Flogisto, calórico e éter - A. Brito2008

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Flogisto, Calrico & ter

Armando de Sousa e Brito

FLOGISTO, CALRICO & TERARMANDO A. DE SOUSA E BRITOSociedade Portuguesa dos Materiais Associao Portuguesa de Arqueologia Industrial Instituto de Cincia e Engenharia de Materiais e Superfcies IST

Trs estranhas e enigmticas entidades, criadas pela Qumica e pela Fsica, permitindo certos avanos nessas Cincias, mas que na realidade nunca existiram !No se conhece plenamente uma Cincia enquanto se no conhece a sua Histria Auguste Comte

INTRODUO A anlise histrica do desenvolvimento das Cincias considerada fundamental sob diversos aspectos dos quais se destacam: i) o conhecimento dos princpios estabelecidos na elaborao das teorias e os seus critrios de avaliao; ii) a maior percepo das caractersticas especficas do conhecimento cientfico; iii) a apreciao dos factores sociais, econmicos e mesmo polticos que em cada poca influenciam ou determinam o desenvolvimento da Cincia e das suas aplicaes tecnolgicas; iv) finalmente, fornecendo material para um auto-exame crtico da cincia, aumenta o nosso apreo pelo estado de conhecimento a que chegamos. O interesse em historiar a cincia no recente, embora tenha predominado o caso de cientistas-historiadores, ou sejam cientistas que em dada altura da sua actividade passam a dedicar-se histria da cincia, geralmente restringindo-se ao domnio da sua formao. Mais recente o caso de historiadores profissionais que se dedicam a historiar o desenvolvimento da cincia. Como exemplo do primeiro caso pode-se citar Joseph PRIESTLEY (1733-1804), eminente qumico, filsofo e telogo britnico, cuja contribuio para a estruturao da Qumica como cincia foi importante (embora tenha aderido em certos casos a concepes hoje postas de parte por errneas, como se ver adiante). Reconhecendo a necessidade de se historiar o desenvolvimento das cincias, afirmou: Para facilitar o avano de qualquer ramo da cincia til, duas coisas se requerem como principais; primeiro, o conhecimento histrico do seu aparecimento, progresso e estado actual; depois um canal fcil de comunicao de todas as novas descobertas. Escreveu em 1767 a obra The History and Present State of Electricity, que o consagrou como professor e historiador da cincia.

Por sua vez o filsofo francs Auguste COMTE (17981857), o criador do positivismo e da sociologia, e tambm autor de uma classificao das cincias, defendia o mesmo ponto de vista, bem expresso na epgrafe que encabea este artigo. Chegou a propor a criao de uma cadeira de histria da cincia no Collge de France. Posteriormente Pierre-Maurice DUHEM (1861-1916), fsico francs, cuja obra de maior vulto como historiador da cincia, afirmava: O nico mtodo legtimo, seguro e fecundo de preparar o esprito para receber uma hiptese fsica o mtodo histrico. Igual atitude defendia o grande fsico austraco Erwin SCHRODINGER (1887-1961) que realizou um profundo estudo sobre a filosofia grega com vista ao esclarecimento de algumas questes conceptuais da fsica moderna. Bastam estes quatro exemplos, entre muitos outros que se poderiam citar, para mostrar como grandes figuras da erudio, em diferentes reas, defenderam a necessidade de historiar a evoluo do conhecimento cientfico. Todavia, contrariamente ao que sucede com os cientistas estrangeiros, nomeadamente anglo-saxnicos, no tem havido entre os cientistas portugueses contemporneos, salvo rarssimas excepes, a preocupao de historiar o desenvolvimento dos ramos da Cincia a que esto afectos. Entre essas excepes (pelo menos as que o autor deste artigo conhece), contam-se, na rea das cincias fsicoqumicas, o Prof. Amorim da COSTA do Departamento de Qumica da Universidade de Coimbra (Introduo Histria e Filosofia das Cincias), o Prof. Armando GIBERT, da Faculdade de Cincias de Lisboa (Origens Histricas da Fsica Moderna), o Prof. Rmulo de CARVALHO, cuja obra por demais conhecida, e mais recentemente a Prof. Raquel GONALVES-MAIA da Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa (Uma viagem na Histria da Cincia). Na rea da Matemtica j se tornou clssica a Histria da Matemtica em Portugal

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Armando de Sousa e Britodo Doutor Francisco GOMES TEIXEIRA, publicada em 1934 por iniciativa da Academia das Cincias de Lisboa, um ano aps a morte do autor, mas ainda uma obra de referncia. Em 2006 saiu uma edio fac-similada da mesma1. Assim a Histria das Cincias bem recente em Portugal, quer se tratando de historiadores que se dedicam s cincias, quer de cientistas interessados pela histria. Uns e outros deparam sempre com a dificuldade inerente exiguidade de bibliografia, clssica ou recente, disponvel no Pas2. *** Um dos aspectos mais cativantes e de maior interesse no conhecimento da Histria das Cincias, o facto no raro de que por vezes a Cincia consegue progredir a partir de hipteses que posteriormente se demonstra serem falsas, mas que em determinado momento, ou mesmo durante sculos, no deixam de ser fecundas, resolvendo de modo satisfatrio as necessidades imediatas dessas pocas. Assim trilhando doutrinas erradas chega-se a concluses verdadeiras. Claro que mais cedo ou mais tarde surgem problemas aos quais essas hipteses no se conseguem adaptar ou at se mostram contraditrias, deixando de ter sentido. Ento h que abandon-las, banindo da linguagem cientfica os termos que as designavam e os conceitos a eles referentes, no deixando contudo de lhes reconhecer o contributo que deram ao progresso do conhecimento. Essas hipteses, geralmente criados por cientistas eminentes, conquistam logo numerosos adeptos, em nada porm diminuindo o seu valor. So acidentes de percurso na j longa histria do conhecimento cientfico. Todos os ramos da cincia apresentam situaes desse tipo. O problema s se torna grave quando se pretende dogmatizar qualquer conceito. No foram raros esses casos e as suas nefastas consequncias que o digam Galileu ou Darwin No so porm desse tipo os casos que aqui iro ser abordados. O que aqui se prope historiar, embora sucintamente, so trs casos exemplares do domnio da Fsica e da Qumica, verificando que, apesar das suas incongruncias, chegaram efectivamente a dar algum contributo para o progresso dessas cincias. Trata-se dos conceitos de Flogisto, de Calrico e de ter. Comea-se por recordar que os passos iniciais da Qumica como Cincia, foram precisamente no mbito da constituio da matria e das suas transformaes. J os filsofos da Antiguidade abordaram esse tema defendendoEsta edio fac-similada teve uma tiragem de apenas 90 exemplares (!), dos quais o autor deste artigo tem o privilgio de possuir um. 2 Toma-se como exemplo a obra A Experincia Matemtica de P. J. Davis e R. Hersh, sobre a essncia da matemtica, a sua a histria e filosofia e o processo de descoberta e desenvolvimento do conhecimento matemtico, editada em 1981 por Birkhauser Bston, e considerada nos E.U. como o melhor livro do ano; na bibliografia respectiva os autores mostram terem consultado cerca de quatro centenas de obras sobre os temas t abordados. Um autor portugus que se dispusesse a escrever sobre tema idntico no teria, com certeza, acesso nem a um dcimo desse nmero. A edio portuguesa dessa importante obra, da Gradiva 1985. Merece a pena a sua leitura.1

Flogisto, Calrico & teros princpios primitivos dos corpos ou sejam os quatro elementos terra, gua, ar e fogo, propostos em meados do sc. V a.C. por EMPDOCLES (~ 490-430 a.C.) filsofo, poeta, poltico e mago grego de Agrigento, Siclia e posteriormente adoptados por Plato e sobretudo por Aristteles. Mais tarde, os alquimistas preconizaram que a matria seria composta de trs princpios fundamentais o enxofre, princpio activo, masculino (o fogo, o sol), o mercrio, princpio passivo, feminino, (a terra) e o sal. (Notar que esses princpios alqumicos nada tinham a ver com as substncias qumicas agora designadas pelos mesmos nomes). PARACELSO3 (1493-1541), mdico-alquimista suo, pai da medicina hermtica, tornou-se o mais destacado defensor dessa corrente. Na Fsica o princpio que mais perdurou desde a Antiguidade at aos nossos dias, embora com diversas nuances foi a do ter que seria uma substncia subtil dos corpos celestes, a quinta essncia, impondervel e invisvel que preenchia todos os espaos, e mais sublime que os quatro elementos terrestres aristotlicos. Esses misteriosos princpios, que ningum definia rigorosamente, reuniam quase sempre propriedades inconciliveis e contraditrias (intangibilidade, invisibilidade, imponderabilidade ), fugindo assim a qualquer tentativa experimental de comprovao fsica, conhecendo-se apenas os seus efeitos. O adjectivo subtil acompanhava-os sempre

