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6469 FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA: UM TEMA DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO FLEXIBILIZATION OF RES IUDICATA (COLLATERAL ESTOPPEL): AN ISSUE OF LAW INTERPRETATION Iara Rodrigues de Toledo RESUMO Enfrenta o presente estudo a problemática da imutabilidade absoluta da coisa julgada material, ressalvadas as poucas, e em prazos peremptórios, hipóteses previstas no Código de Processo Civil. Por meio do método crítico, concluiu-se que as chamadas, “data venia”, impropriamente, relativização ou flexibilização da coisa julgada, não traduzem uma novel teoria, enquadrando-se, tão simplesmente, na seara da Interpretação do Direito, na qual o juiz se posta como sujeito do seu tempo, inserto na realidade político – social de sua época, em prol de uma Ordem Jurídica Justa. PALAVRAS-CHAVES: COISA JULGADA MATERIAL; IMUTABILIDADE; RELATIVIZAÇÃO; FLEXIBILIZAÇÃO; ORDEM JURÍDICA JUSTA. ABSTRACT The present study faces a problem of absolute immutability of res iudicata (collateral estoppels), excepted the few, in obligatory terms, hypothesis foreseen in the Civil Procedure Code. Through a critical method, it was concluded that the denominated “data venia”, improperly, relativization or flexibilization of the res iudicata does not represent a new theory, simply adjusting into the field of the interpretation of the law, in which the judge places himself as the subject of his time, inserted into the political and social reality of his/her age, in favor of a Fair Judicial Process. KEYWORDS: "RES IUDICATA” (COLLATERAL ESTOPPEL); IMMUTABILITY; RELATIVIZATION; FLEXILBILIZATION; FAIR JUDICIAL PROCESS. “A INJUSTIÇA, A IMORALIDADE, O ATAQUE À CONSTITUIÇÃO, A TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE DAS COISAS QUANDO PRESENTES NA SENTENÇA VICIAM A VONTADE JURISDICIONAL DE MODO ABSOLUTO, PELO QUE, EM ÉPOCA NENHUMA, ELA TRANSITA EM JULGADO”. (EX-MINISTRO DO STJ JOSÉ AUGUSTO DELGADO)

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FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA: UM TEMA DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

FLEXIBILIZATION OF RES IUDICATA (COLLATERAL ESTOPPEL): AN ISSUE OF LAW INTERPRETATION

Iara Rodrigues de Toledo

RESUMO

Enfrenta o presente estudo a problemática da imutabilidade absoluta da coisa julgada material, ressalvadas as poucas, e em prazos peremptórios, hipóteses previstas no Código de Processo Civil. Por meio do método crítico, concluiu-se que as chamadas, “data venia”, impropriamente, relativização ou flexibilização da coisa julgada, não traduzem uma novel teoria, enquadrando-se, tão simplesmente, na seara da Interpretação do Direito, na qual o juiz se posta como sujeito do seu tempo, inserto na realidade político – social de sua época, em prol de uma Ordem Jurídica Justa.

PALAVRAS-CHAVES: COISA JULGADA MATERIAL; IMUTABILIDADE; RELATIVIZAÇÃO; FLEXIBILIZAÇÃO; ORDEM JURÍDICA JUSTA.

ABSTRACT

The present study faces a problem of absolute immutability of res iudicata (collateral estoppels), excepted the few, in obligatory terms, hypothesis foreseen in the Civil Procedure Code. Through a critical method, it was concluded that the denominated “data venia”, improperly, relativization or flexibilization of the res iudicata does not represent a new theory, simply adjusting into the field of the interpretation of the law, in which the judge places himself as the subject of his time, inserted into the political and social reality of his/her age, in favor of a Fair Judicial Process.

KEYWORDS: "RES IUDICATA” (COLLATERAL ESTOPPEL); IMMUTABILITY; RELATIVIZATION; FLEXILBILIZATION; FAIR JUDICIAL PROCESS.

“A INJUSTIÇA, A IMORALIDADE, O ATAQUE À CONSTITUIÇÃO, A TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE DAS COISAS QUANDO PRESENTES

NA SENTENÇA VICIAM A VONTADE JURISDICIONAL DE MODO ABSOLUTO, PELO QUE, EM ÉPOCA NENHUMA, ELA TRANSITA EM

JULGADO”. (EX-MINISTRO DO STJ JOSÉ AUGUSTO DELGADO)

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1. À GUISA DE PREMISSA

Tematiza Ronald Dworkin (2002, p. 429), no último capítulo da sua obra “Levando os Direitos a Sério”, de forma interrogativa, se os direitos podem ser controversos. Após afirmar que frequentemente há uma única resposta certa para questões complexas de direito e moralidade política, e enfrentando a objeção de que às vezes não há uma única resposta certa, mas somente resposta, enfatiza: “Contudo, insisto que, mesmo nos casos difíceis, é razoável dizer que o processo tem por finalidade descobrir, e não inventar, os direitos das partes interessadas e que a justificação política do processo depende da validade dessa caracterização”.

