Florestan Fernandes e a Universidade Brasileira PDF

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Florestan Fernandes e a universidade brasileira: 20 anos depois Diogo Valença de Azevedo Costa * O presente texto se origina de uma palestra proferida no dia 22 de janeiro de 2008 em mesa-redonda intitulada “A escola e a transformação da realidade”, realizada no Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, sob os auspícios da Cátedra José Martí. Na ocasião procurei discutir as relações entre professor e estudantes na sala de aula, na forma como Florestan Fernandes abordava o assunto, porém tangenciando questões críticas referentes ao modelo de departamentos implantado na universidade brasileira. Hoje, dia 10 de agosto de 2015, quando se completam vinte anos da morte de Florestan Fernandes, gostaria de retomar tais reflexões num contexto mais amplo, a fim de debater caminhos para a luta política que deve ir além da universidade. Não seremos capazes de enfrentar os cortes destinados aos serviços essenciais, como saúde e educação, sem desafiar uma estrutura de classes sociais ultraconcentradora da riqueza, do prestígio, da cultura e do poder, típica dos países de capitalismo dependente. É preciso quebrarmos a espinha dorsal do lucro das grandes corporações internacionais, o pagamento dos juros da dívida e as elevadas taxas de remessa de lucros, ou então o suor de nós trabalhadores será revertido para manter o consumo de luxo de nossas elites e o elevado padrão de vida das nações centrais. A obra política de Florestan Fernandes reflete a necessidade de unidade das nossas esquerdas e nos permite identificar os verdadeiros inimigos das classes trabalhadoras. O presente texto é, portanto, uma homenagem a esse brilhante cientista social, que nos legou uma das mais importantes interpretações socialistas da sociedade brasileira. Nascido em 22 de julho de 1920, filho de uma lavadeira analfabeta, Dona Maria Fernandes, o menino Florestan teve que trabalhar desde os seis anos de idade para ajudar sua mãe no sustento da família. Tendo interrompido os estudos aos nove anos, a duras penas conseguiu retornar ao ensino formal e concluir o curso de madureza (como era à época conhecido o Ensino de Jovens e Adultos). Entre os anos de 1941 e 1949, Florestan Fernandes percorreu todos os degraus de sua formação acadêmica, alcançando o título de doutor com uma tese sobre A função social da guerra na sociedade tupinambá, defendida na Universidade de São Paulo (USP). Em 1954 defendeu a tese de livre-docência e em 1964, já em plena ditadura empresarial-militar, apresenta sua tese de cátedra A integração do negro na sociedade de classes. Em 1969 foi aposentado compulsoriamente da Universidade de São Paulo devido a seu envolvimento em prol de uma reforma democrática da universidade brasileira. O seu falecimento ocorre em meio às consequências de sucessivos erros médicos devido a um transplante de fígado. No momento atual de crise do ensino superior no país, em que predominam as instituições privadas financiadas com verbas públicas e o processo de sucateamento das universidades públicas avança a passos largos, é de grande valor político e humano lembrar a militância de Florestan Fernandes no campo da educação. Esses dois setores, o público e o privado, não estão apenas em contradição, mas ambos se associam no grau * * Professor de Sociologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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Análise de Florestan sobre as universidades brasileiras.

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Florestan Fernandes e a universidade brasileira: 20 anos depois

Diogo Valença de Azevedo Costa*

O presente texto se origina de uma palestra proferida no dia 22 de janeiro de2008 em mesa-redonda intitulada “A escola e a transformação da realidade”, realizadano Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, sob os auspícios daCátedra José Martí. Na ocasião procurei discutir as relações entre professor e estudantesna sala de aula, na forma como Florestan Fernandes abordava o assunto, porémtangenciando questões críticas referentes ao modelo de departamentos implantado nauniversidade brasileira. Hoje, dia 10 de agosto de 2015, quando se completam vinteanos da morte de Florestan Fernandes, gostaria de retomar tais reflexões num contextomais amplo, a fim de debater caminhos para a luta política que deve ir além dauniversidade. Não seremos capazes de enfrentar os cortes destinados aos serviçosessenciais, como saúde e educação, sem desafiar uma estrutura de classes sociaisultraconcentradora da riqueza, do prestígio, da cultura e do poder, típica dos países decapitalismo dependente. É preciso quebrarmos a espinha dorsal do lucro das grandescorporações internacionais, o pagamento dos juros da dívida e as elevadas taxas deremessa de lucros, ou então o suor de nós trabalhadores será revertido para manter oconsumo de luxo de nossas elites e o elevado padrão de vida das nações centrais. A obrapolítica de Florestan Fernandes reflete a necessidade de unidade das nossas esquerdas enos permite identificar os verdadeiros inimigos das classes trabalhadoras. O presentetexto é, portanto, uma homenagem a esse brilhante cientista social, que nos legou umadas mais importantes interpretações socialistas da sociedade brasileira.