1. O FLOGISTO CRIADO PELA ALQUIMIA E APROPRIADO PELOS QUMICOS geralmente atribuda ao mdico e qumico alemo George Ernst STAHL (1660-1734) a criao da teoria do flogisto, um princpio material responsvel pela combustibilidade das substncias. Na realidade essa teoria foi proposta em 1669 pelo alquimista, tambm alemo, Johann Joachim BECHER (1635-1682)., num livro intitulado Physica Subterrnea. Esse princpio seria talvez uma mistura dos conceitos de fogo aristotlico e de enxofre alqumico. Stahl, no incio do sc. XVIII, quando professor de medicina na Universidade de Halle, retoma as ideias de Becher e, em 1703 na obra Specimen Beccherianum promove o flogisto considerando-o um princpio inflamvel. Afirma que qualquer metal formado pela combinao de uma matria terrosa (que se designou por cal), varivel r consoante o metal, com uma substncia (o dito flogisto) que sempre a mesma. A palavra flogisto derivou do termo arder em grego. A combusto era ento explicada como o resultado do facto do flogisto abandonar a matria que estava a ser queimada, indo para o ar; quando um metal queimado, o flogisto abandona-o deixando as cinzas, que j no possuindo essa3

O seu verdadeiro nome era Phillipus Aureolus Theophastus Bombast von Hohenheim. Ele prprio adoptou o nome de Paracelso significando ser maior que Celsus, o clebre escritor de temas mdicos do sc. I d.C.

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Flogisto, Calrico & tersubstncia, deixa de arder. Do mesmo modo pelo aquecimento dessas cinzas o flogisto reentra nas mesmas, regenerando o metal (cal + flogisto = metal). Por outro lado a no verificao da combusto na ausncia do ar, era explicada pela necessidade da presena do ar para absorver o flogisto: assim quando uma vela arde dentro de um recipiente fechado, acaba por se apagar porque o ar saturado de flogisto libertado no pode cont-lo mais. Stahl levava mesmo mais longe as propriedades dessa entidade, atribuindo-lhe o princpio da cor e do odor dos corpos4. Este elaborado modelo tornou-se assim na primeira teoria que no mbito de determinados fenmenos qumicos conseguiu reuni-los num nico sistema explicativo. Os princpios genricos que orientavam essa teoria foram resumidos, por Macquer (1718-1784) num artigo constante do Dictionnaire de Chimie, publicado em 1778, donde se transcreve apenas alguns passos: O flogisto deve ser tomado como o fogo elementar combinado e tornado num dos princpios constitutivos dos corpos combustveis; sempre que o flogisto se combina com uma substncia no inflamvel, d lugar a um novo composto capaz de se inflamar; o flogisto no tem a mesma afinidade para todas as substncias; combina facilmente com os slidos mas tem dificuldade em se combinar com os materiais fluidos leves e volteis []. Mas este modlo, permitindo explicar vrios aspectos dos fenmenos de combusto e calcinao, no era isento de falhas e contradies: se as cinzas de determinadas substncias so menos pesadas que o produto inicial (na realidade por perda na atmosfera de produtos da combusto), o composto produzido pela calcinao de um metal mais pesado que o metal de partida, havendo ento excesso de peso. Esse problema no deve ter incomodado Stahl, nem to pouco alguns dos sucessivos adeptos da teoria que meteram a sua colherada no tema, tentando tranquilamente ultrapassar as falhas que iam surgindo com as mais estranhas e inconcebveis explicaes, inclusiv atribuindo ao flogisto um peso negativo! No sc. XVIII, a Qumica comeava a desabrochar como cincia, tendo-se destacado os nomes de vrios cientistas que abordaram as reaces qumicas. Entre eles sobressaram Joseph BLACK (1728-1799), mdico e qumico escocs, Henry CAVENDISH (1731-1810), fsico5 e qumico ingls, Joseph PRIESTLEY (1733-1804), qumico ingls, Carl Wilhelm SCHELLE (1742-1786), qumico e farmacutico sueco, Antoine Laurent de LAVOISIER (1743-1794), qumico francs e Daniel RUTHERFORD 6 (1749-1819) qumico escocs.

Armando de Sousa e BritoTodos esses cientistas estiveram envolvidos na descoberta ou, pelo menos, na caracterizao de diversos gases. Ver-se como cada um encarou o problema do flogisto. Recorde-se que a palavra gs foi criada, em 1625, por Jan Baptiste VAN HELMONT (1579-1644), qumico flamengo (e discpulo de Paracelso), a partir do termo grego khaos (caos), referenciando as libertaes que observava em determinados fenmenos qumicos, ou, segundo alguns autores, a partir da palavra flamenga ghoast, significando esprito7. O termo difundiu-se por todas as lnguas da Europa, mas nessa altura preferia-se o termo ar. Surgiram assim com as descobertas dos cientistas citados diversos ares, todos eles de algum modo relacionados com o flogisto. Um dos primeiros gases a ser identificado foi o dixido de carbono, o ar fixo, por Black, em 1754 no decorrer de reaces qumicas envolvendo produtos slidos. Porm certos autores atribuem a descoberta desse gs a van Helmolt , em 1622, dando-lhe o nome, algo potico, de gs silvestre. Priestley identificou vrios gases graas a um dispositivo que inventou para a recolha de gases solveis em gua. Em 1768 isolou o dixido de carbono produzido na fermentao r da cerveja8. Mas a sua maior descoberta foi a do oxignio, em 1774. Pensava que era um gs sem flogisto chamando-o de ar desflogisticado ou ar bom. Escreveu Experincias e Observaes sobre as Diferentes Espcies de Ar onde explicava as suas descobertas em termos do modelo flogistico, conceito que o acompanhou at ao fim da vida. A par do anterior, o nome de Sheele est tambm indubitavelmente ligado descoberta do oxignio. Scheele realizou importantes trabalhos de qumica experimental, nomeadamente sobre a composio do ar atmosfrico, tendo reportado a existncia do oxignio, na sua obra Tratado Qumico de Ar e Fogo (1779) onde tambm se revela adepto da teoria do flogisto. Apesar de Priestley ser considerado o descobridor desse gs, cr-se que Sheele teve a primazia entre 1770 e 17749. Todavia publicou o seu livro atrs citado demasiado tarde quando a descoberta j estava atribuda a Priestlly (de factos semelhantes est a Histria cheia). O hidrognio foi descoberto em 1766, por Cavendish no decorrer de reaces de ataque de metais por cidos, verificando que o gs libertado era muito leve e distinto dos que at a tinha conhecido. Pensou que esse gs provinha dos metais envolvidos na reaco (sabe-se hoje que provmComo se sabe, em ingls, a palavra esprito ghost,. Conseguindo recolher esse gs e dissolvendo-o na gua, Priestley produziu a gua gasificada, que teve ento enorme xito comercial, 9 Teria tambm descoberto, ou pelo menos identificado, o cloro, o flor, o mangans, o brio, o molibdnio, o tungstnio, o azoto e diversos compostos; com excepo do cloro, as descobertas dos restantes elementos citados no lhe so reconhecidas, talvez por terem sido publicadas depois de outro pessoa ter feito independentemente a mesma descoberta. Era basicamente um experimentalista e cr-se que morreu envenenado (foi encontrado morto) aos 43 anos, devido sua mania de aspirar e provar as substncias com que trabalhava.8 7

Como mdico, Stahl foi tambm adepto da teoria animista, mantendo muitos apoiantes e no menos contraditores. 5 Na fsica o nome de Cavendish est ligado, como se sabe, a um importante facto a determinao rigorosa, feita pela primeira vez, da constante de gravitao universal (G), graas a um dispositivo por ele criado, conhecido como Balana de Cavendish ou Balana de Toro. 6 No confundir com Ernest Rutherford (1871-1937), fsico britnico neozelands que, mais de um sculo depois, se distinguiu no campo da radioactividade, props o modelo do tomo que leva o seu nome e identificou o proto, recebendo o Prmio Nobel de Qumica em 1908.