Nesse desafiante viés do pensamento dworkiano da busca de uma “única resposta certa”, ou quiçá, se tormentosa ou impossível esta, numa proposta mais modesta e apaziguadora, é que o princípio da imutabilidade, enquanto voltado à coisa julgada material, receberá uma análise crítica-construtiva, dentro de uma proposta de enfrentamento da tormentosa problemática constitucional-processual civil pertinente a sua natureza jurídica - imutabilidade: Absoluta? Relativa? A sempre complexa e polêmica (por isso mesmo apaixonante) figura da coisa julgada material ressurge como pauta obrigatória de estudo, mormente à vista do significativo embate de idéias por parte de festejados cientistas e pensadores do processo civil pátrio em prol de sua revisitação à luz dos princípios de justiça e segurança jurídica. Inquieta a uma progressista vertente de pensamento, no tocante à coisa julgada material injusta e/ou inconstitucional, a sacralização do princípio da imutabilidade por parte de teóricos mais conservadores que se arreceiam dos riscos de fragilização do princípio da segurança jurídica, passível de acarretar até mesmo o desmoronamento do ordenamento jurídico civil, uma vez caracterizado este princípio como estruturante da República Brasileira

Reescrevendo, com mais ênfase: Sempre, sempre “ela” - a “coisa julgada”! Uma vez mais, coloca-se a coisa julgada em sua faceta material como centro de calorosos e inconciliáveis debates e tertúlias, aos quais não se furtam estudiosos geniais das mais variadas áreas acadêmicas e profissionais da Ciência do Direito. Em meio a uma avalanche de leis reformistas do Código de Processo Civil pátrio, sobrepaira a imantar os juristas a impropriamente denominada “flexibilização” ou “relativização” da coisa julgada material em face de julgado inconstitucional e/ou injusto.

2. REAVIVANDO E CONSTRUINDO ALGUMAS NOÇÕES RELATIVAS À COISA JULGADA

2.1 Conceito de Coisa Julgada: Conteúdo, Eficácia e Efeito da Sentença; Discrímen entre Coisa Julgada Formal e Material

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Deformando o conceito proposto no Anteprojeto Buzaid, reza o art. 467 do CPC denominar-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. O aleijão doutrinário advém de dois equívocos do legislador: o primeiro, ao entendê-la como “efeito”; e o segundo, por conceituar a coisa julgada formal, intitulando-a de material.

É incontestável, não ser opção feliz a estratificação de conceitos científicos em texto legislativo. Por primeiro, pela possível petrificação do entendimento - desaconselhável mesmo quando retrata com perfeição doutrina sedimentada - e por segundo, pela ausência de cientificismo decorrente da distorção traçada pelo legislador, com não impossíveis reflexos na aplicação da lei.

Em lição que se tornou clássica, esclarece Enrico Tullio Liebman (1984) que a autoridade da coisa julgada, por ele definida como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença, é uma qualidade que reveste o ato também em seu conteúdo e tornam imutáveis, além do ato na sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam do próprio ato.

No estudo “Ainda e sempre a coisa julgada”, dilucida José Carlos Barbosa Moreira (1971), após percuciente análise aos pensamentos de Liebman, Carnelutti, Allorio, não se identificar a coisa julgada nem com a sentença transita em julgado nem com o particular atributo da imutabilidade de que ela se reveste, mas com a situação jurídica em que passa a existir após o trânsito em julgado

Ovídio A. Baptista da Silva (1996) valendo-se dos conceitos de conteúdo, eficácia e efeitos da sentença perquiri sobre o campo da sentença coberto pela coisa julgada material, e avançando sobre o repetitivo conceito de ser a declaração o conteúdo exclusivo da sentença, conclui que as eficácias de uma determinada sentença fazem parte do seu conteúdo e por meio delas é que uma sentença declaratória, constitutiva, condenatória, executiva “lato sensu” ou mandamental, se diferenciam.

Para Pontes de Miranda (1997) a imutabilidade que caracteriza a coisa julgada material é efeito atribuído à coisa julgada. A imutabilidade da sentença como ato de prestação da tutela jurídica que o Estado cumpriu é a coisa julgada, dita por isso formal. A coisa julgada material é a eficácia da coisa julgada consistente em não se poderem mudar os seus efeitos.

2.2 Natureza jurídica da coisa julgada

No que concerne à natureza jurídica da coisa julgada, duas correntes de pensamento se sobressaem. Em uma delas situam-se os que a elevam à nível constitucional com lastro na compreensibilidade do art. 5º, inc. XXXVI da CF ao normatizar que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Nesse rumo já pontificava a doutrina liebmaniana, como se infere do texto da consagrada obra “Eficácia e Autoridade da Sentença” (LIEBMAN, 1984) que após definir a autoridade da coisa julgada como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença e

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ponderar não poder, sequer o próprio legislador, mudar a normatividade concreta da relação a qual vem a ser estabelecida para sempre pela autoridade da coisa julgada, em frase lapidar, expõe pertencer o instituto da coisa julgada ao direito público, e mais precisamente, ao direito constitucional.

Noutra posição enfileiram-se os partícipes da teoria da natureza processual, destacando-se a página pontiniana da obra “Comentários ao Código de Processo Civil” (MIRANDA, 1997) que justifica seu entendimento de ser anacrônica e ilógica a tese da natureza constitucional postulada por Liebmam, uma vez que a eficácia da sentença depende do direito processual, e o conceito de coisa julgada formal e material que aparece, ou pode aparecer nas Constituições, foi tomado ao direito processual. Apenas se lhe dá seguridade ou garantia constitucional, mediaante a constitucionalidade da regra de direito intertemporal.

Fiel à mesma linha de pensamento, e frisando a tese do ex-Ministro do STJ José Augusto Delgado, expõem Humberto Theodoro Júnior e Juliana C. de Farias (2005), no estudo intitulado “A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para o seu Controle”, que a regra do art. 5º, inciso XXXVI da CF se dirige apenas ao legislador ordinário, cuidando-se de regra de sobre-direito, na medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao poder legiferante prejudicar a coisa julgada. É esta a única regra sobre a coisa julgada que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária. E arremata, na mesma linha de pensamento, Celso Neves (1971, p. 161) em sua obra “Coisa Julgada Civil”:

A coisa julgada é, pois, um fenômeno de natureza processual, com eficácia restrita, portanto, no plano processual, sem elementos de natureza material na sua configuração, teologicamente destinada à eliminação da incerteza subjetiva que a pretensão resistida opera na relação jurídica sobre que versa o conflito de interesse.11

2.3. Brevíssima construção pessoal do conceito e natureza jurídica da coisa julgada

Nos lindes desses textos doutrinários voltados à coisa julgada, permissível a construção de necessárias assertivas para o avançar do raciocínio na problemática posta.

