Fodor, O problema mente-cérebro
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O problema mente-crebro*
Jerry Fodor
Seria possvel as mquinas de calcular sentirem dor, os marcianos terem expectativas e os espritos
desencarnados pensarem? A moderna abordagem funcionalista na psicologia levanta a possibilidade
lgica de isso acontecer.
A moderna filosofia da cincia tem se dedicado, em grande parte, descrio formal e
sistemtica das prticas bem sucedidas dos cientistas. O filsofo no tenta ditar como a investigao e
os argumentos cientficos devem ser conduzidos. Ao invs disso, ele procura enumerar os princpios e
prticas que tm contribudo para a boa cincia. A anlise tem ajudado a tornar mais evidente a
natureza da confirmao, a estrutura lgica das teorias cientficas, as propriedades formais das
sentenas que expressam leis e a questo da existncia real das entidades tericas.
S muito recentemente que os filsofos comearam a se interessar seriamente pelos princpios
metodolgicos da psicologia. As explicaes psicolgicas do comportamento referem-se abertamente
mente e aos seus estados, operaes e processos. A dificuldade filosfica surge quando procuramos
determinar, em uma linguagem no ambgua, o que essas referncia implicam.
As filosofias tradicionais da mente podem ser divididas em duas grandes categorias: as teorias
dualistas e as teorias materialistas. Segundo a abordagem dualista, a mente uma substncia no-fsica.
Para as teorias materialistas, o mental no diferente do fsico; na verdade, todos os estados,
propriedades, operaes e processos mentais so, em princpio, idnticos a estados, propriedades,
operaes e processos fsicos. Alguns materialistas, conhecidos como behavioristas, afirmam que toda
discusso sobre causas mentais pode ser eliminada da linguagem da psicologia e substituda pela
discusso dos estmulos ambientais e das respostas comportamentais. Outros materialistas, os tericos
da identidade, defendem a existncia de causas mentais e a identidade dessas com eventos
neurofisiolgicos no crebro.
Nos ltimos 15 anos, surgiu uma filosofia da mente chamada de funcionalismo. Essa filosofia,
que no nem dualista nem materialista, o resultado de uma reflexo filosfica sobre os
desenvolvimentos da inteligncia artificial, da teoria computacional, da lingstica, da ciberntica e da
psicologia. Todos esses campos, conhecidos coletivamente como as cincias cognitivas, possuem em
comum um certo nvel de abstrao e uma preocupao com sistemas e processos de informao. O
funcionalismo, que uma tentativa de fornecer uma explicao filosfica desse nvel de abstrao,
reconhece a possibilidade de sistemas to diversos como os seres humanos, as mquinas de calcular e
os espritos desencarnados poderem ter estados mentais. Segundo a viso funcionalista, a psicologia de
um sistema no depende da matria a partir da qual ela feita (clulas vivas, energia mental ou
espiritual), mas sim do modo como ela arranjada. Funcionalismo um conceito difcil e uma das maneiras de lidar com ele rever as deficincias das filosofias dualistas e materialistas que ele pretende
substituir.
O principal inconveniente do dualismo o seu fracasso em explicar adequadamente a causao
mental. Se a mente no-fsica, ela no ocupa posio no espao fsico. Como, ento, pode uma causa
mental provocar um efeito comportamental que tem uma posio no espao? Em outras palavras, como
pode o no-fsico dar origem ao fsico, sem violar as leis da conservao de massa, de energia e do
momentum?
* Ttulo do original ingls: The mind-body problem. Scientific American, 244(1): 114-123, 1981. Traduzido por Saulo de Freitas Araujo.
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O dualista poderia responder que o problema de como uma substncia imaterial pode causar
eventos fsicos no mais obscuro do que o problema de como um evento fsico pode causar outro.
Entretanto, h uma diferena importante: existem muitos casos evidentes de causao fsica, mas
nenhum caso evidente de causao no-fsica. A interao fsica algo com que os filsofos, como
todas as outras pessoas, tm que conviver. A interao no-fsica, por outro lado, pode ser apenas um
artefato da construo imaterialista do mental. Hoje em dia, a maioria dos filsofos concordam que
nenhum argumento demonstrou com sucesso por que a causao mente-corpo no deve ser considerada
como uma espcie de causao fsica.
O dualismo incompatvel tambm com as prticas dos psiclogos. O psiclogo aplica
freqentemente os mtodos experimentais das cincias fsicas ao estudo da mente. Se os processos
mentais fossem de um tipo diferente dos processos fsicos, no haveria razo para esperar que esses
mtodos funcionassem no domnio do mental. Para justificar seus mtodos experimentais, muitos
psiclogos procuraram uma alternativa ao dualismo.
Na dcada de 20, John B. Watson, da John Hopkins University, fez a sugesto radical de que o
comportamento no tem causas mentais. Ele considerou o comportamento de um organismo como
sendo suas respostas observveis a estmulos, que seriam as verdadeiras causas do comportamento. Nos
30 anos posteriores, psiclogos como B. F. Skinner, da Harvard University, desenvolveram as idias de
Watson, construindo uma elaborada viso de mundo, na qual o papel da psicologia era catalogar as leis
que determinam as relaes causais entre estmulos e respostas. Segundo essa viso do behaviorismo radical, o problema de explicar a natureza da interao mente-corpo desaparece, uma vez que tal interao no existe.
O behaviorismo radical sempre soou um pouco paradoxal. A idia de causao mental est
profundamente arraigada em nossa linguagem cotidiana e na maneira pela qual ns compreendemos
nossos companheiros e a ns mesmos. As pessoas, por exemplo, atribuem normalmente o
comportamento a crenas, ao conhecimento e a expectativas. Brown coloca gasolina no tanque de seu
carro porque ele acredita que o carro no andar sem ela. Jones escreve achieve ao invs de acheive porque ele sabe a regra de colocar o i antes do e. Mesmo quando uma resposta comportamental est intimamente relacionada a um estmulo ambiental, os processos mentais sempre
intervm. Smith carrega um guarda chuva porque o cu est nublado. O tempo, porm, apenas uma
parte da estria. Aparentemente, existem tambm conexes mentais na cadeia causal: observao e
expectativa. As nuvens afetam o comportamento de Smith apenas porque ele as observa e porque elas o
induzem a uma expectativa de chuva.