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Armando de Sousa e Britodos cidos), e, como era muito leve e extremamente inflamvel identificou o gs como flogisto. Cavendish publicou Experiments on Air, definindo, em resultado de precisas anlises, que o ar era composto por 79,167 % de ar flogisticado (agora sabido ser azoto e rgon) e 20,833 % de ar desflogisticado (na realidade oxignio). Tambm neste caso h outro candidato atribuio da descoberta do azoto. Em 1772, Daniel Rutherford, discpulo de Black, identificou esse gs, chamando-lhe ar flogisticado ou ar nocivo. Como Cavendish, ter igualmente determinado, de forma correcta, a sua proporo no ar. Resumindo, surgiram assim diversos ares ar fixo, o dixido de carbono, ar inflamvel, o hidrognio; ar flogisticado ou ar morto, o azoto; ar deflogisticado ou ar vital, o oxignio, alm de outros. Foi Lavoisier quem posteriormente deu a esses gases os nomes actuais. O processo de combusto estava portanto longe de ser adequadamente compreendido. Cavendish, como muitos outros, pensava que essa reaco envolvia, no a remoo do oxignio do ar, mas, pelo contrrio, a captao de flogisto pelo ar. Explicou tambm a produo do cido ntrico a partir do ar flogisticado (azoto). Por outro lado demonstrou que a gua no era um elemento simples mas sim um composto. Este facto iria ser fundamental para a demolio do modelo do flogisto e na compreenso da realidade da combusto. Foi porm Lavoisier quem veio a afirmar que a gua formada a partir da combinao do ar inflamvel (hidrognio ) e ar deflogisticado (oxignio). Assim enquanto a qumica ainda no era propriamente uma cincia, mas um conjunto de conhecimentos vagos e essencialmente qualitativos, o modelo do flogisto foi funcionando. Bastaria algum comear a tomar nota dos pesos dos reagentes e dos produtos das reaces, isto , a quantificar o que se passava na combusto, para concluir que com ela as substncias tornavam-se mais pesadas e no mais leves, pois com a reaco algo entrava, ou seja estava a combinar com essas substncias e no a escapar delas. A balana passaria a ser o instrumento fundamental da Qumica. Foi Joseph Black, e os seus sucessores, quem deu incio a medies exactas do que se passava nas reaces, verificando que o modelo do flogisto estava condenado. Black, fez vrias experincias nas quais a balana era o instrumento bsico, com tudo a ser cuidadosamente pesado no decorrer das mesmas; pde at determinar o peso do ar fixo ganho ou perdido nas vrias reaces. Os resultados dessas investigaes eram sobretudo apresentados aos seus alunos das Universidades de Glasgow e de Edinburgo, onde leccionou, no tendo porm publicado quase nada10. Black tambm mostrou o seu cepticismo em relao ao flogisto ao verificar que na transformao do calcrio em cal h perda de peso, o que os defensores do flogisto prontamente tentaram explicar pela referida propriedade anti-peso desse elemento!10

Flogisto, Calrico & terSeria porm o grande qumico Lavoisier, quem destronaria a teoria do flogisto, interpretando de modo correcto as reaces de oxidao, como combustes, calcinaes etc., e lanando os fundamentos da anlise qumica quantitativa. por isso considerado o fundador da Qumica moderna. Efectivamente, Lavoisier ousou pr em causa a teoria do flogisto, explicando os fenmenos da combusto e da calcinao sob um aspecto totalmente diferente do que at a era considerado. Nos finais da dcada de 1760 e incios da seguinte, Lavoisier havia realizado uma srie de experincias, baseadas em meticulosas medies, com uso sistemtico da balana, nas quais se provava que quando um metal arde ganha peso em vez de o perder. Isso seria o primeiro passo em direco completa compreenso do fenmeno da combusto processo que na realidade envolve a combinao do oxignio do ar com a substncia que est a sofrer a queima. Em 1774 Lavoisier apresentou Academia de Cincias de Paris, para a qual havia sido eleito em 1768, uma memria sobre a calcinao do estanho num vaso fechado. Introduziu o estanho, previamente pesado, num balo cujo peso havia sido igualmente determinado. Fechando o recipiente hermeticamente, pesou o conjunto. Procedeu seguidamente calcinao do metal, que terminou aps um certo tempo, no tendo conseguido prosseguir o processo. Pesou ento r novamente o conjunto, constatando que o seu peso mantivera-se. Retirado o produto da calcinao verificou que o seu peso era ligeiramente superior ao do estanho inicialmente introduzido. Como evidentemente o peso do prprio balo no se alterara, concluiu que o aumento do peso do metal calcinado s poderia ser originado pela combinao do metal com uma certa parte do ar contido no recipiente. Repetiu os ensaios com outros materiais, como chumbo, enxofre e fsforo. Tirou da duas importantes concluses: 1) a calcinao resultava da combinao do metal com um certo constituinte do ar; consequentemente: 2) o ar no era um elemento simples, mas formado por uma mistura de diferentes substncias. Em 1775 tendo sido nomeado comissrio da indstria da plvora, instalou o seu laboratrio no Arsenal de Paris. A pode demonstrar a superioridade do seu modelo de combusto sobre o do flogisto. A balana, de grande preciso, o seu principal instrumento a par do calormetro de sua inveno e de outros aparelhos laboratoriais por ele criados.11 Posteriormente, sempre procedendo a repetidas experincias, utilizando o mtodo quantitativo, com todo o cuidado e rigor, e discutindo com Priestley (que o havia procurado em Paris), os trabalhos deste sobre os diferentes ares, Lavoisier chegou concluso de que o ar atmosfrico composto de dois gases diferentes o ar vital, que mais tarde haveria de designar oxignio, e o azoto. Aprofundou tambm o fenmeno da combusto e o da respirao. Explicou igualmente, com base nos seus11

tambm devida a Black a identificao do magnsio como elemento qumico, a partir da anlise da magnsia (xido de magnsio)

Lavoisier casara-se em 1771 com uma jovem de catorze anos, Marie Anne, que se tornou sua auxiliar no laboratrio e sobretudo desenhava primorosamente os aparelhos por ele criados e utilizados, e que figuram no Trait de Chimie.

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Flogisto, Calrico & terprincpios, os resultados obtidos por Cavendish sobre a combinao do hidrognio com o oxignio formando a gua. Assim verifica-se uma profunda alterao na explicao de uma srie de conceitos substncias at a consideradas elementos passaram a compostos e vice-versa, e a pretensa incorporao do flogisto no era mais que a retirada do oxignio. Finalmente em 1783 apresenta Academia de Cincias de Paris nova memria intitulada Reflexes sobre o Flogisto, para Servirem de Continuao Teoria da Combusto e da Calcinao. Nesse documento afirma: [] cada um liga a esse termo (o flogisto) uma ideia vaga, que ningum definiu rigorosamente, reunindo-se assim, no mesmo conceito, propriedades inconciliveis e contraditrias [] umas vezes tem peso, outras no; tanto fogo livre com fogo combinado com o elemento terroso; to depressa passa atravs das paredes dos vasos como estes so impermeveis para ele; explica a causticidade e a no causticidade []. A demolio definitiva da teoria do flogisto, foi concretizada aps trabalhos realizados sobre a respirao dos animais, em artigo publicado em 1786 nas Memoires da Academia. Mas como atrs se historiou, e como nota o Prof. Amorim da Costa12 Lavoisier no foi, certamente, o produto dos seus precursores, mas tambm no foi o heri que nada deve a quantos o precederam, bem como a muitos dos seus contemporneos com quem trabalhou e discutiu os seus resultados. Efectivamente, embora Priestley e Cavendish fossem adeptos do flogisto, efectuaram tambm experincias que se podero considerar como primeiros passos no sentido do derrube dessa teoria em 1774 Priestley havia mostrado a existncia do oxignio a partir da calcinao do xido vermelho de mercrio e em 1781 Cavendish realizara a sntese da gua a partir do oxignio e do hidrognio (o ar inflamvel que havia sido descoberto por si anos antes). E, como atrs se afirmou, Lavoisier tivera discusses em Paris com Priestley sobre os seus avanos. Em 1787 Lavoisier, conjuntamente com Claude Louis BERTHOLLET (1748-1822), Louis Bernard Guiton de MORVEAU (1737-1816) e Antoine FOURCROY (17551809) publicou a obra Mthode de Nomenclature Chimique, no qual d inicio formulao da nova terminologia qumica, que correspondesse s exigncias impostas pela nova Cincia13 Mas entre os seus escritos destaca-se a monumental obraprima Trait lmentaire de Chemie onde resumiu o Citado na Bibliografia. Recorde-se que por essa altura o naturalista sueco Karl LINNAEUS Lineu (1707-1778) havia introduzido na Zoologia e na Botnica um sistema lgico de classificao das espcies, que havia causado forte impresso no mundo cientfico.13 12

