FLICKINGER H_ Para que filosofia da educação.pdf

download FLICKINGER H_ Para que filosofia da educação.pdf

of 8

Transcript of FLICKINGER H_ Para que filosofia da educação.pdf

  • Para que filosofia da educao? - 11 tesesHans-Georg Flickinger*

    Resumo: O trabalho estabelece onze teses sobre a filosofia da educa-o. Aponta, entre outros, a "necessidade de uma postura refletida" naeducao e a compreenso dos "pressupostos e implicaes" da prxiseducativa. O autor cogita a dispensa da disciplina filosofia da educaomediante a realizao da postura refletida no agir educativo.Palavras-chave: educao-filosofia, postura refletida, agir educacional,crtica.

    Abstract: The article proposes eleven theses on philosophy of education.It points up to the "needs of a reflexive posture", among others prerequisites,in educaton and to the understanding of the "presupositions andimplications"of the educatiobnal praxis. The author thinks that the courseon philosophy of education should be cancelled once the developmentoof the "reflexive thinking" in the "educational action"has been realized.Key words: Philosophy-Education, reflexive attitude, educational action.

    I TeseQualquer resposta pergunta "para que Filosofia da Educao?"

    exige, em primeiro lugar, o entendimento referente ao contedo dessetermo. Pois a pergunta pressupe uma diferena especfica entre Filoso-fia e Teoria da Educao, diferena esta a partir da qual deveria serpossvel compreender a funo da reflexo filosfica, dentro do campoamplo do agir pedaggico e suas fundamentaes tericas.

    ComentrioUma concepo da Filosofia da Educao, que atribusse importn-

    cia tarefa de raciocinar meramente sobre os problemas do agir peda-ggico, levaria a resultados opostos queles de uma outra que injetasse

    . Prat. da Universidade de Kessel, Alemanha.

    PERSPECTIVA. Florianpolis, v.16, n. 29, p. 15 - 22, jan./jun. 1998

  • 16 Hans-Georg Flickingeruma postura filosfica para dentro do trabalho educacional. No pri-meiro caso, poder-se-ia falar da Filosofia da Educao no sentido de uminstrumento apenas de esclarecimento dos impasses, dos caminhos equi-vocados ou de cegueira terica na prtica educacional, tal como na suafundamentao, ao passo que no segundo caso, a Filosofia da Educaoresultaria na tomada de conscincia quanto necessidade de uma pos-tura refletida enquanto constitutiva do procedimento educacional.

    11 TesePela expresso "Filosofia da Educao" entendo a preocupao

    intelectual capaz de levar os integrantes do processo educativo a umcomportamento refletido que os obrigue a dar-se conta dos pressupostose das implicaes, determinantes do perfil profissional do educador. Semtal comportamento, os profissionais da rea ficaro presos a umaracionalidade que, de modo oculto, orienta seu agir.

    ComentrioA opo indicada deve-se ao fato de existirem, na rea da Pedago-

    gia, muitas concepes diversas quanto ao que seja o educador, cadauma delas comprometida com paradigmas cientficos muito difeten-tes, os quais desenham suas prprias lgicas prtica educacional. Antima dependncia da racionalidade do agir profissional, em relao construo do perfil do educador, cria o perigo da prescrio de prin-cpios, cuja legitimidade v-se aceita incondicionalmente. Com isso, cres-ce o risco de o educador querer impor suas normas profissionais a umprocesso que vive, na verdade, da mxima abertura em relao aos ca-minhos de aprendizagem e formao pessoal.

    111 TeseAo falar de um comportamento refletido, quero refutar a compreen-

    so da Filosofia da Educao enquanto rea diferenciada dentro do lequetemtico da Educao. Muito pelo contrrio, trata-se, ao meu ver, de umapostura que deveria penetrar todos os nveis do procedimento educativoimprimindo a cada um a qualidade do agir consciente. A Filosofia assumi-ria, neste caso, a funo de providenciar as ferramentas intelectuais capa-

    i l

  • Para que filosofia da educao? -11 teses -17zes de quebrar o domnio de uma racionalidade meramente instrumental.

    ComentrioSendo o mundo moderno regido pelo domnio da racionalidade instru-

    mental, marcada, por sua vez, pela postura objetificadora do sujeito conhe-cedor, a funo da Filosofia da Educao no pode desembocar naque-la de rbitro quanto ao melhor entendimento do processo educacional oude seus pressupostos tericos. Em vez de assumir o lugar ou de uma meta-teoria, ou de uma fundamentao terica do agir profissional do educador, Filosofia da Educao cabe a tarefa de tornar transparente, para osprprios atores, a dependncia de seu agir e de suas convices teri-cas, em relao ao contexto de seu mundo objetivo que, longe de ser ape-nas detenninado por eles, orienta sua prpria vida profissional.

