Fleury Revisitando a Questao Democratica

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 81, p. 156-164, jan./abr. 2009 ARTIGO DE OPINIÃO / OPINION ARTICLE 156 Revisitando “a questão democrática na área da saúde”: quase 30 anos depois Revisiting “the democratic issue in the health sector”: almost 30 years later Sonia Fleury 1 1 Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). sonia.fl[email protected] Em outubro de 1979, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) apresentou, no 1º Simpósio sobre Política Nacional de Saúde na Câmara Federal, o documento intitulado A questão democrática na área da saúde 1 , identificado, a partir de então, como uma proposta coletiva do Movimento pela Reforma Sanitária naquela conjuntura. Desde a sua criação, o CEBES defendeu a idéia da Reforma Sanitária, como aparece no editorial do segundo número da Revista Saúde em Debate de 1977, no qual é afirmado o princípio de que “a saúde é um direito de cada e de todos os brasileiros” como recupera Paim (2008, p. 80) e se assume a “necessidade de organizar a prestação de serviços de saúde em uma nova perspectiva”. Nesse editorial é atribuído ao CEBES o seguinte papel: preconizar a democratização do setor saúde, recebendo todas as contribuições que atendam aos objetivos de uma Reforma Sanitária, que deve ter como um dos marcos a unificação dos serviços de saúde, públicos e sem fins lucrativos, com a participação dos usuários estimulada, crescente, possibilitando sua influência nos níveis decisórios e ampliando o acesso a serviços de saúde de boa qualidade.(CEBES, 1977, p. 3-4). A questão política que se coloca a partir desta análise é relativa às condições necessárias ao processo de po- litização e democratização da saúde. A relação entre democracia e saúde é proposta por Berlinguer (1979) ao postular que ambos são conceitos abstratos e, mais do que isso, orientações ético-normativas. Se há necessidade de se reconhecerem os conflitos de interesse e a oposição entre as forças conservadoras e reformadoras tanto no caso da democracia quanto no caso da saúde, tais conflitos não podem ser reduzidos a uma polarização classista. Por 1 Publicado originalmente em 1980 pela revista Saúde em Debate n. 9, p. 11-14. Republicado na coletânea “Saúde em Debate: fundamentos da reforma sanitária” Organizada por: Sonia Fleury, Ligia Bahia e Paulo Amarante, p. 149-151, Cebes: Rio de Janeiro, 2007

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Artigo sobre as questões democráticas pertinentes à saúde pública.

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  • Sade em Debate, rio de Janeiro, v. 33, n. 81, p. 156-164, jan./abr. 2009

    artIgo dE oPINIo / OPINION ARTIcLE156

    revisitando a questo democrtica na rea da sade:

    quase 30 anos depoisRevisiting the democratic issue in the health sector:

    almost 30 years later

    Sonia Fleury 1

    1 doutora em Cincia Poltica pelo Instituto

    Universitrio de Pesquisas do rio de Janeiro

    (IUPErJ); presidente do Centro Brasileiro de

    Estudos de Sade (cEbEs).

    [email protected]

    Em outubro de 1979, o Centro Brasileiro de Estudos de Sade (cEbEs) apresentou, no 1 Simpsio sobre Poltica

    Nacional de Sade na cmara Federal, o documento intitulado A questo democrtica na rea da sade1, identificado,

    a partir de ento, como uma proposta coletiva do Movimento pela reforma Sanitria naquela conjuntura.

    desde a sua criao, o cEbEs defendeu a idia da reforma Sanitria, como aparece no editorial do segundo nmero

    da Revista Sade em Debate de 1977, no qual afirmado o princpio de que a sade um direito de cada e de todos

    os brasileiros como recupera Paim (2008, p. 80) e se assume a necessidade de organizar a prestao de servios de

    sade em uma nova perspectiva. Nesse editorial atribudo ao cEbEs o seguinte papel:

    preconizar a democratizao do setor sade, recebendo todas as contribuies que atendam aos objetivos de uma Reforma Sanitria, que deve ter como um dos marcos a unificao dos servios de sade, pblicos e sem fins lucrativos, com a participao dos usurios estimulada, crescente, possibilitando sua influncia nos nveis decisrios e ampliando o acesso a servios de sade de boa qualidade.(CEbEs, 1977, p. 3-4).

