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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF CORRESPONDÊNCIA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE CASA DE NHOZINHO Rua Portugal, 185 – Praia Grande CEP 65.010-480 – São Luís – Maranhão Fone: : (0xx98) 3218-9951 As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não comprometendo a CMF. BOLETIM DA CMF Nº 42 DIRETORIA Presidente: Maria Michol P. de Carvalho Vice-presidente: Roza Maria dos Santos Secretária: Nizeth Aranha Medeiros Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira CONSELHO EDITORIAL: Carlos Orlando de Lima Lenir Pereira dos S. Oliveira Maria Michol Pinho de Carvalho Mundicarmo Maria Rocha Ferretti Roza Maria dos Santos Sérgio Figueiredo Ferretti Zelinda de Castro de Lima SUMÁRIO EDIÇÃO: Maria Michol P. de Carvalho Mundicarmo M. R. Ferretti Roza Maria dos Santos REVISÃO DE TEXTO: Antonio Regino de Carvalho Neto VERSÃO PARA A INTERNET: www. cmfolclore.u fma.br CNPJ 00.140.658/0001-07 ISSN: 1516-1781 DEZEMBRO 2008 Editorial ...................................................................................................................................................................................... 2 Maranhão, Natal de Toda Gente: Programação ........................................................................................................................ 2 SECMA/SCP Folclore precisa de mais atenção ................................................................................................................................................ 3 Ruben Almeida Festa para Rainha Iemanjá na ilha de São Luís ........................................................................................................................ 4 Lavonério F. de Lima Músicas do catolicismo popular: Salva ao Menino Jesus .......................................................................................................... 5 Fronteira e território: ensaios do grupo de Bumba-boi da Maioba .......................................................................................... 6 Isanda Maria Falcão Canjão Os “gigantes” e o Bumba-meu-boi .............................................................................................................................................. 9 Abmalena Santos Sanches Reminiscências .................................................................................................................................................... 13 Carlos de Lima Encantados e encantarias no folclore brasileiro ..................................................................................................................... 15 Mundicarmo Ferretti Janela do Tempo: Candomblé e samba ................................................................................................................................... 17 Edmundo Correia Lopes Minha velha São Luís .............................................................................................................................................................. 17 Fernando Viana Resumos e resenhas .................................................................................................................................................................. 18 GP-Mina (org.) Noticias .................................................................................................................................................................................... 19 Roza dos Santos Perfil Popular: Therezinha Jansen ........................................................................................................................ 20 Mundicarmo Ferretti

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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF

CORRESPONDÊNCIACOMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE

CASA DE NHOZINHORua Portugal, 185 – Praia Grande CEP 65.010-480 – São Luís – Maranhão

Fone: : (0xx98) 3218-9951

As opiniões publicadas em artigosassinados são de inteira

responsabilidade de seus autores, nãocomprometendo a CMF.

BOLETIM DA CMF Nº 42

DIRETORIA

Presidente: Maria Michol P. de Carvalho

Vice-presidente: Roza Maria dos Santos

Secretária: Nizeth Aranha Medeiros

Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira

CONSELHO EDITORIAL:Carlos Orlando de LimaLenir Pereira dos S. OliveiraMaria Michol Pinho de CarvalhoMundicarmo Maria Rocha FerrettiRoza Maria dos SantosSérgio Figueiredo FerrettiZelinda de Castro de Lima

SU

RIO

EDIÇÃO:Maria Michol P. de CarvalhoMundicarmo M. R. FerrettiRoza Maria dos Santos

REVISÃO DE TEXTO:Antonio Regino de Carvalho Neto

VERSÃO PARA A INTERNET:www.cmfolclore.ufma.br

CNPJ 00.140.658/0001-07

ISSN: 1516-1781DEZEMBRO 2008

Editorial ...................................................................................................................................................................................... 2

Maranhão, Natal de Toda Gente: Programação ........................................................................................................................ 2SECMA/SCP

Folclore precisa de mais atenção ................................................................................................................................................ 3Ruben Almeida

Festa para Rainha Iemanjá na ilha de São Luís ........................................................................................................................ 4Lavonério F. de Lima

Músicas do catolicismo popular: Salva ao Menino Jesus .......................................................................................................... 5

Fronteira e território: ensaios do grupo de Bumba-boi da Maioba .......................................................................................... 6Isanda Maria Falcão Canjão

Os “gigantes” e o Bumba-meu-boi .............................................................................................................................................. 9Abmalena Santos Sanches

Reminiscências .................................................................................................................................................... 13Carlos de Lima

Encantados e encantarias no folclore brasileiro ..................................................................................................................... 15Mundicarmo Ferretti

Janela do Tempo: Candomblé e samba ................................................................................................................................... 17Edmundo Correia Lopes

Minha velha São Luís .............................................................................................................................................................. 17Fernando Viana

Resumos e resenhas .................................................................................................................................................................. 18GP-Mina (org.)

Noticias .................................................................................................................................................................................... 19Roza dos Santos

Perfil Popular: Therezinha Jansen ........................................................................................................................ 20Mundicarmo Ferretti

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Boletim 42 / dezembro 200822

Editorial

ACMF encerra o ano de 2008 comemorando os100 anos da Academia Maranhense de Letras, coma publicação no Boletim 42 de artigos de Fernan-

do Viana, de entrevista de Ruben Almeida e de mais umtexto de Carlos de Lima, esses dois últimos membros tam-bém da Comissão Maranhense de Folclore, que comemo-rou no mesmo exercício 60 anos de fundação. Rende tam-bém homenagem à Umbanda – tradição de Zélio de Mo-raes, que celebrou em 2008 seu centenário –, publican-do um artigo de Lavonério de Lima sobre o festival deIemanjá na capital maranhense.

A edição do Boletim começa com a programação na-talina da Superintendência de Cultura Popular do Esta-do do Maranhão e relato do festejo de Iemanjá em 1999.Prossegue reproduzindo versos tradicionalmente canta-dos diante de presépios armados com grande devoção emterreiros de mina de São Luís, saudando o Menino Je-sus. Inclui também dois artigos sobre cultura afro-brasi-leira no Maranhão, um antigo de Mundicarmo Ferrettisobre encantados e encantarias do tambor de mina, e outrodo lingüista Edmundo Correia Lopes, sobre a influênciaafricana na cultura brasileira – especialmente sobre sam-ba e candomblé –, onde faz referência a negros bijagósque Nina Rodrigues teria encontrado no Maranhão, re-ferência essa também encontrada em depoimentos deantigas mães-de-santo, como Mãe Dudu (São Luís) e donaGeorgina (Santa Rosa dos Pretos) divulgados em livros eem vídeos por Sergio Ferretti e por Glória Moura. A cul-tura afro-brasileira aparece também de modo destacadojunto com o catolicismo popular nos resumos de mono-grafias e dissertações defendidas por maranhenses entre2006 e 2008.

