Flor & Garrafa - Por uma vida não colonizada

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8/3/2019 Flor & Garrafa - Por uma vida não colonizada http://slidepdf.com/reader/full/flor-garrafa-por-uma-vida-nao-colonizada 1/13 Resumo O objetivo deste trabalho é discutir algumas noções desenvolvidas pelos estudos sobre colonialidade originadas por um conjunto de pensadores(as) da  América Latina acerca do modo como a Modernidade surgiu estruturada como uma maneira de arranjar o poder, o saber e o ser de modo que uma hierarquia entre centro e perieria, instalados em uma perspec- tiva colonial, organize nossa maneira de lidar com a política, com as ciências e – esse é o ponto principal que o trabalho sustentará – com a própria vida. A Bioética de Intervenção (BI), que tem como proposta politizar de modo ético e aplicado o modo de lidar com os conitos biotecnocientífcos, sanitários, sociais e ambientais a partir da realidade latino- americana, desenvolve uma linha de pesquisa que pode acolher as críticas e contribuições advindas dos estudos sobre a colonialidade, sobretudo no que diz respeito às bases conceituais relacionadas com as teorias éticas e epistemológicas que a sustentam. Entre estas, especifcamente, o estudo discute as re- lações existentes entre o utilitarismo aceito pela BI por meio de um consequencialismo solidário e suas inter-relações com a ideia de colonialidade. Palavras-chave: Colonialidade; Bioética de Interven- ção; Epistemologia; Política; América Latina. Wanderson Flor do Nascimento Doutor em Bioética. Proessor Adjunto do Departamento de Filoso- a e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Endereço: Programa de Pós-Graduação em Bioética. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Caixa Postal: 04367, CEP 70919-970, Asa Norte, Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected] Volnei Garrafa Doutor em Ciências e Pós-doutor em Bioética. Coordenador da Cátedra Unesco e do Programa de Pós-Graduação em Bioética. Proessor Titular da Faculdade de Ciências da Saúde da Univer- sidade de Brasília. Endereço: Programa de Pós-Graduação em Bioética. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Caixa Postal: 04367, CEP 70919-970, Asa Norte, Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected] Por uma Vida não Colonizada: diálogo entre bioética de intervenção e colonialidade For a not Colonized Life: dialogue between intervention bioethics and coloniality Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.2, p.287-299, 2011 287 

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Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir algumas noçõesdesenvolvidas pelos estudos sobre colonialidadeoriginadas por um conjunto de pensadores(as) da América Latina acerca do modo como a Modernidadesurgiu estruturada como uma maneira de arranjaro poder, o saber e o ser de modo que uma hierarquia

entre centro e perieria, instalados em uma perspec-tiva colonial, organize nossa maneira de lidar com apolítica, com as ciências e – esse é o ponto principalque o trabalho sustentará – com a própria vida. A Bioética de Intervenção (BI), que tem como propostapolitizar de modo ético e aplicado o modo de lidarcom os conitos biotecnocientífcos, sanitários,sociais e ambientais a partir da realidade latino-americana, desenvolve uma linha de pesquisa quepode acolher as críticas e contribuições advindasdos estudos sobre a colonialidade, sobretudo no que

diz respeito às bases conceituais relacionadas comas teorias éticas e epistemológicas que a sustentam.Entre estas, especifcamente, o estudo discute as re-lações existentes entre o utilitarismo aceito pela BIpor meio de um consequencialismo solidário e suasinter-relações com a ideia de colonialidade.Palavras-chave:Colonialidade; Bioética de Interven-ção; Epistemologia; Política; América Latina.

Wanderson Flor do Nascimento

Doutor em Bioética. Proessor Adjunto do Departamento de Filoso-

a e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade

de Brasília.

Endereço: Programa de Pós-Graduação em Bioética. Campus

Universitário Darcy Ribeiro, Caixa Postal: 04367, CEP 70919-970,

Asa Norte, Brasília, DF, Brasil.

E-mail: [email protected]

Volnei Garrafa

Doutor em Ciências e Pós-doutor em Bioética. Coordenador da

Cátedra Unesco e do Programa de Pós-Graduação em Bioética.

Proessor Titular da Faculdade de Ciências da Saúde da Univer-

sidade de Brasília.

Endereço: Programa de Pós-Graduação em Bioética. Campus

Universitário Darcy Ribeiro, Caixa Postal: 04367, CEP 70919-970,

Asa Norte, Brasília, DF, Brasil.

E-mail: [email protected]

Por uma Vida não Colonizada: diálogo entre

bioética de intervenção e colonialidadeFor a not Colonized Life: dialogue between intervention

bioethics and coloniality

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Abstract

This paper aims to discuss some concepts – deve-loped within the Coloniality Studies by a group othinkers in Latin America – about how Modernityemerged structured as a way to dispose power,knowledge and being, so that a hierarchy between

center and periphery, installed in a colonial pers-pective, organizes our way o dealing with politics,with science and - this is the main ocus o thispaper – with lie. Intervention Bioethics (IB), whoseproposal is to politicize in an ethical manner the me-thod o dealing with biotechnoscientifc, sanitary,social and environmental conicts rom the Latin  American reality, develops a line o research thatcan accommodate the contributions, as well as thecriticisms, rom Coloniality Studies, particularlywith regard to conceptual rameworks related to the

ethical and epistemological theories that supportit. Among these conceptual rameworks, this paperdeals specifcally with the relationship between theutilitarianism accepted by IB through a supportiveconsequentialism and its interrelations with theidea o Coloniality.Keywords:Coloniality; Intervention Bioethics; Epis-temology; Politics; Latin America.

Introdução

  A Bioética de Intervenção (BI) surgiu na últimadécada do Século XX como erramenta de denúncia,reexão e busca de alternativas para a solução deproblemas (bio)éticos que aparecem em um contextotípico das desigualdades registradas no hemisério

Sul, especialmente na América Latina, sobretudoos macroproblemas. As chamadas situações persis-tentes, que nos países periéricos ditam a maneiraestrutural de lidar com problemas ligados à vida,saúde, ética e política, segundo a BI requerem er-ramentas dierentes daquelas utilizadas nos moldesimperialistas dos países centrais. A BI trabalhatambém com as situações emergentes, mas desde aperspectiva da justiça social ancorada na busca docombate às desigualdades provocadas pela dinâmicaimperialista e colonial verifcada principalmente

nos últimos 60 anos a partir do acelerado desen- volvimento científco e tecnológico verifcado nospaíses centrais (Garraa e Porto, 2003).

