FL EuMundoeaEscola Versão Final

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Entre flores e muros: narrativas e vivências escolares RELATO MEMORIAL SOBRE A MINHA EDUCAÇÃO: EU NO MUNDO E A ESCOLA EM MIM Cynara Carvalho de Abreu Depois que me tornei adulta e adentrei na maravilhosa área da docência, comecei a querer entender quais eram os motivos que me fizeram ser professora. E mais, o quê me fez ser como me reconheço hoje? O encontro com a área da Educação me abriu possibilidades reais para que eu planejasse uma viagem ao passado e pudesse reconstruir a minha trajetória de forma a tentar compreender a minha formação. Não me preparei academicamente para ser professora, mas alguma coisa em mim me levava a essa área e assim que tive a oportunidade a abracei fortemente. Não obstante, compreendi que a base científica e metodológica da Pedagogia e da Educação eram lacunas para mim. Se eu me sentia professora o que teria me feito assim? Conhecendo melhor a área da pesquisa educacional, deparei-me com uma abordagem relativamente nova: o método autobiográfico. Vi nessa perspectiva a chance de poder, a partir da minha experiência, compreender o meu processo formativo e, melhor, fazer com que outras pessoas pudessem reconhecer as suas histórias na minha história. Eu não estudei para ser professora, mas quis muito sê-lo e hoje, eu sou. Quantas pessoas também comungariam dos mesmos sentimentos? Decidi escrever sobre a história da minha formação e levantei uma hipótese sobre mim mesma. Eu instituí provisoriamente uma figura de mim e a submeti a avaliação da minha experiência (Delory-Momberger, 2006). Através da sucessão e da diversidade das minhas experiências, hipotetizadas por mim mesma, testei e experimentei a validade da minha construção identitária e deparei-me com a possibilidade de reconfigurá-la. Ao me apresentar por meio de um relato, faço uma interpretação de mim mesma, uma vez que explicito as etapas e os campos temáticos da minha construção. Concomitantemente, assumo o papel de intérprete do mundo histórico e social em que estou inserta e assim, produzo categorizações que permitem me apropriar do mundo social no qual defino e tenho definido o meu lugar. (Delory-Momberger, 2006)

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RELATO MEMORIAL SOBRE A MINHA EDUCAO:

Entre flores e muros: narrativas e vivncias escolaresPAGE Eu no mundo e a escola em mim

Entre flores e muros: formao, currculo e vivncias escolares

RELATO MEMORIAL SOBRE A MINHA EDUCAO: EU NO MUNDO E A ESCOLA EM MIMCynara Carvalho de AbreuDepois que me tornei adulta e adentrei na maravilhosa rea da docncia, comecei a querer entender quais eram os motivos que me fizeram ser professora. E mais, o qu me fez ser como me reconheo hoje? O encontro com a rea da Educao me abriu possibilidades reais para que eu planejasse uma viagem ao passado e pudesse reconstruir a minha trajetria de forma a tentar compreender a minha formao. No me preparei academicamente para ser professora, mas alguma coisa em mim me levava a essa rea e assim que tive a oportunidade a abracei fortemente. No obstante, compreendi que a base cientfica e metodolgica da Pedagogia e da Educao eram lacunas para mim. Se eu me sentia professora o que teria me feito assim? Conhecendo melhor a rea da pesquisa educacional, deparei-me com uma abordagem relativamente nova: o mtodo autobiogrfico. Vi nessa perspectiva a chance de poder, a partir da minha experincia, compreender o meu processo formativo e, melhor, fazer com que outras pessoas pudessem reconhecer as suas histrias na minha histria. Eu no estudei para ser professora, mas quis muito s-lo e hoje, eu sou. Quantas pessoas tambm comungariam dos mesmos sentimentos? Decidi escrever sobre a histria da minha formao e levantei uma hiptese sobre mim mesma. Eu institu provisoriamente uma figura de mim e a submeti a avaliao da minha experincia (Delory-Momberger, 2006). Atravs da sucesso e da diversidade das minhas experincias, hipotetizadas por mim mesma, testei e experimentei a validade da minha construo identitria e deparei-me com a possibilidade de reconfigur-la.Ao me apresentar por meio de um relato, fao uma interpretao de mim mesma, uma vez que explicito as etapas e os campos temticos da minha construo. Concomitantemente, assumo o papel de intrprete do mundo histrico e social em que estou inserta e assim, produzo categorizaes que permitem me apropriar do mundo social no qual defino e tenho definido o meu lugar. (Delory-Momberger, 2006)Remontar a minha experincia escolar e os seus entornos, referenciando pessoas, grupos e acontecimentos que fazem parte da minha trajetria, foi o que me propus a fazer neste texto. Para tanto, busquei traar um fio condutor da histria de minha vida que tivesse seu eixo no processo de formao escolar desde o ensino infantil at a ps-graduao. No entanto, foi para mim impossvel construir um relato de mim mesma nestes propsitos sem que pudesse embrenhar-me pelos contextos familiares, sociais e polticos em que me inseri durante o percurso da minha histria. Preciso registrar aqui o quo maravilhoso foi para mim a prtica autobiogrfica.Procurei trabalhar com um material narrativo constitudo por recordaes consideradas como experincias significativas na minha aprendizagem e sobre o legado que a escola me deixou (e deixa). Ao escolher falar sobre aquilo que considero experincias formadoras em minha vida escolar, falo de mim e do mundo que eu enxerguei. Somente a partir da identificao dessas experincias pude entender de que maneira as dinmicas de formao, de conhecimento e de aprendizagem narram a inter-relao entre o meu passado, o meu presente e o meu futuro.

(...) para que uma experincia seja considerada formadora, necessrio falarmos sob o ngulo da aprendizagem; em outras palavras, essa experincia simboliza atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades. (JOSSO, 2004, p. 47-48)

A HISTRIA DA MINHA EDUCAODom Bosco certa vez registrou: Os maus servem de exemplo e os bons de modelo. Que eu siga o modelo de Nvoa (1995) em Vida de professores. Escrevo, portanto, sobre a minha histria (pelo menos parte dela) ao mesmo tempo em que fao reflexes sobre meus trinta e poucos anos e o meu trajeto na escola, que se passam inevitavelmente pela minha famlia e pelos meus outros significativos.Eu no mundoNasci em 14 de abril de 1974 na cidade de Natal, estado do Rio Grande do Norte, Brasil. Sou a segunda de trs filhos dos meus pais. Ele sempre trabalhou com escritas contbeis, ofcio que aprendera com meu av. O gosto pelo violo veio de longas datas e, embora toque pouco, aprecia uma boa msica brasileira, principalmente, o chorinho. Muito alegre, embora meio reservado, sempre foi muito querido entre os sete irmos. Minha me nasceu e se criou no interior do estado, na regio do Serid. Veio para Natal morar em casa de uma tia com o objetivo de estudar na capital. Foi quando conheceu e se apaixonou por um dos seus primos. Com esse parentesco prximo, minha me casou-se com meu pai h mais de 30 anos.

Pouco tempo depois que eu nasci, meu tio materno, casou-se e passou a visitar com freqncia diria a casa da minha av onde morvamos. Contam-me que sempre lhe tive muito apreo e como se fosse conseqncia, rapidamente mantive uma excelente relao com sua mulher. Esta viria a se tornar uma figura materna efetivamente marcante em minha vida. Isto porque passei a morar com eles (meu tio e sua mulher) e por eles fui criada e educada. Neste relato sobre ela que falo quando me refiro a figura materna.

Eu na escola

Com trs anos de idade completos entrei na minha primeira Escola (ensino infantil). Daquela primeira Escola, pouca coisa me lembro, a no ser o fardamento azul em mescla e da ladeira ngreme que subamos para chegarmos at l. Estudava no turno vespertino, disso tambm me recordo por causa do sol que me incomodava ao subir a ladeira. Afora isso, h algo de que tenho uma bela e entusiasta recordao: a minha primeira festa de So Joo da Escola. Estava com um lindo vestido que minha me fizera - ela era costureira. Tenho rpidos flashs na mente de uma dana em que girvamos em um grande crculo com as mos nos ombros um do outro. Decerto era um tipo de dana tpica... talvez fosse uma quadrilha junina. Eu me sentia feliz e sinto a mesma alegria ao rever os registros em fotos (em preto e branco) que ainda tenho!