Armando de Sousa e Britotrabalho da sua vida, lanando as bases da Cincia Qumica. A obra, iniciada cerca de dez anos antes, foi editada em Paris em 1789, ano da tomada da Bastilha. H quem considere que ela corresponde para a Qumica o que os Principia de Newton significam na Fsica. Nele so descritos os motivos da rejeio da teoria do flogisto, descrevendo as experincias por si realizadas evidenciando o papel fulcral do oxignio. O conjunto da obra deste grande cientista a rejeio do flogisto e a interpretao correcta dos fenmenos da combusto (e da respirao como forma daquela), a Lei de Conservao da Massa, a composio do ar, a anlise e a sntese da gua, o mtodo de trabalho experimental essencialmente quantitativo, o sistema lgico de Nomenclatura Qumica, estabelecendo a diferena entre os elementos simples e os compostos, etc. leva-o a ser considerado o fundador da Qumica como Cincia. Infelizmente, e como sabido, o gnio de Lavoisier no foi reconhecido pelos seus contemporneos, mais envolvidos na turbulncia da Revoluo do que nos progressos da Cincia (A Revoluo no precisa de cientistas). Pelo facto de anteriormente ter exercido um cargo pblico ligado ao sistema fiscal, o cientista foi preso e julgado sumariamente durante o Terror implantado pelo feroz jacobino Maximiliano Robespierre, sendo guilhotinado a 8 de Maio de 1794, e tendo o seu corpo ido parar vala comum14. O matemtico Louis LAGRANGE diria mais tarde: um instante bastou para ceifar esta cabea, mas nem cem anos chegaro para produzir outra parecida. Por sua vez o qumico alemo Just LIEBIG, um dos mais notveis do sc. XIX, assim se referiu a Lavoisier: no descobriu nenhuma substncia, nenhum propriedade, nenhum fenmeno que no fossem j conhecidos; mas a sua glria ser imortal pelo facto de ter instilado na Cincia um novo esprito. interessante referir-se aqui s repercusses que as teorias de Lavoisier tiveram em Portugal. Elas foram divulgadas e defendidas pelo Prof. Vicente Coelho de SEABRA (17641804), do Laboratrio de Qumica da Universidade de Coimbra, criado pela reforma pombalina. Esse cientista portugus, acompanhando com bastante oportunidade as novas teorias, realizou diversas experincias que deram origem obra Elementos de Chimica, em dois volumes, publicados em 1788 e 1790. Repare-se que a primeira data um ano anterior ao Trait do sbio francs. Naturalmente tambm em Portugal havia convictos defensores do flogisto, liderados por Manuel Henriques de Paiva, que naturalmente se envolveram em acesa polmica com Coelho de Seabra.14

Um dos que mais contribuiu para a desgraa de Lavoisier foi o clebre revolucionrio e panfletrio Jean-Paul Marat. Efectivamente Marat havia tido anteriormente pretenses a cientista, tendo apresentado Academia uma teoria sobre a combusto, que sendo de facto errada, foi alvo de comentrios negativos por parte de Lavoisier. Marat nunca lhe perdoou, no tardando a surgir uma oportunidade de vingana. Mas acabou por preceder Lavoisier na morte, tendo, como se sabe, sido assassinado Robespiere tambm no se ficou a rir - subiria ao cadafalso escassos trs meses aps o cientista.

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Armando de Sousa e BritoDever-se- tambm referir que a Biblioteca do Departamento de Qumica da Universidade de Coimbra tem o privilgio de possuir um magnfico exemplar das obras de Lavoisier, que inclui o Trait lmentaire de Chemie, editado em 1854 pela Imprimrie Imperial de Paris.

Flogisto, Calrico & terTodavia -lhe atribuda a sugesto da hiptese do calrico para explicar os fenmenos calorficos. E mais uma vez esse fluido vinha cuidadosamente envolvido por uma srie de estranhos atributos indestrutvel, impondervel, dotado de grande elasticidade, e auto repulsivo, tendo ainda a capacidade de, sob a influncia de causas exteriores bem definidas, penetrar em todos os corpos. Deste modo cada corpo possua o referido calrico que quando flua para fora do mesmo fazia sentir esse facto pelo abaixamento da temperatura, e vice-versa. Essa explicao do calor em termos do calrico (com o sentido de matria do calor ou fluido trmico) foi largamente aceite at meados do sculo seguinte. Teve sem dvida bastante influncia, ajudando a explicar muitos (mas no todos!), aspectos do fenmeno do calor. Assim, os diferentes calores especficos das diferentes substncias eram explicados considerando que o calrico era atrado de modo desigual pelas diferentes espcies de matria; por sua vez a dilatao produzida pelo aquecimento explicava-se pela auto-repulso do calrico; a gua era uma combinao do gelo com calrico numa determinada proporo, e o vapor era outra combinao da gua com uma maior percentagem de calrico; da facilmente se explicava a passagem da gua do estado slido ao lquido e desse ao de vapor Como essas, outras engenhosas explicaes foram surgindo para todos as dvidas levantadas A condio de imponderabilidade do calrico foi o maior motivo de discusso. Como foi realado no captulo anterior, Lavoisier, desembaraou a qumica de conceitos vagos despojando essa cincia emergente dos ltimos vestgios da alquimia. Entre outras notveis contribuies estabeleceu a primeira tabela de elementos qumicos, embora como se calcula muito incipiente, mas sem dvida ncleo da posteriormente formada. Porm, por estranho que parea, incluiu nessa tabela, a par do oxignio, azoto, enxofre, ouro, etc., num total de 33 elementos, esse pseudo-elemento, designado calrico17. Chega a escrever o calrico combina-se com o slido formando o lquido, que combinando-se com o calrico forma o gs. Alguns autores atribuem mesmo a Lavoisier a criao do termo. Contudo, numa memria apresentada em 1783, juntamente com Pierre Simon LAPLACE (1749-1827)18, Academia das Cincias, Lavoisier reconhece estarem os fsicos divididos quanto natureza do calor um fluido que penetra nos corpos consoante a sua temperatura e a sua capacidade para o reter, ou o resultado da agitao das partculas constituintes da matria. E, hesitando, afirma a possibilidade das duas hipteses se verificarem das indstrias qumica e de vidro, James Watt, etc. Teve estritas relaes com a cincia continental. 17 Lavoisier tambm incluiu como elementos simples a cal e a magnsia, que na realidade so xidos de clcio e magnsio, respectivamente, mas ao tempo desconhecia-se como decomp-los. 18 Introduzindo os mtodos quantitativos na teoria do calor atravs da medio, Lavoisier e Laplace inventam 1782 um aparelho, que posteriormente Lavoisier designar por calormetro, permitindo o controle das trocas de calor com o exterior nas experincias de mistura ou de mudana de estado.

2. LAVOISIER REPUDIA O FLOGISTO MAS ADOPTA O CALRICO Como anteriormente se referiu, na Antiguidade o fogo foi considerado como um dos quatro elementos da matria, propostos por EMPDOCLES, como as razes de todas as coisas. HERCLITO (~550-~480 a.C.), filsofo grego da escola de Mileto, reconhecia ser o fogo o princpio primeiro de todas as coisas, sendo em simultneo a matria originria de tudo quanto existe e o principio explicativo do movimento15. ARISTTELES (384-322 a.C.) considerava o fogo como o movimento de partculas extremamente pequenas. Esse carcter material do fogo (fluido subtil) foi igualmente ( adoptado pelos alquimistas e persistiu ao longo dos sculos. Vamos encontr-lo no sculo XVIII com o nome de calrico., conceito que perdurou at meados do sc. XIX, s sendo eliminado pela Termodinmica e pela Teoria Cintica dos Gases. Roger BACON (1214-1294) e posteriormente Johannes KEPLER (1571-1630) tero tido a intuio de que o calor seria devido ao movimento de partculas internas da matria. Mas contrariamente, GALILEU (1564-1642) e NEWTON (1642-1727) seguiam os princpios do fluido de Aristteles. Posteriormente as atenes sobre o fenmeno do calor e as suas transformaes deixam o mbito das especulaes qualitativas, entrando progressivamente no domnio da anlise quantitativa. Mas surgiam algumas dificuldades resultantes de se pensar poder tratar o calor segundo os princpios da concepo mecanicista do universo. As tentativas de considerar o calor como substncia material sujeito a pesagem resultavam em fracasso pois verificava-se que os corpos aquecidos no pesavam mais do que quando frios. Para sair dessa dificuldade no se hesitou em optar pela atribuio ao calor da propriedade de imponderabilidade. E eminentes cientistas abraaram de bom grado essa teoria. Joseph Black, por volta de 1760, distanciou-se dos seus trabalhos no mbito da qumica (a que se fez referncia no captulo anterior) e dedicou-se a estudar o calor, tema que o fascinava. Sempre utilizando o seu mtodo de rigorosas medies, realizou ensaios estudando a transio entre os estados lquido e slido que o levaram definio de calor latente (1761) Facto igualmente importante foi Black ter feito uma distino crucial entre os conceitos de calor e temperatura16.15

A filosofia de Herclito traduz-se na sua clebre metfora: No nos podemos banhar duas vezes na mesma gua do rio. 16 Black foi professor de Qumica nas Universidades de Glasgow e Edimburgo, em plena Revoluo Industrial. O seu ensino era baseado em t mtodos de raciocnio e de experimentao, depois aplicados a fins industriais, o que atraiu muitos jovens, como James Keir, que foi pioneiro