A primeira, configura a coisa julgada material como uma eficácia pan-processual que se pospõe à definitividade do julgamento de mérito intra-processo (coisa julgada formal), a acarretar a imutabilidade do comando normativo da declaração judicial, nele contido. Explique-se: acolhe-se a natureza jurídica de eficácia à coisa julgada material no entendimento da sua propulsão (força) geradora do efeito extra-processo da imutabilidade (auctoritas rei iudicatae) impeditivo à repropositura de ação idêntica – eficácia negativa. Essa imutabilidade, esclareça-se, não se relaciona ao ato processual sentença ou acórdão, numa ótica do ato decisório em si mesmo. Também, sequer atinge os efeitos da sentença ou acórdão, quais sejam: declaratório, condenatório, constitutivo, executivo “lato sensu”, mandamental. Cinge-se ela - a imutabilidade - aos comandos normativos (quais sejam, declarando, condenando, constituindo/

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desconstituindo/criando, modificando ou extinguindo - executando, o despejo, por exemplo, concedendo a ordem) insertos na sentença - que se visualiza como ato processual de criação da norma jurídica concreta - com julgamento do mérito e transita em julgado a declaração judicial, já que ínsito ao processo de accertamento. Não se desconheça, entretanto, ser igualmente extensível, essa imutabilidade, aos demais comandos que possam vir a integrar o conteúdo da decisão. Sempre firme na lição de Pontes de Miranda (1997), exposta em sua obra “Comentários ao Código de Processo Civil”, acolha-se a tese da inexistência de “sentença pura”. A título ilustrativo, uma ação de conhecimento meramente declaratória, incoada com fulcro no art. 4º do CPC, muito embora a carga de eficácia maior concentre-se na declaração, a outorgar à respectiva sentença, como consequência, natureza declaratória, inegável, conquanto mitigada, a carga eficacial de condenação concernente às custas e honorários advocatícios.

Por segunda assertiva, prestigia-se a tese da natureza jurídica processual ao instituto da coisa julgada, restringindo-se o alcance constitucional a uma garantia de direito intertemporal, à luz das precisas e autorizadas ensinanças trazida à ilustração.

3. ESCOPO POLÍTICO DA COISA JULGADA - SEGURANÇA JURÍDICA E SENTENÇA INCONSTITUCIONAL OU INJUSTA

Se a perquirição sobre a legitimidade da apreciação pelo Poder Judiciário das questões voltadas à inteligência da Constituição nos seus aspectos políticos justifica-se pela imunização ao risco da pecha de prolação de “decisões políticas”, inicialmente, duas premissas põem-se como obrigatórias. A primeira refere-se à delimitação do conceito de “questão política”. A segunda, ao precedente histórico de vedação ao julgamento de inconstitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário, sob a égide da Constituição Imperial, em reverência a tese tripartite dos Poderes do Estado traçada por Montesquieu. Paradoxalmente, contudo, aceitável o entendimento dessa legitimidade extrair-se da sua própria natureza como um desses Poderes. Ademais, o próprio Direito tem entre os seus escopos, o político.

Cândido Rangel Dinamarco (1987), no livro “A Instrumentalidade do Processo” e que, inegavelmente, sem favor nenhum, vira página na história do processo civil pátrio, ao propor uma nova mentalidade aos seus operadores, contextualizando o sistema processual a uma visão publicista e solidarista advinda da política e sociologia do direito, e pelo fio da instrumentalidade, edificar os escopos sociais, políticos e jurídicos, em favor da efetividade do processo, lembra que o próprio direito tem inegavelmente um “fim político”, ou fins políticos, e é imprescindível encarar o processo, que é instrumento estatal, como algo de que o Estado se serve para a consecução dos objetivos políticos que se situam por detrás da própria lei.

Em seara da coisa julgada, em lição cediça, o fundamento político prende-se à segurança. Com esse magistério, compreende Eduardo Talamini (2005), em sua obra “Coisa Julgada e sua Revisão”, que conquanto comporte íntima vinculação a coisa julgada e o princípio da segurança, outra indagação faz-se necessária, qual seja, a de se saber em que medida a própria segurança jurídica, no Estado Moderno, não teria

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perdido seu relevo sistemático em prol de outros valores (hipótese em que a coisa julgada poderia ter tido o mesmo destino) partindo-se da idéia de que uma série de fatores inerentes à atual realidade sócio-econômica não apenas alteraram a feição e função do Estado, como também acabaram esvaziando a operatividade dos princípios da constitucionalidade, legalidade, certeza e segurança.

Com idêntico entendimento, mas detectando uma linha limítrofe a essa segurança, explicita Cândido Rangel Dinamarco (1987), no livro já citado, que o valor segurança, que é um valor de primeira grandeza, e alçado à dignidade constitucional mediante a garantia do respeito à coisa julgada, só não pode prevalecer quando a estabilidade do julgado significar imutabilidade de situações de contrariedade a outros valores humanos, éticos ou políticos de igual ou maior porte.