    a questo poltica que se coloca a partir desta anlise relativa s condies necessrias ao processo de po-

    litizao e democratizao da sade. a relao entre democracia e sade proposta por Berlinguer (1979) ao

    postular que ambos so conceitos abstratos e, mais do que isso, orientaes tico-normativas. Se h necessidade de

    se reconhecerem os conflitos de interesse e a oposio entre as foras conservadoras e reformadoras tanto no caso

    da democracia quanto no caso da sade, tais conflitos no podem ser reduzidos a uma polarizao classista. Por

    1 Publicado originalmente em 1980 pela revista Sade em debate n. 9, p. 11-14. republicado na coletnea Sade em debate: fundamentos da reforma sanitria organizada por: Sonia Fleury, ligia Bahia e Paulo amarante, p. 149-151, Cebes: rio de Janeiro, 2007

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    outro lado, do ponto de vista estratgico, a luta pela universalizao da sade aparece com parte intrnseca luta

    pela democracia, assim como a institucionalizao da democracia aparece como condio para garantia da sade

    como direito de cidadania.

    a estratgia expansionista de uma hegemonia em formao consubstancia-se na sade atravs dos projetos da

    reforma Sanitria, por meio dos quais se busca a concretizao de:

    reconhecimento poltico e institucional do Movimento Sanitrio como sujeito e dirigente do processo refor-

    mador;

    ampliao da conscincia sanitria de forma a possibilitar o consenso ativo dos cidados (usurios e profis-

    sionais) em relao ao processo transformador no setor, bem como a natureza social das determinaes que incidem

    sobre o processo sade/doena e sobre a organizao do cuidado mdico;

    resgate da sade como um bem de carter pblico, embora contraditoriamente limitado aos interesses gerados

    pela acumulao de capital. Por conseguinte, trata-se de expressar o carter de bem pblico da sade consubstanciando-o

    na definio de uma norma legal e do aparato institucional que visa garantia da sua universalizao e equidade

    (flEuRy,1992, p. 31).

    a apresentao do documento A Questo Democrtica na rea da Sade na Cmara tornou-se um marco na

    trajetria da reforma sanitria por diferentes razes:

    a demonstrao da capacidade de organizao de diferentes formulaes anteriores para consolidar um projeto

    comum;

    a formulao, pela primeira vez, da proposta de criao do Sistema nico de Sade (SUS);

    a ocupao de um espao estratgico pelo Movimento pela reforma Sanitria, no que diz respeito construo

    de alianas estratgicas com os parlamentares.

    alm de denunciar a deteriorao progressiva das condies de vida e sade da populao brasileira, o documento

    assinala a crescente mobilizao popular e direciona essas tendncias construo do conceito de crise da medicina

    brasileira, decorrente de uma poltica socioeconmica privatizante, empresarial e concentradora de renda. tal poltica

    tanto reduzira os gastos em sade pblica quanto privilegiara a assistncia hospitalar, curativa e de alta sofisticao,

    incapaz de suprir as necessidades sanitrias da populao brasileira.

    denunciando as condies precrias de trabalho dos profissionais de sade e a ausncia de mecanismos de par-

    ticipao dos usurios, assume-se a necessidade de uma resposta democrtica questo, o que implica em:

    reconhecer o direito universal e inalienvel sade;

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    reconhecer a determinao social da sade;

    reconhecer a responsabilidade parcial, porm intransfervel das aes mdicas na promoo ativa da sade;

    reconhecer o carter social do direito sade, tanto no que tange responsabilidade da comunidade quanto

    do Estado.

    a construo do projeto da reforma sanitria fundou-se na noo de crise: crise do conhecimento e da prtica

    mdica, crise do autoritarismo, crise do estado sanitrio da populao, crise do sistema de prestao de servios de

    sade (flEuRy, 1988). a constituio da Sade Coletiva como campo do saber e espao da prtica social, foi demarcada

    pela construo de uma problemtica terica fundada nas relaes de determinao da sade pela estrutura social,

    tendo como conceito que articula teoria e prtica social a organizao da prtica mdica, capaz de orientar a anlise

    conjuntural e a definio das estratgias setoriais de luta.