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Flogisto, Calrico & terNos alvores da Revoluo Industrial, o tema do calor comeava a despertar o interesse de muitos sectores da Fsica e vrias razes ajudaram a por de parte a hiptese do calrico, admitindo-se que a temperatura de um corpo, noo intimamente ligada do calor, seria uma consequncia da maior ou menor agitao das molculas constituinte desse corpo. Destacam-se, entre outros, os sucessivos trabalhos de Benjamin THOMPSON (17531814), fsico americano, Humphrey DAVY (1778-1829), fsico e qumico ingls, James Prescott JOULE (1818-1889) fsico britnico, Julius Robert von MAYER (1814-1878), mdico e fsico alemo, e o seu compatriota Rudolf Julius Emmanuel CLAUSIUS (1822 -1888). Thomson, trabalhando como engenheiro militar ao servio do governo da Baviera, onde obteve mais tarde o ttulo de conde de Rumford, investigou experimentalmente, por volta de 1798, a produo de calor por atrito numa fbrica de canhes de Munique. Essas experincias consistiram em fazer rodar uma pea metlica sobre outra, ambas mergulhadas num recipiente com gua, podendo assim medir a elevao da temperatura da gua, resultante do calor produzido pelo atrito entre as peas. Verificou que levando a gua ebulio, o que sucedeu ao fim de escassas duas horas, o processo poderia continuar enquanto as peas se movessem uma sobre outra. Verificou ainda que no se produzia qualquer alterao do peso dos corpos. Das concluses que tirou, Rumford publicou em 1798 nos Philosophical Transactions um artigo em que punha em dvida o carcter material da tal substncia, afirmando: aquilo que um corpo isolado ou um sistema de corpos pode continuar a fornecer sem limitao no pode ser uma substncia material, atribuindo antes ao movimento a explicao dos fenmenos t observados. Thompson praticamente elimina o calrico e preconiza os fundamentos do 1 Princpio da Termodinmica Davy, professor na Royal Institution de Londres (cujos trabalhos cientficos levaram-no ao ttulo de Sir), publicou igualmente os resultados de experincias, baseadas tambm na frico, concluindo em 1812 que a causa imediata dos fenmenos calorficos o movimento. Contudo nem as concluses de Rumford nem as de Davy, foram suficientes para demover os partidrios do calrico como calor-substncia. O prprio genial Sadi CARNOT (1796-1832), chegou a utilizar a linguagem do calrico, como entidade material, nos seus primeiros textos. Ao formular em 1824, em Reflexion sur la Puissance Motrice du Feu, o que viria a constituir o 2 Princpio da Termodinmica, considera que uma potncia motriz (trabalho) unicamente pode ser produzida numa mquina por uma queda de calrico de um corpo quente para um corpo frio. No entanto pela leitura dos seus escritos verifica-se que esse conceito merecia-lhe reservas, mas hesitando em contest-la frontalmente, propunha a realizao de ensaios que esclarecessem a sua natureza. Reconheceu m posteriormente (em trabalhos que no chegaram a se publicados em vida19), o erro do conceito de calrico.19

Armando de Sousa e BritoPorm, ao desenvolvimento e evoluo da Fsica no que se refere ao verdadeiro conceito do calor e sua equivalncia ao trabalho, foram estranhas as contribuies desse genial cientista, uma vez que s depois dos trabalhos de Joule e Mayer, que a seguir se descrevem, vieram a ser conhecidos os de Carnot20. Joule, depois de uma investigao mal sucedida no campo do electromagnetismo, dedicou-se a estudar, por meio de longas sries de experincias, as relaes entre o trabalho e diferentes formas de energia. De incio, tinha ento 23 anos, estudou as relaes entre a electricidade e o calor, de que resultou a conhecida Lei de Joule, tendo depois desenvolvido a clssica experincia na qual demonstrou que o trabalho se converte em calor. Essa experincia, hoje j clssica e bem conhecida dos alunos das escolas secundrias, consistiu em agitar um sistema mecnico com ps num recipiente com gua, verificando que a temperatura desta aumentava, tendo medido esse aumento, o que lhe permitiu determinar o equivalente calorfico do trabalho. Joule, que no tinha ainda 30 anos tornou-se famoso com esse trabalho, merecendo que o seu nome fosse dado unidade de energia21. Deve-se no entanto a Mayer, em 1840, o primeiro enunciado claro da equivalncia entre calor e trabalho, e uma precisa determinao do equivalente mecnico do calor, dando os passos finais no sentido de uma correcta interpretao do calor. O Primeiro Princpio da Termodinmica, que traduz essa equivalncia hoje tambm conhecido por Princpio de Mayer. Todavia, como o seu trabalho fora realizado a partir de observaes mdicas, e no num laboratrio de fsica, foi de incio amplamente ignorado pela comunidade cientfica, no lhe reconhecendo credibilidade, embora tenha sido publicado numa revista de mrito (os Annalem der Chemie), em 1842.. Isso levou o seu autor a uma profunda depresso e tentativa de suicdio. Tinha pouco mais de 30 anos S muito mais tarde as teorias de Mayer vieram a ser reconhecias, graas a Rudolf Clausius. Mas por essa altura havia surgido uma disputa, sobre a prioridade das descobertas de Joule e Mayer, disputa de contornos mais nacionalistas que cientficos, uma vez que as ptrias dos dois cientistas se rivalizavam politicamente. Em plena revoluo industrial os cientistas e projectistas de mquinas tinham aderido incondicionalmente ao Princpio de Carnot, embora alicerado, como atrs referido, nomanuscritos, que infelizmente no tinham ainda sido publicados, foram queimados juntamente com os seus haveres pessoais. As poucas pginas que lograram salvar-se do conta da grandeza do seu trabalho e do que ainda poderia fazer. A sua obra ficou ignorada at 1834, ano em que Clapeyron a comenta e acrescenta-lhe a formalizao analtica. Mas s em 1848 Lorde Kelvin chamou a ateno do mundo cientfico para esse fundamental trabalho. 20 O que no o impede de poder ser considerado o verdadeiro fundador da Termodinmica, como justo. 21 Joule realizou tambm posteriores estudos sobre a dinmica dos gases, sendo eleito membro da Royal Society em 1850.

O malogrado Lonard Nicolas Sadi Carnot (1796-1832) foi ceifado pela clera aos 36 anos, e, em virtude do tipo de doena, a maioria dos seus

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Armando de Sousa e Britoconceito de calrico. Clausius estava consciente da veracidade do princpio, mas considerava que o fluido calrico seria na realidade uma energia. Num monumental trabalho iniciado em 1850, Clausius teorizou que o calor e o trabalho no eram mais que duas vertentes de um nico fenmeno que viria a ser denominado energia, o que significava que uma unidade de trabalho podia ser convertida numa unidade de calor sem afectar a energia total do universo que permanecia constante. Esse conceito inovador, abrangendo todas as formas de energia, veio a ser designado por Princpio da Conservao da Energia num sistema isolado a energia total permanece constante quaisquer que sejam as transformaes sofridas pelo sistema. O calrico foi assim o mais efmero dos conceitos aqui abordados. Foi influente em grande parte do sc. XVIII, mas nos finais da dcada de 1790 j era bvio que se tornara muito controverso e em meados do sc. XIX passara Histria Em 1921 o fsico alemo Max BORN (1882-1970), ao formular um novo enunciado do 1 Princpio da Termodinmica, estabeleceu uma definio precisa de quantidade de calor, que resulta da energia cintica global das molculas de um corpo.

Flogisto, Calrico & terA partir do sc. XVII, com o desenvolvimento de conceitos mais precisos da Fsica, o hipottico etr passou a constituir um fludo que permearia todo o espao e inclusivamente preencheria os interstcios da matria, servindo para suporte da transmisso das foras gravtica, elctrica, e magntica exercidas distncia por um corpo sobre outro, ou de conduo da luz. Em relao a este ltimo aspecto que se produziram maiores teorias, debates e controvrsias, sobre a necessidade da existncia desse meio etreo. Efectivamente o espao tem sido tradicionalmente concebido como uma imutvel e passiva parte do universo, no afectando nem sendo afectado pelas transformaes dinmicas ocorridas nos componentes materiais desse universo. Consequentemente tornou-se necessria a assuno da existncia de um meio mais activo, preenchendo todo o espao e tomando parte activa no movimento e outros fenmenos ocorridos no universo. Por outro lado, a natureza da luz foi sempre, ao longo da evoluo do conhecimento cientfico, objecto das mais diversas especulaes e controvrsias. Passando por cima das divagaes filosficas da Antiguidade e da Idade Mdia, apontamos os nomes de Ren DESCARTES (1596-1650), Isaac NEWTON (1642-1727), Christiaan HUYGENS (1629-1690), Robert HOOKE (1635-1703), Thomas YOUNG (1773-1829), Augustin-Jean FRESNEL (17881727), Dominique Franois Jean ARAGO (1786-1853), James Clerk MAXWELL (1831-1879), at Albert EINSTEIN (1879-1955), entre muitos outros, que abordaram o problema da luz, atribuindo-a quer uma natureza corpuscular quer ondulatria. Deve-se frisar desde j que o que realmente interessava e preocupava os cientistas era a complexidade da natureza de luz e o seu modo de propagao; a existncia do ter vinha como corolrio, no sendo mais que o meio necessrio propagao da luz; consequentemente as diversas nuances do conceito de ter evoluram basicamente em funo dos r conceitos atribudos luz. Assim, os modelos utilizados para definir a estrutura ntima do ter apresentam grande r diversidade. O tratamento matemtico no entanto muito mais avanado que os dos dois fluidos anteriormente descritos, conduzindo a diversas formalizaes analticas. Mas por razes bvias, no se abordar neste artigo, seno no essencial, o longo, agitado e controverso desenvolvimento das teorias sobre as naturezas da luz e do ter. Do mesmo modo s se far referencia aos mais importantes cientistas intervenientes no tema, deixando de fora muitssimos outros que embora em menor escala nele participaram. Ir-se- portanto historiar a evoluo do conceito de ter, a partir do sc. XVII, em vrios perodos.2323