 As situações persistentes (como exclusão social, violência, discriminação, restrição de acesso à saúdeetc.), tão vigentes em países periéricos, apesar denão serem recentes, adquirem contorno muito parti-cular no período moderno, pois, sobretudo o avançodo capitalismo – que se dá apenas na Modernidade– imprime marcas muito peculiares aos problemas

 vivenciados de outras maneiras em dierentes épo-cas históricas.

 A BI propõe uma politização das questões mo-rais abordadas pela bioética desde um reerencialque seja adequado para o contexto de exclusão dospaíses do hemisério Sul, e, sobretudo, para o con-texto latino-americano. Levando em consideração ocaráter aberto, em construção, dialógico da BI, o queeste trabalho pretende, de modo pontual, é buscaralgumas reexões e propostas sobre reerenciaisteóricos oriundos da própria América Latina, quepossam contribuir para o apereiçoamento e reorçodas bases conceituais dessa nova e radical propostade politização da bioética, de modo que conceitosque se articulem, sobretudo, nos campos epistemo-lógicos e políticos, possam ser pensados não apenaspara o Sul, mas desde o Sul.

Este estudo está estruturado em três partes. Naprimeira, apresentamos a justifcativa para uma

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reexão de conceitos desde o Sul e não apenas parao sul, ao mesmo tempo em que são introduzidos oschamados Estudos sobre a colonialidade . Na segun-da, delineamos o contexto específco em que a BIpode se relacionar com os estudos da colonialidade,risando uma das ideias que sustentam os pensa-mentos hegemônicos em bioética, que chamaremos

de colonialidade da vida. Na parte fnal, desenvolve-mos uma crítica a alguns supostos teóricos da BI,não para invalidá-los, mas para pensá-los de outromodo, em busca de algumas possibilidades de con-tribuições dos estudos da colonialidade às basesconceituais da BI.

Pensar desde o Sul

 A maneira hegemônica de lidarmos com as práticassociais, com a política, com a ética e com o conheci-mento em nosso cotidiano e nas ciências é uma ma-neira, sobretudo, moderna; e, assim sendo, partilhade uma série de características da Modernidade quea az nascer. É na Modernidade que vemos surgirum modo específco de exercício de poder, que temuma maneira peculiar de articular conhecimentospara a validação do modo de exercê-lo, undado emuma geopolítica. Em unção dessas característicasmodernas, que apontaremos adiante, az-se necessá-rio, para pensar não apenas o Sul e para o Sul, mas

desde o Sul, azer uma crítica da Modernidade, uma vez que a própria noção política de hemisério Sul sóadquire seu sentido no período moderno.

Existem várias maneiras de entender e criticar aModernidade. Neste trabalho adotaremos uma que éoriunda da própria América Latina, desenvolvida poruma série de pensadoras e pensadores de diversasáreas do conhecimento e da flosofa que partem da América Latina como um lugar do pensar e para pen-sar. É um grupo que postula um suposto político para

realizar sua análise da Modernidade, qual seja: éimpossível entender os eeitos, os sentidos, as dinâ-micas e as práticas de poder da Modernidade sem en-tender que ela tem em sua base uma lógica colonial.Esse grupo se organizou basicamente em torno dasseguintes ideias: colonialidade, cunhada por AníbalQuijano (1992, 2000); dierença colonial, de WalterMignolo (2003); violência original da Modernidadee o encobrimento do outro, de Enrique Dussel (1993).

Todas essas ideias estão articuladas com uma sériede outras produções que tentam entender as manei-ras como, na Modernidade, as relações entre poder,conhecimento, vida e resistência têm se articulado,enatizando especialmente a violência que emergeda contradição entre “modernos” e “colonizados”.Chamaremos à produção em torno dessas ideias e

da produção de outras, a partir destas, de estudos sobre a colonialidade . Esses estudos partem dascríticas a certa imagem socialmente estabelecidasobre a Modernidade e airmam outra, pensadadesde a América Latina.

Essa imagem criticada da Modernidade é a quecentra os reerenciais de compreensão do períodomoderno na Europa (e, mais tarde também nosEstados Unidos), estruturada em torno de algunsníveis (Escobar, 2003):

Em um nível temporal, pensa-se a Modernidadecomo tendo suas origens entre os séculos XVI eXVIII, sobretudo em alguns lugares da Europa (maisespecifcamente Inglaterra, França e Alemanha),concomitante com alguns eventos importantes liga-dos a esses lugares, como a Reorma Protestante, oIluminismo e a Revolução Francesa. Em nível socio-lógico, a Modernidade tem sido caracterizada pelaconstituição dessa grande instituição racionalizada– o Estado-Nação – que tem se caracterizado pelaautorreexão. Essa autorreexão se articula por

meio da dinâmica que nasce da interação entre asorças organizadoras da sociedade e o conhecimentoespecializado, pelo desmembramento da vida socialque resulta na despolitização das questões moraise no acolhimento de orças translocais que deli-neiam ronteiras e, ao mesmo tempo, demonstramdifculdades em pensar o aqui e agora dos locaismarcados pela presença desses “outros ausentes”,que são os excluídos. Em nível flosófco, a Moder-nidade tem sido pensada como a caracterização

do desenvolvimento da noção de “homem”, comoundamento da organização e do conhecimento domundo, encontrando na racionalidade o motor daordem e das ideias de desenvolvimento, progresso,melhoramento e superação, que se tornariam típicasda presença dos seres humanos na ordem social.