Se irrepreensível o alicerce da segurança jurídica e pacificação social a nortear a figura da coisa julgada num determinado momento da relação processual, eclodindo o fenômeno da preclusão máxima a tornar intocável o caso julgado, intra e extra processo, devendo findar-se os litígios, não menos acertada é a compreensão de não se compactuar com a ciência do direito um pensar retilíneo, a modo das ciências exatas, matemáticas, nas quais dois e dois somam quatro. O direito, traduzido como o homem em sua dignidade inserido em uma sociedade complexa e altamente conflituosa, está a reclamar dos operadores da máquina judiciária, no dia-a-dia forense, mentes laboriosas que o auxiliem a superar suas angústias e a construir uma sociedade mais solidária, fraterna e mais feliz, sob o signo da Justiça. Redundando, aí sim, na tão almejada “paz social”, objetivo último do próprio direito.

Daí a precisão da doutrina mencionada de Dinamarco (1987) ao propugnar pelo caráter não absoluto da imutabilidade da coisa julgada, e por consequência, do próprio princípio da segurança jurídica, frente a outros valores humanos, éticos, políticos de igual ou maior porte.

Importa, num outro enfoque, consignar como não cumpridoras do idealizado escopo político da “segurança jurídica e paz social” (muito ao contrário, propiciadoras de “insegurança jurídica” e “instabilidade da ordem social”) as sentenças de mérito adjetivadas de aberrantes, teratológicas, patentemente errôneas, irreais frente à natureza das coisas, imorais, inconstitucionais, injustas, entre outros vícios e imperfeições, uma vez coroadas pela “autoritas rei iudicatae”, e cuja imutabilidade seja dogma absoluto, como pretende determinado segmento doutrinário, de matriz fortemente conservadora e de índole meramente legalista.

Não se desconhece que a complexidade da sociedade pós-moderna neste iniciar de novo século, retrata uma humanidade em estado de factível perplexidade frente a uma irrefreável velocidade da realidade, em centros urbanos que nunca adormecem e a projetar delirantes imagens de multidões solitárias, e que a modo de paradoxo entre a “vida-do-fato” e o “fato-do-direito”, ao invés da paz e segurança nas relações sociais, o que se tem é uma constante e insólita (in)segurança, onde a equação - lógica jurídica, “fato versus direito”, é transmudada na equação - ilógica da vida, “homem versus angústia”. Neste quadro humano de tinturas dantesca, fruto da lógica-do-viver moderno, permissível ao jurista indagar-se sobre o amoldamento a este, da singeleza do binômio da lógica formal “coisa julgada material - imutabilidade da sentença”. Se do observatório totalizante do viver diário, resultar, para esse jurista, o prudente e

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consciente pensamento “conquanto aceitável como regra básica de julgamento degradar-se-iam o homem em sua dignidade, e também o ordenamento jurídico, emoldurá-los na rigidez desse axioma matemático”, uma imediata interrogação seguir-se-ia a propósito do parâmetro mais apropriado a justificar, senão propriamente a quebra, mas a minimização dessa regra da imutabilidade. E a resposta única, audível ao pensador de sua época, seria o sentimento do justo, que se traduz na oratória da busca de efetivação de uma ordem jurídica Justa.

Autorizado seria afirmar, que os jurisdicionados de hoje não se contentam com sentenças pró-formas, fictícias, irreais, e injustas que não atendam às suas aflições, e que os divorcie do projeto constitucional de seres humanos dignos, respeitados e felizes. Numa só expressão, os jurisdicionados esperam do Poder Judiciário, última pilastra do cidadão, nada menos que sentenças - justas.

4. A JUSTIÇA: FUNDAMENTO PARA A QUEBRA DA IMUTABILIDADE DA COISA JULGADA?

Aliançando a explanação supra, não descomplicadas considerações esteriotipam o que se há de entender como “Sentimento do Justo”? Ordem Jurídica Justa? Sentença Justa? Justiça?

Não sem se ponderar quão diáfana e insólita a perquirição sobre Justiça se coloca, seja na Ética, na Filosofia, e, em especial, na Filosofia do Direito, um dado da razão, porém, que se antepõe a sua compreensibilidade , é certo e inquestionável, como propõe Miguel Reale (2001, p. 2), no artigo intitulado “Variações sobre a Justiça” publicado no jornal O Estado de São Paulo, em frase incisiva afirma “Se não conseguimos defini-la (a Justiça) nem por isso podemos viver sem ela”, no entendimento de que não desaparece nossa aspiração no sentido de que haja atos justos que dignifiquem a espécie humana. Hans Kelsen (1995, p. 01) na obra “Ilusão da Justiça”, após enfatizar que de todo o grande contingente daqueles que se ocuparam da questão da Justiça, duas cabeças (Jesus e Platão) lutaram pela justiça, de sorte que se se espera uma resposta para a questão da justiça absoluta, haver-se-á de encontrá-la em um ou no outro, ou, caso contrário, inteiramente irrespondível tal questão por-se-á. E fundamenta esse pensar com a frase lapidar “E isso porque inexiste, e decerto nem pode existir, pensamento mais profundo e querer mais sagrado voltados para a solução do enigma da justiça”. No capítulo sessenta e sete, dessa mesma obra, com o título “O Bem e a Justiça”, continuando com o estilo de um diálogo com Platão, pelo qual analisa cuidadosamente todos os posicionamentos deste, e que o conduzirá à conclusão – título “Ilusão da Justiça”, interpreta o Jusfilósofo Catedrático da Universidade de Viena, que por caracterizar a relação do Bem com o Justo, entende Platão que somente por meio do Bem é que o Justo se torna exeqüível, adquire conteúdo concreto, da mesma forma como a idéia do Bem empresta “Ser e essência”, quer dizer, conteúdo a tudo o mais. E aduz, ainda o autor (1995), que, num outro contexto, Platão afirma que a idéia do Bem é a “causadora de todo justo e de todo o bom”, concluindo que o Bem, na teoria de Platão, é, assim, o cerne da justiça, razão pela qual, Platão frequentemente identifica esta com aquele.