Os apelos a tais casos no afetam o behaviorista radical. Ele dispensa referncias a causas
mentais, por mais plausvel que possam parecer, considerando-as um resduo de crenas ultrapassadas.
Os behavioristas radicais fazem a previso de que medida que os psiclogos forem alcanando um
maior entendimento sobre as relaes entre estmulos e respostas, eles reconhecero a enorme
possibilidade de se explicar o comportamento sem que sejam postuladas causas mentais.
O mais forte argumento contra o behaviorismo que a psicologia no seguiu esse caminho, mas
exatamente o oposto. medida que a psicologia vem amadurecendo, a estrutura de estados e processos
mentais aparentemente necessria para explicar as observaes experimentais vem se tornando cada
vez mais elaborada. Particularmente no caso do comportamento humano, as teorias psicolgicas que
satisfazem os princpios metodolgicos do behaviorismo radical tm sem mostrado em grande parte
estril, como seria de se esperar, caso os processos mentais postulados sejam reais e a causalmente
efetivos.
Muitos filsofos foram inicialmente atrados para o behaviorismo radical porque, apesar dos
paradoxos e de todas as dificuldades, ele parecia melhor do que o dualismo. Uma vez que uma
psicologia comprometida com substncias imateriais era inaceitvel, os filsofos viraram-se para o
behaviorismo radical porque ele parecia ser a nica alternativa em termos de uma filosofia materialista
da mente. A escolha, como eles a entendiam, era entre o behaviorismo radical e fantasmas.
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No incio dos anos 60, os filsofos comearam a duvidar que o dualismo e o behaviorismo
radical eram as nicas abordagens possveis na filosofia da mente. J que ambas as teorias no
pareciam atraentes, a estratgia correta poderia ser o desenvolvimento de uma filosofia materialista da
mente que aceitasse, entretanto, causas mentais. Assim, surgiram duas novas filosofias da mente, a
saber, o behaviorismo lgico e a teoria da identidade.
O behaviorismo lgico uma teoria semntica sobre o significado dos termos mentalistas. Sua
idia bsica que atribuir um estado mental (digamos, sede) a um organismo o mesmo que dizer que
o organismo est disposto a se comportar de um determinado modo (por exemplo, beber, se houver
gua disponvel). De acordo com esse ponto de vista, toda atribuio mental semanticamente
equivalente a uma sentena do tipo se-ento (denominada hipottico comportamental), que expressa uma disposio comportamental. Por exemplo, a sentena Smith est com sede poderia ser considera equivalente sentena disposicional Se houvesse gua disponvel, ento Smith beberia um pouco. Por definio, um hipottico comportamental no inclui termos mentalistas. A orao iniciada pelo
se do hipottico refere-se apenas a estmulos e a orao iniciada pelo ento faz referncia somente a respostas comportamentais. Uma vez que os estmulos e as respostas so eventos fsicos, o
behaviorismo lgico um tipo de materialismo.
A fora do behaviorismo lgico reside no fato de que a traduo da linguagem mentalista para a
linguagem de estmulos e respostas fornece uma interpretao daquelas explicaes psicolgicas em
que os efeitos comportamentais so atribudos a causas mentais. A causao mental simplesmente a
manifestao de uma disposio comportamental. Mais precisamente, a causao mental o que
acontece quando um organismo tem uma disposio comportamental e a orao iniciada pelo se do hipottico comportamental, que expressa uma disposio, verdadeira. Por exemplo, a sentena causal
Smith bebeu um pouco dgua porque ele estava com sede poderia ser considerada semanticamente equivalente sentena Se houvesse gua disponvel, ento Smith beberia um pouco, e havia gua disponvel. De certa forma, eu simplifiquei muito o behaviorismo lgico, ao assumir que toda atribuio
mental pode ser traduzida por um nico hipottico comportamental. Na verdade, o behaviorista lgico
afirma freqentemente que seria necessrio um conjunto aberto (talvez um conjunto infinito) de
hipotticos comportamentais para indicar a disposio comportamental expressa por um termo
mentalista. A atribuio mental Smith est com sede poderia tambm ser satisfeita pelo hipottico Se houvesse suco de laranja disponvel, ento Smith beberia um pouco e tambm por vrios outros hipotticos. Em todo caso, o behaviorista lgico normalmente no afirma que ele pode realmente
enumerar todos os hipotticos que correspondem a uma disposio comportamental expressa por um
termo mentalista. Ele apenas insiste que qualquer termo mentalista pode ser traduzido por hipotticos
comportamentais.
O modo pelo qual o behaviorista lgico tem interpretado um termo mentalista como, por exemplo, sede baseia-se na maneira pela qual muitos filsofos tm interpretado uma disposio fsica, como, por exemplo, fragilidade. A disposio fsica O copo frgil freqentemente considerada equivalente a algo do tipo Se o copo sofresse alguma batida, ento ele quebraria. Do mesmo modo, a anlise da causao mental feita pelos behavioristas lgicos similar anlise
tradicional de um tipo de causao fsica. A sentena causal O copo quebrou porque era frgil considerada equivalente a algo do tipo Se o copo sofresse alguma batida, ento ele quebraria, e o copo sofreu uma batida. Ao identificar termos mentalistas com disposies comportamentais, o behaviorista lgico
colocou os termos mentalistas no mesmo patamar das disposies no-comportamentais das cincias
fsicas. Trata-se de uma mudana promissora porque a anlise das disposies no-comportamentais
repousa sobre uma base filosfica relativamente slida. Uma explicao que atribui a quebra de um
copo sua fragilidade certamente algo que mesmo o materialista mais fiel pode aceitar. Ao
argumentar que os termos mentalistas so sinnimos dos termos disposicionais, o behaviorista lgico
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fornece algo que o behaviorista radical no conseguiu, a saber, uma explicao materialista da causao
mental.