Aos quatro anos nos mudamos e tambm mudei de escola. A nova escola era uma casa de esquina no bairro que fora adaptada para um ambiente escolar. Os cmodos pareciam com tantas outras casas do conjunto habitacional em que agora morvamos. Eu achava meio estranho estudar numa escola que parecia com a casa das amigas da minha me...

Sem muita definio, recordo-me de uma sala da qual eu fazia parte (na casa de uma amiga da minha me era onde ficava a cozinha!) e de uma bronca da professora para que eu ficasse quieta e deixasse os colegas fazerem suas tarefas sozinhos. Eu as fazia por eles para que fssemos para o parque logo. Brincar era muito bom. Eu lembro em especial da areia que havia por toda a rea lateral da escola em casas semelhantes, neste espao eram projetadas as garagens para os carros e o fato de na escola haver escorregas, balanos e barreiras feitas com pneus pintados com tintas coloridas, divertia-me muito. Eu adorava a areia branca por que parecia com a da praia. Eu sempre acreditei que algum havia trazido aquela areia de l, j que era bem prximo da escola. Um dia, eu e uma colega - a nica de quem vagamente me lembro (ela era bem maior do que eu e tinha olhos claros e cabelos loiros) enterramos at o pescoo na areia branca uma outra menina. No bastasse, fizemo-la comer um pouco daquela areia branquinha, branquinha. No havia de fazer mal (pensava eu)! Senti pela primeira vez que havia feito algo de ruim, embora tenha sentido uma enorme satisfao. Me senti poderosa ou algo similar! Estranhamente, aquilo no me fizera mal, apesar de termos perdido o recreio no dia seguinte (ou ter sido a semana toda?). O fato que ficamos de castigo. Naquela poca eu estava aprendendo a escrever e lembro-me, especialmente, de um feito do qual me orgulho muito: o primeiro r minsculo que consegui escrever parecido com as letras cursivas dos livros de caligrafia que tanto eu fazia! Eu estava na casa da minha av paterna e a primeira pessoa a quem eu mostrei foi minha me. Ela vibrou muito e ns duas compartilhamos com uma das minhas tias que l morava. Ah, que maravilha foi receber aquelas palmas e os parabns pelo r cursivo feito! Penso que at hoje a letra que tenho mais zelo ao escrever... e se ela iniciar uma frase ou nome prprio... ah, o capricho garantido! Mais uma vez a festa de So Joo foi marcante! Tenho fotos at hoje. Minha me fez um vestido fantstico para mim e me senti uma rainha! Eu gostava de danar, de me apresentar, de me arrumar!

No meio daquele ano mudei de sala. Na poca no sabia, mas hoje sei que fui mudada no s de sala, mas de nvel tambm. Eu passei no meio do ano para o que chamvamos de alfabetizao. Era o ano de 1979 e eu tinha cinco anos de idade. No me lembro de ter havido uma festa de encerramento. Mas sabia que estava concluindo o ABC, pois ganhei da minha me um anel e recordo-me de me arrumar com um capelo e algo parecido com um babador de renda para fazer uma foto. Eu tinha concludo o ABC (eu acho que era assim que se dizia quando uma criana se alfabetizava...)

No incio de 1980, tinha seis anos incompletos, comeamos a fazer visitas a algumas Escolas todas em Natal/RN. Minha me buscava uma vaga para mim na primeira srie do primeiro grau menor. Eu j lia e escrevia, mas a admisso no primrio no foi fcil por causa da minha idade. Os requisitos referiam-se prontido atitudinal (acho que foi nessa poca que ouvi estas palavras pela primeira vez e as achei lindas!) para a primeira srie, a fluncia adequada na leitura, na escrita e nas noes bsicas de matemtica (numerais cardinais e ordinais, no mnimo, se no me falhe a memria). Somente uma Escola me aceitaria, sob a condio de que eu fizesse um exame de admisso. Minha me me preparou durante duas semanas. Fiz o tal teste e passei. Guardo at hoje a medalha de honra e mrito que recebi por ter me classificado entre os primeiros colocados. No sabia o que aquilo significava, mas sei que fez minha me muito orgulhosa, pois ela comentava com todos da rua e da famlia, alm de olhar para a freira no dia da entrega da medalha e dizer: Eu no disse que ela iria conseguir? Estava feliz por que passaria a estudar numa escola enorme, que no era igual s casas das amigas da minha me que moravam l no bairro. E, ademais, tinha um detalhe importantssimo e que me dava um diferencial (assim cria eu): teria que utilizar transporte coletivo todos os dias. Isso seria muito divertido!

As aulas comearam e conheci a minha professora da primeira srie. Ela era muito reservada e me parecia um pouco distante. Mas, minha me dizia que eu deveria fazer tudo o que ela mandasse por que as professoras gostavam de quem no as contrariasse. Com o tempo passei a gostar dela e sei que ela de mim cada uma a seu modo. A minha me me dizia para que eu respeitasse a professora e no conversasse na aula. Ai de mim se ela fosse chamada na escola por causa de um mau comportamento! Estudava numa sala grande no primeiro andar da escola. Lembro-me de algumas coisas: a professora (a primeira professora) deixou a turma antes de terminar o ano letivo por que teria que ser a pessoa do corredor (hoje sei que ela assumira a coordenao pedaggica do ensino de 1 a 4 srie). Ela passara a ser mais importante! No sabia como, mas aquela professora, a partir de ento, tinha todas as chaves da Escola (pensava eu!). Era impossvel no saber que ela se aproximava: o tilintar do molho de chaves que ela carregava se tornou uma marca indelvel minha memria auditiva. Todos a respeitavam muito e me sentia privilegiada por ter sido sua aluna e porque, de vez em quando, ela me cumprimentar pelo nome ao passar nos corredores ou na formao das filas no incio das aulas, no ptio da escola. Na sala de aula, outra professora, assumira j no final do ano a nossa turma. Ela era bem diferente da primeira. Parecia mais dcil. A turma e eu percebemos isso logo no primeiro encontro.

Um ponto importante que me vem mente a permissividade que tnhamos de chamar as professoras de tias. Por outro lado, a partir do momento em que elas passavam a ser coordenadoras, ou orientadoras, a relao e o tratamento mudava imediatamente. Foi o que aconteceu com a primeira professora... A relao professora/aluna parecia ser mais prxima, mais afetiva por assim dizer... E isso se expressava pelo uso comum de uma expresso que remetia a um parentesco prximo, embora inexistente, como o de tia. Isso remetia noo de um processo de afiliao parental que, embora inexistente, se relacionava idia de que as professoras eram pessoas prximas, confiveis como, em geral so, as irms das nossas mes e/ou dos nossos pais.At a segunda srie, minha me me acompanhou com freqncia escola. Na hora do recreio ela estava l para comprar o lanche para mim (sempre fui muito baixinha e, no incio, no alcanava o parapeito da cantina para comprar a ficha do lanche).

A rotina e a freqncia ao ambiente escolar me arraigaram algumas memrias. Eu quase no faltava s aulas. Consigo fechar os olhos e quase que ouvir o barulho que fazamos ao sermos liberados para o intervalo ou na sada. A visita in loco escola da qual me refiro neste relato, me emocionou muito e me trouxe uma memria olfativa dos lugares em que tantas vezes estive: a cantina, a quadra de esportes, as salas de aula, os corredores, o banheiro, a capela. Ah, a capela... Ali acontecia todo ritual religioso ao qual obedecamos. Isso certamente me deixou hbitos que cultivo at hoje. Rezvamos antes de entrar para a aula todos os dias um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Santo Anjo. Seria coincidncia demais que at hoje antes de dormir eu faa essas oraes e a minha filha de quatro anos tambm as faa desde quando comeou a falar?As oraes eram puxadas pela coordenadora atravs de um megafone de cor cinza claro (achava que aquilo distorcia a voz das pessoas). Fazamos as filas que eram organizadas por turmas. A regra bsica era: os menores na frente e os maiores atrs. Desta forma, sempre ocupei os primeiros lugares nas filas e os lugares da frente nas salas de aula. Interessante que sempre acreditei que os colegas que se sentavam atrs, apesar de conversarem muito, pareciam ser mais felizes, pois, quando no quisessem olhar para a professora, ou no quisessem prestar ateno s aulas, poderiam olhar a rua, ver o movimento dos carros e das pessoas atravs das grandes janelas que havia nas salas (sempre ao fundo ou em uma das laterais).