O 42º Boletim da CMF dá também um destaque àcidade de São Luís, saudada por Fernando Viana, e comas reminiscências de Carlos de Lima sobre a Rua da Paz.

Devido à grande importância do Bumba-meu-boi noMaranhão, o Boletim 42 traz dois artigos sobre essa ma-nifestação folclórica, um de Isanda Canjão, sobre ensai-os de Boi, e outro de Abmalena Sanches, sobre cantado-res de Boi.

Em notícias, a CMF informa com grande pesar aperda de um de seus membros mais importantes – The-rezinha Jansen -, falecida em 26/11 e dedica a ela o Per-fil Popular do Boletim 42. Anuncia nesse número a re-alização pelo IPHAN do Inventário de Referências Cul-turais (INRC) do Bumba-meu-boi do Maranhão e co-munica a atualização no seu site, hospedado na UFMA– www.cmfolclore.ufma.br -, onde podem ser lidos e im-pressos todos os números do Boletim e podem ser con-sultados seus índices de autores e de assuntos. Para fi-nalizar, desejamos a todos um 2009 feliz, cheio de reali-zações.

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DO MARANHÃOPROJETO “MARANHÃO, NATAL DE TODA GENTE”

(Programação coordenada pela Superintendência de Cultura Popular)

PROGRAMAÇÃO

12 de dezembro (sexta-feira)VI Concerto para o Menino – Abertura oficial da programação

natalina com apresentação de um concerto coletivo composto por 14(quatorze) corais infanto-juvenis (500 vozes), na fachada do Palácio doComércio (antigo Hotel Central, Associação Comercial do Mara-nhão), às 18h, com montagem de um Presépio Vivo e repertório demúsicas natalinas. Acompanhamento musical do grupo Toque Brasilei-ro e Quarteto de Cordas da EMEM.

16 de dezembro (terça-feira)Abertura da exposição Lapinha VI: um Natal sempre presente –

Mostra retrospectiva do trabalho de diversos artistas plásticos e artesãosque já participaram das edições anteriores da exposição. O evento acon-tecerá às 18h na Galeria do Cofo, localizada na Casa de Nhozinho(Rua Portugal, nº 185 – Praia Grande). Apresentação dos corais infantisAmor e Vida e São Joãozinho. Lançamento do Boletim nº 42 daComissão Maranhense de Folclore.

17 de dezembro (quarta-feira)• Exposição Arvoredo XI: “Plante amor, colha alegria” – Aber-

tura e divulgação do resultado do concurso de árvores natalinas artesa-nais, às 17h, na Casa da FÉsta (Rua do Giz, nº. 221 - Praia Grande).Início da visitação pública aos presépios dos Paços da Quaresma locali-zados no Beco da Pacotilha e na Rua Afonso Pena (confeccionados porMaria de Lourdes Oliveira e Sebastião Cardoso Junior, respectivamente).Apresentação dos corais infanto-juvenis Kid´s Voices e do referente aoProjeto UNIVIMA Musical, coordenado pela professora e musicistaDora Barros Veloso.

19 de dezembro (sexta-feira)• X Cantata Natalina – A partir das 18h30, na escadaria do Tea-

tro João do Vale, com personagens da Cena Natalina e participação de03 (três) corais infanto-juvenis e 10 (dez) corais adultos. Para o encerra-mento do evento, a banda Saint Louis Metal fará sua apresentação naPraça Nauro Machado.

20 de dezembro (sábado)• Cantata na Lagoa da Jansen – A partir das 16h, no Arraial da

Lagoa da Jansen. Presença dos corais adultos Arte e Canto e São Joãoe dos infanto-juvenis Recriando o Lúdico e Descobrindo o Saber,acompanhados pelo Teatro Recriando o Lúdico. Show com a bandaSaint Louis Metal e Chiquinho França.

23 de dezembro (terça-feira)• Confraternização na Casa do Maranhão – Dedicada às comuni-

dades de artistas populares e artesãos das áreas da Praia Grande, ItaquiBacanga, Desterro, São José de Ribamar, Itamatatiua, Vila Primavera eMaracanã. Shows de Corais Adultos e Infantis e da banda Saint LouisMetal.

08 de janeiro de 2009 (quinta-feira)• Queimação de Palhinhas dos presépios dos Paços da Quaresma

do Beco da Pacotilha e da Rua Afonso Pena, com mini-procissão doMenino Jesus pelas ruas João Vital, Palma, 14 de Julho, Afonso Pena,Direita e Giz, seguida de ladainha cantada por Dona Teté e Rosa Reis.Acompanhamento de músicos populares, às 18h, na Casa da FÉsta doCentro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho.

* Os grupos de PASTORES, PASTORAIS, REIS E REISADOS aseguir citados farão apresentações em igrejas, asilos, hospitais, alber-gues, instituições e logradouros públicos, associações culturais e comuni-tárias: 1. Reis do Oriente (Anil), 2. Reis das Nuvens (Maracanã), 3. Reisdo Alecrim (Maracanã), 4. Reisado Os Foliões (Centro), 5. Reis SempreViva (Maracanã), 6. Pastor Flor do Menino Jesus (Tapera/Paço do Lumi-ar), 7. Pastor Y Bacanga (Anjo da Guarda), 8. Pastor do SESC (Centro), 9.Reis das Flores (Porto Grande), 10. Pastor do Menino Deus (João Paulo),11. Pastor Estrela do Oriente (Sacavém), 12. Reis Oriente (Bairro de Fáti-ma), 13. Reis das Flores I (Tajaçoaba), 14. Pastoral Filhas de Belém (Anil),15. Reis Pastorado (São José de Ribamar). Participação do coral infanto-juvenil Encanto com as Mãos.

Todas as atividades têm ENTRADA FRANCA.

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3Boletim 42 / dezembro 2008 3

Em seu trabalho de divulgação de nos-sas manifestações folclóricas, o Depar-

tamento de Assuntos Culturais apresenta hojea entrevista mantida com o Prof. Ruben Almei-da, sem dúvida alguma um dos grandes mes-tres do Maranhão. Por suas posições, por suasopiniões, por seus estudos, o Prof. Ruben Al-meida é, com toda certeza, uma figura quemerece especial atenção no contexto da vidacultural maranhense. Ouvido pela Equipe deEntrevistas do DAC, assim falou:

DAC - Existe alguma diferença entre o queé folclore e o que é cultura popular?

RA - Deve haver uma certa diferença. Ofolclore em si é uma atividade, uma realidade,conforme se verifica. O Espírito Santo, Tamborde Crioula, Bumba-meu-boi etc. A cultura po-pular é uma espécie de apreciação à origemdessa cultura, dos lugares onde ela se manifes-tou, modalidades que ela apresenta. Essa é adiferença que se pode estabelecer.