    Partindo da anlise dos processos de trabalho e do conceito-chave de organizao social da prtica mdica, tal

    movimento faz uma leitura socializante da problemtica evidenciada pela crise da medicina mercantilizada, bem como

    de sua ineficincia, enquanto possibilidade de organizao de um sistema de sade capaz de responder s demandas

    prevalentes, organizado de forma democrtica em sua gesto e administrado com base na racionalidade do planeja-

    mento (flEuRy, 1988, p. 196).

    a resposta a essa situao de crise formulada com clareza no documento do cEbEs, a partir de uma proposta de criao

    de um SUS de responsabilidade estatal, obstaculizando a mercantilizao da sade. garantia-se, pois, um financiamento

    adequado a esse sistema, organizado de forma descentralizada e com base em unidades hierarquizadas que permitem a

    participao da populao em todos os seus nveis e instncias. Em seguida, traam-se diferentes diretrizes de conduo

    da estratgia do SUS e da transio para a sua implementao (flEuRy; bahia; amaRantE, 2007, p. 149-151).

    relendo esse documento hoje, pode-se perceber que sua fortaleza reside na confluncia e organizao de um

    conjunto de anlises e proposies crticas que englobam o diagnstico da crise na condio de sade e a crtica da

    organizao dos servios em prol de uma proposta alternativa de organizao do SUS que pudesse concretizar os

    princpios democrticos do direito universal sade.

    a grande potncia de tal proposta decorrente da facilidade em identificar a incapacidade do modelo vigente de

    organizao dos servios, subordinados crescentemente lgica da mercantilizao da sade; decorre, ainda, do fato

    de deter condies de responder situao de crise e demanda neste campo.

    a principal idia da proposta alternativa se d pela incluso da sade no campo dos direitos humanos, e pelo

    acesso aos servios de sade no campo dos direitos sociais, a serem garantidos por um Estado democrtico a partir da

    organizao de um sistema pblico e participativo, afirma-se no estatizante, popular.

    Para essa proposta confluem as solues dos problemas identificados no sistema de sade relativos a financiamento

    e organizao, relao pblico-privada, recursos humanos, modelo de ateno, insumos e medicamentos, relao da

    sade com o ambiente e, tambm, uso poltico da rede de servios.

    Nesse sentido, podemos dizer que a proposta do SUS cumpria os requisitos do que Marx (2003) denominou cate-

    goria simples ao tratar do mtodo da economia poltica. o pensador afirma que as categorias simples so a expresso das

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    relaes nas quais o concreto menos desenvolvido j pode ter se desenvolvido. o percurso do pensamento abstrato, que

    vai do simples ao complexo, deve considerar que o concreto concreto porque a sntese de mltiplas determinaes

    e, por isso, a unidade do diverso. (maRx, 2003). aparece no pensamento como processo de sntese, como resultado,

    e no como o ponto de partida, embora o seja. Passa a ser, tambm, o ponto de partida da intuio e da representao.

    No entanto, se a concretizao da reforma Sanitrio na proposta do SUS correspondia necessidade estratgica de

    convergir para um processo simplificado de sntese, a construo desse campo de conhecimento j apontava a sade como

    um objeto concreto e complexo, sntese de mltiplas determinaes, que na definio de arouca (1982) compreende:

    um campo de necessidades geradas pelo fenmeno sade/enfermidade;

    a produo dos servios de sade com sua base tcnico-material, seus agentes e instituies organizados para

    satisfazer necessidade;

    um espao especfico de circulao de mercadorias e de sua produo (empresas, equipamentos e medica-

    mentos);

    um espao de densidade ideolgica;

    um espao de hegemonia de classe atravs das polticas sociais, que tm a ver com a produo social;

    insero de uma potncia tecnolgica especfica que permita solucionar problemas tanto no mbito individual

    como no coletivo.

    Portanto, o movimento que impulsionou a reforma Sanitria brasileira colocou-se como projeto a construo

    contra-hegemnica de um novo patamar civilizatrio, o que implica em uma profunda mudana cultural, poltica e

    institucional capaz de viabilizar a sade como um bem pblico.

    os princpios que orientaram esse processo foram:

    tico-normativo: insere a sade como parte dos direitos humanos;

    cientfico: compreende a determinao social do processo sade doena;

    poltico: entende a sade como direito universal inerente cidadania em uma sociedade democrtica;

    sanitrio: defende a proteo integral sade, desde a promoo e ao curativa at a reabilitao.

    preciso levar em considerao esse jogo de idas e vindas entre o concreto multideterminado e a simplificao

    da abstrao proposta pelo SUS como o processo de sntese necessrio construo de um projeto poltico.