Em que pese tudo isso, a analogia feita pelo behaviorista lgico entre a causao mental e a
causao fsica s vai at aqui. O behaviorista lgico trata a manifestao de uma disposio como a
nica forma de causao mental, enquanto as cincias fsicas reconhecem outras formas de causao.
H o tipo de causao em que um evento fsico causa outro, como no caso da quebra do copo ser
atribuda a uma batida por ele sofrida. De fato, as explicaes que envolvem a causao entre eventos
so presumivelmente mais bsicas do que as explicaes disposicionais porque a manifestao de uma
disposio (a quebra de um copo frgil) envolve sempre a causao entre eventos, e no vice-versa. No
domnio do mental, muitos exemplos de causao entre eventos referem-se a um estado mental
causando outro. Para esse tipo de causao, porm, o behaviorista lgico no fornece nenhuma anlise.
Como resultado, ele se v obrigado a assumir a suposio tcita e implausvel de que a psicologia
requer uma noo de causao menos robusta do que requerem as cincias fsicas.
A causao entre eventos parece ser realmente bastante comum no domnio do mental. As
causas mentais ocasionam efeitos comportamentais em virtude de sua interao com outras causas
mentais. Por exemplo, ter uma dor de cabea causa uma disposio de tomar aspirina apenas se houver
tambm o desejo de ficar livre da dor de cabea, a crena de que a aspirina existe, a crena de que
tomar aspirina reduz a dor de cabea, e assim por diante. Uma vez que os estados mentais interagem
para gerar o comportamento, ser necessrio encontrar uma interpretao das explicaes psicolgicas
que postule processos mentais: seqncias causais de eventos mentais. E exatamente essa
interpretao que o behaviorismo lgico no consegue fornecer.
Tais consideraes revelam uma semelhana fundamental entre o behaviorismo lgico e o
behaviorismo radical. bem verdade que o behaviorista lgico, diferentemente do behaviorista radical,
reconhece a existncia de estados mentais. Entretanto, uma vez que o princpio subjacente ao
behaviorismo lgico que as referncias a estados mentais, presentes nas explicaes psicolgicas,
podem ser traduzidas por hipotticos comportamentais, toda a discusso sobre estados e processos
mentais torna-se, num certo sentido, heurstica. Os nicos fatos com os quais o behaviorista est
realmente comprometido so aqueles que dizem respeito a relaes entre estmulos e respostas. Nesse
sentido, o behaviorismo lgico apenas uma verso semntica do behaviorismo radical. Embora o
primeiro oferea uma interpretao da causao mental, a interpretao pickwickiana. Aquilo que de
fato no existe, no pode causar nada. E o behaviorista lgico, assim como o behaviorista radical,
acredita firmemente que no existem causas mentais.
Uma outra teoria materialista da mente, que se apresenta como alternativa ao behaviorismo
lgico, a teoria da identidade. De acordo com essa teoria, os eventos, estados e processos mentais so
idnticos a eventos neurofisiolgicos no crebro, e a propriedade de estar em um certo estado mental
(tal como ter uma dor de cabea ou acreditar que ir chover) idntica propriedade de estar em um
certo estado neurofisiolgico. A partir disso, fcil compreender a idia de que um efeito
comportamental poderia, algumas vezes, ter uma cadeia de causas mentais. Isso acontecer sempre que
um efeito comportamental for contingente em relao seqncia apropriada de eventos
neurofisiolgicos.
A teoria da identidade reconhece a possibilidade das causas mentais interagirem causalmente
sem gerarem qualquer efeito comportamental, como, por exemplo, quando uma pessoa pensa por um
momento sobre o que ela deveria fazer e ento decide no fazer nada. Se os processos mentais so
neurofisiolgicos, eles devem ter as propriedades causais dos processos neurofisiolgicos. J que esses
ltimos so presumivelmente processos fsicos, a teoria da identidade assegura que o conceito de
causao mental to rico quanto o conceito de causao fsica.
A teoria da identidade fornece uma explicao satisfatria do problema da referncia dos termos
mentalistas presentes nas explicaes psicolgicas e, assim, tem a aceitao dos psiclogos que esto
insatisfeitos com o behaviorismo. O behaviorista sustenta que os termos mentalistas no se referem a
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nada ou que eles referem-se aos parmetros das relaes estmulo-resposta. Em ambos os casos, a
existncia das entidades mentais simplesmente ilusria. O terico da identidade, por outro lado,
argumenta que os termos mentalistas referem-se a estados neurofisiolgicos. Sendo assim, ele pode
assumir seriamente o projeto de explicar o comportamento fazendo apelo s suas causas mentais.
A principal vantagem da teoria da identidade que ela interpreta os constructos explicativos da
psicologia ao p da letra, algo que certamente toda filosofia da mente deveria, se possvel, fazer. A
teoria da identidade mostra como as explicaes mentalistas da psicologia poderiam deixar de ter um
sentido meramente heurstico, tornando-se um relato literal da histria causal do comportamento. Alm
disso, uma vez que a teoria da identidade no uma tese semntica, ela imune a muitos argumentos
que colocam o behaviorismo lgico em dvida. Um inconveniente do behaviorismo lgico que a
observao John tem uma dor de cabea no parece significar a mesma coisa que a sentena John est disposto a se comportar de tal e tal modo. O terico da identidade, contudo, pode conviver com o fato de que as sentenas John tem uma dor de cabea e John est em tal e tal estado cerebral no so sinnimas. A assero do terico da identidade no que essas sentenas significam a mesma
coisa, mas apenas que elas so consideradas verdadeiras (ou falsas) pelos mesmos fenmenos
neurofisiolgicos.