Nascido em 22 de julho de 1920, filho de uma lavadeira analfabeta, Dona MariaFernandes, o menino Florestan teve que trabalhar desde os seis anos de idade paraajudar sua mãe no sustento da família. Tendo interrompido os estudos aos nove anos, aduras penas conseguiu retornar ao ensino formal e concluir o curso de madureza (comoera à época conhecido o Ensino de Jovens e Adultos). Entre os anos de 1941 e 1949,Florestan Fernandes percorreu todos os degraus de sua formação acadêmica, alcançandoo título de doutor com uma tese sobre A função social da guerra na sociedadetupinambá, defendida na Universidade de São Paulo (USP). Em 1954 defendeu a tesede livre-docência e em 1964, já em plena ditadura empresarial-militar, apresenta suatese de cátedra A integração do negro na sociedade de classes. Em 1969 foi aposentadocompulsoriamente da Universidade de São Paulo devido a seu envolvimento em prol deuma reforma democrática da universidade brasileira. O seu falecimento ocorre em meioàs consequências de sucessivos erros médicos devido a um transplante de fígado.

No momento atual de crise do ensino superior no país, em que predominam asinstituições privadas financiadas com verbas públicas e o processo de sucateamento dasuniversidades públicas avança a passos largos, é de grande valor político e humanolembrar a militância de Florestan Fernandes no campo da educação. Esses dois setores,o público e o privado, não estão apenas em contradição, mas ambos se associam no grau

** Professor de Sociologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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de superexploração da força de trabalho docente. O desafio seria o de unir asreivindicações dos docentes de ensino superior apartados entre esses dois setores. Fareium breve esforço de apresentar em linhas gerais a perspectiva de Florestan Fernandessobre a universidade no horizonte de sua interpretação da sociedade brasileira e de suasconvicções pedagógicas libertárias. O nosso autor foi um dos críticos da implementaçãodo modelo de departamentos na universidade brasileira. Esse modelo quebrava oconvívio entre os diferentes campos do saber e promovia a separação entre os várioscentros e departamentos, afastando cursos muito próximos entre si como, por exemplo,pedagogia, ciências sociais, história, geografia, psicologia, serviço social e filosofia. Avisão empresarial de divisão por departamentos possuía fortes semelhanças com o tipode organização das grandes incorporações internacionais instaladas no Brasil com atransição ao capital monopolista.

A ditadura sabia muito bem o que estava fazendo quando consentiu a realizaçãode uma “reforma universitária” por um grupo de intelectuais orgânicos da burguesia, osquais se inspiraram no modelo norte-americano, estadunidense, de departamentalização,verticalização e isolamento dos vários cursos. Essa contrarreforma foi implementada emfins da década de 1960 e perdura até hoje na maioria de nossas universidades. Com issoela conseguiu quebrar nosso convívio e transformar a especialização acadêmica noequivalente da neutralização da consciência crítica, da promoção de umprofissionalismo estreito e da eliminação da própria possibilidade de uma produçãocultural autônoma, nos níveis artístico, científico e tecnológico. Precisamos nos livrarurgentemente dessa situação, mas esse não é um processo que caberia somente àuniversidade.

Essa mudança depende da transformação da própria sociedade e de umarevolução profunda de nossas estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais eideológicas. Para Florestan Fernandes, o epicentro de uma revolução social não estariana universidade, mas na própria sociedade e na força dos movimentos sociais. Asinstituições de ensino superior podem ser absorvidas nesse processo, mas para isso serianecessária uma reeducação dos seus quadros intelectuais, que na sua grande maioriaforam socializados no contexto de uma educação elitista e carregada de preconceitos deraça, classe, de gênero, região, geração e orientação sexual. A velha pergunta de Marx,ao esboçar o sentido mais profundo da práxis revolucionária nas suas teses sobreFeuerbach, quem educa o educador, é fundamental na apreciação desse pensamentocrítico.

