciplina. Os professores queassistem às apresentações reúnem-se,ao final do processo, com os profes-sores do Núcleo Cênico, onde é discu-tida a avaliação do conjunto da obra.Nesta primeira etapa de avaliação oconteúdo é o principal critério “emjogo”, por isso fica estabelecida, paratodas as peças, a necessidade de ao me-

nos uma cena de contextualizaçãohistórica e uma cena abordando, nomínimo, um trabalho do cientista es-colhido. Defendemos que não se deveincentivar uma mentalidade utilita-rista em nossos alunos, mas feita essaressalva, esta parte da avaliação podeser chamada de “avaliação para anota”.

Já a segunda parte pode ser enca-rada como uma “avaliação para apremiação”; é a “nossa” versão doOscar. Nesta etapa, avalia-se o desem-penho dos alunos em toda a excelênciaem termos de arte. Tal tarefa é reali-zada por uma banca julgadora, com-posta por artistas mineiros previa-mente convidados, os quais assistema todos os trabalhos. O resultado emi-tido por essa banca definirá os alunosvencedores das categorias que concor-rem à premiação. Essa cerimônia depremiação acontece em uma noite, noauditório do colégio. Como preten-díamos dar um “ar de Oscar” para es-sa parte do evento, é pedido aos alunose professores que venham vestidos acaráter, ou seja, vestido longo para asmulheres e terno e gravata para oshomens. As categorias existentes e osrespectivos prêmios estão na Tabela11 .

Talvez seja importante destacarque, entre os presentes na cerimônia,uma boa parte é formada de pais dosalunos envolvidos, que também sãoconvidados e vibram com o projeto.Não é fácil descrever a importânciadessa festa para os alunos do colégio;a aluna Anna Maria (do 1º ano B de2000) afirmou que “Não dá ‘pra’

Tabela 1: Categorias premiadas e prêmios concedidos aos alunos.

Categorias Premiação

Melhor texto

Melhor cena

Melhor produção Troféu personalizado (para cada categoria)

Destaque feminino

Destaque masculino

Melhor atriz Troféu personalizado e bolsa de estudo para o curso deteatro

Melhor ator Troféu personalizado e bolsa de estudo para o curso deteatro

Melhor espetáculo Troféu personalizado, uma bolsa de estudo para o cursode teatro e um churrasco na fazenda do colégio

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explicar, tem que viver ‘pra’ saber co-mo é”. Até o professor do NúcleoCênico, Odilon Esteves, ficou sen-sibilizado ao comentar sobre a festade 2000; segundo ele “se sobra emo-ção, faltam-me palavras paradescrever o III Prêmio Janssen de Tea-tro, pois extraordinário é adjetivopequeno diante de tudo o que vivemoscom os alunos”.

E por falar em premiação, naFoto12, vemos o elenco da peça de Ro-bert Fulton, inventor do barco a va-por e representado pela primeira vezno festival. O grupo está vibrandocom a premiação de Melhor Espe-táculo no III Prêmio Janssen!

Dois destaques: na Foto 2, Mar-celo Araugio, representando Einstein,foi o escolhido como melhor ator em1998, no I Prêmio Janssen. Já na Foto3, vemos também uma das premia-das, Priscila Zanatto. Ela ganhou nacategoria de melhor atriz, interpre-tando a mãe de Galileu no festival de2000.

A descontração e união entre osparticipantes também vem sendouma característica marcante em todosos anos em que o projeto aconteceu.Na Foto 4, vemos o elenco que repre-sentou a vida de Albert Einstein no IIPrêmio Janssen (1999). Em meio asentimentos de alegria e, talvez, “de-ver cumprido”, eles se confraterniza-vam no camarim, logo após aapresentação da peça.

Um motivo que nos leva a acre-ditar em tal projeto, dando-nos forçainclusive para divulgá-lo e continuá-lo nos próximos anos, é o elevadograu de satisfação dos alunos e seusfamiliares. Um maior desenvolvi-mento, nos alunos, de certas habili-dades relacionadas com a fala em

Foto 1. Elenco da peça Robert Fulton.

Foto 2. Marcelo Araugio, melhor ator.

Foto 3. Priscila Zanotto,melhor atriz.

Foto 4. Elenco que representou a vida de Einstein no II Prêmio Janssen (1999).

público (apre-sentação det r a b a l h o s ,leitura em vozalta etc.) tam-bém pode estarr e l a c i o n a d ocom o trabalhode teatro no 1o

ano do ensinomédio. Enfim,motivos paraacreditar nesta

caminhada é o que não faltam. Masentendemos que a melhor lição queeste trabalho sugere é o incentivo àinovação nas práticas educativas.

Talvez esteja passando da hora de nós,professores, pararmos de dissociaraula teórica de aula prática, encarandoas duas como um processo dialético eindissociável. E é nesse contexto queo concurso interdisciplinar de teatroestá inserido, funcionando como ins-trumento de avaliação e às vezes atécomo momento de aprendizagem.

Notas1. Vale a pena ressaltar que utilizamos,

em nossas categorias, o termo “destaque”ao invés de “revelação”, pois como nãoexistem atores profissionais atuando, todosestão na verdade se revelando.

2. Fotos de Renato Júdice e João PauloLoredo.

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