DAC - Pode-se falar em Cultura Brasileira?RA - Pode-se falar. O termo cultura é termo

geral. Hoje abrange muitas modalidades.É tanto arriscar falar que já existe um subs-

trato com características propriamente nossas.Continuamos a sofrer uma invasão. Veja SãoPaulo. São Paulo o que é? O paulista é engraxa-te, garçom de restaurante, balconista, etc. ... Oestrangeiro é o dono das fábricas, das indústrias,do comércio, das atividades locais. Continuamosa ser invadidos de toda maneira. Sobretudo de-pois da 2a Guerra parece que todo mundo correupara o Brasil. É um Estado super rico para certacamada e super pobre ao mesmo tempo. Comoos jornais europeus classificam: “O governo éeminentemente rico, mas o povo é eminentemen-te pobre”. Isso se vê aqui nos nossos restauran-tes, botequins, nossos bares, hotéis, farmácias,supermercados são sempre assaltados por umbloco de crianças famintas. De modo que euacho arriscado a gente estar falando numa cultu-ra com características próprias. Do mesmo modoque há essa miscigenação racial também há essamiscigenação cultural. Além disso, não é só bran-co, preto, índio. Os peles-vermelhas aqui foramsemitas, não foram brancos.

DAC - Será que o folclore do Nordeste seintensificou mais devido ao fato de que rece-beu menos invasão que no Sul?

RA - O caso maranhense é um caso que nãose deve misturar. Não é propriamente Norte,Nordeste nem Meio-Norte. É um caso que temcaracterísticas próprias. O seu conhecimento vemde longa data. Se não Colombo, pelo menos osseguidores de Colombo, todos passaram pelo li-toral maranhense. Vicente Pizon foi vítima depororoca aqui na barra do Mearim pouco acimado ltaqui. Felipe II tinha mais olho na Amazôniado que em Portugal. Portugal não lhe interessavatanto como a sua colônia. Essas chamadas tenta-tivas da colonização tinham duplo fim. Aparen-temente vinham fundar uma colônia, mas a fina-lidade precípua era ir ao Peru pela Amazônia.

Esta festa do Bumba no Maranhão se faziadurante muito tempo na França. O centro mai-or foi Cumã. Hoje Guimarães é o ponto onde háo melhor boi; mais autêntico.

Eu perguntei ao Sr. Renato Almeida, Dire-tor da Campanha de Defesa do Folclore Brasi-

FOLCLORE PRECISA DE MAIS ATENÇÃO1

Ruben Almeida2

leiro, se ele já tinha atentado para a origem ce-leste do Bumba-meu-boi. Isso é uma coisa su-per-infantil, é pueril. Essas festas todas têm ori-gem cósmica. O boi é o touro que está no mêsde maio. A festa dos Santos é a festa de Puruxa,o chamado macho celeste. Uma festa ligada aotrevo, inclusive processionalmente. Não enxer-gam coisa alguma. No entanto falam em folclo-re, mas no folclore rasteiro; não procuram exa-minar as origens, ligar isto com a sensação hin-du, sensação dos árias, do budismo, do brama-nismo, saber se ainda existem esses trevos, sesão dourados, porque não são. O chamado fra-de de pedra é apenas um falus de pedra. Falus,o órgão masculino de fecundação conduzidonas procissões gregas, também está ligado comfestas carnavalescas.

O mastro do Divino Espírito Santo é o Mas-tro Celeste, por isso dançam 12 mulheres. Porque não dançam homens? Porque a festa inte-ressa ao elemento feminino. A festa é alegria.Cortado ele é repouso, em pé ele é ereção. Asmulheres são os 12 meses do ano. Mas ninguémenxerga nada disso, nem Renato Almeida queé o chefe do Folclore Nacional.

DAC - Existe muita diferença entre Bumba-meu-boi do Maranhão e do Pará?

RA - No Pará o Bumba é apenas no nome.O que há é corrupião e tudo o quanto é ave.

Aqui mesmo no Rosário se vê carneiro, mar-reca, cachorro, orquestra, lenço.

O Bumba é festa do índio. O preto podefazer a festa deles, mas o caboclo é aqui. Oponto de divergência é Cumã, é Guimarães.Ainda hoje se pode estudar isso.

DAC - Há muita, influência do branco noBoi, através da literatura, por exemplo?

RA - Não. O que acontece é que para agra-dar o Governo, que em geral os mimoseia comalgum dinheirinho, vão metendo coisas, vãotransformando o Bumba numa espécie de ca-lendário. Já vem a guerra européia, já vema·bomba atômica. Resultado: sai bastante de-turpado. Não há também uma fiscalização nadistribuição de prêmios, não se exige que o povoconserve aquela tradição. Os Pastorinhos nocomeço é uma festa primitiva como vemos nosautos de Gil Vicente. Mas depois foi entrandoo galego, o português, o cigano, todo mundo,até que se fez um Pastor só de moça, com as-pecto lírico, sopranos e tenores no teatro. De-turpou completamente. No Maranhão era oFandango, a Caninha Verde, o Baralho, a Pes-cada e outras festas mais antigas.

DAC - E o Carimbó?RA - Na Rua das Barrocas, saindo da Rua do

Egito, num sobradão, ali era o Carimbó. Consis-tia em pôr uma garrafa em cima de uma rodinhae mexendo o corpo até encontrar no chão e outravez levantando, levantando... Existia o Zé Gor-do, que conhecia todos os truques do Carimbó.

DAC - E por que agora foi renascer no Paráo Carimbó?

RA - Deve ser ação do Ministério atravésdesses Centros Culturais. Agora pergunto: nãoserá um falso Carimbó? Aqui também já houvetentativa de fazer o baralho, mas não é o Bara-lho. Baralho são pancas de pescadores do Ara-çaji. Pelo menos 100 homens, 50 para cada lado.São com roupas próprias, supõe o ritmo, a can-

tiga, o reco-reco com que eles iam cantarolandopelas ruas. Isso tudo tem época, perdido eu achoque não se renova. Pode-se fazer tentativa, masserá sempre falso. Como os Pastores. Quem éque vai tentar hoje fazer Pastores? Entretantona Rua São Pantaleão, houve pelo menos 100Pastores. Cada casa tinha seu Pastor. Depoisda festa havia chocolate com pão-de-ló para osconvidados e não convidados.

DAC: E a Casa das Minas que está desapa-recendo?

RA - Por falta de amparo. Primeiro quemaparece é a Igreja, dizendo que não se dê esmo-la que aquilo é feitiçaria etc. e tal. Tanto quantoa deles, feitiçaria por feitiçaria é a mesma coisa.Resultado: há uns quinze anos já não se fazfesta. Um outro que não tem interesse, a nãoser folclórico, como eu, vou lá, dou dinheiro.Não há amparo. Não é questão só de dar di-nheiro, é questão de acompanhar, de renovar,de fazer a coisa quanto possível dentro. EmAlcântara, fazem. As caixeiras chamadas.