Um tema que considero de suma importância, em especial para debatermos aconcepção pedagógica libertária de Florestan Fernandes, é o da relação que se constróientre o professor e o aluno dentro da sala de aula. Esse tema foi uma preocupação muitoforte de Florestan Fernandes e não podemos dissociá-lo do conjunto de sua obra teóricana sociologia e, muito menos, de sua interpretação da emergência e desenvolvimento docapitalismo no Brasil. Nesse sentido, para discutir a visão pedagógica de FlorestanFernandes seria necessário relacioná-la com a sua síntese política e teórica, deorientação socialista, sobre a sociedade brasileira. Essa síntese, entretanto, nos ajuda apensar também o conjunto da América Latina. É isso o que nos propomos a partir deagora.

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Não seria possível realizar aqui uma discussão sistemática sobre o pensamentopedagógico de Florestan Fernandes, bastante rico, complexo e diversificado, que já seinicia com suas reflexões sociológicas sobre os processos educacionais em meados dosanos de 1940, em seus cursos de Introdução à sociologia ou de Sociologia da educaçãopara as turmas de filosofia, pedagogia e ciências sociais da USP. Trata-se, além disso, deuma orientação pedagógica que, ao mesmo tempo, envolve tanto a sua militância emprol da defesa da escola pública e pela democratização das oportunidades educacionais,em fins da década de 50 e início dos anos 60, como também sua atuação parlamentar naConstituinte de 1988 já nos horizontes de uma concepção pedagógica radicalizada emtermos proletários, populares, socialistas e anticoloniais.

Florestan Fernandes não se julgava um educador, ele não se via nessa condição,porque acreditava que seus conhecimentos e sua condição de sociólogo estavam muitoaquém do que seria necessário para que ele tivesse o orgulho de se considerar umpedagogo. Ele tinha um enorme respeito pelos educadores, manteve inclusive vínculosde amizade com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, dois reformadores burguesesna esfera do ensino, que não viram concretizadas suas aspirações de modernização edemocratização das oportunidades educacionais na sociedade brasileira (nossaburguesia é tão autocrática e reacionária que mesmo as reformas burguesas da educação,como a ampliação do acesso ao ensino, foram estigmatizadas como um perigo à ordem,à paz social, à moral cristã, à família, à pátria e à estabilidade da aceleração docrescimento econômico), embora as suas concepções pedagógicas sempre tivessem tido,apesar dessa aproximação tática com os ideias políticos de uma visão educacional decunho mais liberal e democrática, influências marxistas, socialistas, anarquistas elibertárias.

Os reformadores burgueses defendiam o amplo acesso à educação como a via dademocratização da cultura, mas entendiam o próprio ensino de uma forma elitista, semquestionar o tipo de saber então transmitido. O simples acesso ao ensino se baseia naideologia de que, por si só, a educação seria capaz de sanar todo o conjunto deproblemas da sociedade brasileira. Ora, a própria burguesia brasileira abriu mão de seuprojeto educacional, o de democratização e ampliação do ensino público, optando pelareprodução da cultura da ignorância ao alijar os filhos das classes trabalhadoras, na suagrande maioria negra, das oportunidades educacionais. Por isso que a bandeira doacesso à educação continua atual, mas numa perspectiva socialista devemos ir maislonge. Não se trata, nesse sentido, de mero acesso à educação, mas de democratizaçãoda forma e conteúdo do próprio ensino, de mudanças nos modelos hierárquicos derelação entre professores e alunos. Sem essa rotação de perspectivas, o professorcontinuará a reproduzir uma ideologia iluminista de que ele detém o saber e deverárepassá-lo, dentro de um modelo de “educação bancária”, aos jovens alunos, submetidosao jugo do paternalismo imperante em nossa sociedade. O padrão de ensinoinformativo, enciclopédico e de mera ilustração é uma herança que recebemos do nossopassado colonial e escravocrata, do qual ainda não nos livramos completamente.