Na segunda srie primria minha me organizou a comemorao do meu aniversrio na escola. Ela estava grvida da minha irm que teve um nome escolhido por mim. A festinha foi no momento do intervalo e eu estava muito feliz.

Com o nascimento da minha irm, minha rotina na escola mudou significativamente... Aos sete anos passei a ir a voltar sozinha de nibus. Sentia-me responsvel e importante por isso! Sentia tambm um pouco de medo, especialmente quando tinha que atravessar a avenida movimentada, que cruzava o quarteiro do ponto de nibus em que eu descia. Minha me passou a me levar at a parada de nibus do bairro todos os dias e ao final da tarde me esperava l tambm. Na ida, enquanto eu entrava no nibus ela me encomendava a cada motorista. Falava-lhes alguma coisa como que o fizessem ficar sensveis de que eu viajaria sozinha e que somente deveria descer no ponto perto da escola onde eu estudava. Com poucos meses j conhecamos por nome cada um dos motoristas que fazia as linhas de nibus em que eu trafegava. Sentia-me protegida e sempre fazia o percurso conversando com eles. Lembro-me que a frase escrita na parte superior interna do nibus me incomodava muito: fale com o motorista somente o indispensvel. Eu ficava intrigada e imaginando quem seria esse indispensvel que tinha o privilgio de falar com o motorista se quisesse? Bem, enquanto ele no aparecia (pensava eu)... eu a conversando com os motoristas todos os dias! Em datas comemorativas, minha me nunca esqueceu de lhes oferecer pequenos presentinhos como pares de meias, ou caixinhas de lenos de pano.O aspecto relacional na histria da minha educaoAlgumas situaes da minha vida familiar, concomitantes minha experincia escolar, ditaram muito da forma que passei a apreender as coisas na escola. Com a ausncia da minha me que sempre me foi uma pessoa de muita influncia, que me acompanhava diuturnamente na escola, passei a me afiliar cada vez mais aos meus professores. queles das matrias s quais tinha mais dificuldade como matemtica, fsica, qumica eu me aproximava ainda mais. Penso que essa tenha sido uma estratgia de relao interpessoal que eu tenha estabelecido desde cedo para que pudesse compreender melhor o que corresponderia s expectativas de quem, por algum motivo pudessem me ameaar ou precisar de sua ateno. Embora essa estratgia no tenha sido traada intencionalmente, foi uma maneira que descobri de me fazer ser notada para poder ser protegida depois que minha me no pode mais me acompanhar com tanta freqncia.

A situao financeira dos meus pais nos anos 80 era bem difcil e embora tivssemos que nos privar de algumas coisas a escola sempre foi algo intocvel. Em nossa casa no tnhamos televiso e eu sempre assistia desenhos pelas manhs ou os filmes de Sesso da Tarde durante as frias na casa de uma vizinha que muitas vezes esteve como uma me para a minha me. Minha irm mais nova chegou como uma neta para ela e todos da sua famlia.Mudamo-nos mais uma vez e assim ficou mais difcil me deixarem ir assistir TV na casa da nossa vizinha. E dependendo da hora: nem pensar em sair de casa! Foi quando meu pai nos trouxe uma televiso de segunda mo. Lembro-me que para ligar a TV, que era em preto e branco, primeiro puxvamos um pitoco preto do lado esquerdo. A aparecia um ponto de luz bem no meio da tela. Este passava uns cinco ou mais minutos para se transformar em uma listra bem fininha no meio da mesma tela. O som chegava antes do vdeo e s minutos mais tarde essa listra ia se abrindo e nos deixando ver as imagens que s vezes precisava do auxlio de um pedao de bombril na ponta da antena interna para ficarem paradas ou para o som deixar de chiar. Aquilo para mim era um ritual mgico. Confesso que com o tempo comecei a me inquietar, mas nada que me irritasse ou me fizesse desistir. Esse relato saudoso, mas rememorando situaes desse tipo que eu me dou conta do quanto significou para mim.Eu tinha um pouco mais de oito anos e entre meus programas favoritos havia o do Daniel Azulay. Como ele desenhava bem! Dentre os desenhos animados os que eu mais gostava eram He-Man, She-Ha, Caverna do Drago e os Smurfs. A contao de histrias do Stio do Pica-pau Amarelo indelvel na minha memria.

Sempre gostei de passear. E no me faltava oportunidade de fazer companhia a nossa vizinha at a igreja catlica do bairro a qual ela freqentava. amos s missas aos domingos e terminei por ingressar no grupo de catecismo passando a freqentar as reunies aos sbados tarde. Ela me aguardava rezando o tero. Fiz a primeira eucaristia com oito anos e a partir de ento passei a freqentar o grupo de crianas da parquia. Organizvamos uma missa por ms que era a missa das crianas. Aprendamos hinos e nos apresentvamos nas datas festivas da igreja como a coroao de Nossa Senhora em maio, Pscoa, Natal e Festa da Padroeira. Foi assim que comecei a apreciar o sentido de fazer parte de grupos de jovens, coisa que pratiquei at cerca de oito anos atrs.

O sonho e a fantasia caminham comigo desde criana, percebo isso enquanto escrevo. Para tudo eu usava a imaginao! Deus, como achava injusto no ter nascido uma Sereia! Como aquelas histrias das reinaes de Narizinho me encantavam: o Minotauro e o reino das guas claras! Filmes de princesas e prncipes me fascinavam. Simbad O marujo, ou qualquer um das Arbias me faziam sonhar. No meu aniversrio de dez anos a minha me me presenteou com uma coleo de livros que acompanhavam uns discos coloridos da Disquinho com histrias clssicas como O soldadinho de Chumbo, Chapeuzinho Vermelho, Festa no Cu etc. Mas o que eu gostava mesmo era de ler as histrias de Drages e Imperadores da China, de Pele de Asno etc. Fiz isso incontveis vezes me reportando a mundos maravilhosos na minha imaginao. Emocionei-me muitas vezes (chorei mesmo) com a histria do imperador da China que tinha um rouxinol que parara de cantar e o deixou doente de tristeza. Ele quase morre! Encantei-me em me sentir a prpria Polegarzinha presa a uma dvida de gratido e prestes a casar com o Toupeira e passar o resto de sua vida debaixo da terra sem ver o sol... Juro que muitas vezes me senti voando nas asas da andorinha que a salvou daquele destino e a levou para o reino das flores onde havia um lindo prncipe!Gostava tanto destas histrias que brincava de ser princesa dentro de casa. Envolta em lenis, que se arrastavam pelo cho da casa como os vestidos que eu via nos filmes, eu imaginei muitas vezes histrias nas quais no final a princesa era salva pelo prncipe. Eu sempre fui muito sonhadora... E, nas minhas brincadeiras, havia vozes por mim interpretadas... ou fugas (saa correndo pela casa como se fugisse do perigo), respiraes ofegantes de susto e gritinhos de medo... Nunca me furtei em experimentar palavras novas como, por exemplo: apuros... Fazia o meu pequeno teatro e nele eu assumia todos as personagens, acho que era isso!

Voltando a minha vivncia na escola. Todas as quintas-feiras alm das oraes ns hastevamos a bandeira do Brasil e cantvamos o Hino Nacional. Tambm na semana da Ptria, em setembro, fazamos um desfile na rua que ficava por trs da escola, numa parte pouco freqentada por ns alunos e que dava sada ao convento das irms. Penso que fora somente isso que aprendi sobre poltica e Estado no colgio em que estudei. Imagino que por ser uma escola religiosa, tratar de poltica fosse delicado naquela poca, e at arriscado diante do contexto poltico e social que vivamos. Algumas vezes minha me me dizia que se em alguma prova casse uma questo sobre quem era o presidente do Brasil eu respondesse: Joo Baptista Figueireiro. Em casa, meus pais no conversavam sobre poltica na minha frente, ou talvez no conversassem entre eles sobre isso. O fato que, quando passei a entender um pouco mais, compreendi que fui uma analfabeta poltica durante muito tempo.