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    No entanto, para compreender o processo da reforma Sanitria, levantaram-se as seguintes hipteses

    (flEuRy,1990):

    a adoo de uma concepo ampliada de sade como resultado das formas de organizao social da produ-

    o, mas tambm como fruto das lutas populares cotidianas, ambas atuando em prol de sua concretizao histrica

    e singular;

    a democracia o processo de reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos polticos a partir de sua luta,

    em um processo mtuo de (auto) reconhecimento de identidades sociopolticas entre os sujeitos;

    a incorporao das demandas sanitrias por meio de um conjunto de dispositivos legais e institucionais,

    configurando distintas cidadanias, resultante da correlao de foras existentes e um elemento ativo na conformao

    de identidades polticas e sociais;

    as reformas Sanitrias quase sempre emergem em um contexto de democratizao e esto associadas emer-

    gncia das classes populares como sujeitos polticos, geralmente em aliana com setores da classe mdia;

    So elementos desse processo reformador: a generalizao da conscincia sanitria, a construo de um paradigma

    analtico fundado na determinao social da sade e da organizao das prticas, o desenvolvimento de uma nova

    tica profissional, a construo de um arco de alianas polticas em torno da defesa do direito sade e a criao de

    instrumentos de gesto democrtica e controle social do sistema de sade.

    o carter poltico da reforma Sanitria ser dado pela natureza da transio democrtica experimentada em cada

    contexto nacional, sejam elas transies pactuadas ou transies por colapso do autoritarismo.

    Seu formato e contedo polticos sero provenientes da juno de pelo menos alguns fatores tais como: os

    embates do carter poltico e ideolgico da coalizo que impulsiona o processo de democratizao com a coalizo

    conservadora, a articulao do processo da reforma Sanitria com as estratgias de transio democracia, o timing

    da reforma em relao ao processo de democratizao, a capacidade de alterao da cultura poltica prevalente em

    direo universalizao dos direitos e garantia de prticas administrativas participativas.

    a sustentabilidade desse processo de reforma depender da promoo de mudanas efetivas no controle insti-

    tucional, da qualidade e eficcia dos servios, o que garantir a preservao do apoio social reforma. alm disso,

    depender da reduo das restries, de ordem financeira e poltica, construo de um sistema amplo de proteo

    social, bem como da capacidade de transacionar os conflitos gerados pelo prprio processo reformador. Isso sem

    mencionar a flexibilidade da burocracia e dos profissionais de sade em relao a tais mudanas que dever existir.

    as perspectivas da reforma Sanitria derivam da capacidade apresentada pela coalizo reformadora de imprimir

    mudanas efetivas e no tempo justo sobre as estruturas institucionais de forma a evitar que o Estado filtre os aspectos

    que racionalizam as proposta ou mine sua base poltica.

    Em sntese, a reforma Sanitria brasileira tomou como ponto de partida o carter dual da sade, entendida

    como a possibilidade de ser vista como valor universal e ncleo subversivo da estrutura social. Como valor universal,

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    torna-se um campo especialmente privilegiado para a construo de alianas suprapartidrias e policlasistas. Como

    ncleo subversivo da estrutura social, indica uma possibilidade sempre inacabada em um processo de construo

    social de uma utopia democrtica.

    a permanente tenso entre um projeto de radicalizao da democracia implcito na reforma Sanitria e sua con-

    cretizao possvel atravs de uma reforma do sistema de sade parte da opo de uma via de transio, j apontada

    por Poulantzas (1980).

    Na medida em que se considera o fato de a luta estratgica pelo poder atravessar o Estado, ser necessrio realiz-la

    nesse espao, mas h sempre uma necessidade de diferenci-la da ocupao de posies nas cpulas governamentais e

    tambm do reformismo progressivo, que no passa de transformao estatal. o que identifica a luta pelo Socialismo,

    mesmo no interior do Estado, a sua capacidade de causar rupturas reais na relao de poder de forma tendenciosa

    s massas populares. Isso requer sua permanente articulao com as lutas de um amplo movimento social pela trans-

    formao da democracia representativa.