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Chaim Perelman (1996, s.p.), ao refletir sobre a Justiça no estudo Ética e Direito, partindo da catalogação e análise das concepções mais correntes, e com suporte nos pensamentos de Aristóteles, para quem imprescindível à Justiça a semelhança entre os seres, e de Tisset, no entendimento de que sem identidade a problemática da realização da Justiça sequer se põe, define, o que chama de justiça formal ou abstrata, como “um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”, e conclui que o único meio que tem-se de dizer sobre a justiça ou a injustiça de um ato, consiste na igualdade de tratamento que se reserva a todos os membros de uma mesma categoria essencial.

No ensino de Karl Larenz (1969), ao focar a idéia do “Controle da Interpretação por meio da Justiça da Decisão”, na obra obrigatória ao estudioso do Direito, Metodologia da Ciência do Direito, evidencia que os autores que se filiam a essa corrente de pensamento têm a compreensão de ser a justiça que legitima a decisão do caso, o critério autêntico e decisivo da correção do método de interpretação para cada caso escolhido. Assim, quando no caso a ser decidido, mais de uma interpretação se põe frente à letra da lei, a decisão considerada justa é que norteará a interpretação da norma, e não o inverso, como normalmente se procede. Quem defende esta teoria, explica Larenz (1969), necessariamente, tem de pressupor que o juiz já conhece a decisão que é “justa” naquele caso concreto, antes mesmo de iniciar o trabalho interpretativo da norma. Relembra o autor, Catedrático emérito da Universidade de Munique, que Hermann Isay, crê no “sentimento jurídico” como a fonte de tal saber; e que, recentemente, Martin Kriele defendeu a concepção de estar o magistrado, por meio das “considerações de direito racional”, capacitado a encontrar a justiça, ou pelo menos - o que já bastaria - a “capacidade de justificação” do seu julgamento, independentemente da lei e da sua interpretação.

Pedro Lessa (2000, p. 63), a sua vez, em sua obra “Estudos de Filosofia do Direito”, entende que extinguir ou cercear um direito equivale a uma amputação. Cada injustiça produz o efeito de limitar, ou extinguir, as condições de vida ou de desenvolvimento, do indivíduo, prossegue no entendimento de não ser só o indivíduo que sofre a injustiça, quem fica mutilado, ou privado de uma condição de vida ou de desenvolvimento, mas também aquele que inflige a injustiça, que desrespeita o direito, ou promulga uma lei contrária às exigências da natureza do homem, ou da sociedade, sofre as conseqüências do ato injusto. Fundamenta esta última assertiva no fato do homem não viver isolado, e por viver, necessariamente, em sociedade, sofre os efeitos e conseqüências das injustiças - conforme a gravidade dessa injustiça, sofre redução ou extinção nas suas condições de vida ou desenvolvimento. Em lição enfática arremeta que praticar um ato injusto é tão prejudicial como sofrer uma injustiça. Ao final, ilustra, entre outras, com a hipótese de os membros do governo que, pelo processo despótico da supressão, ou cerceamento, da liberdade de pensamento, obstasse ao progresso intelectual, sofreriam tanto as más conseqüências da mutilação por eles praticada, como se uma enfermidade, ou uma operação cirúrgica, lhes houvesse reduzido a potência intelectual.

Sob o título “La Idea de Justicia”, Alf Ross (1997), no Capítulo XII, da sua obra intitulada “Sobre el Derecho y la Justicia”, após narrar que na filosofia mais antiga, justiça significa a virtude suprema, onicompreensiva, sem distinção entre o Direito e a Moral, caracterizando-se, simplesmente, na expressão do amor ao “Bem” ou a “Deus”, na qualidade de “princípio do direito”, dilucida: “la justicia delimita y armoniza los deseos, pretensiones e intereses em conflicto en la vida social de la comunidad”.

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Partindo da construção de que todos os problemas jurídicos são problemas de distribuição, afiança o autor que o postulado de justiça equivale a uma demanda de igualdade na distribuição ou partilha das vantagens ou cargas. Enfaticamente, conclui o jurisfilósofo escandinavo - para quem a filosofia jurídica não só constitui uma formosa atividade mental per se, senão também um instrumento que pode beneficiar a todo jurista que queira compreender melhor o que faz e por que o faz - a modo de conceito: “La justicia es la igualdad”.

Na obra escrita pelo jusfilósofo da Universidade de São Paulo, Márcio Sotelo Felippe (1996) com o título “Razão Jurídica e Dignidade Humana”, já na Introdução, o autor faz saber: A liberdade é o axioma fundamental, e dela deduz-se a igualdade. E prossegue: Se se afirma que os homens são iguais, daí não se conclui, necessariamente, a liberdade. Após interrogar: sendo iguais, são o quê? Ensina que sendo os homens livres, estabelecem-se as premissas que conduzem à igualdade, chegando ao conceito de justiça Para Sotelo Felippe, justiça é o conceito síntese de liberdade e igualdade, ou, na expressão clássica de Kant “conferir a todos os indivíduos a dignidade correspondente à condição de membro da comunidade humana”.