Por causa da televiso que agora tnhamos em casa pude ver um movimento de pessoas que reivindicavam algo que eu no entendia bem o porqu: foi a primeira campanha das eleies diretas. Diretas J! Era um grito unssono! As pessoas clamavam para que o voto fosse direto, mas era tudo o que eu sabia e perguntava a mim mesma: por que ser que o voto no direto? O que seria um voto direto? Em 1985, em meados de abril, adoeci e estando em casa observei uma grande comoo nacional por causa da morte de um presidente que sequer pudera assumir o mandato. Morria Tancredo Neves e me lembro de ter achado bom de certo modo, por que fora decretado luto nacional e eu no perderia aula no dia 22, j que eu estava doente. Imaginava que as pessoas gostavam muito daquele velhinho por que muitos choravam demais. Eu vi na TV!

Quando voltei s aulas a minha me me ensinou que o novo presidente do Brasil era Jos Sarney. Muito bem, passei a v-lo mais constantemente na TV l de casa. Mas no Colgio ningum se interessava por esse assunto. Ento entendi que no era um assunto do qual as pessoas gostassem de falar. Deixei-o para l. Nunca caiu na prova! E nunca percebi mudanas na minha casa ou na minha escola por que a presidncia do Brasil passou de Figueiredo, quase para Tancredo e, finalmente para Jos Sarney! Tudo continuava como antes. Na minha escola, principalmente. L em casa as coisas no estavam bem e meu pai resolveu que iramos nos mudar novamente, para outro bairro. A nova casa alugada era muito pequena, tinha um cmodo a menos e minha me tinha que costurar na sala. Eu no gostei muito de ir morar l. Mas era mais perto do trabalho do meu pai, que economizaria com passagens de nibus. Por que no podamos arcar com despesas extras, no pudesse cultivar alguns hbitos incentivados na escola, por exemplo: fazer trabalhos em grupos na escola. Os colegas se reuniam pela manh (estudvamos tarde) e isso significava mais duas passagens de nibus alm das planejadas para os dias letivos. Passar a manh na escola implicava em levar dinheiro para um lanche rpido, o que tambm era outra dificuldade. Desta forma, minha me me desencorajava a fazer trabalhos em grupos. Fui instruda a que todas as vezes que os professores passassem tarefas assim, perguntar se eu poderia faz-las sozinha. Nunca encontrei resistncia dos meus professores, no sei o porqu. Desconfio que a minha me tenha conversado sobre a nossa situao com a coordenadora... O fato que ela me fazia crer que eu aprenderia mais se eu fizesse os trabalhos sozinha. Ela me fazia crer que em grupo a gente conversaria muito e o trabalho poderia no sair to bem feito. De uma forma ou de outra queria mesmo era ir para o colgio noutro horrio, sem fardamento e me sentir importante por realizar um trabalho com um grupo. Mas rarssimas vezes fiz isso at a oitava srie.

Fui representante de turma algumas vezes. Depois que a minha me no pode me acompanhar mais na escola, paradoxalmente, ela sumiu do convvio escolar. At mesmo as reunies de pais e mestres ela deixou de freqentar. Ela me dizia que j sabia o que se iria conversar. Ento, no perderia seu tempo. Acho que desde aquela poca compreendia que precisava ser responsvel por mim mesma. Pensando melhor agora, enquanto escrevo, precisei criar artifcios para demonstrar que poderia ser to desenvolta que, de fato, no necessitasse de uma me ou um pai o tempo todo na escola respondendo por mim.

De forma no planejada passei, com freqncia, a ser a voluntria para fazer as leituras nas missas, para ir pegar um apagador de quadro que o professor havia se esquecido de levar para sala de aula, para acompanhar at a sala de Orientao Educacional uma colega que estivesse com febre ou clicas. Desta forma, fui sendo conhecida e conhecendo lugares na escola que eram pouco freqentados pela maioria dos alunos. A adolescncia chegou como uma rajada de vento pela janela. Aos treze anos, cursando a oitava srie, comecei a ter contato com leituras que os meus colegas de sala me emprestavam. A puberdade comeava a aflorar e junto com ela o interesse por assuntos, pessoas, lugares e situaes antes no percebidas por mim. Era o ano de 1987 e eu li, pelas mos de colegas na Escola, alguns dos livros que marcaram a minha adolescncia. Foi quando entendi que estava equivocada quanto ao modo de enxergar as pessoas. Descobri que existia um mundo aonde no viviam princesas, nem rouxinis e nem havia finais felizes. Li Polliana Menina e compreendi a essncia do Jogo do Contente (que pratico at hoje e tem me ajudado a enfrentar situaes adversas na minha vida), mas tambm li (escondida no banheiro) Christiane F., 13 anos, drogada, prostituda. Compreendi, atravs desta leitura, que h muita dor na experincia com drogas e na prostituio penso que o gosto que eu tinha de me transportar para o mundo das personagens das histrias que lia ou criava desde menina tenha me ajudado nessa interpretao. Foi na escola que tive acesso a notcias sobre um mundo que no me fora apresentado abertamente. Tambm foi na escola que usei o meu primeiro suti. Foi pela escola que dormi a primeira vez na casa de uma amiga por que tinha ido a uma festa. Experimentei gazear aula e ficar passeando pelo Centro da Cidade, enfim... onde pude transgredir.

Foi por causa de uma situao escolar que a relao com a minha me comeou a ficar conflituosa. J na stima srie, em 1986, eu tirei a minha primeira nota vermelha: 4,6 em matemtica. Consegui recuperar durante o ano letivo, mas fui aprovada me arrastando. Havia muitas coisas que me encantavam naquela poca, mas eu mal conseguia me concentrar de forma retilnea nos estudos, principalmente em matemtica que no me suscitava maiores interesses. Em 1988, a situao voltou a se repetir e entre eu e minha me comearam os conflitos de gerao! No foi uma poca fcil!

Nesse perodo da vida o ambiente escolar era o meu maior e melhor refgio durante o dia. Somente l me sentia em casa. Era o nico lugar de referncia da minha infncia, do meu passado. Enquanto terminava o primeiro ano, ficava quase todas as tardes na escola. No ano seguinte, 1989, as tardes eram preenchidas tambm nos ptios escolares. Foi nesta poca que assumi lideranas de turmas fui representante da sala por dois anos envolvi-me com a organizao das celebraes na escola, comisso de formatura e passei a ter o apreo da coordenao e professores que em minha famlia estava me faltando.

A partir de 1990, pela primeira vez comecei a pensar efetivamente no meu futuro. Eu no poderia dar errado. Eu deveria dar a volta por cima e mostrar para a minha me que ela estava errada em ser proibitiva e sancionadora comigo! O vestibular comeava a se aproximar e do segundo para o terceiro ano colegial passei a estudar mais e, embora eu me lembre de minha dedicao nos ltimos trs anos colegiais, no obtive xito no primeiro vestibular que prestei para Direito. Alimentei esse sonho durante uma poca da minha vida. Minha me quando me falava dos presidentes e de Braslia dizia que conseguia me ver quando eu crescesse como uma diplomata, vestida de tailler, com cabelo preso em coque e muito chique! Bem, o primeiro passo para isso, pensei, seria o curso de Direito! Tentativa frustrada!A escola em mimAno de 1991. Sem a aprovao no vestibular e determinada a ser algum na vida resolvi que iria trabalhar. Consegui meu primeiro emprego de meio perodo, pois sabia que no deveria abrir mo de estudar. Desta feita, faria um cursinho pr-vestibular. Eu trabalhava numa locadora de vdeo de propriedade de meu tio/padrinho. Comecei a fazer algum dinheiro, o que me deu um prazer enorme! Jamais esquecerei a primeira compra com o meu primeiro salrio: uma cala preta semi-bag! Foi maravilhosa a sensao de liberdade e autonomia, foi fascinante... mas algo me faltava, embora a essa altura dos acontecimentos a relao com a minha me j houvesse se restabelecido. Entretanto, o trabalho comeou a me consumir mais tempo do que eu imaginava. Apesar de estar matriculada em um cursinho pr-vestibular, na maioria das manhs eu dormia de to cansada. A experincia de estar numa sala de aula onde o contedo passado me parecia familiar, embora no o dominasse, deixou-me claro que no tinha adquirido no colegial a base necessria para acompanhar o que estava sendo abordado pelos professores do cursinho, principalmente em Fsica, Qumica e Matemtica. Renovei minha matrcula no meio do ano num mdulo intensivo, ou seja, em seis meses eu veria o que a maioria estaria vendo em um ano. Muito bem, entendi que deveria fazer uma reviso em matemtica em casa, mas passei trs meses estudando funes e a chegou a poca de fazer a inscrio no vestibular.