A teoria da identidade pode ser considerada ou como uma doutrina sobre particulares mentais (a
dor atual de John ou o medo que Bill tem de animais) ou como uma doutrina sobre universais ou
propriedades mentais (ter uma dor ou ter medo de animais). As duas doutrinas, denominadas,
respectivamente, fisicalismo de eventos (token physicalism) e fisicalismo de tipos (type physicalism),
diferem tanto em termos de fora quanto em termos de plausibilidade. O fisicalismo de eventos
sustenta apenas que todos os particulares mentais at ento existentes so neurofisiolgicos, enquanto
que o fisicalismo de tipos faz a assero mais arrebatadora de que todos os particulares mentais
possivelmente existentes so neurofisiolgicos. O fisicalismo de eventos no elimina a possibilidade
lgica de mquinas e espritos desencarnados terem propriedades mentais. O fisicalismo de tipos rejeita
essa possibilidade porque nem as mquinas e nem os espritos possuem neurnios.
O fisicalismo de tipos no uma doutrina plausvel sobre as propriedades mentais, ainda que o
fisicalismo de eventos esteja certo sobre os particulares mentais. O problema com o fisicalismo de tipos
que a constituio psicolgica de um sistema parece depender no de seu hardware, ou seja, sua
composio fsica, mas sim de seu software, isto , seu programa. Por que o filsofo deveria rejeitar a
possibilidade de marcianos constitudos de silicone sentirem dor, desde que o silicone esteja
adequadamente organizado? E por que o filsofo deveria eliminar a possibilidade de mquinas terem
crenas, desde que as mquinas estejam corretamente programadas? Se logicamente possvel que
marcianos e mquinas poderiam ter propriedades mentais, ento essas ltimas no podem ser idnticas
a processos neurofisiolgicos, independentemente do quanto esses possam ser coextensivos quelas.
O que tudo isso revela que parece haver um nvel de abstrao, no qual as generalizaes da
psicologia encaixam-se mais naturalmente. Esse nvel de abstrao ignora as diferenas na composio
fsica dos sistemas aos quais as generalizaes psicolgicas se aplicam. Pelo menos nas cincias
cognitivas, o domnio natural da teorizao psicolgica parece incluir todos os sistemas que processam
informao. O problema com o fisicalismo de tipos que existem possveis sistemas de processamento
de informao com a mesma constituio psicolgica dos seres humanos, mas com uma organizao
fsica diferente. Em princpio, todos os tipos de coisas fisicamente diferentes poderiam ter o software
humano.
Essa situao exige uma explicao relacional das propriedades mentais que abstraiam-nas da
estrutura fsica de seus portadores. Em que pese as objees que eu apresentei anteriormente ao
behaviorismo lgico, ele estava pelo menos no caminho certo, ao oferecer uma interpretao relacional
das propriedades mentais: ter uma dor de cabea estar disposto a exibir um certo padro de relaes
entre os estmulos que se encontram e as respostas que se exibem. Entretanto, se ter uma dor de cabea
for isso mesmo, no h razo, em princpio, para que apenas as cabeas que so fisicamente similares
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s nossas possam doer. De fato, de acordo com o behaviorismo lgico, uma verdade necessria que
qualquer sistema que tenha nossas contingncias estmulo-resposta tambm tenha nossas dores de
cabea.
Tudo isso surgiu h 10 ou 15 anos atrs, como um srio dilema para o programa materialista na
filosofia da mente. Por um lado, o terico da identidade (mas no o behaviorista lgico) estava certo
em relao ao carter causal das interaes entre mente e corpo. Por outro lado, o behaviorista lgico
(mas no o terico da identidade) estava certo no que diz respeito ao carter relacional das propriedades
mentais. O funcionalismo aparentemente conseguiu resolver o dilema. Ao enfatizar a distino que a
cincia da computao traa entre o hardware e o software, o funcionalista pode compreender tanto o
carter causal quanto o carter relacional do mental.
O funcionalismo elabora o conceito de papel causal de um modo tal que um estado mental pode ser definido por suas relaes causais com outros estados mentais. Nesse sentido, o funcionalismo
completamente diferente do behaviorismo lgico. Outra grande diferena que o funcionalismo no
uma tese reducionista. Ele no prev, nem mesmo em princpio, a eliminao dos conceitos mentalistas
do aparato explicativo das teorias psicolgicas.
A diferena entre o funcionalismo e o behaviorismo lgico trazida tona pelo fato do
funcionalismo ser totalmente compatvel com o fisicalismo de eventos. O funcionalista no ficaria
desconcertado se fosse demonstrado que os eventos cerebrais so as nicas coisas dotadas das
propriedades funcionais que definem os estados mentais. De fato, a maioria dos funcionalistas espera
que esse ser o rumo tomado.
Uma vez que o funcionalismo reconhece que os particulares mentais podem ser fsicos, ele
compatvel com a idia de que a causao mental uma espcie de causao fsica. Em outras palavras,
o funcionalismo tolera a soluo materialista para o problema mente-corpo fornecida pela teoria da
identidade. possvel para o funcionalista afirmar tanto que as propriedades mentais so definidas
tipicamente em termos de suas relaes quanto que as interaes entre a mente e o corpo so
tipicamente causais, independentemente da fora da noo de causalidade requerida pelas explicaes
psicolgicas. O behaviorista lgico pode aceitar somente a primeira assero, enquanto que o fisicalista
de tipos apenas a segunda. Como conseqncia, o funcionalismo parece capturar as melhores
caractersticas das alternativas materialistas ao dualismo. No chega a ser uma surpresa que o
funcionalismo venha se tornando cada vez mais popular.