 A articulação desses níveis criou determinadahierarquia entre o que é local e o que é global, namedida em que o local é o particular, o que precisa

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ser desenvolvido para chegar à hegemonia do glo-bal. Nesse sentido, a Modernidade pode ser vistacomo a construção de uma nova imagem de mundo(ordenado, racional, previsível e em constante pro-gresso). Essa imagem do mundo moderno é chama-da pelos estudos sobre a colonialidade de “modoeurocentrado de interpretação”. Eurocentrado, por

ter na Europa e em suas projeções nos EUA o eixode compreensão do processo moderno, não apenasna Europa (e EUA), mas em todo o mundo. Em un-ção dessa imagem, tudo o que não é moderno nãoé civilizado, ou seja, é atravessado pela marca dabarbárie, da marginalização, da subalternidade. Olocal é, nesse contexto, menor, marginal, bárbaro,subalterno. O local é deslocado do centro; é vistocomo ligado ao retrógrado, com o que precisa sereducado, melhorado, desenvolvido, para alcançar o

ideal/global.Essa imagem supõe (e institui) um escalonamen-to hierárquico entre quem é desenvolvido e quem nãoé, de modo que essa hierarquização está pensada emtermos de quem é moderno e quem não é. Há umaquase natural afrmação da inerioridade de quemnão é marcado pela modernidade, precisando esteser educado, civilizado, colocado na marcha do pro-gresso (pelos já modernos/desenvolvidos), mesmoque isso implique – e é o que geralmente acontece eserve aos interesses da presente discussão e crítica

– na instauração de um processo de dominação. A co-lonização tem parte de seus argumentos de legitima-ção ligada a essa proposta civilizatória direcionadaa sociedades não desenvolvidas, não civilizadas, nãomodernas/modernizadas. É nesse contexto que osestudos sobre a colonialidade afrmam várias noçõescríticas de modernidades alternativas a essa noçãoeurocentrada, partindo, entretanto, dessa noção.Há, em parte dessas noções, um descentramentoda Modernidade em suas alegadas origens exclusi-

 vamente europeias, incluindo uma desconfança nasequência linear que ligaria Grécia, Roma e a Europamoderna. Outra concepção espacial e temporal damodernidade em termos do papel undamental deEspanha e Portugal – chamada por Dussel (1993) dePrimeira Modernidade, iniciada com a Conquista – esua continuação no Norte Europeu com a RevoluçãoIndustrial e o Iluminismo (a Segunda Modernidade)sendo que a segunda não substitui a primeira, mas

a sobrepõe até hoje. A ênase na perierialização detodas as regiões do mundo pela “Europa Moderna”,tendo a América (sobretudo a América Latina), comoo inicial “Outro Lado da Modernidade”: o dominadoe o encoberto.

Esses estudos realizam também uma releiturado mito da Modernidade, não para questionar o po-

tencial emancipatório da razão moderna, mas paraimputar a superioridade da civilização europeia ar-ticulada com a suposição de que o desenvolvimentoeuropeu deve ser unilateralmente seguido por todasas outras culturas; e à orça se or necessário... A esse ato Dussel (1993, p. 185-186) chama de “FaláciaDesenvolvimentista”.

Os estudos sobre a colonialidade partem demovimentos de descolonização ocorridos sobretudona América colonizada – como as revoltas haitiana

e de Tupac Amaru – alternativas tanto políticascomo epistemológicas para pensar a Modernidadee o processo colonizador atual que, na verdade, sãoaces diversas da mesma realidade. Os estudos dacolonialidade, partindo dessas observações do local,afrmam que a crítica da Modernidade está undadana ideia de que não há Modernidade sem coloniali-dade, sendo esta a constitutiva daquela. Mignolo(2003) afrma que na dinâmica de construção daModernidade há a instauração de uma “dierença co-lonial” que, ao ser ocultada, se movimenta na tarea

de subalternização de conhecimentos, experiênciase culturas e torna possível a instalação e consolida-ção da Modernidade. Essa dierença colonial criaum abismo entre as diversas partes envolvidas nosprocessos colonizadores e na atual colonialidade. A dierença hierarquiza as relações de maneira inexo-rável, na oposição entre o desenvolvido/moderno e obárbaro, o selvagem, o subdesenvolvido e a afrma-ção da superioridade espacial, política, epistêmica,econômica e moral de um sobre outro.

 Aníbal Quijano, elaborador do conceito de colo-nialidade, afrma que a Modernidade, tal como a co-nhecemos só existe porque se instaurou uma ormade exercício de poder que inerioriza o outro, que criaidentidades através da criação violenta de alterida-des que podem – e, em grande medida, devem – sersubordinadas, violadas, oprimidas (Quijano, 1992).É a Conquista do continente americano, sobretudoda América Latina, que dá sustentação política, eco-

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nômica, moral e epistemológica para o nascimentoe a consolidação da Modernidade. E a colonialidadeseria exatamente esse regime de poder que, undadoem uma ideia de desenvolvimento, impõe padrõeseconômicos, políticos, morais e epistemológicossobre outros povos não apenas para estabelecer ummecanismo de expansão dos Estados-Nação desen-

 volvidos, mas para a própria criação da identidadeeuropeia (e estadunidense). Dito de outra maneira,não haveria Europa sem a subjugação da AméricaLatina, Árica e parte da Ásia. Não haveria Nortesem exploração do Sul. E, nesse sentido, a divisãodo mundo em hemisérios atende a um projeto depoder, a uma geopolítica.

 A colonialidade do poder só se sustenta por haverum modo específco de produção de conhecimento,uma epistemologia, que se relaciona com uma ma-

neira específca de aplicar esses conhecimentos comfns de exercício do poder.Muito do que se produziu em termos de teorias

sobre o mundo (que fnalmente traçam imagens domundo, ontologias) é uma afrmação da legitimidadee da necessidade de dominação de povos mais de-senvolvidos (euronorteamericanos) sobre povos nãodesenvolvidos, como os povos do “Sul”. É importanterisar que o Sul é aqui entendido no sentido de Boa- ventura de Souza Santos (Santos e Meneses, 2009,p. 12-3): O conjunto de países e regiões do mundo

que oram submetidos ao colonialismo europeu eque, com exceção da Austrália e da Nova Zelândia,não atingiram níveis de desenvolvimento econômicosemelhantes ao do Norte global (Europa e Américado Norte)”. Essa não é apenas uma situação espacial,pois mesmo no interior do Norte geográfco existemclasses e grupos sociais (como os trabalhadores, mu-lheres, indígenas, arodescendentes) que oram:

[...] sujeitos à dominação capitalista e colonial e,por outro lado porque no interior do Sul geográf-

co houve sempre “pequenas Europas”, pequenaselites locais que se benefciaram da dominaçãocapitalista e colonial e que depois das indepen-dências a exerceram e continuam a exercer, porsuas próprias mãos, contra as classes e grupossociais subordinados (Santos e Meneses, 2009,p. 12-13).