Ao participar da Campanha em Defesa da Escola Pública, entre 1959 e 1961,Florestan Fernandes se viu na contingência de defender os ideais republicanos na esferaeducacional que, segundo ele, estavam superados e possuíam pleno sentido durante arevolução francesa e não correspondiam às suas posições socialistas. Entretanto, ideais

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esses que poderiam representar algum progresso diante do atraso da sociedade brasileirae do peso de sua forte herança colonial na esfera educacional, de reprodução de umensino elitista. No livro A revolução burguesa no Brasil (1975) essa sua esperança éabandonada, pois a transição capitalista havia conduzido o país a uma reatualização docolonialismo e dos privilégios quase estamentais de classe da burguesia. O golpecontrarrevolucionário preventivo de 1964 se encarregou, definitivamente, de acabarcom toda e qualquer ilusão de que as reformas burguesas poderiam conduzir, no longoprazo, a transformações mais profundas de nossa sociedade.

Nossa burguesia é tão atrasada, reacionária, conservadora, obscurantista eautocrática, que mesmo os ideais modernos da educação e os pioneiros da Escola Novaforam estigmatizados como comunistas (coisa que eles não eram, pois permanecerampresos à visão de mundo burguesa). Seria demais lembrar que um deles, Anísio Teixeira,foi morto em circunstâncias desconhecidas em plena vigência da ditadura dosempresários e militares respaldada pelos Estados Unidos? Devemos também prestaruma homenagem a esse reformador da educação, Anísio Teixeira, reconhecendo aradicalidade de seus ideais, que, apesar de liberais e baseados na filosofia pragmatistanorte-americana, detinham elementos socialistas difusos, algo tão importante diante daviolência política existente ainda hoje na sociedade brasileira.

Pois bem, se a burguesia pró-imperialista e de mentalidade colonial dos paísesperiféricos, subdesenvolvidos e de capitalismo dependente, não consegue aceitar suaspróprias utopias, que agora devem ser jogadas na lata de lixo da história e substituídaspela utopia socialista, efetivamente revolucionária, de onde devemos esperar quenasçam e frutifiquem os ideais pedagógicos libertários, autenticamente populares eproletários? Numa época de contrarrevolução e restauração mundiais do capitalismo,pensar as relações entre o ensino e a transformação da sociedade nos marcos da lógicaneoliberal, totalitária e hegemônica, seria um profundo contrassenso e uma violênciaconceitual das mais terríveis.

Nos marcos da ordem capitalista, não há mais nada a esperar, a não ser aprodução de civilização, luxo e riquezas para uma rala minoria em escala internacional,de um lado, e reprodução sistemática do colonialismo (interno, isto é, dentro dos centroshegemônicos, que possuem suas próprias populações colonizadas e marginalizadas,negros, latinos, árabes, orientais e imigrantes com trabalho precário em geral; e externo,em direção às nações asiáticas, africanas e latino-americanas), da barbárie, da miséria eda pobreza, também em nível mundial, para uma imensa maioria, de outro. Só fazsentido em pensarmos mudanças “dentro da ordem” quando elas forem capazes deacelerar mudanças “contra a ordem”.

O capitalismo não irá cair por si só e, por isso, uma pedagogia libertária deve serentendida como um movimento simultâneo de negação dos valores da educação técnicado capital, de seus nobres ideais de adestramento do trabalhador e de reprodução doshorizontes culturais racistas, colonialistas e aristocráticos das elites das classesdominantes internas e externas (se quisermos raciocinar a partir de uma perspectivarevolucionária adequada às nações periféricas, subdesenvolvidas e dependentes), econstrução de novos horizontes de emancipação da sociedade e do indivíduo, dedescolonização das mentes e corações e de edificação de uma visão integral da

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personalidade humana, não mais alienada e apartada de um convívio autêntico, pleno,vivo e verdadeiro com os outros homens, mulheres, raças e etnias. A nova escola devesurgir dos movimentos sociais dos trabalhadores e das camadas populares. É nessestermos, em suma, que devemos entender uma pedagogia libertária e o sentidoconstrutivo das relações entre escola e transformação da sociedade. Uma das frases deFlorestan Fernandes, a qual sintetiza tudo isso e o Movimento dos Trabalhadores RuraisSem-Terra possui inscrita em suas paredes, aponta para que “façamos a revolução nasescolas, que o povo a fará nas ruas”.