As mquinas fornecem bons exemplos de duas idias centrais do funcionalismo: a idia de que
os estados mentais so interdefinidos e a idia de que eles podem ser realizados por vrios sistemas. A
ilustrao abaixo contrasta uma mquina de coca-cola behaviorista com uma mentalista. Ambas as
mquinas liberam uma coca-cola por 10 cents de dlar. (O preo no foi afetado pela inflao) Os
estados das mquinas so definidos por referncia aos seus papis causais, mas apenas a mquina da
esquerda satisfaria o behaviorista. Seu estado nico (S0) completamente especificado em termos de
estmulos e respostas. S0 o estado em que a mquina est se, e somente se, dado uma moeda de 10
cents como input, ela liberar uma coca-cola como output.
A mquina da direita tem estados interdefinidos (S1 e S2), que so caractersticos do
funcionalismo. S1 o estado em que a mquina est se, e somente se, (1) dada uma moeda de 5 cents,
ela no liberar nada e passar para S2, e (2) dada uma moeda de 10 cents, ela liberar uma coca-cola e
ficar em S1. S2 o estado em que a mquina est se, e somente se, (1) dada uma moeda de 5 cents, ela
liberar uma coca-cola e passar para S1, e (2) dada uma moeda de 10 cents, ela liberar uma coca-cola e
uma moeda de 5 cents e passar para S1. S1 e S2 eqivalem conjuntamente s seguintes operaes: se a
mquina recebe uma moeda de 10 cents, libera uma coca-cola; se ela receber uma moeda de 10 e uma
de 5 cents, ela libera uma coca-cola e uma moeda de 5 cents; se ela recebe apenas uma moeda de 5
cents, ela aguarda uma segunda moeda de 5 cents.
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Mquina behaviorista Mquina funcionalista
Estado S0 Estado S1 Estado S2
Input de
10 cents
Libera uma
coca-cola
Input de
5 cents
No d
output
e vai para
S2
Libera uma
coca-cola e
vai para S1
Input de
10 cents
Libera uma
coca-cola e
fica em S1
Libera uma
coca-cola +
5 cents e
vai p/ S1
Uma vez que S1 e S2 so definidos por sentenas hipotticas, eles podem ser vistos como
disposies. Entretanto, eles no so disposies comportamentais porque as conseqncias de um
input para uma mquina em S1 ou S2 no so especificadas somente em termos do output da mquina.
Ao invs disso, as conseqncias tambm envolvem os estados internos das mquinas.
De acordo com a minha descrio das mquinas behaviorista e funcionalista de coca-cola, no
h restries sobre sua constituio fsica. Qualquer sistema, cujos estados mantenham as relaes
adequadas com inputs, outputs e outros estados, poderia ser uma dessas mquinas. Sem dvida,
razovel esperar que um tal sistema seja constitudo de rodas, alavancas e diodos (fisicalismo de
eventos para mquinas de coca-cola), assim como tambm razovel esperar que nossas mentes sejam
comprovadamente neurofisiolgicas (fisicalismo de eventos para seres humanos).
Em que pese tudo isso, a descrio do software de uma mquina de coca-cola no exige
logicamente rodas, alavancas e diodos, da mesma maneira que a descrio do software da mente no
exige logicamente neurnios. Para o funcionalismo, uma mquina de coca-cola com estados S1 e S2
pode ser feita de ectoplasma, caso tal substncia exista e seus estados tiverem as propriedades causais
adequadas. O funcionalismo no exclui a possibilidade de haver mquinas de coca-cola desencarnadas,
da mesma forma como tambm no exclui a possibilidade de haver mentes desencarnadas.
Dizer que S1 e S2 so interdefinidos e realizveis por diferentes tipos de hardware no significa,
claro, dizer que uma mquina de coca-cola possui uma mente. Embora a interdefinio e a
especificao funcional sejam caractersticas tpicas dos estados mentais, elas no so suficientes para
garantir a qualidade do mental. O que ainda falta uma questo que ser abaixo discutida.
Alguns filsofos suspeitam do funcionalismo porque ele parece muito simples. J que o
funcionalismo permite a individuao dos estados atravs de seu papel causal, ele parece permitir uma
explicao trivial de qualquer evento observado E, ou seja, ele parece postular um causador de E. Por
exemplo, o que faz as vlvulas de uma mquina abrirem? Por que a operao envolve um abridor de
vlvulas? O que um abridor de vlvulas? E por que responder que tudo aquilo que tem a
propriedade, funcionalmente definida, de causar a abertura de vlvulas.
Na psicologia, esse tipo de problema aparece freqentemente nas teorias que postulam
homnculos com as mesmas capacidades intelectuais do terico que explica. Isso acontece, por
exemplo, quando, para explicar a percepo visual, postulam-se mecanismos psicolgicos que
processam a informao visual. O behaviorista tem freqentemente acusado o mentalista, algumas
vezes com razo, de cultivar esse tipo de pseudo-explicao. Se os estados mentais funcionalmente
definidos forem desempenhar um papel importante nas teorias psicolgicas, essa acusao ter que ser
respondida.
A acusao no de falsidade, mas sim de trivialidade. No pode haver dvidas de que um
abridor de vlvulas que abre vlvulas, e provvel que a percepo visual seja mediada pelo
processamento de informao visual. A afirmao de que tais explicaes funcionais so meras
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obviedades. O funcionalista pode responder essa objeo permitindo a introduo de constructos
tericos funcionalmente definidos apenas quando existirem mecanismos capazes de desempenhar a
funo e quando ele tiver alguma noo de que como seriam tais mecanismos. Uma maneira de impor
essa exigncia identificar os processos mentais que a psicologia postula com as operaes da restrita
classe de possveis computadores, chamados de Mquinas de Turing.
Uma Mquina de Turing pode ser informalmente caracterizada como um mecanismo com um
nmero finito de estados do programa. Os inputs e outputs da mquina so escritos em uma fita, que
dividida em quadrados, cada um deles contendo um smbolo de um alfabeto finito. A mquina escaneia
a fita um quadrado de cada vez. Ela pode apagar o smbolo de um quadrado e imprimir um outro em
seu lugar. Ela pode executar apenas as seguintes operaes mecnicas: escanear, apagar, imprimir,
mover a fita e mudar de estado.