Pensar, então, em conhecimentos, em conceitos,sejam eles políticos, epistemológicos, éticos ou

políticos, não apenas para o Sul, mas desde o Sul,implica entender que os conceitos estão imersos emhistoricidades e, na história da maioria absoluta dosconceitos éticos, políticos, e epistemológicos temosa estrutura colonial operando de modo undamen-tal, pois, como nos lembra Aníbal Quijano (2000),no interior da colonialidade do poder unciona a

colonialidade do saber, sendo que esta legitima eaz uncionar aquela.

Evidentemente, isso não quer dizer que não de- vamos mais ler as teorias vindas da Europa ou dos

Estados Unidos na tentativa de pensar a situaçãoda América Latina ou de outros lugares do Sul,mas que devemos estar atentos às armadilhas queessas teorias podem trazer, ainda mais quando são

eitas na égide da colonialidade que domina sob aégide do desenvolvimento, do progresso e, porque

não, em nome de um suposto beneício para associedades menos avorecidas (vale lembrar que asmissões catequizadoras, por exemplo, se aproxima-ram dos povos indígenas brasileiros para salvá-los,

reaproximá-los do único caminho de salvação queeles julgavam existente). Pensar desde o Sul implicaem dialogar com os conceitos produzidos pelo Norte,

atentos ao risco de subordinação a eles. Nesse senti-do, talvez osse interessante partir de um “conjuntode intervenções epistemológicas que denunciam a

supressão, valorizam os saberes que resistiram comêxito e investigam as condições de um diálogo ho-rizontal entre saberes” (Santos e Meneses, 2009, p.

13), que é a defnição de Boaventura de Sousa Santospara “Epistemologias do Sul”.

Diálogos com a Bioética deIntervenção: a colonialidade da vida

 Atenta principalmente às questões persistentes quese undam nas proundas desigualdades econômico-

sociais dos países do Sul, a BI se propõe a enatizara necessidade de politização dos problemas moraisadvindos da condição vulnerada da maioria daspopulações da América Latina e do hemisério Sulcomo um todo, com ênase no Brasil.

Se os estudos da colonialidade têm razão, todo oprocesso de constituição da América Latina e o pro-cesso de constituição da economia capitalista globa-lizada são partes do mesmo processo de constituição

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da Modernidade. A lógica colonial da modernidadenão apenas estará ligada ao contexto da coloniali-dade política, que é esse modo de exercício do poderque se unda na base de uma dierença colonial – quehierarquiza experiências, saberes, culturas, vidas –,mas também vai sustentar um regime de produçãode conhecimentos que o legitima e o az uncionar,

ao mesmo tempo em que esses saberes estão ligadosa certa imagem de vida e de gestão da vida, como bemnotou Foucault ao pensar na ideia de Biopolítica.

Embora trabalhos anteriores sobre a BI já tenhammaniestado que os conceitos de Bioética e Biopolíti-ca são diversos sob certa ótica uma vez que, em geral,se tenta desqualifcar o escopo da discussão políticada bioética atribuindo-o especifcamente à biopolí-tica (Garraa, 2005, p. 123), estudos mais recentestrataram de recuperar a relação entre os dois con-

ceitos. A partir de discussões sobre os conceitos de“Felicidade Nacional Bruta” adotado desde os anos1970 no Butão (que defne que o princípio básicopara garantir a elicidade é que a economia esteja aserviço do bem-estar da população) e de “Bem Viver”(antiga flosofa de vida das sociedades indígenasda região andina e incluída pela Bolívia em suaConstituição, segundo a qual o importante não sãoas riquezas, ou seja, as coisas que as pessoas produ-zem, mas o que as coisas produzidas proporcionamconcretamente para a vida das pessoas) “[...] parece

ser apropriado que a Bioética, nos próximos anos,comece a incorporar às suas discussões o conceitode Biopolítica, desenvolvido por Michel Foucault,uma vez que tudo isso tem a ver diretamente coma qualidade de vida e a sobrevivência das pessoas”(Garraa, 2009).

Pode-se dizer, então, que embora tenham nuan-ças específcas, bioética e as análises da biopolíticaestão interconectadas em seus propósitos de en-tender os mecanismos de poder sobre a vida que se

undam em torno de uma imagem de vida. Assim, na medida em que os ditames hegemôni-

cos de produção de conhecimento estão ancoradose produzidos na lógica da colonialidade, temos depensar de que maneira os conceitos de vida estãoem jogo para a elaboração de outros conhecimentose políticas sobre a vida.

Uma das características da colonialidade é pen-sar a estruturação do real em unção de hierarquias,

em que o menos desenvolvido deve estar não apenassob a tutela dos mais desenvolvidos, mas o própriodesenvolvimento de alguma maneira está ligado aessa tutela. As ormas de vida dierentes de paísescentrais e países periéricos não apenas supõemuma dierença de nível de desenvolvimento, mastambém um escalonamento de valores entre as vidas.

Essa seria uma variante da Dierença colonial queundaria aquilo que chamaremos de Colonialidade da vida, que é exatamente o processo de criar umaontologia da vida que autorize pensar que algumas vidas são mais importantes do que outras, desdeo ponto de vista político, undando assim umahierarquia e uma justiicativa para dominação,exploração e submissão, sob o pretexto de ser esseum caminho para o desenvolvimento da vida menosdesenvolvida.