Sem recursos, por outro lado, as autênticaspretas estão desaparecendo. A idade não per-mite, algumas delas estão com a idade avança-díssima. O trabalho é interessante, mas supõeprimeiro um plano e cumprimento exato desseplano feito por pessoas capazes. Supõe um gru-po de pessoas, cada um dando o seu palpitesobre tal ou qual aspecto e cumprimento dissoaí. Isso com um longo prazo, de um ano, porexemplo, pra ver se no outro se podem renovaras festas. A começar das festas do Carnaval.Agora me lembro do exemplo da festa de Reis.

Aqui, havia Reis de homem, de mulher, decrianças e ainda havia Reis de bandalheira, cadaum com sua orquestra, de casa em casa, no diaseis de janeiro. Onde está isso? As Pastorinhasdesapareceram. O jantar de São Lázaro, paracachorros também!

DAC - Como era o jantar de São Lázaro?RA - Reunia-se dinheiro de diversos. Prepa-

rava-se peru, galinha, tortas etc. Cada um leva-va seu cãozinho. No dia “X” a comida era dis-posta nos pratos em cima de tapetes, e os cãezi-nhos se refestelavam. Ainda cheguei a assistirduas, aqui na Rua de Santo Antônio.

DAC – Como o Sr. acha que deveriam por-tar-se as instituições oficiais no que diz respeitoà sobrevivência dessas manifestações?

RA - Amigo, eu acho é que se fala muito eobra-se pouco. Todo mundo fala. Mas quandoé na hora de fazer... Vamos contribuir com tantopara isso, reunir dinheiro, cada um começa atirar o corpo. Então seria preciso a existência deum grupo de pessoas tenazes, “pés-de-boi”,como se chama popularmente, que começas-sem esse trabalho, e que fossem aliciando ou-tras pessoas. Mas o que se nota é um desinte-resse. Basta ser coisa do passado.

DAC - Não acha o Sr. que o rápido surto dedesenvolvimento, o progresso tecnológico temcontribuído muito para isso?

RA - Claro. E um dos fatores, talvez o princi-pal. Por outro lado, quem é maranhense hoje? Dequem é o comércio? É de maranhense? Não, nãoé. É de todo mundo, menos do maranhense, comraras exceções. Então nós estamos sendo invadi-dos. Não preciso esperar o “japonês”, porque te-mos aqui outras invasões, só que de nordestino.

1 Fonte: Almeida, Ruben. Prosa, poesia e iconografia de Ruben Almeida. São Luís: SECMA, 1982. 400p., p. 329-332 (Coleção Série Inéditos 2). Publicado originalmenteem O Estado do Maranhão 10/08/1974.

2 Nasceu em 1896 e faleceu em 1979. Foi jornalista, professor, membro da Academia Maranhense de Letras, presidente do Instituto Histórico e Geográfica do Maranhãoe membro fundador da Comissão Maranhense de Folclore (de 1948).

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Boletim 42 / dezembro 200844

FESTA PARA RAINHA IEMANJÁ NA ILHA DE SÃO LUÍSLavobério F. de Lima3

No dia 31 de dezembro de 1999 foi realizadana praia do Olho d´Água a tradicional festa um-bandista para Iemanjá. Essa tradição religiosa foiiniciada pelo pai-de-santo já falecido José Cuperti-no no ano de 1961, portanto, já é realizada na ilhade São Luís há 38 anos. De acordo com José Pi-nheiro ex-presidente da Federação de Umbandae Cultos Afro-brasileiros do Maranhão,

“houve um ano que a festa foi dividida, poisuma parte foi realizada na praia da Ponta daAreia e a outra na praia do Olho d´Água; equando foi a inauguração da Avenida Litorâ-nea, o governador solicitou à Federação querealizasse a festa no local e mais uma vez ogrupo foi dividido, ficando uma parte na Lito-rânea e a outra no Olho d´Água”.

O fundamento daquele ritual no mar está nummito africano segundo o qual Iemanjá, filha deOlokum, deusa do mar, era casada com OlfimOduduá, com quem teve dez filhos (10 orixás). Poramamentá-los ficou com seios enormes. Impacien-te e cansada de morar na cidade de Ifé, ela saiu emrumo oeste e conheceu o rei Okerê; logo se apaixo-naram e casaram. Envergonhada de seus seios,Iemanjá pediu ao esposo que nunca a ridiculari-zasse por isso. Ele concordou, porém um dia embri-agou-se e começou a gracejar sobre os enormesseios da esposa. Entristecida Iemanjá fugiu. Desdemenina trazia numa garrafa uma porção que o pailhe dera para casos de perigo. Durante a fuga Ie-manjá caiu, quebrando a garrafa e a porção trans-formou-se num rio cujo leito seguia em direção aomar. Ante o ocorrido Okerê, que não queria perdera esposa, transformou-se numa montanha parabarrar o curso das águas. Iemanjá pediu ajuda aofilho Xangô e este, com um raio, partiu a montanhano meio; o rio seguiu para o oceano e, dessa forma,Iemanjá tornou-se a rainha do mar...

No dia 31 de dezembro de 1999 fomos pelamanhã para a casa do zelador de santo Astro deOgum, atual presidente da Federação de Um-banda e Cultos Afro-Brasileiros do Maranhão,para realizarmos uma entrevista com ele e ter-minamos por acompanhar uma entrevista deleà TV-Maranhão, falando sobre o evento daque-le dia. Depois da entrevista ele nos convidoupara almoçar com ele. Aceitamos o convite eficamos na casa dele até a tarde, quando fomoscom ele de carro com motorista para a praia doOlho d´Água, onde seria realizada a festa paraIemanjá. Como chegamos antes, ainda nos pre-parativos, pudemos acompanhar a ornamenta-ção do barco, símbolo da festa. Em 1999 a festade Iemanjá fez parte também da programaçãoda Secretaria de Cultura do Estado do Mara-nhão, recebendo um significativo apoio finan-ceiro do governo para a sua realização. Foramalugados vários ônibus para levar os umbandis-tas até a praia. Alguns deles foram hospedadosna casa do show de propriedade de Astro deOgum, local bastante amplo que serviu comoapoio e local de distribuição de alimentação ebebida. Antes do ritual foi servido em “bande-cos” (pratos feitos) um jantar aos umbandistas econvidados com: galinha assada, carne de boiassada, carne de sol, pescada frita, torta de ca-marão, salada, farofa, arroz e feijão preto. A festacontou com a participação de mais de 300 terrei-

ros da ilha de São Luís e adjacências e do interiordo estado. Na abertura todos os terreiros dança-ram em círculo fazendo referência aos encanta-dos e depois foram juntos levar para o mar umaoferenda que estava no navio e que lhes foraentregue por Astro de Ogum ou por outro um-bandista. Na festa foram tocados vários tambo-res guias e da mata, cabaças, pandeiros e agogôstrazidos pelos terreiros participantes.