Trabalhando o texto de John Rawls, “A Theory of Justice”, no capítulo “A Justiça e os Direitos” do livro de sua autoria “Levando os Direitos a Sério”, Ronald Dworkin (2002), inicialmente, prepara o leitor expondo encontrar-se a posição original daquele autor - ao conceber um grupo de homens e mulheres que se reúnem para celebrar um contrato social - na descrição dos participantes: pessoas com gostos, talentos, ambições e convicções comuns, mas que, temporariamente, desconhecem suas personalidades individuais. Segue Dworkin pontuando, grosso modo, os dois princípios de justiça na teoria de Rawls, quais sejam: a) cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade política compatível com igual liberdade para todos; b) as desigualdades em termos de poder, riqueza, renda e outros recursos não devem existir a não ser na medida em que favoreçam o benefício absoluto dos membros em pior situação na sociedade. Elucida Dworkin, ser hipotético o contrato e que o autor apenas afirma que, se um grupo de homens racionais se encontrasse na difícil situação da posição original, iria entrar em acordo nos termos dos dois princípios. Sobre a técnica do equilíbrio reflexivo, que desempenha papel importante na argumentação de Rawls, resume Dworkin, que a técnica supõe que os leitores de Rawls possuem um senso, que se aplica na vida cotidiana, de que certos arranjos ou decisões políticas, como os juizos convencionais, são justos, e que outros, como a escravidão é injusta. Além disso, supõe que cada pessoa é capaz de dispor essas intuições ou convicções intuitivas em uma ordenação que designe algumas delas como mais corretas que outras. Embora na teoria profunda sobre a justiça de Rawls o direito de liberdade tenha um papel importante e dominante, não pode ser tomado como o direito fundamental (primeiro princípio). Já quanto à igualdade (segundo princípio), apresenta-a em duas concepções. Afiançando Rawls que alguns escritores distinguiram entre a igualdade invocada a propósito da distribuição de certos bens (alguns dos quais darão, quase certamente, mais “status” ou maior prestígio àqueles que são mais favorecidos) e a igualdade que se aplica ao respeito que se deve às pessoas, independentemente de sua posição social, propõe que o primeiro tipo de igualdade é definido pelo segundo princípio da justiça, enquanto a igualdade do segundo tipo é, contudo, fundamental.

Interessante considerar pelos estudos dos filósofos colacionados que, muito embora variados sejam os pontos de partida, os métodos e técnicas de raciocínio, nacionais ou

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alienígenas, estilos (menos ou mais aprofundados), objetivos e áreas de pesquisa, a constatação é de que se identificam ou, se se quiser, se assemelham. E essa revelação seria surpreendente? Mesmo que se afirmasse que não, que não poderia ser outro o resultado, importa, em resumo, o que se possa extrair para o enriquecimento do direito, mormente quando a proposta teórica alça a justiça ao nível de sinonímia do próprio direito, ou, em outras palavras, usando uma linguagem técnica-científica, “A Justiça é a teleologia do Direito”, colocando-se o magno princípio da “dignidade da pessoa humana” como conteúdo daquela. Portanto, um sobreprincípio constitucional do qual todos os demais se irradiam, fazendo-se presente, textualmente, no Preâmbulo da Constituição Federal e já entre os Princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, no artigo 3º, inciso I, que dispõe “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...] Liberdade e igualdade, como retratado, são os “subprincípios-contéudo” do princípio-mor de justiça. Marcante nos ensinos traçados a menção ao “sentimento do justo” e à “intuição”, batizando e galaneando a justiça como decorrência da própria natureza de seres humanos - “seres humanos livres e iguais”, ou, repetindo o clássico pensamento kantiano “conferir a todos os indivíduos a dignidade correspondente à condição de membro da comunidade humana”.

Tais considerações, desmistificam um pensar trôpego, “frase feita”, no sentido da impossibilidade de se apreender o sentido da expressão justiça. Não pouco frequente, põe-se a interrogação: o que é justiça? E a resposta: cada um tem o seu próprio conceito. Contudo, não é verdadeira esta assertiva. Não se está a falar numa justiça individualista, utilitarista, interesseira, impossível de realizar-se, mas sim, numa justiça como instrumental científico, como técnica de julgamento e ferramenta teórica, doutrinária, na construção das idéias. Emprestando a escrita candente de Miguel Reale (2001) ressalte-se a imprescindibilidade da Justiça, que para o autor da Universidade das Arcadas, em primeiro lugar, a justiça é, ao mesmo tempo, uma idéia e um ideal, de sorte que se ela jamais se realizasse, manifestando-se concretamente como um dos momentos necessários e mais altos da vida humana, seria mera suposição, uma quimera não merecedora de nossa constante atenção. Todavia, continua o filósofo, por maiores que sejam os obstáculos que se deparam ante o propósito de desvendá-la, e mesmo quando, desoladamente, constata-se a impossibilidade de alcançá-la pelas vias da razão, restando contentar-se com meras intuições, professa que “nem por isso desaparece a nossa aspiração no sentido de que haja atos justos que dignifiquem a espécie humana”.

Nesse cenário doutrinário a indagação - título sobre a imutabilidade da sentença ou acórdão injustos, já por ferir um sobreprincípio constitucional de primeira grandeza, não deverá permanecer intocável na ordem jurídica - social, mas mesmo para os céticos que vêm na justiça uma “mera ilusão”, impossível de ser captada pela razão, sobreleva considerar que o inato “sentimento do justo”, conduz ao mesmo resultado - de possibilidade de quebra da imutabilidade da coisa julgada - sendo suficiente lembrar o ensino de Pedro Lessa (2000) ,no texto supra transcrito, ao alertar que cada “injustiça produz o efeito de limitar ou extinguir as condições de vida, ou desenvolvimento do indivíduo”, bem como que “praticar um ato injusto é tão prejudicial como sofrer uma injustiça”. Para uma melhor compreensão, imagine-se uma demanda cível finda, transita em julgado, e na qual se detecte um verdadeiro “estelionato” praticado contra o erário público, dentro dos próprios autos, através de uma prova pericial a originar pagamento via precatório com valor astronômico, e cujo biênio para a ação rescisória já escoara. Afora a nulidade do procedimento, e, como conseqüência da decisão final transita em