Os movimentos sociais são as verdadeiras fontes da mudança socialrevolucionária. A estrutura burocrática das universidades brasileiras, sua dimensãosociológica de reprodução da estratificação social da sociedade em suas diversasformas, de raça, classe, gênero, geração, região e orientação sexual, bem como o estilode vida burguês ou pequeno-burguês que acaba afetando inclusive intelectuais críticos,tudo isso afasta a universidade brasileira de uma atuação mais firme junto aosmovimentos sociais, desafiando os inimigos mais poderosos das classes trabalhadoras edas camadas subalternas, o grande capital interno e externo. A condição objetiva declasse média de nós professores universitários acaba, no plano subjetivo da consciênciacrítica, por enfraquecer nossa real capacidade de avaliação das possibilidades concretasde enfrentamento contra a ordem social da dominação e exploração capitalistas. É nessesentido que Florestan Fernandes falava da necessidade de o intelectual acadêmicopassar por um processo de desenburguesamento e proletarização.

Esse foi o modo como Florestan Fernandes pensou a questão da escola e da salade aula, como um movimento de superação e luta contra os nexos de dominação quesão reproduzidos no interior mesmo das instituições educacionais. Ora, nossasinstituições educacionais reproduzem a própria estratificação social presente noconjunto mais abrangente da nossa sociedade. O ambiente da sala de aula, a escola e auniversidade não estão imunes a essa dura realidade. O próprio professor aí atua comoagente de perpetuação da ordem, do status quo e de coerção do aluno. Entre 1958 e1960, Florestan Fernandes orientou uma monografia sobre uma escola primárialocalizada em um bairro operário da região metropolitana de São Paulo. Essamonografia mostra como a estratificação social se reproduz no interior dessa escola.Trata-se de um estudo de autoria de Luiz Pereira, sociólogo já falecido e atualmentepouco lido e conhecido, o que é um sintoma de que perdemos contato com a produçãocrítica nas ciências sociais das gerações anteriores. O título do livro é A escola numaárea metropolitana (1967). Luiz Pereira simboliza também uma das vertentes teóricas epolíticas do marxismo acadêmico produzido na USP e, após a aposentadoriacompulsória de Florestan Fernandes, ele será um dos principais responsáveis porcontinuar o trabalho de formação acadêmica nos horizontes da Escola SociológicaPaulista.

Seria ingenuidade querer transformar a sociedade por meio das instituiçõeseducacionais com que contamos atualmente. Pode-se atuar dentro delas para tentarmelhorá-las ou para tentar transformá-las em uma comunidade verdadeira e autêntica,em que o ser humano possa se doar livre e desinteressadamente aos seus iguais, masdentro da ordem essa mudança dificilmente irá se concretizar. Na verdade, esse belo

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sonho seria impossível dentro da ordem. Isso porque, segundo Florestan Fernandes, oprofessor pode atuar como um...

“agente da ordem dentro da escola, então, ele é, também, um fator de coerçãosocial, de limitação da mudança, de subalternização do estudante. Quer dizer, elevai criar estímulos e incentivos para a capitulação passiva, para que aquele que éeducado se pense como subalterno e não como igual, não como o oprimido que seliberta, mas como o oprimido que tem um sentimento de gratidão para com adominação” (Fernandes, 1989: 248).

Florestan Fernandes chegou, provavelmente na década de 1940, a receberinfluências de um educador libertário pouquíssimo conhecido, de convicçõesanarquistas, Jakob Robert Schmidt, autor de um livro intitulado O mestre-camarada e apedagogia libertária (1971[1936]). Esse autor dava uma grande importância à ideia deuma comunidade e de relações igualitárias entre professor e alunos. A escola e a sala deaula, em sua concepção, representariam o lugar principal ou o ponto de partida para atransformação das práticas educacionais, de autoritárias e repressivas, para efetivamentedemocráticas, populares e libertárias. A sala de aula seria o experimento crucial parauma nova “prática escolar humanizada”, que deveria atuar como uma forma de“liberação do oprimido, de descolonização das mentes e corações dos professores ealunos, de integração de todos nas correntes críticas de vitalização da comunidadeescolar e de transformação do meio social ambiente” (Fernandes, 1989: 23). FlorestanFernandes, portanto, dava uma importância fundamental à experiência concreta da salade aula, à convivência entre o mestre e os alunos, desenvolvida em termos igualitários enão baseada nas hierarquias de idade, de raça ou de classe, como um fator detransformação da sociedade. No entanto, em sua perspectiva de independência eautonomia das instituições escolares em oposição à burocratização e centralização dasdecisões educacionais, tomadas exclusivamente no Estado e no topo da sociedade civilburguesa, manter essa nova prática pedagógica nos limites da ordem seria insuficientepara realizar as aspirações populares mais profundas de mudança radical de sua situaçãode existência.