  A incisiva denúncia que a BI tem eito sobre oDouble standard em pesquisas clínicas desenvolvi-das pelo  National Institute o Health dos EstadosUnidos em diversos países periéricos, principal-mente no continente aricano, mas também na Amé-rica Latina, de alguma maneira já carrega uma de-núncia não somente sobre a hierarquização política(ou biopolítica) da gestão de vida de uma sociedadesobre outra, mas também de uma hierarquia de vidas“desenvolvidas” sobre vidas “não desenvolvidas”.Tudo isso justifcaria a legitimação de incursões

ditas proveitosas de uma sociedade (denominada“desenvolvida”) sobre sociedades “menos desen- volvidas” (Garraa e Lorenzo, 2009). Essa relação éuma relação de colonização da vida. A colonialidadeda vida normalmente tem sido usada como pretextopara práticas violentas contra sociedades. Ideias pa-recidas podiam ser lidas no início do século XX, emdeesa dos sistemas coloniais, como as deendidaspor Carl Siger (1907):

Os países novos são um vasto campo aberto às ati-

 vidades individuais, violentas, que, nas metrópo-les, se chocariam contra certos preceitos, contrauma concepção prudente e regrada de vida, masque, nas colônias, podem desenvolver-se maislivremente e melhor afrmar, em consequência,o seu valor. Assim, as colônias podem, em certamedida, servir de válvulas de segurança para asociedade moderna. E essa utilidade, mesmo queosse a única, seria imensa (grios nossos).

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É nesse contexto que vemos a colonialidade da vida como base da biopolítica hegemônica e, espe-cialmente, de algumas bioéticas despolitizadas,horizontais, distantes da realidade, deliberadamente“neutras” e assépticas. Ao afrmarmos que em algunslugares “uma concepção prudente e regrada de vida”impede investidas mais ortes e até violentas, em

outros lugares elas estão pereitamente legitimadase autorizadas. Isso, longe de ser um mero arranjo dejogos de poder, envolve imagens, noções, conceitosacerca do que seja a vida e suas relações com as ins-tâncias sociais. É possível encontrar argumentos emdeesa do duplo padrão de pesquisas – o double stan-dard já mencionado – que naturalizam as relaçõessociais em países periéricos, passando a ideia queaquelas vidas possam ter mais importância para a odesenvolvimento do mundo, na medida em que são

elas mesmas as mais orçadas a encontrar seus limi-tes, sendo usadas como sujeitos de pesquisas paraque não apenas o restante do mundo, mas também ospaíses onde essas vidas pesquisadas estejam, sejam,pelo menos na instância teórica da argumentação,também benefciadas. Os beneícios que seriam, emtese, de todas as sociedades são alcançados atravésdo risco de alguns, que são pensados não apenaspoliticamente, mas social e ontologicamente comomais propícios para o trabalho árduo, que implicaem desenvolver aqueles conhecimentos que ainda

não estão dominados pela ciência.  A colonialidade da vida também oerece legiti-

mação para que, contraditoriamente, a pobreza sejaao mesmo tempo tolerada e perseguida em nossasociedade. A vida pobre é parte do argumento de-senvolvimentista. Convocando uma alácia dialéticadesenvolvimentista, segundo a qual para que existao progresso deve haver a contradição, a tensão e adierença entre opressores e oprimidos, abrica-seuma vida mais vulnerável para que ela possa ocupar

esse lugar. No início do colonialismo moderno, a vida abricada para ser oprimida oi a vida indíge-na e de pessoas do continente aricano que vierampara o continente americano, consideradas “vidasnecessárias” para o progresso da Europa (sempredito como progresso e desenvolvimento do mundo)e, mais tarde, dos EUA.

Foi-se o colonialismo, fcou a colonialidade. A mesma lógica de usurpação, exploração e violência

continua sendo aplicada, só que agora com méto-dos mais soisticados do que a presença ormalda metrópole no país colônia. A América Latina écolonizada sem uma metrópole única. Nisso resideum dos eeitos mais perversos da colonialidade: nãohá um Estado-Nação concreto a quem culpar pelosdesmandos e injustiças que ceiam vidas em nome

do progresso do mundo globalizado. É o própriomundo globalizado, entidade ao mesmo tempo con-creta e ultra-abstrata, que é responsável pela atualcolonialidade, que ora gerada em outro tempo e emoutras circunstâncias.

 A vida segue marcada pelo traço da dierençacolonial. A vida de quem habita em condição he-gemonicamente privilegiada os países centrais doNorte é política e ontologicamente mais valiosa doque a vida de quem habita, em processos marginais,

o Sul. Todo discurso que valoriza as vidas pretende,em atitude paradoxal (como no caso do duplo padrãometodológico utilizado para as pesquisas clínicas),reconhecer como menos valiosas essas vidas para valorizá-las. O discurso normalmente utilizado parahierarquizar as vidas as classifca hierarquicamentepara, a partir da constatação de que elas ocupamum grau político – e, na relação com as condiçõesmateriais de existência, também ontológica – in-erior colocá-las na marcha do progresso. Chamaros países periéricos e explorados de “países em

desenvolvimento” é uma das maneiras de pensaresse enômeno. Não se percebe a atuação da aláciadesenvolvimentista nesse contexto, e a vida seguesendo estratifcada em nome do desenvolvimento.

É preciso, ainda, ressaltar que essa colonialidadeda vida não se sustenta em uma concepção mera-mente biológica de vida (embora na América Latinauma noção biológica de raça tenha sido usada muitotempo para esses fns), mas na afrmação médica,religiosa, econômica e política que ao se articular

com outras afrmações estratifcam de maneira es-tratégica as vidas para melhor dominar algumas.Nesse sentido, a BI assumiu a tarea de denunciar

e desmistifcar a imagem colonizada de vida, que seafrma por imperialismos de diversas ordens (políti-co, econômico, moral, biomédico etc.) e que fndampor não apenas estruturar as desigualdades sociais,mas contribuir para que elas se mantenham. A colo-nialidade da vida – como aceta da colonialidade do

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poder – tem dispositivos silenciosos de reproduçãoque, sem dúvida, se articulam com muitas ideiasprogressistas dos pensamentos hegemônicos.