A festa teve início com o discurso de Astrode Ogum, falando entre outras coisas:

“o pastor Lulu da Igreja Universal disse na televi-são que na noite de 31 de dezembro de 1999, napraia do Olho d´Água só ia ter diabo” (...) “aFederação vai entrar na justiça exigindo o direitode resposta na televisão da Igreja Universal e é láque eles pedem para o satanás sair todo dia e odiabo não sai” (...) A Umbanda é humilde, épobre, porque nenhum umbandista tira 15%de ninguém; na nossa religião não tem dízimo”...

O horário para a realização da homenagema Iemanjá não se baseou no horário de verão,instituído pelo governo federal, como foi escla-recido por Astro de Ogum:

“A obrigação será no ‘ horário de Deus´; nãoserá às 12 horas (meia- noite) falsa, não vamosfestejar a falsa meia-noite, vamos festejar a ver-dadeira meia-noite, a que Deus determinou”.

Na praia do Olho d´Água existe uma ima-gem da Rainha Iemanjá, próximo ao Bar do Ca-ranguejo, que simboliza a presença constanteda Umbanda neste espaço religioso e a devoçãoa esta religião e a seus encantados, reforçandotoda a sua essência e o seu sincretismo africano,ameríndio e kardecista, tipicamente brasileiro nassuas origens. Para o antropólogo Sergio Ferretti,

“... as religiões afro-brasileiras tornaram-se maisconhecidas em sua diversidade. Ampliam-sehoje as observações do fenômeno do sincretis-mo, que no passado foi visto de modo maisrestrito” (FERRETTI, S. 1995, p.74).

Na festa para Rainha Iemanjá no dia 31 dedezembro de 1999, que aconteceu publicamen-te na paria de Olho, pudemos perceber o quan-to o sincretismo religioso garante a própria iden-tidade religiosa dos umbandistas. Na passagemdo ano de 1999 para 2000 foi montada na praia,próximo ao Bar do Nonato, uma embarcaçãosimbolizando os 500 anos de descobrimento doBrasil e homenageando os pescadores, usadasomente de forma simbólica, que serviu tam-bém como apoio para a festa (não foi construídapara navegar no mar) – feita de madeiras decompensado que se completavam e tinhamaproximadamente 15 metros de comprimentopor 6 metros de largura e 2 de altura. Ao redorda embarcação foi colocado tecido dourado eazul, além de outros nas cores preta e amarela.No barco havia 200 estrelas e 1200 lâmpadaspequenas brilhando bastante, coladas ao teci-do. O local de realização da festa de Iemanjáorganizada pela Federação de Umbanda e Cul-tos Afro-brasileiros do Maranhão, que antes erafeita próximo à imagem de Iemanjá, foi transfe-rido, continuando, no entanto, na orla marítima,pois bem próximo da imagem havia uma festa

considerada profana pelos umbandistas, um re-ggae, fazendo grande barulho, prejudicando aconcentração dos umbandistas e a homenagema Iemanjá. De cada lado havia dois mastros, umcom a bandeira do estado do Maranhão e outrocom a bandeira do Brasil e dentro da embarca-ção estava a bandeira da Umbanda, com as co-res preta, branca e vermelha. Do terreiro do zela-dor de santo Astro de Ogum foram levadas paraa praia as imagens de Oxalá, Iemanjá, CaboclaMariana, Oxum, Santa Barbara, Dom Luis Reide França, São Sebastião, Santana e Nossa Se-nhora da Conceição, que ficaram sob a embar-cação que estava montada na praia.

Para o antropólogo Vagner G. Silva,

“as manifestações nas praias das cidades litorâ-neas brasileiras em louvor a Iemanjá, rainhado mar, devido à sua popularidade, talvez te-nha sido, no processo de ocupação e sacraliza-ção dos espaços naturais da cidade, as que maisvisibilidade trouxeram às religiões afro-brasi-leiras fora dos espaços restritos dos terreiros.”(SILVA, 1995, p.198).

Esta festa para Iemanjá também se consti-tui numa bela e grande oportunidade para quepessoas que não possuem nenhuma ligaçãocom a umbanda possam se familiarizar com estareligião de alguma forma.

Em 1999 as oferendas jogadas no mar foram:500 frascos com perfumes, 500 bouquets de ro-sas, muitas frutas tropicais como: banana, abaca-xi, laranja, melancia, além de maça, uvas verdes eroxas, Também foram distribuídos 500 jarros pe-quenos pintados nas cores azul e branco commargaridas e rosas. A oferenda foi feita de formacoletiva para rainha Iemanjá, pois, de acordo comAstro de Ogum, “a umbanda acolhe a todos quequeiram de algum modo festejar este grande dia”.

Para a antropóloga e pesquisadora Mundi-carmo Ferretti (Boletim 15 da CMF, de dezem-bro de 1999),

“a festa para Iemanjá é um festival de culturaafro-brasileira e a participação dos terreiros évalorizada como uma atividade comunitáriade grande significado religioso”.

O que realmente aconteceu na praia do olhod´Água foi um ritual de fraternidade e de ami-zade, numa reverência à rainha das águas sal-gadas do mar, Iemanjá, numa demonstração defé e reafirmação do compromisso com a Um-banda e seus encantados.

A maneira de colocar as oferendas no mar, demodo coletivo, demonstra de certo modo, num sim-ples gesto de colocar uma rosa no mar, a uniãodesse povo. Embora haja conflitos, o amor que es-sas pessoas de santo possuem pela sua encantadaé maior do que a própria imensidão do mar.

BIBLIOGRAFIA CITADA

FERRETTI, Mundicarmo. 31 de dezembro,dia de festa no mar. Boletim da ComissãoMaranhense de Folclore, n.15, dez., 1999.FERRETTI, Sergio. Repensando o sincre-tismo: Estudo sobre a Casa das Minas. SãoPaulo: EDUSP; São Luís: FAPEMA, 1995.SILVA, Vagner Gonçalves. Orixás da metró-pole. Petrópolis: Vozes, 1995.

3 Licenciado em Ciências Sociais e bacharel em Direito. Na época, bolsista de Iniciação Científica CNPq/UFMA.

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5Boletim 42 / dezembro 2008 5

MÚSICAS DO CATOLICISMO POPULAR

Lá no céu tem uma estrelaEssa estrela é que nos guiaÉ o Divino Espírito Santo

E o Rosário de Maria

Esta salva que rezamosAo Menino Jesus oferecemos

Que nos livre do malditoE da sua má companhia

As contas do seu rosárioSão balas de artilharia

Que combatem no infernoRezando Ave Maria

Inferno tremeu de medoO céu encheu de alegriaPor ver os Anjos rezando

Lá no céu Ave Maria

4 Colaboração de Onezinda de Araujo Pinheiro.

Ave Maria SenhoraConcebida sem pecado

Sem pecado originalPara sempre amém Jesus

Aceitai Menino JesusA promessa da(o) devota(o)

Ela vem vos entregarDe joelhos com as mãos postas

De joelhos com as mãos postasCom prazer e alegria

Em intenção de todos nósE o rosário de Maria

Ofereço este benditoAo Senhor daquela cruzEm intenção de Menino JesusPara sempre amém Jesus.