Os estados do programa da Mquina de Turing so definidos somente em termos dos smbolos
de input e output da fita, as operaes elementares e os outros estados do programa. Cada estado do
programa funcionalmente definido, portanto, pela parte que ele assume na operao geral da
mquina. Uma vez que o papel funcional de um estado depende de sua relao com outros estados e
tambm com os inputs e outputs, o carter relacional do mental fica preservado nesta verso do
funcionalismo, chamada de funcionalismo tipo Mquina de Turing. J que a definio de um estado do
programa nunca se refere estrutura fsica do sistema que roda o programa, o funcionalismo tipo
Mquina de Turing tambm preserva a idia de que o carter de um estado mental independente de
sua realizao fsica. Um ser humano, uma sala cheia de pessoas, um computador e um esprito
desencarnado seriam todos uma Mquina de Turing, se eles operassem de acordo com um programa de
uma Mquina de Turing.
A proposta restringir a definio funcional dos estados psicolgicos queles que puderem ser
expressos em termos dos estados do programa de uma Mquina de Turing. Se esta restrio puder ser
implementada, ela garantir a compatibilidade das teorias psicolgicas com as demandas dos
mecanismos. Uma vez que as Mquinas de Turing so dispositivos muito simples, elas so, em
princpio, bastante fceis de serem construdas. Consequentemente, ao formular uma explicao
psicolgica como um programa de uma Mquina de Turing, o psiclogo assegura o mecanicismo de
sua explicao, muito embora ele no especifique o hardware responsvel pela execuo do
mecanismo.
Existem muitos tipos de mecanismos computacionais alm das Mquinas de Turing. Assim, a
formulao de uma teoria psicolgica funcionalista na linguagem da Mquina de Turing oferece apenas
uma condio suficiente para que a teoria seja mecanicamente realizvel. O que torna essa condio
interessante, entretanto, que a simples Mquina de Turing pode realizar muitas tarefas complexas.
Embora as operaes elementares da Mquina de Turing sejam restritas, as interaes das operaes
capacitam a mquina a realizar qualquer computao bem definida sobre smbolos discretos.
Uma importante tendncia nas cincias cognitivas tratar a mente sobretudo como um
dispositivo que manipula smbolos. Se um processo mental pode ser funcionalmente definido como
uma operao sobre smbolos, existe uma Mquina de Turing capaz de realizar a computao e uma
variedade de mecanismos para operar a Mquina de Turing. Quando a manipulao de smbolos
importante, a Mquina de Turing faz uma conexo entre a explicao funcional e a explicao
mecanicista.
A reduo de uma teoria psicolgica a um programa para uma Mquina de Turing um modo
de exorcizar os homnculos. A reduo assegura que no foi postulada nenhuma operao alm
daquelas capazes de serem realizadas por um mecanismo conhecido. bvio que o psiclogo
normalmente no pode especificar a reduo para cada um dos processos funcionalmente definidos em
todas as teorias que ele leva a srio. Na prtica, o argumento habitualmente vai na direo contrria: se
a postulao de uma operao mental essencial para alguma explicao psicolgica, o terico tende a
assumir que deve haver um programa para uma Mquina de Turing que realizar a operao.
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As caixas pretas, que so comuns nos fluxogramas feitos pelos psiclogos, servem para indicar processos mentais postulados, que esto espera de uma especificao em termos de uma
Mquina de Turing. Mesmo assim, a possibilidade em princpio de tais redues serve como uma
restrio metodolgica sobre a teorizao psicolgica, no sentido de determinar quais definies
funcionais sero permitidas e como seria a situao de se saber que tudo aquilo que possivelmente
poderia exigir explicao j foi explicado.
Tal a origem, a provenincia e a promessa do funcionalismo contemporneo. Mas quais so
seus resultados? Essa questo no fcil de responder porque uma boa parte do que est acontecendo
atualmente na filosofia da mente e nas cincias cognitivas uma explorao do alcance e dos limites
das explicaes funcionalistas do comportamento. Contudo, eu apresentarei uma breve viso geral.
Uma objeo bvia o funcionalismo como teoria da mente que a definio funcionalista no
se limita a estados e processos mentais. Catalisadores, mquinas de coca-cola, abridores de vlvula,
apontadores, ratoeiras e ministros da fazenda so, de um maneira ou de outra, conceitos funcionalmente
definidos, mas nenhum deles um conceito mental tal como dor, crena e desejo. O que , ento, que
caracteriza o mental? E seria possvel inclu-lo em um modelo funcionalista?
A viso tradicional na filosofia da mente afirma que os estados mentais distinguem-se por
possurem o que chamado de contedo qualitativo ou contedo intencional. Primeiramente, eu
discutirei o contedo qualitativo.
No fcil dizer o que o contedo qualitativo. De fato, segundo algumas teorias, no
possvel sequer dizer o que ele porque ele no pode ser conhecido por descrio, mas apenas atravs
da experincia direta. Apesar disso, eu tentarei descrev-lo. Tente imaginar-se olhando para uma
parede em branco atravs de um filtro vermelho. Agora, troque o filtro vermelho por um verde e deixe
o resto exatamente como estava antes. Alguma coisa relativa ao carter de sua experincia se altera
quando o filtro trocado, e esse tipo de coisa que os filsofos chamam de contedo qualitativo. Eu
no me sinto inteiramente confortvel com essa definio do contedo qualitativo, mas trata-se de um
tema com o qual muitos filsofos no se sentem confortveis.
A razo pela qual o contedo qualitativo representa um problema para o funcionalismo
evidente. O funcionalismo est comprometido com a definio dos estados mentais em termos de suas
causas e seus efeitos. Parece possvel, no entanto, que dois estados mentais tenham as mesmas relaes
causais, diferindo, porm, em seu contedo qualitativo. Deixe-me ilustrar isso com o clssico enigma
do espectro invertido.