 A tarea de oerecer reexões e alternativas àsquestões persistentes no hemisério Sul, exige daBI – e de toda bioética politicamente comprome-tida – uma lúcida relação crítica e aberta com os

instrumentos teóricos que vêm do Norte, pois todoo discurso undado na colonialidade se apresentacomo generoso. O objetivo, portanto, é utilizarcriticamente o pensamento desde o Sul, para o Sul,através do Sul, com a apropriação crítica das erra-mentas conceituais advindas de diversos lugares,incluindo o Norte, mas sempre com a perspectiva deque as erramentas conceituais lá construídas – aomenos as hegemônicas – escondem as armadilhasda colonialidade. A BI, com uma undamentação

epistemológica crítica direcionada a estudar as de-sigualdades sociais e outras situações persistentesexistentes no Sul, por ter se arvorado a pensar parao Sul, apresenta-se com uma precondição e disposi-ção concretas para azer parte do contexto de umaperspectiva de crítica à colonialidade do poder, dosaber, da vida.

Discutindo o Utilitarismo e oConsequencialismo como Bases

Conceituais da BINa busca de oerecer erramentas consistentespara pensar, avaliar e apresentar alternativasaos problemas (bio)éticos da América Latina, a BIapresenta uma dupla proposta. No campo coletivoe público, propõe a priorização de políticas e toma-das de decisão que privilegiem o maior número depessoas, pelo maior espaço de tempo possível e queresultem nas melhores consequências coletivas,mesmo levando em consideração circunstâncias

e situações individuais, com exceções pontuais aserem discutidas. No campo individual e privado,propõe a busca de soluções viáveis para os conitosidentifcados, levando em consideração o contextoem que acontecem, bem como as contradições queos sustentam (Garraa e Porto, 2003).

Essas propostas – além de tomar a equidadecomo ponto de partida; a justiça social como objeti- vo e como ambiente de reexão; a libertação como

erramenta de intervenção; o empoderamento e a li-bertação como propostas de mobilização de sujeitose recursos; e a emancipação como ponto de proteção– se sustentam em dois undamentos: a) em um uti-litarismo, que no sentido atribuído por palavras deGarraa e Porto (2003) é orientado para a equidade;b) num consequencialismo solidário e crítico.

Inicialmente nos deteremos no primeiro pontoregistrado – o utilitarismo – e sua crítica desde

a perspectiva dos estudos sobre a colonialidade. Análises e críticas ao uso do utilitarismo como er-ramenta incorporada pela BI já oram eitas (ver por

exemplo o texto de Cruz e Trindade, 2006). O objetivonão é apresentar essa crítica como uma propostade retirada do utilitarismo das bases da BI, mas de

analisar de que maneira ela poderia ser pensada demaneira descolonizada. O uso crítico de um conceito

é uma das ormas de evitar a armadilha colonial,que pensa que sempre a melhor maneira de se usar

um conceito é tendo-o como o melhor possível parapensar, analisar, problematizar e propor soluçõespara uma situação ou problema.

Uma das críticas que os estudos da colonialidadeazem à colonialidade do saber – essa maneira de pro-duzir conhecimentos e conceitos que estão de algum

modo legitimando e azendo uncionar o esquema dacolonialidade do poder –relaciona-se ao ato de queentre as grandes armadilhas dos saberes coloniais

está sua pretensão à universalidade. Toda tentativade extensão universal da aplicação de qualquerregra implica na vulnerabilização daquele ponto

ao qual a regra não se aplica “naturalmente”. Inde-pendentemente do ato que a reerência mencionadanesse contexto é a de privilegiar o maior número de

pessoas nas decisões públicas interventivas com vistas à proteção solidária, há uma regra decididapor um conjunto de pensadores e pensadoras, quan-titativamente minoritários, e que precisa ser mais

bem discutida.Sem colocarmos a crítica ao modo como usamos

os conceitos, incorremos no risco de não observarque a própria proposta utilitarista tem sua historici-dade, estando sua história também intrinsecamenteligada aos processos coloniais. Quijano (1992) noslembra que um dos undamentos característicos daconstituição da colonialidade é o estabelecimentoda racionalidade como oco central na defnição do

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ser humano e nas maneiras dos seres humanos li-darem com as instituições sociais. Em unção disso,Rouanet (1993) defne a Modernidade como processode racionalização das instituições sociais. A ideiade racionalidade que aparece no contexto modernoé uma racionalidade organizadora, ordenadora edesenvolvedora, que procura tirar o máximo de pro-

 veito de todas as coisas sobre as quais atua.Essa é a mesma racionalidade que aparece como

reerência mais ou menos segura para a tomadade decisões na onte da elaboração utilitarista. Éexatamente aqui que reside o risco da adoção do uti-litarismo para a análise de conitos que envolvem,por exemplo, decisões no campo da saúde. A tomadade decisão para privilegiar o maior número possívelde pessoas, pela quantidade maior de tempo e queresulte nas melhores consequências coletivas está

radicalmente ligada à capacidade racional de de-terminar o que é realmente privilégio (ou o melhor)para o maior número de pessoas. Como esse é umprincípio geral, que não apresenta “poréns”, e aindaé reorçado no sentido de que deve ser afrmadomesmo a despeito de situações particulares, abreespaços undamentais para tomadas de decisões quepodem vir a se mostrar injustas do ponto de vistada dignidade da pessoa humana (tal como pensa amaioria das pessoas). O dispositivo adicional quese reere às “exceções a serem discutidas”, não con-

segue evitar a má aplicação da regra, haja vista quenão sabemos quais seriam as exceções e qual seriao padrão da regra.

Tomemos como exemplo um caso hipotético: Umgoverno determina que parte de sua verba emergen-cial seja utilizada para a construção de uma ponteque ligue dois bairros nobres de determinada cidade,ao mesmo tempo que – também provocando umasituação de emergência – aparelhos de hemodiálisequebram em um hospital da perieria da mesma cida-

de, colocando em risco a vida de algumas pessoas poralta do tratamento indispensável. Com o argumentode que já há aplicações de recursos consideráveispara a saúde e que a ponte cada vez se torna umaquestão de urgência maior uma vez que o trânsitodos bairros servidos por ela e dirigido para o centroda cidade estava se tornando impraticável, fcouutilitariamente justifcável a aplicação prioritáriade recursos nela. O mesmo recurso emergencial po-

deria ser utilizado tanto em um como no outro caso,mas como a ponte benefciaria um número maiorde pessoas, por mais tempo e trazendo “melhoresconsequências coletivas”, optou-se por ela.