Pode-se e deve-se lutar – faz-se necessário repetir mais uma vez – para amelhoria de nossas instituições educacionais, na tentativa de tentar torná-las maisdemocráticas e conquistar nelas trincheiras para a participação das classestrabalhadoras, desde que esse combate indispensável esteja vinculado à elaboração deuma pedagogia libertária, em termos anticonservadores e anticapitalistas, comocondição de desalienação do colonizado e do trabalhador. Sem levar em conta amudança de postura dos professores em sala de aula, que acabam por reproduzir nessemicroambiente seus preconceitos racistas, de gênero, de geração, região, classe eorientação sexual, não se pode falar de avanços no interior de nossas instituições deensino, dos níveis fundamental e médio ao superior. Mesmo que haja avanços nademocratização das nossas universidades, em parte fomentados pelo processo deinteriorização, tais avanços continuarão precários e ameaçados se não conseguirmosmanter uma unidade mínima de luta em torno da defesa da democracia no país e contraa ofensiva dos setores privatistas nos diversos campos da economia, da saúde e daeducação.

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A estrutura do Estado burguês concentra muitos poderes nas mãos de umapequena cúpula e as decisões vitais para nossa coletividade são tomadas sempre embastidores. Wright Mills (1968) fez essa análise no final da década de 1950 em relaçãoaos Estados Unidos, demonstrando que a “elite do poder” se constitui de um estreitocírculo composto pelos magnatas da indústria, pelos militares (os senhores da guerra) epelos políticos das instâncias executivas. O governo brasileiro hoje tem se limitado aimplementar a orientação traçada por essas forças elitistas, administrando o país para ogrande capital internacional, interno e externo. No entanto, essa é apenas a ponta doiceberg e bater diretamente no governo não provoca grande estrago. O mais difícil eperigoso seria bater nas reais forças que controlam os rumos da nação. Para avançarmosesse passo, seria preciso construirmos uma unidade mínima das classes trabalhadoras edas forças de contestação da ordem capitalista.

O ideal de vida acadêmica acaba por vincular o docente a um estilo depensamento burguês ou pequeno-burguês, levando-o a ser crítico na esfera do debatepúblico, exercitando aquilo que Florestan Fernandes chamaria de “radicalismo abstrato”(isto é, somos capazes de criticar a tudo e a todos, sem que isso seja capaz de provocarmudanças sociais efetivas e/ou mesmo sem que isso ameace nossas posições de classemédia) e a perseguir ideais individualistas de carreira em outro ou a competir com seuscolegas por maior prestígio e status no plano institucional.

O “radicalismo abstrato” seria o equivalente daquilo que Lênin chamaria de“fraseologia revolucionária” ou de “esquerdismo”, como uma doença infantil docomunismo. As palavras de ordem e de ação estariam desvinculadas das potencialidadesconcretas da luta de classes, porém muitas vezes revelando um extremismo que se voltacontra os inimigos mais próximos. Essa situação acaba por conduzir a lutas fratricidasno interior das universidades, sem percebermos que o nosso verdadeiro inimigo estámuito mais distante e não podemos enxergá-lo. O pior é que isso conduz a competiçõesinternas entre colegas, cursos e centros não só por recursos de pesquisa, bolsas,financiamentos e pelos símbolos de status aí correlacionados, mas também por posiçõesestratégicas dentro do aparelho burocrático da universidade. Isso resulta na prática dealijamento de pessoas das posições-chaves dentro das instituições universitárias, queacabam se reduzindo a conflitos entre grupos nas organizações burocráticas,perdendo-se de vista o fim essencial da Universidade, o de dar suporte a nossodesenvolvimento cultural autônomo.

Quem leu Max Weber poderá entender como esses conflitos se processam ecomo a lógica da oposição entre grupos dentro das instituições universitárias podeconduzir a um clima de desvirtuamento dos fins primeiros de produção deconhecimento original, nos horizontes das atividades de ensino, pesquisa e extensão.Perdemos em possibilidades de colaboração intelectual entre diferentes campos do sabere deixamos de produzir a ciência, a tecnologia, o pensamento crítico e a sensibilidadeartística indispensáveis ao nosso desenvolvimento social e econômico nos marcos deuma democracia ampliada.