Salva ao Menino Jesus4

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Boletim 42 / dezembro 200866

FRONTEIRA E TERRITÓRIO: ENSAIOS DOGRUPO DE BUMBA-BOI DA MAIOBA

Isanda Maria Falcão Canjão5

Opresente artigo é parte, refor-mulada, de minha dissertação

de mestrado em Antropologia Social. Fa-rei, aqui, um recorte de uma das etapasdo ciclo do Bumba-meu-boi, os ensaios.Vale lembrar que embora os diversos gru-pos realizem esse ritual, tratarei de umgrupo de boi específico, o Boi da Maio-ba.

O Boi da Maioba apresenta algumaspeculiaridades, é o grupo que mais reú-ne participantes, uma verdadeira multi-dão. Além disso, recorre permanente-mente à idéia tradição, o valor/tradição,cujo significado ressaltado é de que se-ria um dos bois mais antigos de São Luís.Ao dialogarem com os princípios que osidentificam, os maiobeiros elegem de-marcadores de fronteiras, procurandoestabelecer uma hierarquização em re-lação a outros grupos de bumba-meu-boi.

Os ensaios do grupo de Boi da Maio-ba iniciam-se ainda no mês de março ouabril após, mais ou menos, sete mesesdo final ou suspensão oficial do bumba-meu-boi, que ocorre entre julho/agostodo ano anterior. Têm uma trajetória dequase três meses, encerrando-se no últi-mo sábado antes do dia 23 de junho,véspera de São João, quando ocorre obatizado do boi, ritual que introduz obumba no universo social do maranhen-se. Os ensaios são realizados à noite, ini-ciando-se geralmente à 00:00h prolon-gando-se até 7:00 da manhã.

Na realidade, por ocasião dos ensai-os, a movimentação de pessoas inicia-seantes da meia-noite, quando os brincan-tes começam a chegar ao local determi-nado por volta de 21:00, 22:00 horas. Emvirtude disso, é sempre providenciadauma radiola de reggae ou a realizaçãode serestas, enquanto as pessoas aguar-dam, consumindo bebidas e, dessemodo, propiciando uma alternativa derenda para o grupo.

Antigamente, os ensaios dos gruposde Bumba-boi aconteciam somente apóso mês de maio ou a partir do Sábado daAleluia, final da “semana santa”. O Boida Maioba foi o primeiro grupo que rom-

peu com esse critério e, desde a segun-da metade dos anos 90, dá início aos seusensaios ainda em março ou abril, inde-pendente de coincidir com o tempo con-sagrado no calendário cristão. Essa me-dida provocou a reação de vários brin-cantes. Muitos se negam a dançar antesdo Sábado de Aleluia, que marca o fi-nal da Páscoa, afirmando que esse “nãoé o tempo do boi”. Em virtude disso,observa-se que a quantidade de pessoasvivenciando os ensaios vai aumentandoà medida que se aproxima o período deSão João, em junho.

Por aquela ocasião, a imprensa localdesenvolve uma intensa divulgação ememissoras de televisão, algumas emisso-ras de rádio e jornais escritos. Toda a ci-dade comenta e propaga a notícia. Sãodivulgados os nomes dos grupos, os lo-cais e os horários da realização dos en-saios. Na realidade, o período dos ensai-os marca o início da transformação dacidade de São Luís que, pouco a pouco,começa a ser seduzida e envolver-senuma atmosfera de festa. As músicas deboi, o som de seus instrumentos, os dis-cursos travados na imprensa mostram aproeminência daquele ritual no univer-so maranhense.

Porque os ensaios se realizam somen-te aos sábados, fica claro que não cons-tituem, ainda, uma situação de rupturacom valores estruturais, no sentido deVictor Turner (1974), como ocorre duran-te as outras fases do bumba, quando afesta se prolonga, se mantém por váriosdias e o tempo de trabalho e a rotinaficam suspensos. Após o ensaio, no sá-bado, as pessoas voltam ao seu universosocial do cotidiano, alternando por qua-se três meses o trabalho da semana e afesta ao sábado. O ensaio ainda não é ofestejo do bumba, demarcado oficial esimbolicamente, no entanto, já é umafase de preparação para seu início.

Um dado que marca essa fase do boidiz respeito às indumentárias dos brin-cantes, onde, nos ensaios, não é admiti-do que sejam usadas. Os sujeitos quedançarão com os personagens de cabo-clos, índias e vaqueiros permanecem

nessa etapa com roupas comuns. O mes-mo ocorre em relação ao personagem doboi, cuja presença é para simbolizar afesta do boi, que não é enfeitado, maspossui, apenas, um pedaço qualquer detecido que o cobre. Somente no batiza-do é que se enfeita e coloca um “couro”novo, o que marca o seu nascimento, sim-bolizando a “passagem” para o mundosagrado da festa6. Além disso, não há,ainda, uma representação dramática doritual que simbolize a suspensão da vidacotidiana, quando o boi está na rua.

Um grupo de boi demanda muitasdespesas com transporte, bebida paraseus componentes, indumentárias dospersonagens e aparelhagem de som, eos ensaios são o momento propício paraangariar recursos com a venda de bebi-das ou “venda” do próprio ensaio. Emrelação aos ensaios, uma característicaque merece destaque é que podem serclassificados a partir de duas categorias:os “ensaios vendidos”, que são realizadosfora da Maioba, além das fronteiras deseu terreiro7 – uma inovação intensifica-da a partir de 1995/96 bastante critica-da e rebatida por alguns componentes,que acusavam o grupo de não ser mais“propriedade” do bairro -, e os ensaiosfeitos na Maioba, em casa.

Os primeiros têm um critério nítido,são os que antecipam a temporada ofi-cial, iniciando-se em março ou abril eque têm um cunho mais prático e eco-nômico. Segundo seu presidente JoséInaldo, “os de fora são para divulgar aMaioba e angariar recurso, isso abriuuma fonte de renda pra nós, quanto maisensaio mais a gente ganha dinheiro”.