Como saber se esse tipo de aplicação seria aexceção ou o padrão de situações-problemas e que aregra utilitária deveria ser aplicada? Como pensar,

por exemplo, se não seria interessante – tambémdo ponto de vista hipotético – que uma pessoa ossemorta para que seus órgãos salvassem a vida dediversas pessoas? Como saber sobre a aplicaçãojusta de um princípio em que as exceções mostrama ragilidade da regra? Como evitar que a regra, queaplica a racionalidade e que oi desenvolvida sob aégide colonial, seja mais vulnerabilizadora do quelibertadora ou emancipadora?

Embora a BI enatize que esse não é um utilita-

rismo qualquer, mas um utilitarismo voltado paraa equidade, a emergência da noção de equidade nãoseria sufciente para garantir que houvesse a indubi-tável melhor tomada de decisão. A própria percepçãodo desequilíbrio que se procuraria reduzir com a bus-ca da equidade é identifcada racionalmente. AníbalQuijano lembra que o modo hegemônico de uncio-namento da racionalidade moderna é exatamente acompreensão na busca do que é homogêneo, ou na“percepção de que um campo de relações sociais éconstituído por elementos homogêneos, contínuos,

ainda que contraditórios” (Quijano, 2000, p. 355).Paradoxalmente, a proposta da equidade parte da ho-mogeneidade do desnível entre as partes que estãona situação desigual e tem a perspectiva de reduzira desigualdade para que elas estejam homogenea-mente equiparadas em termos de igualdade.

Isso resulta da invisibilidade dos processos deexercício colonial do poder quando se pretende ge-neroso. A percepção da desigualdade que motivaráa busca de mecanismos para a busca da equidade,

normalmente parte das partes menos vulneráveis;no caso hipotético da ponte e da diálise, não seriaum paciente portador de neropatia – nem necessa-riamente seu representante – que tomaria a decisãoacerca da alocação de recursos. Essa percepçãoracional da desigualdade e da vulnerabilidade étotalmente atravessada pela percepção de que háuma homogeneidade que permite tomar decisõesacertadas em beneício dos vulneráveis. A Moderni-

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dade estruturou a razão para perceber as regulari-dades e a homogeneidade. Entretanto, as relações deorça são uidas, dispersas, e o campo das relaçõeshumanas (sejam elas políticas, econômicas, sociaisou quaisquer outras) são totalmente heterogêneas echeias de fssuras e irregularidades. Como a racio-nalidade moderna oi orjada para pensar desde o

ponto de vista da homogeneidade, mesmo a propostada equidade pode ser comprometida em unção doaspecto racional de sua busca.

 A decisão sobre o que é o melhor para a maioriadas pessoas é sempre uma decisão tomada por algu-mas pessoas, por meio do uso dessa racionalidadeque em sua história vem mostrando usar a riezaem sua relação com os sorimentos morais. Nessesentido, os estudos sobre a colonialidade propõemdiálogos com as partes locais, com os mais vulne-

ráveis, desconsiderando a hierarquia racional daespeciicidade técnica. O diálogo entre técnicosespecialistas e o restante das populações, com to-das as difculdades que essa tarea implique comrelação às dierenças, pode ser um primeiro passopara a busca da criação do espaço em que se possamconstruir perspectivas de equidade.

 Aqui, ressaltamos que o problema da articulaçãoentre o utilitarismo e a perspectiva da equidade não vem da equidade, mas do modo especifcamentemoderno com que a temos buscado. As ormas de

justiça em que alguns decidem por todos costu-mam carregar os problemas da universalização da vontade de grupos que, mesmo bem intencionados,estão comprometidos, de modo inexorável, com oseu lugar de enunciação. Gayatri Spivak recorda quenas tramas políticas hegemônicas, as pessoas polí-tica, econômica, epistêmica, cultural e socialmente  vulneráveis – os subalternos – não constituiriamum sujeito capaz de conhecer e alar por si mesmo(Spivak, 2003, p. 324). E por que isso? Porque a ala,

a comunicação – sobretudo política – supõe um su-jeito receptor, que escute sem silenciamentos essaala. Spivak (2003, p. 327) suspeita que na estruturacolonial de poder hegemônico, esse receptor nãoexista, de modo que a voz de insurgência não seráouvida, ou ainda, que a voz será anulada, se torna-rá uma não voz , um silêncio. Diante do silêncio, aexperiência que determinará o lugar social do qualpartirá a busca da equidade é exatamente a experiên-

cia de quem não é subalterno, de modo que, dada aheterogeneidade das experiências, sempre deixaráde ora a experiência do subalternizado.

 A ideia de um consequencialismo solidário arti-culado com o utilitarismo orientado para a equidadeproposto pela BI que cria compromissos com aspopulações historicamente desprivilegiadas e vul-

neradas é o segundo ponto elencado no início destetópico e que agora passamos a discutir. De acordocom a BI, o consequencialismo solidário tem suaarticulação com o utilitarismo por um orte motivo:a afrmação da solidariedade fcou defnitivamenteassentada com a aprovação da Declaração Universalsobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco (2005),em que aparece como artigo 13 do capítulo dos “Prin-cípios” com o título “Solidariedade e cooperação” aseguinte redação: “A solidariedade entre os seres

humanos e a cooperação internacional para este fmdevem ser estimuladas”. Por um lado, se sabe que asdecisões em torno de ações de solidariedade são namaioria das vezes exercidas por sujeitos que têmseus lugares de decisão atravessados por historici-dades que nem sempre os leva a optar pelas pessoashistoricamente desavorecidas. Mas, por outro, ainclusão da solidariedade como princípio em umimportante documento construído coletivamentesob a chancela da comunidade mundial de naçõesacaba ganhando uma nova visibilidade e aplicação,

dependendo do nível de politização e comprometi-mento coletivo dos agentes que a utilizam.