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julgado, a ensejar o manejo, a qualquer tempo, da actio nullitatis, implícita no sistema processual brasileiro para as sentenças nulas ipso iure “in nullitate notoria, quae ex actis apparet” (e anteriormente exemplificada na redação do art. 741, I do CPC, nos embargos à execução fundada em título judicial, extinta pela Lei nº. 11.232/06), incontestável a ofensa ao sobreprincípio constitucional de Justiça. Mantê-la intocável, em nome da segurança jurídica, além do desprestígio ao Poder Judiciário pela não corrigenda do imoral, quiçá criminoso, ato da parte e/ou do auxiliar do juizo, com o consequente “assalto” aos cofres públicos em bilhões de reais em favor de umas poucas pessoas (com o “referendum” judicial nos autos!), seria ceifar melhores condições de vida à tão sofrida e carente população brasileira destinatária dessa verba pública (municipal, estadual ou federal). E mais, como se explicará ao cidadão comum do povo que o Poder Judiciário, um dos poderes do Estado, última pilastra do cidadão, não poderá reverter o julgado por que existe uma “coisa julgada imutável, em nome da segurança jurídica”!!! Por certo, o bom e simples homem comum do povo, não entenderá, não se conformará. E o seu “inato senso do justo” reprovará de forma veemente essa “Justiça Injusta”, cujos fundamentos refogem da sua natureza e compreensão humanas. Essa injustiça que cala no sentimento popular, não pode ter “coisa nenhuma”!!! Que a mantenha válida e exigível juridicamente, sob pena de uma mera “alegoria” processual chamada imutabilidade, que não tem forma, nem cor, nem cheiro no mundo das pessoas, ser responsável, comandar a esperança e a felicidade da pessoa humana, num paradoxo para a função jurisdicional que, justamente, a tem como centro do universo jurídico. Nesse caso do precatório bilionário, hipoteticamente desenhado, à evidência, a “imutabilidade” da coisa julgada não se perfaz, uma vez que a nulidade da perícia por dolo, e na qual se fundamentara a sentença, contaminara todo o procedimento. Havendo fluido o prazo para a ação rescisória, abre-se a via processual, que independe de prazo, da ação declaratória de nulidade (visando a restauração de uma Ordem Jurídica Justa), como disserta Alasdair Macintyre (1996), no livro “Justiça de quem? Qual a racionalidade?”, sobre a justiça compreendida por Hume, “O que faz com que o raciocínio sobre a justiça seja sólido é, fundamentalmente, que é um raciocínio compartilhado por, pelo menos, a grande maioria dos membros da comunidade à qual alguém pertence”.

5. A INCONSTITUCIONALIDADE: FUNDAMENTO PARA A QUEBRA DA COISA JULGADA MATERIAL?

Estratificada coloca-se a tese “lei inconstitucional é nula”. Relativamente à declaração de inconstitucionalidade proferida no controle abstrato de normas, escreve o Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes (1990), na obra “Controle de Inconstitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos”, ser pacífico, entre nós, o entendimento de que a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle abstrato de normas, acarreta a nulidade ipso jure e ex tunc da norma, inexistindo qualquer referência sobre o tema na Constituição Federal.

No livro “Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade”, propõe Regina Maria Nery Ferrari (1992) que a norma inconstitucional é simplesmente anulável. Apresenta a autora como fundamento ser esta qualidade (inconstitucional) imposta à norma por um

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órgão competente, conforme o ordenamento jurídico, sendo essa norma eficaz, operando normalmente, como qualquer disposição normativa válida, até a decretação de sua inconstitucionalidade.

Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria (2005), no livro já referido, acolhem a tese da nulidade da coisa julgada inconstitucional, afirmando que a decisão judicial transitada em julgado desconforme à Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Enfatizam os autores que no sistema de nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a sanação do vício e citando o julgamento do STJ no Recurso Especial nº. 7.556/RO da Terceira Turma, no qual figura como Relator o Ministro Eduardo Ribeiro, complementam ser possível a declaração de nulidade em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução.

Outro não é o pensamento de Sérgio Bermudes (2005) no estudo “Sindérese e coisa julgada inconstitucional”. Partindo da observação do comportamento humano, conclui esse jurista que o ser humano em geral encontra-se dotado de uma intuição inerente à sua consciência a permitir-lhe julgar de modo correto, discernir e distinguir entre o certo e o errado, aceitar o razoável e repudiar o aberrante. Enquadra-a na intuição permitiva da verdade de Platão , ou a aptidão a que a escolástica denomina de sindérese .

Refletindo no artigo “O Princípio da Coisa Julgada e o Vício de Inconstitucionalidade”, sintetiza a Ministra do Supremo Tribunal Federal Carmen Lúcia Antunes Rocha (2004) que “Contravindo a Constituição, o que se julgou em fase processual tida como derradeira não é intangível”. Alicerça sua teoria no entendimento de que se assim não fosse, estar-se-ia a aquiecer com a tese de que a Constituição Federal possa ser mudada ou transgredida por ato de um juiz, que contra ela decidisse.

Com alicerce nessas lições doutrinárias, até porque praticamente uníssona, elege-se como nula (nulidade absoluta) a decisão judicial que agrida à Constituição, seja na sua principiologia (explícita ou implícita) ou nas suas regras, ambas soberanas no ordenamento jurídico. E por que nula, sequer chega à completude de formar “coisa julgada material, imutável”, uma vez que írrito se põe o ato judicial, sem produção de qualquer efeito.

6. A FLEXIBILIZAÇÃO DA COISA JULGADA: UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Se colocada como centro da problemática o tema da imutabilidade da coisa julgada material, outras se lhe acrescentariam como resultantes lógicas dessa premissa, quais sejam: teria ela, a imutabilidade, sucumbido à propaladas nova tese flexibilizadora da coisa julgada material? Estar-se-ia, realmente, em face de uma “nova tese” ou tratar-se-ia, essa denominada teoria flexibilizadora da coisa julgada material, de uma mera “temática de interpretação”?