Existem duas possibilidades de ven-der ensaio: uma é quando o grupo daMaioba faz um contrato prévio paraensaiar em determinado local, “venden-do a noite de seu ensaio” - de acordo cominformações do presidente, por umamédia de dois mil reais - ou recebendoalguma outra vantagem como a conces-são de veículos para transportar os brin-cantes até o local apropriado, despesaque fica a cargo do contratante. A outraforma é quando o boi não cobra, previa-

5 Mestre em Antropologia Social – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.6 O ‘couro” do boi é uma espécie de cobertor cujo tecido de seda ou veludo é enfeitado com canutilhos, miçangas, paetês e fitas coloridas. Tem por finalidade recobrir a

armação do boi, esta é feita com material de palmeiras como paparaúba ou buriti.7 Terreiro é o espaço onde está situada a sede de cada grupo, o local onde ocorrem ensaios, batizado e morte do boi.

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7Boletim 42 / dezembro 2008 7

CONTINUAÇÃO

mente, um valor determinado e sua ren-da fica por conta da venda de bebidasem bares na instituição, no arraial ou nalocalidade com que firmou o contrato.

Observa-se que os ensaios são funda-mentais para destacar a importância dogrupo de Boi da Maioba naquele uni-verso. É praticamente unânime, na ca-pital, o reconhecimento e boa aceitaçãoque a Maioba possui junto aos mara-nhenses e sua apresentação é um moti-vo de grande aglomeração, o que favo-rece lucro significativo para o contratan-te com a venda de bebidas:

“Lembro de uma vez quando o pes-soal do Boi da Madre Deus estavatendo prejuízo e precisavam adqui-rir uma renda extra e nos convida-ram pra fazer o ensaio lá. Nós fo-mos fazer o ensaio foi uma loucura,recorde de público e 4 horas damanhã não tinha um gota de nadapra beber...” (Sr. José Inaldo, presi-dente do boi).

De acordo com o que podemos ob-servar acima, os contratantes tinhampoucas possibilidades de obter lucro coma venda de seus produtos e o recursoponderável, que puderam utilizar, foi acontratação do Boi da Maioba para rea-lizar uma noite de ensaio em seu terrei-ro. Aqui, vale ressaltar, que por ser umoutro grupo de boi, no caso o Boi daMadre Deus, “um contrário” (adversário)que se utiliza dos méritos da Maiobacomo recurso para sobressair a uma cri-se, tem-se uma situação propícia quevem reforçar sua marca e posição de sta-tus naquele universo.

Essa ocasião presta uma qualidade àMaioba, dá-lhe crédito e importânciasignificativa junto ao público. Além dis-so, como podemos constatar no exem-plo seguinte, quando os ensaios ocorremfora de seu terreiro, invadindo o “espaçode outros”, quando entra em competi-ção e penetra em outros domínios, mar-ca sua identidade:

“Ir lá para o terreiro de Ribamar e fazerum ensaio melhor do que o do próprio Boide Ribamar, como conseguimos fazer natemporada de 2000 na Tondela, foi muitobom8. Você vai no bairro do Anil a reper-cussão é a mesma, enfim, por todos oslugares que a gente vai é sempre batendorecorde e mais recorde...” (Sr. José Inaldo).

Com efeito, como uma luta que setrava, a ação dos maiobeiros constitui

uma tentativa de afirmação de uma con-dição simbólica de domínio daquelecampo, uma luta de classificação, nostermos de Bourdieu, uma tentativa de“fazer ver e fazer crer, de dar a conhe-cer e se fazer reconhecer, de impor adefinição legítima das divisões do mun-do social e, por este meio, de fazer e dedesfazer os grupos” (Bourdieu, 2000: 113).Tem-se, pois, uma ocasião que favorecea condição de que as identidades dosgrupos de boi se complementam e secontrapõem e o ritual do boi torna-se ummomento propício para a afirmação deseu prestígio.

Os “ensaios de casa” são realizados apartir do mês de maio, no primeiro sá-bado, quando todos os grupos de boi es-tão iniciando oficialmente essa fase dobumba. No caso específico do Boi daMaioba, estes, diferenciando-se dos pri-meiros, não são eventuais, mas têm umaqualidade que se preserva:

“O que acontece lá fora é necessário, masnada que prejudique a programação quea gente sempre fez aqui, sempre respei-tando os quatro ensaios que se faz no vi-veiro, os quatro tradicionais daqui, pramanter a tradição, inclusive o último” (ZéInaldo).

Portanto, apesar de ter inovado comensaios fora do bairro, para além de seuterreiro e, por isso, sendo alvo de muitascríticas, o grupo mantém os quatro en-saios que caracterizam uma qualidadede origem e sentimentos de filiação, umareferência de pertencimento. São asfronteiras do Boi da Maioba que se er-guem; os limites do espaço em seu ter-reiro demarcam sua identidade indivi-dual diante de outros bois. Mantém-se,inclusive, o último ensaio, denominado“ensaio redondo”, que marca o final des-sa etapa do bumba.

Pode-se sugerir que os ensaios ca-racterizam-se como uma fase prepara-tória para os festejos juninos, é a situa-ção em que o grupo articula váriasmedidas para seu bom desempenho,sua boa performance. É um momentoimportante, reservado para que o pú-blico se familiarize com as novas toa-das compostas, especialmente, paracada ano. Aqui vale ressaltar que o fatode o Boi da Maioba iniciar seus ensai-os muito antes do período oficial e dosoutros grupos, fica com grande vanta-gem em relação aos demais, na medi-da em que suas músicas, com bastan-te antecedência, chegam ao conheci-

mento das pessoas, o que vai cativan-do um público cada vez maior para seuuniverso.

Destaca-se que todos os anos cadagrupo de boi prepara um novo disco paraa temporada do bumba. No caso do Boida Maioba, segundo Francisco Chagas,seu primeiro cantador, ainda no mês desetembro já se inicia o processo de com-posição das músicas para o ano seguin-te. Após preparadas, as toadas são sele-cionadas pelos componentes da direto-ria. Por volta do mês de janeiro algunstocadores - matraqueiros e pandeireiros- reúnem-se com o cantador e realizam,em espaço restrito e bem guardado, osensaios e aprendizagem das músicaspara a gravação9.

Categoricamente, ser destacadocomo um grupo de boi “bom” requermuito empenho e o tempo dos ensaios éimprescindível para esta finalidade. Nocaso do Boi da Maioba, há uma buscaconstante desse efeito simbólico queconsagra e atesta a existência do grupo.

“Tem que ensaiar para não fazer errado,pra aprender a tocar, já pensou se passauma televisão ou coisa assim como é quefica, logo o Boi da Maioba?” (Conceiçãode Maria).

A temporada é necessária para aaprendizagem da utilização dos instru-mentos, matracas e pandeiros. Para isso,alguns voluntários dispõem-se a ensinarseu manuseio. Em relação aos pandei-ros, sua utilização é bastante criteriosa.Ao contrário das matracas, seu númeroé bem mais reduzido. São confecciona-dos uma média de 70 por temporada. Onúmero de pessoas que têm acesso émais selecionado, são os mais “próximos”ou os brincantes permanentes do boi, ouos que possuem o seu instrumento parti-cular. Os organizadores tem um certocontrole sobre sua distribuição provavel-mente pelo seu custo, pois é um instru-mento cujo valor é consideravelmentealto. Segundo informações do presiden-te, o preço final de um pandeiro de cou-ro é de R$ 150,00 e o de nylon está emmédia R$ 200,00. Os pandeiros são mui-to fáceis de se estragar, É necessário,portanto, saber manuseá-los bem paraque não sejam rasgados com as fortesbatidas que recebem ou com o aqueci-mento indevido de seu couro junto àfogueira.