Fui universidade para fazer minha inscrio de vestibular. J no havia obtido aprovao no primeiro vestibular para Direito, por isso, no quis insistir. Eu costumava dizer que iria sempre fazer vestibular, pois um dia o computador iria se cansar do meu nome e iria me inserir na lista dos aprovados! Imagine s! Eu nunca pensei em parar de estudar!

Eu estava decidida de que no poderia no passar, pois no passar no vestibular atrapalharia os meus planos de ser algum na vida. O meu raciocnio era o seguinte: O que eu quero da vida? Ser independente. Para ser independente, do que preciso? De segurana financeira. Como consigo isso? Casando com algum rico ou trabalhando em algo que d muito dinheiro. Conheo e gosto de algum rico com quem possa me casar? No. E ademais, s quero me casar por amor. Ento, qual a profisso que d muito dinheiro? Informtica, Engenharias, Advocacia, Medicina. alguma dessas coisas que voc quer fazer para o resto de sua vida? Deus me livre! E agora? Qual o caminho? Fazer o que pensa que lhe deixe feliz, por que se eu no fizer dinheiro pelo menos serei feliz!A foi quando me lembrei do que minha me me dizia, desde eu muito pequena, para sempre que escolher fazer uma coisa faz-la bem feito, e s se faz bem feito o que se faz com prazer! Refletindo sobre isso, tomei um nibus e com o formulrio de inscrio na mo me dirigi Universidade. Foi quando percebi que a profisso que iria me garantir um futuro bom, um futuro de quem tinha vencido na vida seria a profisso em que eu pudesse ser feliz (segundo o raciocnio de mame). O que eu pensava que poderia fazer com maestria era Jornalismo (Comunicao Social). Pensei: eu me relaciono bem com as pessoas, gosto de conversar, quero viajar muito... Puxa! Como eu gostaria de ser algum como Glria Maria, Marlia Gabriela! J sei, tenho tudo a ver com Jornalismo. Tenho at um tio j falecido que foi considerado era bastante considerado entre os jornalistas do Estado! Pronto! Encontrei!.E olhei as ruas pela janela do nibus!

Chegou o ponto em que eu deveria descer. Desci e fui at uma banca de revista que h at hoje no Centro de Convivncia do Campus da UFRN em Natal/RN. Procurava balas ou chicletes. J passava das 15h. Deparei-me com uns candidatos folheando uma revista chamada Guia do Estudante, cujo pblico alvo era os vestibulandos. Por alguns minutos folheei uma delas e, no sei o porqu, deparei-me olhando sobre o curso de Psicologia. L falava sobre a profisso, mercado de trabalho, sobre as reas de atuao, as caractersticas necessrias a um bom profissional da rea, entre elas: empatia. Na hora, eu li simpatia. Como me considerava simptica cri que j tinha o requisito bsico. E agora? Jornalismo ou Psicologia? Fui para a fila de entrega do formulrio. Preenchi tudo s faltava colocar o cdigo e o nome do Curso de primeira opo. S faltava uma pessoa para a minha vez, quando, no sei racionalmente at hoje o por qu, preenchi: cd: 123A, Curso: PSICOLOGIA.

Nem todos da minha famlia receberam bem a notcia de que havia me inscrito no vestibular para o Curso de Psicologia. Por causa disso eu chorei muito naquela noite. E decidi baseada no Jogo do Contente, como Polliana, que aquilo me motivaria ainda mais para passar no vestibular e ser a melhor psicloga que pudesse ser. Ainda que o medo me assolasse e me fizesse questionar: o que ser uma boa psicloga? Bem, melhor ir por partes. Primeiro eu passaria no vestibular, depois veria o que poderia fazer na Psicologia que me desse prazer!

Caprichei naquilo que sabia que aumentaria o meu argumento no cmputo final do vestibular a redao. No fui muito bem nas provas de exatas. Mas, fui aprovada! Foi outra grande sensao de vitria que senti na vida (a primeira foi escrever o r em letra cursiva quando criana)! Minha carreira comeou ali. Naquele dia 20 de janeiro de 1992.

Em maro do mesmo ano comearam as aulas. A primeira semana, que no Curso de Psicologia se chamava semana de integrao, foi determinante para as minhas escolhas posteriores. Participamos de tcnicas de dinmica de grupo, conhecemos-nos na turma e aos professores tambm. L pelo terceiro dia havia uma programao em que cada representante das diferentes reas de atuao da Psicologia nos falaria um pouco sobre a atuao e sobre o campo de trabalho. Havia um homem ao canto que falou quase que por ltimo sobre tal Psicologia Organizacional. Depois que ele falou esqueci dos meus planos de fazer dinheiro e voltei a ser aquela menina que gostava de fantasiar. Imaginei-me trabalhando numa grande empresa, sendo a gerente de Recursos Humanos. Eu conversava com as pessoas, fazia-as se sentirem melhor em seus postos de trabalho. Organizava confraternizaes para os funcionrios (qui uma festa junina!) Estava feliz, sorridente, vestia um tailler e mantinha um coque no cabelo, bem chique! Bingo! algo parecido com isso que eu quero fazer o restante da minha vida!

Com a aprovao no vestibular deixei o trabalho na locadora para me dedicar ao curso que ofertava disciplinas durante o dia todo. Renovei meu gosto pela leitura e conheci pessoas incomparveis. Fiz amigas as quais conservo at hoje e convivi com professores fenomenais.O mundo em mimA minha formao superior foi de descobertas intrnsecas e extrnsecas. Li coisas que jamais imaginaria que algum pudesse ter pensado, nem escrito. Conheci a Filosofia e me encantei. Li sobre a formao da personalidade das pessoas. Sobre as psicopatologias. Vi-me no laboratrio de anatomia e jamais esquecerei o toque da campainha anunciando o fim do tempo para identificar as peas do anatmico na gincana avaliativa. Em Biologia revi a funo das mitocndrias, relembrei o que era pinocitose e fagocitose, osmose e osmeostase. Pela primeira vez entendi que o que estudara no colegial me servira para alguma coisa: eu j havia ouvido falar naquelas estruturas e processos biolgicos. Cursei Fisiologia e entendi um pouco sobre o funcionamento e a estrutura do crebro. Depois disso, vi que no bastava a estrutura, havia algo meio mgico e que havia pessoas, em vrias partes do mundo e em pocas diferentes ou concomitantes que tentavam decifrar os chamados processos mentais. De volta s salas de aula fora do Centro de Biocincias da universidade, aprendi sobre motivos, emoes, percepes e as distores perceptivas. Aprendi que cada um tem a sua verdade e por mais que para mim aquilo seja um equvoco, ainda continuar sendo verdade para o outro, esbraveje eu ou no. Estudei sobre a estrutura e dinmica a personalidade; sobre a discusso do que herdado, gentico, congnito ou adquirido. Li e me apaixonei por Freud e por Ana O. Choquei-me ao assistir Laranja Mecnica, mas s assim compreendi o behaviorismo radical e a fragilidade da psiqu.

Foi em minha experincia de formao superior que pude experimentar estudar em grupo; que fiz provas dissertativas com cinco pginas escritas sem ter medo de ter errado na frmula e ter posto tudo a perder. Foi l que entendi que tenho limites e que devo respeitar no a eles (os meus limites), mas a mim por t-los.

Foi naquela poca que ouvi uma professora dizer que um excelente psiclogo deveria ler todos os livros, ver todas as peas de teatro e assistir a todos os filmes. Quando ouvi, aquilo no fez muito sentido para mim... Mas hoje compreendo plenamente a essncia do raciocnio dela.

Aprendi sobre a aprendizagem significativa. Li sobre Vigotisk, Piaget, Carl Rogers, Alexander Lowen, Pichon e Kurt Levin. Estudei pelo livro de Anastasi, entendi o que significa HTP (house, tree and person), apliquei e me submeti a testes psicolgicos. Nesta poca tive a oportunidade de ser monitora da disciplina TEP Tcnicas e Exames Psicolgicos. Costumo dizer que como monitora fui aprendiz de professor. Aprendi sobre o processo de desenvolvimento da criana e compreendi o que era prontido atitudinal.