    A efetivao desta via e dos prprios objetivos que ela comporta, a articulao desses dois movimentos que visa a evitar o estatismo e o impasse da social-democracia, supem o suporte decisivo e contnuo de um movimento de massa baseado em amplas alianas populares. Se esse movimento desenvolvido e ativo opondo-se revoluo passiva no existe, se a esquerda no consegue incit-lo, nada poder impedir a social-democratizao desta experincia: os diversos programas, por mais radicais que sejam, no modificam quase nada o problema. Esse amplo movimento popular constitui uma garantia diante da reao do adversrio, mesmo que no seja suficiente e deva sempre estar aliado a transformaes radicais do Estado. (poulantzas, 1980, p. 299).

    revisitando a Questo democrtica da Sade quase 30 anos depois podemos dizer que as opes feitas foram

    corretas, mas insuficientes para enfrentar as foras contra-reformistas e alterar efetivamente as relaes de poder.

    Com a reforma democrtica do Estado e criao do SUS fomos capazes de deslocar o poder para os nveis sub-

    nacionais, inaugurando um modelo de federalismo pactuado altamente inovador sem, contudo, assegurar o estabe-

    lecimento de transparncia e responsabilidade necessrias ao um estado republicano.

    Foi possvel, ainda, institucionalizar e constitucionalizar os princpios e diretrizes que operacionalizam o direito e a

    organizao do sistema de sade, sem que se evitassem a desmontagem do aparelho administrativo e prestacional do Estado, a

    deteriorao das condies de trabalho, a politizao e patrimonializao dos recursos pblicos ou a corrupo na sade.

    Criaram-se modelos de gesto pblica que levariam em conta a participao da sociedade civil por meio de

    conferncias e conselhos. No haveria garantia, no entanto, que esses espaos gerassem processos comunicativos e

    deliberativos de construo de polticas.

    a cobertura dos servios para os setores mais excludos foi ampliada, ainda que isso representasse a entronizao do

    modelo de ateno curativo ou, quando ampliada a ao preventiva, a possibilidade de se estruturar um novo modelo

    de ateno com servios de qualidade. o sistema de sade pblico foi, ento, unificado com uma nica autoridade

    em cada nvel de governo sem que se rompesse a lgica predominante de pagamento por servios prestados e com as

    conseqncias deletrias dessa modalidade para o sistema.

    Foram fortalecidos os atores polticos que se organizam ao redor das polticas e recursos da sade, ainda que isso

    tenha resultado em fragmentao, cooptao e corporativizao, reduzindo o potencial do movimento sanitrio.

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    Foi possvel resistir a todos os projetos liberais e defender a manuteno do SUS, mas no se pde garantir uma

    fonte regular para o seu financiamento e patamares de gasto pblico necessrios para o seu funcionamento.

    a conscincia sanitria em relao ao direito sade aumentou, mesmo que esta compreenso de sade se reduza

    ateno mdica curativa e permita a crescente judicializao da sade. alm disso, a sade se fortaleceu como poltica

    pblica sem que esse fato representasse uma articulao maior com as polticas de meio ambiente e da Seguridade

    Social ou mesmo um maior comprometimento dos governos com as polticas de sade.

    ampliou-se dramaticamente a produo de consultas e intervenes em todos os tipos de procedimentos, dos

    mais simples aos mais complexos, sem que fosse possvel definir uma porta nica do sistema e uma rede de servios

    hierarquizada e coordenada. resistiu-se privatizao da sade com a preservao do SUS, mas h, no fim das contas,

    uma incapacidade de romperem-se os fluxos, no interior do SUS, atravs dos quais os recursos pblicos so canalizados

    em prol de benefcios privados e organizaes lucrativas.

    Por essas razes, est na hora de questionarmos qual , hoje em dia, a questo democrtica da sade: aquela que

    nos permite a convergncia dos diferentes discursos e propostas progressistas e encaminha um projeto de transforma-

    o, capaz de provocar rupturas estratgicas em direo reforma Sanitria.