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Pelo já exposto, permissível, desde logo, adiantar a todas essas interrogações respostas negativas. Em nenhum momento foi utilizada as expressões correntes “flexibilização”, “relativização”, ou qualquer outra terminologia assemelhada. Isto por entender-se não constituir teoria nova. Ou seja, não há nada de novidadeiro. Houve, é verdadeiro, mormente no campo do Direito Processual Civil Constitucional, fecundo labor por parte de mentes engenhosas, voltadas a uma engenharia de redescoberta da Constituição Federal, situando-a como centro de gravitação do ordenamento jurídico pátrio, prestigiando-se um pensar mais principiológico que legalista. Há clamor por um judiciário ativo, compromissado com decisões “educativas” e rentes às expectativas e necessidades sociais da sua época, não complacente com os ataques aos direitos fundamentais e sociais da pessoa humana, tudo em prol de um “Direito com Justiça”, e quem sabe, auxiliando a tornar um pouco mais feliz o “homem comum do povo”.

Por esse ângulo do avanço processual, poder-se-ia afiançar que o movimento de aperfeiçoamento do Direito Processual Civil pátrio, numa sociedade angustiada e economicamente desigualitária, vem caminhando priorizando o valor Justiça (individual e social), sem que se expresse mitigação do valor segurança jurídica.

O que se torna perceptível no estudo crítico da imutabilidade da coisa julgada material, numa investigação voltada à perquirição quanto à possível permisssibilidade constitucional - legal de sua mitigação (relativização ou flexibilização), especificamente no direito processual civil, pode ser resumido numa só frase: a imutabilidade absoluta da coisa julgada é um mito. A segurança jurídica, como seu atributo, igualmente, por via de consequência, não é absoluta. Acresça-se, por não ser no estudo científico desprezível, representarem a ação rescisória (art. 485 do CPC) e a ação anulatória (art. 486 do CPC), já uma forma de “mutabilidade” e, por que não, de “in-segurança jurídica”, num certo sentido. Não é ignoto, ademais, que a via processual da ação declaratória de nulidade remonte ao histórico direito romano, e que esteja facultada à situações onde tamanho é o gravame ao sistema jurídico ensejado pelo ato processual viciado, que impossível se faz sua sanação (daí por que não está condicionada esta ação a prazo prescricional ou decadencial), e sequer ensejará ele produção válida e eficaz dos seus efeitos. Saliente-se, ainda, não se consumar, por conta da nulidade absoluta, a coisa julgada material, e sequer sua correlata imutabilidade pan-processual. Assim ocorrendo, permissível indagar-se sobre o porquê de tão acirrada discussão, e inquietação doutrinária. Não se está “jogando no lixo” o instituto da coisa julgada, e vedado seria fazê-lo, dado o seu encarte constitucional, mormente entre os direitos e garantias fundamentais. De mais a mais, a Ciência do Direito não se compraz com raciocínios cartesianos. Isso ocorre, e não poderia deixar de ser, com a coisa julgada, com a citação, com provas, etc., porque o material com o qual laboram os operadores do direito outro não é que o homem em sua humanidade, ora carregado de imperfeições, ora de gestos magnânimos; ora bom, ora extremamente cruel; inserido numa mundialização atordoante, isolacionista, hedonista, consumista, ilusionista, individualista, e inúmeros outros “istas”, que, paradoxalmente, num outro prisma de visão, é capaz de prodígios nas mais variadas áreas, funções e atividades profissionais, com rasgos até de divindade, e infinita capacidade de amar. Por isso, a solução para suas “dores”, sejam da alma, sejam econômicas, ou corporais, só pode ser a busca, em cada caso subjudice, em cada caso concreto, do Bem e do Justo.

Em síntese, numa só expressão, o que se tem no cenário jurídico processual civil, seja individual ou coletivo, com a ruptura do mito da imutabilidade absoluta da coisa julgada

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material, nada mais é que uma mera questão de interpretação à luz da Lei Maior, num pensar mais principiológico que legalista, com a pessoa humana na sua dignidade, como centro da reflexão jurídica, em prol da aplicação do Direito Justo e da pacificação social, ideal e esperança de toda sociedade livre e democrática (sujeitos livres e iguais).

Àqueles inquietos e fervorosos devotos da blindagem absoluta da coisa julgada, afora às hipóteses das ações rescisória e anulatória, receosos da ruína e fragilização da figura da coisa julgada, há de interrogar-se: “Quem tem medo dos Juizes?” E a resposta apaziguadora, redentora vem com José Renato Nalini (1997, p. 82), em estudo enquanto Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, entendeu que a eqüidistância das partes não pode impedir o juiz de procurar colocar-se em lugar de cada uma delas, sendo que a paixão é o sentimento que o fará perseguir e realizar a justiça”. Por derradeiro, apropriado reescrever as afortunadas palavras de Ronald Dworkin (1999, p. 492), em sua obra “O Império do Direito”, ao responder o que é o Direito, “É (o império do direito), por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções”. Realmente, nada além disso é o que se almeja “NUM PAÍS TROPICAL, ABENÇOADO POR DEUS E BONITO POR NATUREZA”. Não é verdade ?!

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[1] Professora Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Professora do Programa de Mestrado do Centro Universitário Toledo - UNITOLEDO de Araçatuba/SP, na disciplina Direito Constitucional Processual Civil. Coordenadora e professora do Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Bauru - IESB/PREVE. Ex-Procuradora do Estado de São Paulo. Advogada.