O atual movimento grevista só poderá obter algum sucesso, na reivindicaçãojusta e legítima contra os recentes cortes na educação, se ele for capaz de iniciar umcaminho de inserção mais radical nos movimentos sociais e construção de uma ampla

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frente de esquerdas. Essa é a única maneira de fugir do radicalismo abstrato e estéril, ade se vincular aos movimentos sociais. Isso implica, porém, um risco para o intelectual,que passará a ser perseguido pelos aparelhos privados da ideologia dominante e muitoprovavelmente pelo poder coercitivo de dissuasão do judiciário.

Não será apelando à consciência pública, ou tentando aumentar o nível dasconsciências pela justeza de nossas convicções, que conseguiremos contornar o boicotedos meios de comunicação de massa ao movimento grevista. Marx criticava e ironizavanos neohegelianos a noção de que a simples tomada de consciência representava umagrande revolução na vida e no mundo. O cultivo de um pensamento contrahegemônico éimportante, mas insuficiente se isso não está atrelado à luta política que vai além dasnossas universidades. Por isso o esforço de superar o momento econômico-corporativoda luta, como diria o marxista italiano Antonio Gramsci, e transformá-la numa grevepolítica deve ser constante. Isso só será possível se nos aliarmos a outras categorias detrabalhadores, em especial os professores das universidades privadas que sofrem o pesocruel da precarização das relações de trabalho na educação. Os intelectuais de esquerda,do movimento negro, marxistas, anarquistas e libertários, devem ter a humildade dereconhecer que o pensamento crítico por eles construído dentro da universidaderepresenta uma pequena gota no oceano da revolução social. Suas contribuições sãoimportantes, mas ficarão no vazio se não receberem o sopro de vida do envolvimentoautêntico e honesto com os movimentos sociais, desvencilhando-se aí dos seus vínculosinstitucionais com a ordem burguesa.

Era nesse sentido que Florestan Fernandes falava que a universidade não podeser o epicentro de uma revolução social, mas poderia ser tragada num processo demudança social revolucionária. Mesmo no momento atual, quando não temos condiçõesmais imediatas de criar um vínculo mais orgânico com os movimentos sociais, de lutapela reforma agrária, pela moradia, com o movimento negro, feminista, de jovens,associações de bairro e tantos outros, defender o ideal de uma universidade plural,diversa, democrática e socialmente referenciada, procurando-se manter a unidade dosdiversos campos do conhecimento, já constitui uma das mais difíceis formas deresistência contra a mercantilização e o processo político em curso de fragmentação,enfraquecimento e deterioração do ensino superior no país. Por outro lado, não devemosprocurar a atuação nos movimentos sociais ou junto às comunidades externas àUniversidade para defender nossos interesses corporativistas, ou mesmo para buscarapoio às nossas demandas legítimas de melhoria das condições e qualidade do ensino. Odesprendimento do intelectual acadêmico, se de fato o seu sentimento de luta forautêntico, deve levá-lo a enfrentar sem hesitações a violência política que se abate sobretodos aqueles que decidem defender a organização das massas e uma democracia decaráter popular.

O verdadeiro caminho alternativo – e a ele todos os professores radicais deesquerda, marxistas, socialistas, anarquistas, libertários e militantes do movimentonegro e feminista deveriam dar sua adesão – tem sido a autoeducação política dostrabalhadores, camponeses e demais camadas despossuídas, os condenados da terra,levada adiante pelos movimentos sociais anticapitalistas aqui no Brasil, na AméricaLatina e em vários outros países desse mundo “grande e terrível”, para concluir citando

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Antonio Gramsci, outro educador libertário e revolucionário que nos foi legado pelahumanidade.

Referência Bibliográfica

FERNANDES, Florestan. (1975), A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro:Zahar.

______ (1989), O desafio educacional. São Paulo: Cortez/Autores Associados.

MILLS, C. Wright. (1967), A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar.

PEREIRA, Luiz. (1967), A escola numa área metropolitana. São Paulo: Pioneira.

SCHMID, Jakob Robert (1971), Le maître-camarade et la pédagogie libertaire. Paris:Maspero.