3. O TER, S ETERNO PARA OS POETAS O conceito de ter tem vindo a evoluir na semntica filosfica e nos princpios fsicos, desde a Antiguidade at aos nossos dias, deparando-se com duas questes fundamentais a da sua existncia e a da sua natureza. Muitos filsofos da Antiguidade insistiram na necessidade de postular a existncia de um meio intangvel que preenchesse o Universo. O nome etr provem ento dos escritos desses eruditos, tendo origem nos termos latino aesthere e grego aither . r Alguns filsofos admitiram mesmo a existncia de diversos teres, cada um ocupando determinada regio do universo. Para os filsofos gregos o elementos ter seria a substncia subtil dos corpos celestes, o 5 elemento, mais sublime que os quatro dos corpos terrestres a que atrs fizemos aluso. EMPDOCLES, PITGORAS, PLATO, ANAXGORAS e ARISTTELES dedicaram a esse conceito muito das suas especulaes filosficas. Aristteles, por exemplo, considera-o substncia divina e incorruptvel do cu e das estrelas acentuando: a terra est no ar, o ar est no ter e o ter no cu. Na Idade Mdia S. Toms de AQUINO e os escolsticos, receando divinizarem a natureza dos corpos celestes, evitam o termo ter, preferindo substncia sublime e luminosa. Os nossos filsofos Conimbricenses,22 reduzem-no ao quarto elemento, o fogo subtil.

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Filsofos que seguiam o curso de sistematizao da filosofia da autoria de mestres jesutas do Colgio das Artes de Coimbra, publicado entre os finais do sc. XVI e o incio do seguinte.

Em Qumica designa-se por ter uma classe de compostos orgnicos com r a frmula genrica R-O-R, onde O naturalmente o tomo de oxignio, ligado a dois radicais, R e R, grupos alquilo ou arilo. O termo ter parece ter sido aplicado em 1730 por F.G. Frobenius a produto usado em farmcia, chamando-o spiritus aethereus ou vini vitriolatus, donde se presume que a aplicao do termo seja devido extrema volatilidade do produto, parecendo associar-se ao ter fsico que aqui estamos tratando.

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Flogisto, Calrico & ter3.1 Sc. XVII de Descartes a Newton, Huygens e Hooke A partir do sc, XVII os fsicos postulam a existncia do ter como um meio mecnico elstico para explicar os fenmenos pticos e magnticos e elctricos. O filsofo e matemtico francs Ren Descartes, por volta de 1638, defendeu a ideia do ter como um simples meio r subtil e penetrante, o que veio a exercer uma influncia dominante em todas as posteriores teorias sobre o mesmo tema. A principal caracterstica da cosmologia cartesiana a sua rejeio da aco--distncia, defendendo que as foras actuariam unicamente por contacto. A luz e o calor eram formas de presso transmitidas instantaneamente, e por conseguinte a luz e o calor do Sol s poderiam actuar sobre a Terra, assumindo-se que o espao entre os dois astros seria forosamente preenchido por qualquer forma de matria o imperceptvel ter. Assim Descartes retirava luz qualquer natureza material, exigindo porm um meio elstico, o ter, para se transmitir. A teoria da luz de Descartes evoluiu em vrios aspectos. Para Isaac Newton, a luz era de natureza corpuscular. A sua explicao da reflexo e refraco da luz, algo confusa, baseia-se fundamentalmente nesse meio etreo. Por um lado parece opor-se ideia do ter que entravaria a marcha dos r planetas, mas propsito da experincia dita dos aneis de Newton, parece afirmar o contrrio24. Christuian Huygens e Robert Hooke, contrapuseram-lhe, a teoria ondulatria. Ao conceberem a hiptese ondulatria da luz, admitiram igualmente a existncia de uma substncia material, subtil e elstica, formado por partculas em contacto, preenchendo todo o espao vazio e impregnando todas as coisas nele mergulhadas. Comparam ento a luz com o som, resultante das vibraes do ar. Quando se fala da teoria ondulatria da luz o nome de Huygens que vem ao de cima, esquecendo-se sistematicamente de Hooke. Efectivamente Huyghen foi o primeiro a prop-la (1690). Mas preciso destacar que, contrariamente a Huygens, que considerava as vibraes longitudinais, Hooke de modo genial defendia a transversalidade das mesmas, o que mais tarde se comprovou (ver adiante - Fresnel). Em memria apresentada Royal Society afirma: O movimento da luz, quando produzido num meio homogneo, propaga-se por impulsos ou onda simples, de forma constante, perpendiculares direco de propagao. Um dos argumentos de Newton para rejeitar a teoria ondulatria foi o facto de no admitir um ter com vibraes transversais. Hooke e Newton envolveram-se, como se sabe, em longas e agressivas controvrsias sobre diversos temas da Fsica, nomeadamente a ptica. Merc do seu prestgio a24

Armando de Sousa e Britopliade dos seus adeptos de Newton no cessou de aumentar. O conceito de ter tambm preocupou os filsofos. O r alemo Immanuel KANT (1724-1804), por exemplo, no seu Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza, publicado em 1786, considera que a matria de um corpo que preenche um espao se ope invaso da matria circundante, contrariando-lhe o movimento. Assim o vazio no poder existir em nenhuma regio do espao, porquanto seria invadido pela matria circundante. Uma matria subtil, o ter, preencher ento todo o espao. 3.2 Sc. XIX (1 metade) Young, Fresnel e Arago O primeiro triunfo da teoria ondulatria da luz surge com os trabalhos de Young, no incio do sc. XIX, seguido uma dcada depois, pelos de Fresnel, sobre a difraco, fenmeno para o qual os adeptos da teoria corpuscular no tinham uma explicao satisfatria. Young e Fresnel completam assim o triunfo da teoria ondulatria, aniquilando o dogma newtoniano da emisso corpuscular. Em 1802 Young retoma a experincia dos anis de Newrton, e interpretando os resultados, admite a luz como um fenmeno peridico, uma vibrao do ter. Fresnel, convicto da veracidade da concepo ondulatria, efectuou importantes trabalhos no campo dessa teoria, e manteve a ideia da luz como uma vibrao do ter. Consagrou-se entre 1815 e 1819 a esclarecer a difraco. Retoma os trabalhos de Young, seguindo a sugesto de Arago, e explica a polarizao da luz demonstrando que s a teoria ondulatria poderia explicar o fenmeno da interferncia, supondo de incio a luz como vibrao longitudinal. Em 1817 em concurso para a Academia de Cincias de Paris, havia apresenta parte dos seus trabalhos que foram muito contestados, s dois anos depois sendo aceites. Em 1818, num rasgo de gnio, Fresnel assegura terica e experimentalmente, que a concepo ondulatria est s por si habilitada a explicar todos os fenmenos luminosos observados. Acrescenta ainda a comprovao da transversalidade das vibraes luminosas. Em 1821, Fresnel e Arago num trabalho conjunto fizeram experincias confirmando que a luz polarizada tem propriedades s explicveis admitindo essa transversalidade. Fresnel merece efectivamente a glria de ter provado o carcter transversal das vibraes luminosas, mas dever-se- aqui recordar o gnio de Robert Hooke, sempre esquecido25, que, mais de um sculo e meio antes j havia defendido essa transversalidade, contrariando Huygens que defendendo com ele a teoria ondulatria, optava por ondas longitudinais. Contudo essa magnifica concluso suscitava uma dvida sobre qual o meio que vibrando dava origem onda transversal. Fresnel ento retomou a existncia desse meio subtil, o ter, que serviria de suporte propagao.25

Ver por exemplo Histria da Fsica de Robert Locqueneux, citado na bibliografia.

Convida-se o leitor a ler neste mesmo nmero da Revista o artigo Quem Tramou Robert Hooke, da mesma autoria.