  Aqui talvez seja o ponto em que uma propostade descolonização tanto da equidade quanto da so-lidariedade possa acontecer. Buscar a equidade nãoé azer pelo mais vulnerável o que nós, na posiçãomenos vulnerável, julgamos mais apropriado, masconstruir, com ele, um espaço em que as dierençasnão sejam hierarquizadas. Ser solidário não é julgarque os mais vulneráveis são incapazes de mobilidade

e melhorias autorrealizadas; tampouco é acreditarna possibilidade de transormação e entregar osmais vulneráveis à própria sorte. A solidariedadeestá mais ligada com o acolhimento da alteridade,no sentido atribuído por Lévinas (2007, p. 89-93),no qual o “eu” não prescreva o campo de pertença eatuação do outro. Esse acolhimento nos enviará aocuidado, à responsabilidade com esse outro, sobre-tudo na suposição de que esse outro está sempre

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 vulnerável às nossas ações. A solidariedade estaria,aqui, vinculada à proposta intercultural de encontrocom uma inter-relação equitativa entre pessoas,conhecimento e práticas culturalmente dierentes,uma interação que parte do conito inerente nasassimetrias sociais, econômicas e políticas do podere que impulsiona ativamente processos de intercâm-

bios que permitam espaços de encontro entre serese saberes, sentidos e práticas dierentes (Walsh,2005, p. 45), buscando com isso reduzir o desnívelprovocado pelos jogos hegemônicos de poder.

  A BI propõe a chamada solidariedade críticacomo um dos caminhos possíveis na busca e con-quista do welare state , no sentido deendido porGiovanni Berlinguer (1996), principalmente para osindivíduos e grupos mais desvalidos e vulneráveisda sociedade (Selli e Garraa, 2006). Pensamos em

uma solidariedade crítica, exatamente para evitara armadilha colonial de sermos solidários em causaprópria, no sentido de benefciar apenas nossospróprios interesses. A crítica aqui é também umaautocrítica, na medida em que nossos posiciona-mentos e interesses também estarão em questão.  A construção da solidariedade crítica poderá seeetivar em mudanças político-sociais, entre outrasormas, a partir de um voluntariado orientado paraa alteridade, por meio da ação concreta de gruposorganizados e preocupados com radicais transor-

mações políticas no sentido da luta pela inserçãocrescente do maior número possível de pessoas nosprocessos de tomada de decisão, ao mesmo tempoem que se problematizam as maneiras hegemônicasde decidir politicamente.

 A undamentação desse tipo de voluntariado naproposta da BI vem do compromisso pela tríplicebusca da intervenção: civil, política e social. Suaonte de inspiração é sustentada pela solidariedadecrítica e comprometida, que se situa nas coordena-

das da vida quotidiana e compreende propostas detransormação social a partir do comprometimentonão somente desinteressado e usual verifcado nosgrupos tradicionais de voluntários, mas que inclui odiscurso da militância e práticas políticas situadasno horizonte da mobilização social e que se movi-mentam pelos espaços do protesto e do conronto,quando necessário (Selli e Garraa, 2005). O nortedesse voluntariado é viabilizado a partir de uma

prática solidária crítica, autocrítica, transorma-dora e militante. Os grupos voluntários orgânicosalimentam suas ações políticas e seus processosde relacionamentos nos campos da justiça, dosdireitos e da mobilização e luta social, por meiode práticas solidárias, interativas e socialmentecomprometidas. É dentro de todo esse contexto e

na linha das ideias apresentadas, que a BI sustentasua deesa de um consequencialismo solidário. A proposta de uma solidariedade, de uma equidade ede um voluntariado descolonizados se encaixariamde modo harmônico à proposta da BI.

Considerações Finais

É inegável concordar que o lugar de poder que estáenvolvido na vulnerabilidade é central para o debatedeste problema. A vulnerabilidade não é apenas umaquestão inerente à condição humana, mas tambémuma relação que se estabelece entre indivíduos,grupos e sociedades, com dierentes lugares depoder. Somos, em todo caso, vulneráveis diante dealgo que nos retira o poder (outra pessoa, uma insti-tuição, o Estado, etc.). Nesse sentido, a tentativa deconstrução coletiva é undamental para a tomadade decisões. Uma Bioética de Intervenção para queseja um vetor da diminuição das injustiças sociaisdeve ser uma bioética dialogada. Dialogar implica

assumir os problemas e as contradições do diálogo,que objetiva o consenso; segundo Nery (2004), paraexistir diálogo deve haver o mínimo de consenso.Mas se temos em perspectiva que a dialogicidade daconstrução é, além de um objetivo, também um pontode partida, não podemos esquecer o ato de que hásérios problemas em dialogar com pessoas de mora-lidades, culturas e interesses dierentes e imaginarde modo inocente que o diálogo é uma prática isentade riscos, sobretudo se levamos em consideração as

ideias de Spivak elencadas anteriormente. A crítica desenvolvida neste texto à BI, mais doque uma tentativa de invalidação deve ser vista comouma proposta de aproundamento e ajuste. Não deve,portanto, ser considerada uma tentativa unilateralde mostrar as ragilidades para que outra propostaa substitua ou ocupe seu lugar. Isso pode acontecer,mas é apenas uma das diversas possibilidades.

 A maneira como a BI procura lidar com o utilita-

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rismo, até agora, tem sido sufcientemente satisa-tória para pensar os problemas a que se propôs, masisso não pode impedir que se critique o uso que a BIaz da proposta utilitarista. O uso do utilitarismo,até que se consiga construir algum instrumentomais adequado, deve ser plenamente cuidadoso, masé o que atualmente dispomos no contexto latino-

americano. Utilizando a metáora de Neurath (1993,p. 206) sobre o conhecimento, pode-se dizer que aBI é como um navio que unciona e tem algumaspeças com avarias. Só que enquanto não há terrafrme para parar e consertá-lo, segue a navegar comas peças avariadas e que vão sendo improvisadasdurante a navegação. Enquanto não encontramoso porto seguro para substituir o utilitarismo poroutra erramenta teórica mais pertinente, vamosnavegando com ele, consertando-o sempre que der

problema e, sobretudo, atentos ao ato de que temosuma peça avariada e que pode, em algum momento,causar problemas. Velejemos com cuidado, pois onavio da BI tem se mostrado importante e há aindamuitos mares a navegar, no seu projeto de apoio àconstrução da teoriade uma vida não colonizada.

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