Aparentemente, possvel imaginar dois observadores semelhantes em todos os aspectos
psicolgicos relevantes, com a nica exceo de que as experincias subjetivas que possuem o
contedo qualitativo do vermelho para um observador teriam o contedo qualitativo do verde para o
outro observador. O comportamento de ambos no revela a diferena porque todos os dois vem um
tomate maduro e um pr do sol flamejante como sendo de cor semelhante e chamam essa cor de
vermelho. Alm disso, a conexo causal entre suas experincias (qualitativamente distintas) e seus outros estados mentais tambm poderiam ser idnticas. Talvez ambos pensem no Chapeuzinho
Vermelho quando vem tomates maduros, sintam-se deprimidos quando vem a cor verde, e assim por
diante. Parece que qualquer coisa que pudesse ser includa na noo de papel causal de suas
experincias poderia ser compartilhada por eles, e, apesar disso, o contedo qualitativo das
experincias poderia ser totalmente diferente. Se isto for possvel, ento a abordagem funcionalista no
funciona para os estados mentais que possuem contedo qualitativo. Se uma pessoa est tendo uma
experincia do verde enquanto outra est tendo uma do vermelho, elas certamente devem estar em
estados mentais diferentes.
O exemplo do espectro invertido mais do que um enigma verbal. A posse de contedo
qualitativo considerada como um dos principais fatores para que um estado mental seja consciente.
Muitos psiclogos inclinados a aceitar o modelo estruturalista esto preocupados com o fato de o
funcionalismo no ter muita coisa a dizer sobre a natureza da conscincia. Os funcionalistas tm feito
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algumas tentativas ingnuas de convencer seus colegas e a si mesmo de esquecerem essa preocupao,
mas no tm obtido, segundo meu ponto de vista, muito sucesso. (Por exemplo, talvez seja errado
pensar que possvel imaginar como seria um espectro invertido) No presente momento, o problema
do contedo qualitativo representa uma sria ameaa para a afirmao de que o funcionalismo pode
oferecer uma teoria geral do mental.
No que diz respeito ao contedo intencional dos estados mentais, o funcionalismo tem se sado
muito melhor. De fato, aqui que se encontram as maiores realizaes da cincia cognitiva. Dizer que
um estado mental tem contedo intencional dizer que ele tem certas propriedades semnticas. Por
exemplo, para Enrico acreditar que Galileo era italiano parece necessrio haver uma relao ternria
entre Enrico, uma crena e uma proposio, que o contedo da crena (a saber, a proposio que
Galileo era italiano). Em particular, uma propriedade essencial da crena de Enrico que ela refere-se a
Galileo (e no a Newton, por exemplo) e que ela verdadeira se, e somente se, Galileo era realmente
italiano. Os filsofos no concordam sobre a maneira como essas consideraes se encaixam, mas h
um acordo geral de que as crenas envolvem propriedades semnticas, tais como expressar uma
proposio, ser verdadeiro ou falso e referir-se a uma coisa ao invs de outra.
importante compreender as propriedades semnticas das crenas porque as teorias nas
cincias cognitivas referem-se em grande parte s crenas que os organismos tm. Teorias da
aprendizagem e da percepo, por exemplo, so explicaes de como o conjunto de crenas que um
organismo tem determinado pelo carter de suas experincias e de sua herana gentica. A
abordagem funcionalista dos estados mentais no oferece, por si prpria, os insights necessrios.
Ratoeiras so funcionalmente definidas, mas ratoeiras no expressam proposies e no so
verdadeiras ou falsas.
Existe pelo menos uma outra coisa, alm de um estado mental, que tem contedo intencional:
um smbolo. Assim como os pensamentos, os smbolos parecem referir-se a coisas. Se algum diz
Galileo era italiano, sua afirmao, como a crena de Enrico, expressa uma proposio sobre Galileo, que verdadeira ou falsa, dependendo da ptria de Galileo. Esse paralelo entre o simblico e o mental
subjaz tradicional busca por um tratamento unificado da linguagem e da mente. A cincia cognitiva
est tentando oferecer tal tratamento.
O conceito bsico simples, porm notvel. Assuma que existem smbolos mentais
(representaes mentais) e que os smbolos mentais tm propriedades semnticas. Assim, ter uma
crena envolve a relao com um smbolo mental, sendo que a crena herda suas propriedades
semnticas do smbolo mental que aparece na relao. Os processos mentais (pensar, perceber,
aprender, etc.) envolvem interaes causais entre os estados relacionais, tais como ter uma crena. As
propriedades semnticas das palavras e sentenas que ns proferimos so herdadas, por sua vez, das
propriedades semnticas dos estados mentais que a linguagem expressa.
Associar as propriedades semnticas dos estados mentais com as dos smbolos mentais
totalmente compatvel com a metfora computacional porque natural pensar o computador como um
mecanismo que manipula smbolos. Uma computao uma corrente causal de estados computacionais
e os elos da corrente so operaes sobre frmulas semanticamente interpretadas, de acordo com um
cdigo de mquina. Pensar em um sistema (como o sistema nervoso) como um computador levantar
questes sobre a natureza do cdigo em que ele computa e sobre as propriedades semnticas dos
smbolos do cdigo. Na verdade, a analogia entre mentes e computadores realmente implica a
postulao de smbolos mentais. No existe computao sem representao.
A abordagem representacional da mente, entretanto, antecede consideravelmente a inveno do
computador. Ela um ancestral da epistemologia clssica, que uma tradio que inclui filsofos to
distintos como John Locke, David Hume, George Berkeley, Ren Descartes, Immanuel Kant, John
Stuart Mill e William James.