    Nesse sentido, reafirmamos a convico de que apenas o Sistema nico, e pblico, de Sade pode responder

    s demandas sanitrias e necessidade de construo de uma sociedade democrtica pautada nos direitos sociais de

    cidadania. Considera-se que, com todos os problemas apontados, o SUS construiu democracia em sade e deve ser

    o caminho seguido para que esse processo seja radicalizar. No entanto, preciso entender que a prpria existncia do

    SUS colocou os problemas identificados h 30 anos em um novo patamar de complexidade: financiamento, gesto,

    recursos humanos, insumos, acesso a e qualidade dos servios, relao entre o pblico e o privado.

    o que se observa na fase atual que o modelo igualitrio defendido pelo SUS no se completou e o sistema

    continua cheio de iniqidades, reproduzindo, como as demais polticas pblicas no Brasil, as desigualdades que es-

    truturam a sociedade brasileira. Mesmo tendo sido uma das polticas, junto s demais da Seguridade Social, que mais

    reduziu o quadro de desigualdades nos ltimos anos, necessrio reconhecer, identificar e transformar as condies

    que as reproduzem no interior do SUS.

    devemos retomar os fundamentos metodolgicos que nos permitiram a construo dessa trajetria poltica e

    institucional democrtica, recorrendo ao conceito de crise para proceder ao diagnstico da situao atual. a popu-

    lao vive a ateno sade como uma crise permanente, resultado, em grande parte, da insegurana em relao a

    suas expectativas sobre o direito sade. a crise percebida nas condies materiais de ateno e na forma, muitas

    vezes humilhante e degradante tanto para pacientes quanto para profissionais, como se d o processo de ateno

    sade. a populao reconhece que existem, na sociedade brasileira, recursos tcnicos, financeiros e humanos que no

    so direcionados a atender s suas necessidades de sade. preciso que nos solidarizemos com esse sentimento e essa

    parcela da populao para que, dessa forma, possamos transformar o SUS, nas localidades onde apresente esse tipo

    de problemas, assegurar cuidados de qualidade, um acolhimento digno e a resolutibilidade ao usurio-cidado.

    Mas, necessrio que, nesse movimento de solidariedade e compreenso crtica, sejamos capazes de ir alm da

    denncia e analisemos os fatores que permitem essas situaes; ou, mais ainda, que pensemos uma forma de operar as

    rupturas que possa transform-los. Nesse sentido, devemos entender que todas as questes estruturantes dos proble-

    mas do SUS devem ser pensadas luz do critrio poltico da equidade e no como um conjunto progressivo de aes

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    administrativas. Em outras palavras devemos pensar, por exemplo, no financiamento, mas no apenas na quantia de

    dinheiro que falta para a sade. preciso ir alm; preciso que nos questionemos sobre o por qu de o governo usar

    recursos da sade e de outras reas sociais para supervit fiscal (via drU). E, tambm, por que no assume compro-

    missos com metas financeiras que permitam aumentar progressivamente o gasto pblico federal per capita? Por que

    renuncia cobrana de impostos das classes mdia e alta com seguros de sade ao invs de direcionar tais recursos

    para o SUS? Por que contingencia os recursos do oramento aprovado? Por que utiliza recursos pblicos na compra de

    planos de sade para os servidores? Por que no contribui para a regulamentao da Emenda Constitucional no 29?

    o Movimento pela reforma Sanitria tem de exigir essas respostas para que se assegure uma maior equidade no

    financiamento do SUS. Por outro lado, preciso que analisemos, no prisma da equidade, o gasto em sade para de-

    monstrar que ele no neutro, pois privilegia prticas, setores empresariais, unidades federativas e unidades de servio

    que reproduzem as desigualdades sociais. devemos identificar o gasto, as prticas, as relaes que estruturam novas

    modalidades de ateno e que so potencialmente geradoras de rupturas com o padro de desigualdades vigentes.

    Em outras palavras, trata-se de entender a complexidade atual desse concreto multideterminado que o SUS e,

    permanentemente, confront-lo de forma dialtica com os princpios e valores que orientaram a construo da reforma

    Sanitria brasileira. dessa forma, seria possvel a formulao de novas estratgias que permitam avanos e rupturas.

    hoje em dia, o filtro poltico que orienta essa avaliao est claro, pois no h democracia onde reina a

    iniqidade.

    R E F E R N C I A S

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    recebido: Novembro/2008

    aprovado: dezembro/2008