Foi cursando Psicologia que cresci alm do meu um metro e meio de altura. Foi onde comecei a busca de mim mesma e iniciei o meu processo de autoconhecimento atravs da psicoterapia. Conheci e reconheci coisas que no admitia como minhas e compreendi que no tenho um jato invisvel para voar. Entendi que o todo muito mais que a soma das suas partes. Compreendi o que pode ser figura e fundo na minha vida e na vida das outras pessoas. Entendi que o passado s passado quando no est presente. Pois se o passado est presente ele no passado, presente. Entendi que devo viver sem buscar preencher lacunas do passado. Por que o passado deve estar l. Mas sim, devo viver de modo a evitar que novas lacunas se abram ou no se fechem enquanto presente.

Em 1995, ainda estudante, e cursando uma disciplina eletiva na rea de organizacional recebi um convite de uma professora para trabalhar ministrando treinamentos com ela. Esse foi um momento transformador da minha vida! No fazia dois meses que eu havia conseguido um estgio extra-curricular. Mas, algo me movia fortemente e ento eu pedi resciso do contrato de estgio e fui trabalhar como estagiria com a professora. Esse fato deu uma grande guinada na minha carreira e atuao profissional.

Faramos treinamento de qualidade no atendimento ao usurio para operadores de transporte coletivo. Seriam muitas turmas. Nas trs primeiras turmas, comecei auxiliando-a na distribuio das cadeiras, dos crachs, das pastas, organizando a mesa do lanche na hora do intervalo, entregando e recolhendo material didtico. Na quarta turma ela me permitiu aplicar uma dinmica de abertura. Na quinta turma eu assumi o primeiro horrio do primeiro dia. Na Sexta turma eu assumi metade do treinamento. A stima turma eu conduzi o treinamento e ela me auxiliou e me deu olho o tempo todo de que precisei. Descobri com aqueles motoristas e cobradores de transporte coletivo o encanto de lecionar. A partir dali j sabia que um sonho na minha vida seria me tornar professora. Eu no sabia como, mas cria fortemente que isso iria me acontecer.

Conclu o curso de Psicologia no final de 1996. Estagiei na rea da Psicologia Organizacional, que me encantara desde a primeira semana de aula (At hoje costumo dizer que ns no escolhemos a rea a qual nos dedicaremos... ela que nos escolhe!). Fui contratada como Psicloga pela empresa em que estagiei. Era um sonho se realizando! Mas, tive que abdicar dos treinamentos com os motoristas e isso de alguma forma no me fez bem! Algo me dizia que seria temporrio, que eu voltaria a ministrar treinamentos. Seria uma questo de tempo.

As solenidades da minha colao de grau aconteceram no incio de 1997 e recordo-me, em especial, de quando eu estava dentro auditrio do Centro de Convenes de Natal, sentada entre as cadeiras destinadas aos formandos de Psicologia. Olhei para os professores vestidos com as becas que lhes so peculiares e desejei profundamente que um dia tambm assumiria um lugar daqueles foi a primeira vez que desejei conscientemente ser professora!Como psicloga organizacional, realizei algumas daquelas coisas que imaginei na primeira semana de aula. Organizei eventos, fiz selees, elaborei, organizei e ministrei treinamentos, fiz avaliao de desempenho, recebi e supervisionei estagirias de Psicologia na rea de organizacional. Mas, de vez em quando me lembrava dos meus sonhos quando da poca de prestar vestibular e decidi no parar de estudar. A escola estava em mim. E era como se eu acreditasse que pela escola minha vida se completava. Comecei um curso de especializao em Recife, mas no conclu por ingressei numa turma de especializao em Gesto de Recursos Humanos nas Organizaes. Com o incio do Curso fiz uma descoberta incrvel. Pela primeira vez eu adentrava no mundo da Administrao como cincia e naquela poca firmava um interesse pela gesto de pessoas que mantenho e cultivo at hoje. Tive a oportunidade de ser aluna de estudiosos com Maurcio Serva, Alain Jouli, Srgio Motta, Zlia Kiliminick, Marcos Vincius, Miguel Aez dentre tantos renomados no Brasil e fora dele na rea de Administrao. Uma das disciplinas por mim mais esperadas na especializao era Metodologia do Ensino Superior. Eu sabia que ela era uma daquelas disciplinas que objetivava a formao docente mnima necessria para a entrada no ensino superior como docente. Alimentei em mim a expectativa de que durante o seu decurso eu seria minimamente habilitada para lecionar numa faculdade ou, qui, numa Universidade!

No final de 1997, conheci um moo especial ( assim que pensam os enamorados sobre seus amores) e comeamos a namorar. At abril do ano seguinte, mais outros tantos momentos transformadores na minha vida aconteceram: eu adquiri o meu primeiro carro e em maio do mesmo ano recebi as chaves do meu apartamento! Eu comeava a fixar o meu lugar pelas minhas prprias conquistas. Foi mais uma grande conquista na minha vida!

Ainda no mesmo ano, no final do ms de outubro estava casada com o moo especial. O meu casamento foi como um boomerang bem lanado em minha vida. Atirei no que vi e acertei no que no vi. Ele me trouxe grandes conquistas e aprendizados! Ao lado do meu marido conclu mais alguns cursos e constitu em 1998 a minha prpria empresa. A partir de ento, passei a prestar servios na rea de Recursos Humanos e Comportamento Organizacional para outras empresas.

O incio da experincia como profissional liberal foi muito confuso para mim. Era o momento de aplicar sistemtica e concomitantemente todo o conhecimento que eu havia apreendido na graduao e na ps-graduao. Embora soubesse o que fazer no sabia muito bem como fazer e isso me causava angstia e uma sensao de incompetncia danosa. A orientao de uma pessoa mais experiente no mercado de trabalho, de postura assertiva em suas colocaes (muitas vezes de maneira que ficava envergonha de no ter percebido tal ou tal aspecto das minhas atitudes ou decises), foi de inenarrvel importncia para que eu pudesse enxergar as minhas intervenes de forma mais profissional. Com efeito, as coisas que me dispus a refletir e a mudar me serviram de referncia. Chego a pensar sobre o que realmente prepara um consultor de empresas ou o profissional liberal e penso seriamente que muito mais a referncia de algum mais experiente na mesma rea e muito menos o legado que a escola nos deixa. Concordo que replicar pura e simplesmente as atitudes e atuaes deste profissional em quem se espelha no o adequado. Mas, incrivelmente, a forma de pensar e agir deste terceiro mais experiente serve como bssola e, a partir de ento, o indivduo aprendiz acrescenta seu toque pessoal suas idias e idiossincrasias. Comigo foi assim: sempre escolhi uma ou duas pessoas a quem me referendar quando as situaes no ambiente de trabalho me eram apresentadas como novas ou jamais por mim vivenciadas. Foi assim que fui experienciando o mundo do trabalho.