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Armando de Sousa e BritoMas um fludo incapaz de transmitir ondas transversais. Para explicar o carcter transversal das vibraes era preciso definir o ter como um slido totalmente rgido, mas que r no podia deixar de ser tambm um fludo to subtil que no oferecia praticamente qualquer resistncia ao movimento dos planetas ou seja esse enigmtico meio, precisava de possuir as seguintes propriedades; total imobilidade, rigidez comparvel a de um corpo slido, imponderabilidade, invisibilidade, e simultaneamente no poder ser detectado por qualquer tipo de instrumento Nessa nova verso o ter no consequentemente um mero r suporte mecnico; bem mais complexo e misterioso, apresentando facetas contraditrias: simultaneamente rgido como o ao, para vibrar e ser portador de ondas transversais, e subtilmente fluido no perturbando o movimento dos corpos e partculas nele mergulhados!!! Fresnel, com base nesse conceito de ter, chegou a prever um fenmeno que s pode ser demonstrado depois da sua morte o do arrastamento parcial do ter por um meio r refringente em movimento. 3.3 Sc. XIX (2 metade) Maxwell e a Teoria Electromagntica Em meados do sc. XIX j estava perfeitamente estabelecido que a natureza da luz era a de uma onda transversal. Persistiam no entanto dvida sobre a substncia transmissora da energia de onda atravs do espao vazio, como por exemplo a luz do sol, Haveria ento uma nica soluo para a teoria ondulatria, que no entanto no deixava de causar enorme perplexidade. Acreditando numa viso mecnica da natureza, mesmo os fsicos de renome desse perodo no viram outra soluo seno a de admitir a existncia de um meio misterioso, o ter, permeando todo o Universo e preenchendo os interstcios da matria. Seria ento esse o ambiente transmissor das ondas luminosas. Continha naturalmente alguns elementos contraditrios (como atrs se frisou) por vrias razes fsicas respeitveis seria necessrio que o ter fosse absolutamente imvel, sem peso, invisvel, mas que simultaneamente possusse uma rigidez superior do ao alm de no poder ser detectado por instrumento algum. (!). Entretanto, fsico escocs James Maxwell, desenvolveu matematicamente o verdadeiro conceito de radiao electromagntica determinando o sistema de equaes fundamentais ao qual o seu nome ficar para sempre ligado. As Equaes de Maxwell apresentadas em 1873 no seu famoso Treatise on Electrity and Magnetism, culminam dcadas de estudo neste campo,26 e formalizam as noes dos campos elctrico (E) e magntico (H), cuja forma geomtrica a onda electromagntica.

Flogisto, Calrico & terMas Maxwell e seus seguidores consideraram inconcebvel a possibilidade da onda se propagar no espao vazio. Voltaram ento a admitir o meio chamado ter que materializa o espao vazio dos campos e transmite as vibraes electromagnticas. Mais precisamente o campo seria um estado de tenso desse ter e as ondas electromagnticas transversais as suas oscilaes rpidas provocadas pelas variaes alternadas de E e H. Portanto o ter luminifero, com comportamento electrodinmico proposto por Maxwell, como meio adequado para a propagao dos fenmenos electromagnticos, sem perturbar o seu movimento, igualmente um modelo mecnico simultaneamente infinitamente rgido e infinitamente elstico, uma entidade totalmente diferente de tudo o mais, matria uniforme e homognea, no dividida em partculas, que impregnaria todo o universo. Mais uma vez a admisso de uma substncia com essas caractersticas, revelava-se altamente artificial e anti-natural, que longe de resolver dificuldades as tornava ainda maiores. A hiptese de a luz ser uma vibrao electromagntica levava naturalmente ao abandono da hiptese de Fresnel de uma luz originada na vibrao do ter, embora o conceito de ter em si que no poderia ser bruscamente posto de lado. 3.4 A famosa experincia Michelson-Morley (1887) Durante grande parte do sc. XIX a hiptese do ter foi r sendo aceite, embora surgissem divergncias quanto s suas propriedades, mas j nas ltimas dcadas sofreria um abalo com a conhecida Experincia Michelson-Morley, preparada especificamente para determinar o movimento da Terra em relao quele hipottico meio. A ideia unnime era de que o sol e as estrelas estariam fixos no ter, e este por sua vez, fixo no espao absoluto, o que frequentemente levava confuso entre um e outro. Deste modo o movimento da Terra atravessando o ter, deveria provocar um vento de ter que modificaria a velocidade da r luz. Para comprovar este fenmeno diversas experincias foram tentadas. A mais conhecida, e celebrada a experincia realizada em 1887 por Albert Abraham MICHELSON (1852-1031) fsico americano, em colaborao com Edward Williams MORLEY (1838-1923) qumico ingls, e na qual se fez uma tentativa para medir a velocidade da Terra em relao ao ter. Propunha-se ento comparar a velocidade da luz medida nas direces paralela e perpendicular suposta esteira criada pelo movimento da Terra em relao ao ter.27 No obstante as medies terem sido realizadas com elevado grau de preciso, a comprovao desse vento de ter revelour27

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Maxwell dever ser considerado um dos maiores gnios das cincias; com a sua teoria do electromagnetismo previu matematicamente a existncia de ondas com comprimentos de onda muito superiores s da luz visvel, que foram confirmadas experimentalmente em 1888 pelo fsico alemo Heinrich Hertz, constituindo as ondas de rdio ou ondas hertzianas.

Para no alongar o texto deste artigo, dispensa-se a descrio dessa famosa experincia, que o leitor poder encontrar por exemplo em John Gribbin ou Michael Guillen, ambos referenciados na bibliografia. Notar que essa experincia no tinha por finalidade a determinao da velocidade da luz, mas verificar que essa velocidade a mesma em qualquer direco. Mais tarde em 1926 Michelson determinou com grande preciso a velocidade da luz.. Michelson recebeu o Prmio Nobel de Fsica em 1907, sendo o primeiro americano a receb-lo.

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Flogisto, Calrico & terse impossvel, e deste modo a decisiva experincia, ficou clebre pelo seu carcter negativo provavelmente o resultado negativo mais famoso de toda a histria da Fsica, como algum a designou. Ela provou que no existia qualquer indcio de que a Terra se movesse em relao ao ter imvel (referencial absoluto), concluindo-se ento que o ter ou seria arrastado completamente pelos corpos em movimento ou no existia, o que seria mais provvel. Este facto perturbador abriu uma grande crise na histria da Fsica. 3.5 Sc. XX Einstein e a Teoria da Relatividade A partir do sc. XX as crticas oponentes foram ganhando volume, pois verificava-se a no necessidade desse fluido para a explicao dos fenmenos citados. Um restrito nmero de cientistas manteve-se, no entanto, ligado aos antigos conceitos, invocando que de outro modo surgiam dificuldades quanto ao conceito de aco--distancia. Mas com a sua Teoria da Relatividade Einstein demonstrou que as propriedades atribudas ao ter podiam igualmente r ser imputadas ao novo conceito de espao-tempo. Consequentemente a nova teoria passou a defender que o campo electromagntico das equaes de Maxwell, uma entidade em si mesma que se propaga no espao vazio, e consequentemente no impe a existncia do ter. Da concepo original do espao passivo e ter dinmico r evolucionou-se gradualmente para a presente concepo do espao-tempo dinmico. E quanto natureza da luz? Depois de Fresnel, como se viu, parecia no haver razes para por em causa a natureza a puramente ondulatria da luz. Acontece porm que nos incios do sc. XX, descobriram-se novos fenmenos que s por intermdio da concepo corpuscular, j posta de parte, poderiam ser convenientemente explicados. Entre esses fenmenos destacou-se o efeito foto-elctrico. Foi Einstein que reflectindo sobre o inslito problema, chegou concluso de que, pelo menos dentro de certa medida, seria necessrio retomar hiptese corpuscular, o que ps a comunidade cientfica no mbito da fsica perante uma situao algo embaraosa. Ento nica maneira de ultrapassar essa dificuldade seria a de admitir como simultaneamente vlidos os dois aspectos do comportamento da luz! Concebido na Antiguidade, reavivado por Decartes e apoiado sucessivamente por uma pliade de grandes fsicos, o ter adquiriu na Fsica, at meados do sc XIX uma posio fulcral para explicar a propagao da luz no espao vazio. Mas nunca foi fisicamente detectado. A experincia Michelson-Morley deu uma machadada mortal nessa crena. No havia portanto nenhuma evidncia da existncia do ter. No sc. XX Einstein pronunciou-se definitivamente contra a existncia do ter. Tanto a sua Teoria da Relatividade Restrita e como a Teoria da Relatividade Generalizada postulando a constncia da velocidade da luz, em todas as direces e a sua independencia do movimento da fonte luminosa, e a introduo do conceito de espao-tempo, tornam dispensvel a existncia do ter.

Armando de Sousa e BritoEm evoluo da Fsica de Newton Teoria dos A Quanta,28 que escreveu com Leopold ENFIELD, afirma categoricamente: Todas as suposies relativas ao ter no conduziram a nada; a experincia vetou-as todas. Olhando para trs vemos que o ter, logo aps ter nascido, se tornou o enfant terrible do cl das substncias fsicas. Primeiramente a construo de uma imagem mecnica do ter revelou-se impossvel, sendo abandonada. Isso foi em grande parte a causa do desmoronamento da teoria mecanicista []. O ter no revelou a sua estrutura mecnica nem revelou o movimento absoluto. Nada ficou de todas as propriedades do ter, salvo aquela para que fora inventado: a capacidade de transmitir as ondas electromagnticas. As tentativas para descobrir as suas propriedades levaram a dificuldades e contradies. Depois desta odisseia, chegou o momento de esquecermos o ter e de nem sequer lhe pronunciarmos mais o nome. Devemos dizer: o espao tem a propriedade de transmitir ondas, evitando deste modo a enunciao de uma palavra morta.