    IV TeseA postura refletida prpria ao pensamento filosfico, j que a

    Filosofia cumpre a tarefa de esclarecer o pensamento sobre si mesmo, i., sobre sua validade objetiva e os pressupostos que legitimam suas con-cluses. Se tomarmos o conceito da reflexo a srio - a saber, comomovimento que, aps experimentar a si mesmo no mundo objetivo, volta sua origem - a Filosofia marca o campo por excelncia da revelaodas condies possibilitadoras de uma postura refletida.

    ComentrioEm contrapartida s demais reas cientficas, preocupadas com o

    entendimento adequado de algo a elas externo, objetivo, a Filosofiadebrua-se sobre si mesma, a fim de expor o procedimento do pensarenquanto tal. Por isso, os filsofos chamados clssicos - p. e., Plato,Kant, Hegel -, embora por caminhos diversos, encontram naautotematizao do pensamento seu cerne comum, fazendo da refle-xo sua postura primordial. Postura essa que, de fato, leva constitui-o de seu "objeto", qual seja, o prprio processo do pensar, subme-tendo-o continuamente sua auto-reformulao, devido s experinci-as feitas consigo mesmo. Processo e "objeto" dependem, assim, um dooutro, modificando-se mutuamente.

  • 18 Hans-Georg FlickingerVTese

    A Filosofia da Educao legitima sua importncia para esta reapela prtica exemplar de um procedimento autocrtico. Procedimentoeste que exige, antes de tudo, a aceitao de trs mximas: 1) a capa-cidade de um olhar distante em relao a si mesmo, 2) aquela de arris-car e pr em cheque os prprios pressupostos e enfim 3) a de deixar-se irritar, de modo produtivo, pelo questionamento de concepes dife-rentes. Nascido da disposio do sujeito em abrir-se a perspectivasalheias, o procedimento autocrtico visa a melhor compreenso do pr-prio ponto-de-vista.

    ComentrioSe quisermos compreender a nossa prpria posio tomando-a mais

    transparente para ns mesmos, ser necessrio abandonar a preocupa-o exclusiva com nosso ponto-de-vista, estabelecendo uma certa dis-tncia interpretativa em relao ao nosso agir particular. Tal distncia,porm, s se constri pela tomada a srio de outros olhares que carre-gam em si convices divergentes. Atravs da perspectiva alheia, so-mos forados a revisar a legitimidade de nossa prpria postura, tendo defundament-la com muito mais rigor. Essa abordagem distanciada dens por ns mesmos marca uma das condies imprescindveis de qual-quer procedimento hermenutico de autocompreenso.

    VI TeseA insero da postura refletida na rea do agir educacional no

    coincide - importante notar - com uma crtica pela crtica, a crtica aqualquer custo. Pois essa desembocaria em atitude meramente negadoradesrespeitando o que h de mais importante no olhar crtico, ou seja, oautoesclarecimento no confronto com a posio criticada a fim de, ilumi-nando-a tambm a ela, fortalecer-se simultaneamente em novo patamar.

    ComentrioContra qualquer modismo de uma postura crtica a qualquer custo,

    a reflexo filosfica no faz da posio criticada um objeto seu, emrelao ao qual lhe caberia denunciar os pressupostos ideolgicos.

    , . I I I

  • Para que filosofia da educao? - 11 teses 19Pois, neste caso, a Filosofia, ela mesma, participaria na luta entreideologias, assumindo a funo de rbitro superior, o que seria equi-vocado. Pelo contrrio, a postura refletida, prpria Filosofia, exigeuma disposio de penetrar a lgica imanente da posio criticada, afim de fortalec-la o mximo possvel, antes de se outorgar, imedia-tamente, o direito de abandon-la como se fosse insustentvel. A lutaargumentativa passa pelo fortalecimento da outra posio, encaran-do-a enquanto provocao produtiva.

    VII TeseOs mais acirrados conflitos dentro da rea da Educao, ocorrem

    devido falta de consenso em torno a um paradigma epistemolgico,motivando os profissionais a buscarem apoio em outras cincias, taiscomo a Sociologia, a Psicologia, as Cincias Polticas ou, mesmo, asCincias Naturais. Cria-se, com isso, uma guerra espistemolgica pau-tada pela tendncia de estabelecer supremacia de uma viso frente outra, base de denncias ideolgicas mtuas. Contra tal comportamen-to, dever-se-ia tentar compreender o alcance e a limitao objetivos dasposies discordantes. Compreenso esta que s se torna possvel base do que acabo de indicar enquanto postura refletida.

    ComentrioO mais tardar desde as investigaes de Paul Feyerabend ("Contra

    o Mtodo"), sabe-se que no h possibilidade de argumentar racional-mente em favor de uma determinada posio epistemolgica, sem incor-rer em petio de princpio. Frente a isto, resta-nos confrontar as diver-sas concepes com seus prprios limites de validade objetiva, levan-do-as a concretizar o alcance delimitado de sua efetuao. Temosnesse processo a estrutura argumentativa exemplarmente praticada pelareflexo filosfica, ou seja, o procedimento autocompreensivo.