O ano de 1998 foi, de fato muito marcante na minha vida por todos os acontecimentos supra narrados. Pois bem, adentrei 1999 como profissional liberal, mas por questes de sade precisei parar um pouco as atividades profissionais em funo de alguns meses de tratamento. Ao sair da licena mdica, retomar a clientela tornou-se, obviamente, um trabalho de reconquista um pouco lento. Foi quando aquela mesma professora que me convidara a ser sua estagiria em 1995, convidou-me para ser instrutora de Cursos para condutores de veculos automotores. As leis de trnsito no Brasil, atravs do CBT (Cdigo Brasileiro de Trnsito) haviam sido recentemente alteradas e a exigncia de qualificao adequada para a concesso de carteiras de habilitao formava uma demanda significativa de treinamentos. Estava voltando s salas de aulas conforme intrinsecamente desejara h algum tempo. Voltei a estudar sobre transporte coletivo e reentrei em sala de aula de uma forma mais segura, o que me fizera atingir resultados satisfatrios com as turmas que eu assumi. Eu gostava de me ver naquele contexto. Tomei conscincia da minha voz interior e reconheci que a docncia no ensino superior era o meu grande objetivo. O trabalho como instrutora para motoristas ou candidatos a motoristas reacendeu o sonho que um dia eu havia deixado aflorar em meus pensamentos e em meu plano de vida. Mais uma vez desejei ser professora para toda a vida! S que para isso, sabia que no podia parar de estudar. Se o meu objetivo era a Universidade ento... Havia um longo caminho a ser perseguido. A todos os que eu conhecia dizia do meu sonho de ser professora numa Universidade. Acreditava que se dividisse o meu sonho com os outros a possibilidade dele se realizar era mais prxima. Outrossim, acreditava que falando sobre os meus planos para os que eu conhecia, quando surgisse uma oportunidade algum se lembraria de mim. E foi exatamente assim que aconteceu. No segundo semestre de daquele ano, meu ex-professor da graduao e supervisor de estgio, que era tambm professor do Curso de Psicologia numa Universidade privada em me fez um telefonema dizendo do processo seletivo para professor de Psicologia no Curso de Administrao. Os requisitos eram: ser psiclogo e ter experincia na rea organizacional. Com um desafio: se aprovada teria que entrar em sala de aula em trs dias teis. Era dia 10 de agosto, uma tera-feira. A banca avaliadora de uma prova didtica realizou-se na quarta-feira (nem dormi naquela noite montando o que acreditava ser um plano de ensino, um plano de aula e a aula propriamente dita). Passei no exame! Assinei os documentos de contratao na quinta-feira, dia 12 e em 13 de agosto de 1999, sexta-feira (no me lembro se a lua estava na fase cheia) no perodo vespertino eu assumia a minha primeira sala de aula como professora universitria. Eu quase no cria no que estava acontecendo e ao entrar naquela sala eu me lembrava de quando de dentro dos nibus eu passava em frente das Universidades em Natal e olhava para as suas instalaes fsicas e falava com os meus botes: Me aguarde! No sei quando nem como, mas um dia ainda serei professora a!

Agora era realidade! Havia cerca de 60 alunos esperando por uma professora (a ltima que ainda faltava se apresentar, pois as aulas tiveram seu incio na segunda-feira prxima passada). Quando eu entrei e me apresentei, alguns me olharam com uma expresso de dvida. Houve risinhos e cochichos e eu no me contive em perguntar o que estava acontecendo, at que um aluno disse em voz alta: Voc est brincando com a gente, no ? Voc est querendo passar um trote, mas a gente no vai cair no! Est na cara que voc aluna tambm! Acho que do segundo ou terceiro ano. Confesse a!

Eu tinha pouco mais de vinte anos, h muito media um metro e cinqenta de altura e pesava cerca de cinqenta quilos. Naquele momento percebi que a imagem que eu passava era de uma pessoa muito jovem. No tardou para que eu me desse conta que era melhor deixar os alunos me tratarem por senhora quando quisessem. Isso estabeleceria a distncia muitas vezes necessria para o bom andamento da relao professora/aluno, visto que no mais das vezes, pela forma de ser e de me expressar, eu me assemelhava bastante a eles. A minha identidade profissional consolidou-se atravs da minha experincia docente. Dentro da prpria universidade, no ensino fundamental II e mdio na Escola, comecei a circular por outros lugares que no a sala de aula e conheci pessoas que me abriram outras portas dentro da Universidade. Ainda em 1999 assumi outras atividades administrativas na rea da ps-graduao lato sensu. O conhecimento e a experincia com aquelas atividades foram incrveis. Por outro lado, sentia que no poderia ir mais longe se no me aperfeioasse. E aperfeioamento na academia significava, inevitavelmente, estudar mais. Resolvi que estava no momento de entrar no mestrado. A essa altura, a rea da Administrao j me era apaixonante e ento prestei seleo para o mestrado em Administrao. Ah, como eu me lembro daquela tarde em que sara o resultado! Eu havia passado!

Cursar o mestrado foi um dos momentos de maior aprendizado em minha vida, principalmente para a minha vida docente. Foi no mestrado que compreendi o papel de um professor em sala da aula, que li coisas que jamais escolheria ler por opo.

Foi no mestrado que aprendi a estudar mais sistematicamente; aprendi que o pesquisador precisa criar estratgias de leituras e de estudos para melhor aproveitar as informaes bibliogrficas que lhes esto disponveis mundo afora. Descobri meu estilo de escrever e que tenho peculiaridades na forma de pensar e de produzir. Aprendi que posso me superar e que ainda h muitos amigos a fazer na minha vida. Aprendi que ainda posso viver o dobro do que j vivi e estudar o triplo do que j estudei e ainda assim me sentir desatualizada! Aprendi no mestrado o que delimitao do campo de estudo. Aprendi o que citao, referncia e edentamento. Entendi que no preciso abrir mo da Psicologia para viajar no encanto das outras Cincias como a Administrao, a Educao, a Sociologia. Foi no mestrado que, pela primeira vez, li Porter, DAveni, Robbins, Morgan, Bresser Pereira, Bruynne, Salvador, Ansoff, Pedro Demo, Bardin entre outros.

Foi no mestrado que redescobri o prazer de ser representante de turma e participar das reunies de colegiado. Foi no mestrado que eu reafirmei o meu desejo de ser professora e entendi que precisava da Educao para sustentar a minha atuao profissional. Foi no mestrado que eu decidi que iria fazer o doutorado. Nessa poca engravidei e passei um dos perodos mais fantsticos da minha vida. Compreendi o que era superao, depois de defender minha dissertao com seis meses de gestao, ao mesmo tempo que assumia algumas turmas de graduao e uma aqui e outra acol de ps-graduao lato sensu. Em 14 de dezembro de 2001, l pelo meio dia eu estava a realizar mais um sonho na minha vida. Eu recebia o ttulo de Mestre em Administrao.

Poucos meses depois eu realizava outro grande sonho: em 05 de maro de 2002 nascia minha filha. E lembrar de Ceclia, e em tudo de bom que ela me trouxe com o seu nascimento me faz lembrar outro momento importante da minha vida: os ltimos dias do meu pai. Se na Escola no aprendemos tudo sobre como viver e sobreviver, certamente no foi l que aprendi sobre a morte. Eu aprendi sobre a morte com a experincia e o misto de sentimentos que vivi desde o padecimento do meu pai (no final de 2001) at a sua morte. Em 31 de maio de 2003, por volta das 2h da madrugada meu pai dava seu ltimo suspiro segurando em minha mo. Qui um dia eu escreva algo sobre o aprendizado que eu tive com essa experincia. De uma coisa eu tenho certeza e atesto nos escritos que agora teo, sou uma pessoa diferente e creio que bem melhor depois de tudo. Mas, voltando ao ponto central e motivador deste relato...

Com o trmino do mestrado e o nascimento da minha filha resolvi que s iria pleitear uma vaga para o doutorado depois de transcorrido uns quatro ou cinco anos, depois de 2002. Bem, parece-me que a rea de planejamento no o meu forte, porque na poca em que estava de licena maternidade imaginei como seria importante enveredar pela rea da Educao para completar minha ps-graduao. Desta forma eu faria um trip interessante em minha formao: a Psicologia, a Administrao e a Educao, visto que eu j era professora e queria s-lo at o resto da minha vida. Pois bem, comecei a pensar quais os motivos que no me deixavam parar de pensar em estar no meio escolar. O que ele representava para mim? Que garantias eu buscava em estar inserida no ambiente universitrio? O que me realizava em ser professora e quais eram as minhas lacunas nesta funo? Por que me sentia to cobrada pela sociedade e cada vez mais buscava na academia o respaldo para enfrent-la? Ser que a minha experincia escolar havia me preparado para adentrar no mundo do trabalho e por causa disso eu no desejava me afastar dela? O que me fazia querer estar em constante condio de aluna, de aprendiz? Em que a academia me fascinava tanto na condio de docente e de discente? Conversando com pessoas mais vividas (como sempre fiz) tomei a deciso: era em Educao que eu deveria me doutorar e, se em minha cidade havia um programa de referncia, pensei: por que no? Vou tentar e, o mais importante, no vou esperar tanto tempo!