*** A neblina etrea, quintessncia que durante mais de dois milnios ofuscara o Universo perante os sensores da Cincia, desaparecera finalmente! Mas a natureza dessa intrigante substncia influiu e continua a influir tanto nos conceitos do nosso dia-a-dia, que as palavras ter e etreo e outras derivadas ultrapassaram o sentido original, passando tambm a usar-se, sobretudo na linguagem potica e teolgica, como sinnimos de algo puro, delicado, sublime, celestial, difano. Delas derivam (do latim aetheriu) os termos eterno, eternidade, eterizar (desvanecer-se). Se para os cientistas o ter para esquecer, como bem prope Einstein, no dever s-lo, felizmente, para os poetas, que constantemente o evocam. A Poesia tem o direito de sonhar! Recordemos ento, para amenizar um pouco a leitura deste j longo artigo, dois grandes cultores da poesia. Do nosso imortal Lus de CAMES as quadras iniciais de um dos mais belos dos seus sonetos: Alma minha gentil que te partiste To cedo desta vida descontente, Repousa l no cu eternamente E viva eu c na terra sempre triste. Se l no assento etreo onde subiste, Memria desta vida se consente, No te esqueas daquele amor ardente Que j nos olhos meus to puro viste.28

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Armando de Sousa e BritoE do grande poeta brasileiro Antnio Gonalves DIAS29: Solta-se a alma das prises terrenas Embalada num ter deleitoso Como Alcone nas guas adormecida. CONCLUSO HISTORIAR PRECISO As mudanas bsicas ocorridas em todas as cincias, nomeadamente a Fsica, a Qumica e cincias afins, vo frequentemente de encontro a modos de pensar firmemente enraizados, dificilmente admitindo contestao e constituindo densas barreiras epistemolgicas. H sempre uma inrcia que contraria o aparecimento de teorias que contrapem s rigidamente estabelecidas. Temos como exemplo mais gritante o abandono das teorias geocntricas (embora neste caso tambm tivessem prevalecido princpios religiosos demasiado retrgrados). Esses factos foram mais marcantes enquanto a atitude terica, ou melhor, especulativa, prevalecia sobre o conhecimento experimental. Foi gradualmente, no seguimento de Francis BACON (1561-1626) com o seu Novum Organum, preconizando a atitude experimental na investigao cientfica, que se verificou o interesse pela medio e quantificao dos fenmenos, bem como a apreciao dos erros, reconhecendo simultaneamente as condies a que uma teoria deveria satisfazer para ser aceite ou preferida a outra. No mbito da Fsica, a revoluo cientfica de 1550 a 1750, marcou o incio dessa nova atitude. Boyle, Pascal, Hooke, Newton, Torricelii., entre outros, surgem como expoentes dessa mentalidade. Na Qumica (que se estabeleceu como cincia bastante mais tarde), podemos apontar os nomes de Black e Lavoisier, como os mentores de novos avanos, (embora, como se viu, no tivessem deixado, pelo menos, pontualmente, de seguir tambm teorias erradas). No entanto, tambm se deve reconhecer que, como afirma o Prof. Amorim da Costa, ideias que hoje se revelam saciedade como absurdas, foram noutras pocas tidas como plausveis, e muitos erros de antanho foram os reais indicadores dos verdadeiros caminhos por onde veio a enveredar-se posteriormente. Muitos erros do passado estavam muito mais prenhes de inteligncia que muitas ideias absolutamente correctas e exactas que se lhes seguiram. No presente artigo foram abordados trs casos exemplares de conceitos criados pela Fsica e pela Qumica, que a despeito de hoje no serem vlidos, no deixaram, em dado momento, de dar contributo importante cincia. Pergunta-se ento: Devemos julgar uma teoria cientfica apenas luz da sua eficcia ou devemos esperar dela a indicao sobre a prpria estrutura do real?29

Flogisto, Calrico & terA Cincia na realidade uma entidade que anda muitas vezes para a frente e para trs, nem sempre progredindo do modo racional, lgico e nobre que tendemos a idealizar, mas acabando por evoluir em saltos e tropeos, em direco perfeio. A sua histria est repleta desses casos. O ilustre filsofo racionalista austraco Karl POPPER (1902- 1994) na sua inovadora obra prima, A Lgica da Descoberta Cientfica, publicada em 1934, ataca o progresso cientfico baseado no mtodo indutivo, no aceitando ser adequado inferir-se leis universais a partir de um nmero finito de observaes particulares e acentua que por muito numerosas que possam ser as verificaes de uma teoria, elas no permitem concluir a sua veracidade, pois um s facto que no a respeite poder ser suficiente para a condenar. Como racionalista Popper leva muito longe a anlise dos limites do possvel da investigao cientfica, refutando a existncia de experincias cruciais como elementos de prova de uma teoria, considerando-as aceitveis apenas como refutadoras de outra ou outras que o facto experimental contraria. Popper chegou mesmo a sugerir que talvez no haja uma teoria definitiva para a fsica, pelo que, cada explicao que se encontrasse precisaria sempre de outra explicao, produzindo-se assim uma cadeia infinita de mais e mais princpios fundamentais. Por seu lado o filsofo e historiador da cincia americano Thomas Samuel KUHN (1922-1996), que foi professor no MIT, atribui em A Estrutura das Revolues Cientficas, de 1962, considerado um dos livros mais influentes do sc. XX, a aceitao de teorias sobretudo a atitudes sociais e psicolgicas, defendendo que a histria das cincias no se alicera no confronto entre teorias, mas nas relaes de cada teoria com o seu contexto e no seu poder explicativo. De Herbert BUTERFIELD, temos essa afirmao de 1965, citada por Amorim da Costa: A Histria lembra-nos as complicaes subjacentes s nossas certezas e mostra-nos que todos os nossos juzos so meramente relativos, sujeitos ao tempo e circunstncia Para terminar, refira-se a Einstein. Como muitos outros gigantes da Cincia, desenvolveu a sua prpria viso de como a histria da fsica deveria ser apresentada, afirmando que misso da histria das cincias reconstituir os conceitos e princpios exemplares que sirvam para a estruturao do desenvolvimento da cincia. Da sua voz inquestionvel, ouvimos: Quase todos os grandes avanos da cincia decorrem de uma crise da teoria antiga e do esforo para resolver as dificuldades criadas. Temos de analisar velhas ideias, velhas teorias, embora sejam coisas do passado, porque o nico meio de compreendermos a importncia das novas. Magister dixit e portanto historiar preciso! t

Gonalves Dias (1823-1864), um dos maiores poetas brasileiros, de profunda inspirao lrica, nasceu no Maranho, mas estudou em Portugal, formando-se em Direito na Universidade de Coimbra. Aqui comps algumas das suas melhores obras, sendo admirado pelo nosso Herculano.

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Flogisto, Calrico & terAGRADECIMENTOS As referncia a K. Popper e a T. S. Kuhn, foram possveis graas leitura da magnfica obra Os 100 Livros que mais influenciaram a Humanidade, de Martin Seymour-Smith, uma histria do pensamento dos tempos antigos aos dias de hoje, editada na Brasil e creio que ainda no existente em Portugal, que me foi gentilmente oferecida pelo amigo, colega e nosso conscio na S.P.M., Prof. Celso Pinto PEREIRA, do Departamento de Engenharia Mecnica da Universidade de S. Paulo, plo de Guarantiguet, Brasil. A leitura estimulante desse livro e os conhecimentos que dele absorvi, obrigam-me a expressar aqui os meus agradecimentos ao estimado amigo e colega Celso Pereira.

Armando de Sousa e BritoGibert, Armand Origens Histricas da Fsica Moderna ed. Fundao C. Gulbenkian, 1982 . Gonalves-Maia, Raquel, Uma viagem na Histria da Cincia, Escolar Editora, 2006. Gribbin, John, Science A History 1543-2001 Penguin Books, Londres, 2002. Guillen Michael Cinco Equaes que Mudaram o Mundo, Gradiva, 1998. Hall, A. Rupert, The Revolution in Science 15001750, Longman, 1983. Hankins, Thomas L., Cincia e Iluminismo, Porto Editora, 2002. Locqueneux, Robert, Histria da Fsica, EuropaAmrica, 1989. Rezende, Lisa, Chronology of Science, Checkmark Books, N. Y., 2007. Seymour-Smith, Martin Os 100 Livros que Mais Influenciaram a Humanidade, Difel, Rio de Janeiro, 2002. British Encyclopedia, Ed. Univ. Chicago, 2005, Enciclopdia Larousse, Ed. Temas e Debates, 2007. Enciclopdia Verbo, Ed. Verbo, Lisboa, 2006.

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