    VIII TeseConflitos anlogos que surgem a nvel da fundamentao moral-tica do

    agir educacional, graas interferncia mtuade noonas individuais, profissi-onais e institucionais do agir, implicamnumaestratgiade desresponsabilizao

  • 20 Hans-Georg Flickingerpelas conseqncias objetivas do agir, por parte dos profissionais, atravs daescolha mais vantajosa de um contexto normativo em detrimento dos demais.Semdeterminao inconsistente dabase legitimadorado prprio agir, os parti-cipantes do processo educativo perdem-se numa rede de equvocos mtuosque impossibilita toda fonua de cooperao.

    ComentrioO trabalho profissional do educador realiza-se num contexto mar-

    cado, tanto por exigncias institucionais, quanto por regras profissionaisdo agir e convices subjetivas, resultantes da prpria socializao pes-soal do indivduo. Esses trs nveis de referncia normativa, emboraconstitutivos para o campo do agir, raras vezes oferecem uma base mo-ral-tica unvoca. Pelo contrrio, o profissional tem que escolher entreas bases normativas em concorrncia, com a conseqncia de que, seno o fizer de modo consciente, vir a tornar-se um parceiro profissionalpouco confivel e inconsistente. Fato este que precisa de ser esclareci-do, a fim de que no se torne uma armadilha profissional recorrente.

    IX TeseEnquanto motor impulsionador de um processo auto-reflexionante,

    a Filosofia da Educao consegue garantir espao para o mtuo reco-nhecimento de horizontes de questionamento, abertos pelas diversas con-cepes epistemolgicas e prticas dos profissionais da rea. Ela contri-bui, com isso, para incentivar o debate em torna busca da identificaodos paradigmas autnticos da Educao.

    ComentrioO espectro dos emprstimos efetuados pela Educao das mais

    di versas reas cientficas amplo, abordando, desde a tradiopositivista-behavorista at a concepo auto-organicista ou aquelada compreenso hermenutica. Testemunhando a incerteza quanto existncia de um paradigma autntico que subjazeria Pedagogia,sua busca s teria sucesso a partir do momento em que a Educaose dispusesse a abrir um espao de reflexo em torno aos motivosque at hoje levam-na a duvidar quanto base legitimadora de sua

    I . I I I'

  • Para que filosofia da educaio? - 11 teses 21cientificidade. Tal espao de reflexo nasce, porm, nica e exclu-sivamente da compreenso dos princpios que regem o agir profissi-onal do educador, a saber, o seu prprio estar envolvido no processoda aprendizagem e da formao pessoais.

    XTeseA Filosofia da Educao tem, ademais, o mrito de pr em con-

    fronto a Educao com suas prprias origens, i. , com o lugar social dodilogo no qual emerge. Dilogo esse, cujo objetivo no deveria restrin-gir-se ampliao do conhecinlento terico e prtico, pois visa, tambm,a formao pessoal no intercmbio vital com o outro. Por isso, o dia-a-dia da Educao deveria reconquistar o espao do dilogo no mundo-da-vida, tal como exposto na velha maiutica socrtica.

    Comentrio tecnificao do processo educativo, que hoje refora a tendncia do

    trabalho educativo em favor da ampliao e diferenciao dos contedos,corresponde uma despersonalizao crescente que coloca a individualidadedos educadores ao segundo plano, perdendo de vista, portanto, o espaooriginrio da experincia educativa, i. , a linguagem vivida no dilogo. Ainsero da postura filosfica refletida, para dentro da auto-compreenso doprocesso educacional, passaria necessariamente pela recuperao de suagnese, na idia da "Paidia"(W. Jaeger), com a possibilidade de reconside-rar, ao nvel da Pedagogia moderna, os motivos que levaram a clssica Pe-dagogia grega a usar conceito de tal complexidade orgnica.

    XI TeseSe a Pedagogia viesse a internalizar, na prtica educacional, a pos-

    tura refletida acima descrita, levando os atores compreenso daquelespressupostos subjacentes, que minam seu trabalho, a Filosofia da Educa-o teria, enfim, atingido seu objetivo mais importante, tornando-se, apartir da, algo suprfluo no currculo da fonnao profissional. Pois, anica tarefa da Filosofia da Educao consiste, de verdade, na sua auto-suspenso gradativa.

  • 22 Hans-Georg FlickingerComentrio

    Em vez de lutar por sua integrao definitiva no currculo, a Filoso-fia da Educao deveria contribuir formao dos educadores pela pr-tica exemplar de uma postura refletida, no restrita ao trabalho emtorno a um determinado aspecto temtico. Uma vez aceita pelo trabalhoeducacional como seu pressuposto inconstestvel, a postura refletidapassaria a integrar o processo educativo, a ponto de tornar suprflua anecessidade da experincia filosfica, injetada enquanto disciplina aoeducador. Com isso, no mais competiria dita "Filosofia da Educao"descortinar o espao do filosofar na formao profissional do educador.Este, no seu prprio fazer, estaria encharcado do ser refletido peculiar Paidia originria.

    'I t