Conhecer um pouco mais sobre a Educao era o primeiro passo que eu precisava dar. Comecei a ler e a tentar compreender um pouco mais sobre Educao. Precisava descobrir qual era o ponto intersticial entre a Educao, a Psicologia e a Administrao. Ento pensei que fazendo algumas disciplinas como aluna especial poderia ter um norte de por onde comear a fazer o meu projeto de tese. Desta feita, em 2003 ingressei como aluna especial e em 2004 prestei a seleo. Ao ver meu nome na lista dos aprovados afixada no mural dos corredores do PPGEd, chorei! Naquele instante, lembrei-me de agradecer a Deus por ter sido aprovada no vestibular de Psicologia, por ter sido escolhida pela rea de organizacional, por ter sido convidada a ministrar cursos para operadores de transportes coletivos, por ter conhecido pessoas admirveis na minha vida, por ter aceitado o desafio de lecionar no Curso de Administrao de uma Universidade (sem sequer saber direito como se fazia um plano de ensino), por ter feito especializao em Gesto de Recursos Humanos nas Organizaes, por ter conhecido, me apaixonado e casado com o meu marido, por ter feito o mestrado em Administrao, por ser madrasta do meu enteado e me da minha filha e por nunca ter desistido.

J em processo de doutoramento descobri vrias coisas a respeito de alunos, professores e pessoas. E mesmo sabendo que adoraria falar sobre mim e sobre a minha trajetria de autoformao, demorei um pouco para encontrar uma metodologia que pudesse, de forma cientfica, trazer na minha experincia escolar e seus entornos um ponto de referncia para outras pessoas e contribuies para as Cincias. O meu desejo era que a minha histria de vida pudesse ser abstrada por outras pessoas e que estas pudessem identificar situaes e fatos isolados ou conexos que lhes fizesse refletir sobre suas prprias histrias de vida. Desejei que a partir do meu relato eu pudesse encontrar incidentes crticos (ou momentos transformadores). Que teorias e construtos poderiam referend-lo? Almejava que a partir da minha experincia escolar eu pudesse compreender que caminhos e descaminhos eu havia percorrido at chegar ao mundo do trabalho e ser a pessoa e profissional que sou hoje. Seria atravs do relato reflexivo que eu poderia mergulhar num processo de transformao e, ao final, conseguisse perceber claramente em qual a pessoa tenho me transformado em minha trajetria de vida.CONSIDERAES FINAIS

As experincias relatadas anunciam uma grande diversidade de contextos, situaes, outros significativos, condies scio-culturais, polticas, familiares por mim percebidos. Desta forma, percebo a evidncia da dinmica da interao entre essas experincias. H em todo o relato a presena de ligaes bio-psico-sociais com situaes, coisas, lugares e pessoas. Essas ligaes se do, impreterivelmente, entre os acontecimentos materiais e psquicos da minha vida, em dimenses tanto individuais quanto coletivas (Delory-Momberger, 2006).Com grande presena de registros relacionais, o contedo do relato sobre mim mesma parece corroborar a idia de Dominic (2006) de que o centro da autobiografia de jovens adultos est calcado nas suas relaes familiares, escolares e amorosas. Identifico isso claramente ao evocar meus pais, meus professores, aqueles que admirava como pessoas e que me mobilizaram. A minha famlia e as minhas escolas foram compostas de atores de uma gerao que sonhou com um futuro estvel e feliz para os seus. Durante um longo perodo da minha formao estive bastante absorvida pelos mpetos ambiciosos das geraes que me precederam. O fato que eu percebo que tive que me reinventar e criar outras solues para assegurar a minha existncia e lhe aferir um sentido. Penso que durante esses momentos de ressignificao dos meus valores e objetivos coincidem com os momentos de confuso mental diante de tantos papis por mim assumidos e desempenhados. Muitas vezes me pergunto: eles foram escolhidos por mim, ou a mim foram atribudos? De verdade, percebo-me diante de trajetrias inslitas e opes aparentemente contraditrias. E na busca desta resposta e compreenso do meu processo formativo vou escrevendo coisas, assim como agora escrevo, procurando identificar os acontecimentos crticos a partir dos quais reorganizo o percurso da minha vida.

Outro aspecto de destaque que observo refletindo sobre o meu relato que me transformei em uma mulher que enfrenta uma vida adulta acrescida de problemas postos pelas novas condies de existncia. Desta forma me identifico com a afirmao de que o adulto pode sofrer ao se deparar com uma vida tornada precria e cuja complexidade ele no domina mais (Dominic, 2006, p. 354). Ento, parece que pensarmos sobre a nossa formao pode nos ajudar a pensar sobre a nossa vida e a reconhecer como o nosso caminho fora traado por ns mesmos.

A formao no vai, como ontem, abrir as portas s quais os adultos no tinham acesso, lhes garantir uma mobilidade, at uma promoo profissional. Em contrapartida, ela pode ajud-los a conceber as formas do que sua vida pode se tornar. A construo biogrfica parece assim representar bem ,em nossos dias, uma das finalidade da formao dos adultos. (DOMINIC, 2006, p. 354)

Pensar sobre o que a Escola me deixou e tem me agregado refletir muitas vezes que precisei renunciar do que havia previsto fazer de minha vida no passado. Essa ruptura exigiu de mim um balano sobre as minhas escolhas e me reorientou a refazer programas de aes educativas para que eu os realize nos prximos decnios da minha vida. Penso que so motivos que encontram base nesse raciocnio que me fazem permanecer dentro da academia, do ambiente escolar. Penso ainda que eu tenha necessitado reconhecer quais so as necessrias aprendizagens que fazem face s exigncias que no mais das vezes perturbam a vida adulta. Percebi esse movimento nas minhas buscas o compreender que:

A formao contnua, monopolizada pelo aperfeioamento profissional, deve ser oferecida queles que precisam de apoios formadores para conduzir sua vida adulta. A resoluo dos conflitos existenciais pe em destaque um conhecimento da vida que merece ser reconhecido. (DOMINIC, 2006, p. 354)

Com efeito, elaborar esse texto foi um desafio que me convidou a desconsiderar as trajetrias lineares da minha vida. Da educao de base, passando pela juventude, at a universidade, novos caminhos, percalos, descobertas e redescobertas fizeram-me perceber que o tempo todo eu pude me reinventar. Eu s no tinha conscincia disso. Compreendi que a minha formao, como a de qualquer outra pessoa, deve ser pensada considerando as descontinuidades da existncia (idade, mudanas, perdas, descobertas), principalmente, que as transformaes impostas pela sociedade atual so bruscas e possuem um nvel de exigncia altssimo nos fazendo ter que mudar o rumo de forma talvez jamais imaginada!

Por fim, ao escrever, ler, reescrever e reler a histria da minha prpria educao, passo a crer que realmente ela foi construda entre flores e muros. Entre flores por que em todo o meu percurso at hoje encontrei pessoas que exalavam ensinamentos, que me inspiravam. Outrossim, deparei-me com pessoas e situaes que me machucaram a guisa do que os espinhos nos fazem. Entre muros porque a cada etapa da minha formao precisei enfrentar barreiras altas e baixas, frgeis e fortes e principalmente as internas. mister lembrar que os muros para mim nem sempre foram obstculos ou empecilhos. Em alguns momentos foi em um muro que eu subi para poder enxergar que havia do outro lado e tambm ao longe muito mais do que eu e os meus imaginvamos. Em alguns momentos senti-me em cima dele, sem saber o que fazer... Em outros, precisei decidir mudar de lado, em outros tantos entendi que ele era mais baixo de que eu supunha, da mesma forma que ca dele algumas vezes. Foi nesse jardim de flores e muros que me tornei parte do mundo e deixei a escola fazer parte do que fui, do que sou e do que serei. Com efeito, assim que me vejo: Eu no mundo e a Escola em Mim.

REFERNCIAS

DELORY-MOMBERGER, Christine. Formao e socializao: os atelis biogrficos de projetos. Educao e pesquisa. V. 32, n. 2, So Paulo: FEUSP, mai/ago. 2006. p. 359-372.

DOMINIC, Pierre. A formao de adultos confrontada pelo imperativo biogrfico. Educao e pesquisa. V. 32, n. 2, So Paulo: FEUSP, mai/ago. 2006. p. 345-358.

JOSSO, Marie Christine. Experincias de vida e formao. So Paulo: Cortez, 2004. NVOA, Antnio (org.) Vida de professores. 2 ed. Coleo Cincias da Educao. Porto: Porto Editora, 1995.

O exame de admisso era uma espcie de averiguao do nvel de conhecimento que na escola chamavam de teste. Naquela poca, havia poucas vagas para as escolas particulares de confisso religiosa e as diretoras, em sua maioria religiosas, queriam ter a certeza de que estariam admitindo os melhores alunos em conhecimento e em atitudes este foi o argumento usado para convencer minha me de que eu precisava me submeter ao dito exame.

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