Hume, por exemplo, desenvolveu uma teoria representacional da mente, que inclua cinco
pontos. Primeiro, existem Idias, que so uma espcie de smbolo mental. Segundo, ter uma crena
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envolve acalentar uma idia. Terceiro, os processos mentais so associaes causais de Idias. Quarto,
as Idias so como imagens. E quinto, as Idias possuem suas propriedades semnticas em virtude de
sua semelhana com aquilo que representam: a Idia de John refere-se a John porque ela se parece com
ele.
Os psiclogos cognitivos contemporneos no aceitam os detalhes da teoria de Hume, embora
mantenham muito de sua essncia. As teorias da computao oferecem uma explicao muito mais rica
dos processos mentais do que a mera associao de Idias. E somente alguns poucos psiclogos ainda
pensam que a imagtica o principal veculo da representao mental. Entretanto, a ruptura mais
significativa com a teoria de Hume o abandono da semelhana como explicao das propriedades
semnticas das representaes mentais.
Muitos filsofos, a comear por Berkeley, tm argumentado que h algo muito errado com a
sugesto de que a relao semntica entre um pensamento e aquilo a que o pensamento se refere
poderia ser uma relao de semelhana. Considere o pensamento de que John alto. claro que o
pensamento verdadeiro apenas no que diz respeito ao fato de John ser alto. Uma teoria das
propriedades semnticas de um pensamento deveria, portanto, explicar como esse pensamento
especfico est relacionado a esse fato especfico. De acordo com a teoria da semelhana, o processo do
pensamento envolve a posse de uma imagem mental que mostra John sendo alto. Em outras palavras, a
relao entre o pensamento de que John alto e o fato de ele ser alto como a relao entre um homem
alto e seu retrato.
A dificuldade com a teoria da semelhana que qualquer retrato que mostre John sendo alto
deve mostrar tambm um monte de outras coisas a seu respeito: se ele est vestido ou nu; se ele est
deitado, em p ou sentado; se ele possui uma cabea ou no; e assim por diante. Um retrato de um
homem alto que est sentado assemelha-se tanto a um homem sentado quanto a um homem alto. Na
teoria da semelhana, no est claro o que que distingue os pensamentos sobre a altura de John dos
pensamentos sobre sua postura.
A teoria da semelhana parece deparar-se com paradoxos a todo momento. A possibilidade de
se construrem crenas envolvendo relaes com representaes mentais semanticamente interpretadas
depende claramente de se ter uma explicao aceitvel da origem das propriedades semnticas das
representaes mentais. Se no a semelhana que ir oferecer essa explicao, qual a alternativa?
A idia atual de que as propriedades semnticas de uma representao mental so
determinadas por aspectos de seu papel funcional. Em outras palavras, uma condio suficiente para ter
propriedades semnticas pode ser especificada em termos causais. Essa a conexo entre o
funcionalismo e a teoria representacional da mente. A psicologia cognitiva moderna espera fortemente
que essas duas doutrinas possam se sustentar reciprocamente.
Nenhum filsofo est preparado para dizer exatamente como o papel funcional de uma
representao mental determina suas propriedades semnticas. Apesar disso, o funcionalista reconhece
trs tipos de relao causal entre estados psicolgicos envolvendo representaes mentais, que podem
servir para estabelecer as propriedades semnticas das representaes mentais. Os trs tipos so
relaes causais entre estados mentais e estmulos, entre estados mentais e respostas, entre os prprios
estados mentais.
Considere a crena de que John alto. Presume-se que os seguintes fatos, que correspondem
respectivamente aos trs tipos de relao causal, so relevantes na determinao das propriedades
semnticas da representao mental envolvida na crena. Primeiramente, a crena um efeito normal
de certas estimulaes, tais como ver John em circunstncias que revelam sua altura. Em segundo
lugar, a crena a causa normal de certos efeitos comportamentais, como afirmar que John alto. Em terceiro lugar, a crena a causa normal de outras crenas e tambm um efeito normal de outras
crenas. Por exemplo, qualquer pessoa que acredite que John alto, muito provavelmente acreditar
tambm que algum alto. Ter a primeira crena causalmente suficiente para ter a segunda. E
qualquer pessoa que acredite que todos numa sala so altos e tambm que John est nessa sala,
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provavelmente acreditar que John alto. A terceira crena um efeito normal das duas primeiras.
Resumindo, o funcionalista sustenta que a proposio expressa por uma certa representao mental
depende das propriedades causais dos estados mentais em que as representaes mentais aparecem.
A concepo de que as propriedades semnticas das representaes mentais so determinadas
por aspectos de seu papel funcional ocupa um lugar central nos trabalhos atuais dentro das cincias
cognitivas. Entretanto, essa concepo pode no ser verdadeira. Muitos filsofos que no mostram
simpatia ao movimento cognitivista na psicologia moderna duvidam de sua veracidade, e muitos
psiclogos provavelmente o rejeitariam com base nessa apresentao breve e rudimentar que esbocei.
No entanto, mesmo em sua forma rudimentar, muita coisa pode ser dita a seu favor: ele legitima a
noo de representao mental, que vem se tornando cada vez mais importante para a teorizao em
todos os ramos das cincias cognitivas. Os recentes avanos na formulao e no teste de hipteses
sobre a natureza das representaes mentais, em reas que vo desde a fontica at a viso
computacional, sugerem que o conceito de representao mental fundamental para as teorias
empricas da mente.
O behaviorista tem rejeitado o apelo representao mental porque ela contraria sua viso dos
mecanismos explicativos que podem constar nas teorias psicolgicas. Entretanto, a cincia da
representao mental est florescendo. A histria da cincia mostra que quando uma teoria bem
sucedida entra em conflito com um princpio metodolgico, geralmente o princpio que
abandonado. Assim, o funcionalista tem flexibilizado as restries behavioristas sobre as explicaes
psicolgicas. Provavelmente, no h maneira melhor de se decidir o que metodologicamente
permissvel em cincia do que investigar o que uma cincia bem sucedida requer.