8 Tondela é o local de ensaio do Boi de Ribamar, está situado na cidade de São José de Ribamar, na grande São Luís.9 Segundo o presidente do Boi da Maioba, estes ensaios são restritos a quem participará da gravação do disco e se realiza em lugares reservados para evitar que grupos

adversários copiem as toadas. Posteriormente é que as músicas são apresentadas ao público, quando dos ensaios gerais do boi.

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Boletim 42 / dezembro 200888

CONTINUAÇÃO

As matracas são especialmente pre-paradas pelo grupo ou por terceiros paraserem doadas ou vendidas. É o instru-mento que é mais socializado, tanto ho-mem quanto mulher, pode tocá-las. Nãohá processo de seleção ou escolha crite-riosa, qualquer pessoa que acompanhao boi pode inserir-se nesse grupo. Osbrincantes mais antigos, vaidosamentedenominados por seus pares como “pro-fessores de matraca”, se encarregam vo-luntariamente da tarefa de ensinar:

“Na época de seu Calça Curta, antigopresidente do boi, quem errava batendomatraca ou pandeiro, tomavam os instru-mentos e entregavam para outra pessoa,hoje, para não fazer feio a gente ensinano ensaio da roda do boi, ninguém nascesabendo não é?” (Wilson Charuto).

Além disso, seus proprietários com-partilham, por algum momento, compessoas que estão na roda10 acompa-nhando o boi, batendo palmas, cantan-do, dançando ou simplesmente olhan-do. Essa atitude dos brincantes confereàquele grupo um número cada vez mai-or de novos componentes:

“Hoje o povo quer participar, estar dentrodo movimento, não quer ser platéia, apessoa diz: cara eu toquei no boi” (LuísCarlos, brincante).

“Vem alguém de fora, pode ser quem forque eu dou minha matraca. Se a gente dáa matraca para alguém de fora eles vãoanalisar que a gente é um povo humilde,uma família. Se eu não pegar minha ma-traca e oferecer para ele eu nunca vousaber o que ele quer, aí ele chega, vem seaproximando, depois vem ele e um amigodele...” (Wilson Charuto).

A comunhão dos instrumentos fun-ciona como forma propícia para a agre-

gação de pessoas estra-nhas àquele universo.Como um estágio, os en-saios os incorporam àque-le ambiente social. A hos-pitalidade para com al-guém distante o envolvenuma atmosfera de proxi-midade e certa intimida-de, mas a interação como estrangeiro11, mesmo es-tabelecendo laços deagregação, mantém-se apartir de uma “tensão re-cíproca” para utilizarmosos termos de Simmel

(1983). Não estando organicamente ane-xado ao grupo, essa condição é sempreressaltada:

“Eu vi umas mulheres batendo matraca láno João Paulo, tocando muito ruim e eufiquei observando, olharam pra mim e per-guntaram o que é que tu quer? Nós somosé maiobeira (...) imagine, se elas forem mai-obeira eu sou o que?” (D. Hildener).

Evidencia-se uma espécie de dispu-ta, uma luta simbólica assentada no ca-pital de melhor conhecedor da memó-ria do grupo em função, ainda, de umsaber especializado – nos dizeres de Pi-erre Bourdieu: “um corpo de especialis-tas” -. Nesses termos, os sujeitos que pos-suem uma longa trajetória no Bumba-meu-boi, apropriados de um significati-vo capital simbólico, distinguem-se emfunção desse capital que os coloca “notopo da hierarquia dos princípios de hi-erarquização” (BOURDIEU, 2000: 12).

Portanto, vale ressaltar que, embora opresidente da Maioba afirme que não hajadiferenciação entre os brincantes e de quetodos “são uma torcida pelo boi” ou que“brigam pelo boi”, há uma categorização,entre os maiobeiros, em geral, que dife-rencia os que são mais antigos no boi, quepossuem um contato e convívio mais pro-longado com o grupo, e os que chegarammais recentemente, e ainda não se inte-graram aquela teia de socialização.

No que se refere à interação com o“estrangeiro”, é efetivada de forma es-pecial, algo que se aproxima à condiçãoapresentada por Georg Simmel, umarelação que se estabelece em termos deproximidade e distância. Sua posição nogrupo é orientada, especialmente, “pelofato de não ter pertencido a ele desde ocomeço” (Simmel, 1983: 132).

Poder-se-ia situar os ensaios – comoum rito iniciático - como um momento

Aprendizes e mestres

10 Roda, também cordão, como já nos referimos, é conjunto do grupo de pessoas que dança com os personagens do boi.11 O que classifico com estrangeiro são pessoas provenientes de outros países, cidades ou grupos de boi.

importante que assinala a inserção pro-gressiva do indivíduo no grupo. Essa con-dição mínima de acesso ao grupo cir-cunscreve-se nos termos em que falouMarc Augé de que a pessoa é simulta-neamente um estatuto adquirido e “nãopode ser concebida senão no devir”(AUGÉ, 1974:60). Ao serem introduzi-dos numa teia de relações sociais, o cons-trangimento da condição de “estrangei-ro” vai sendo envolvido numa outra rela-ção onde ocorre a interdependência en-tre o individual e o social.

Nesses termos, os ensaios funcionamcomo uma forma incipiente de interação,fortalecendo a vivência em grupo, quevai engendrando-se e ganhando umamaior dimensão à medida que se prolon-ga e se constitui enquanto uma experi-ência, um fazer juntos, uma prática ondeé consubstanciada a representação de umplano geral de edificação, espaço propen-so para articulação de identificações en-tre os sujeitos no compartilhar de objeti-vos, interesses e sentimentos:

“É bom no Boi da Maioba aquele entrosa-mento, parece uma família, quando a gen-te chega te abraçam, te cumprimentam,depois onde te encontram te conhecem,a gente conhece tanta gente” (Conceiçãode Maria).

É um momento fundamental, o perí-odo dos ensaios favorece o reencontrocom os amigos, a constituição de novoslaços sociais, a convivência que faz aunidade e identidade do grupo. Ocorre,portanto, a identificação com bens sim-bólicos do boi onde cada brincante é, aomesmo tempo, um alvo e veículo de pre-servação e transmissão daquela tradição.

O prolongamento do contato entreos maiobeiros permanece a partir desseperíodo - que tem o “ensaio redondo”como seu encerramento - e intensifica-se com a comunhão do batismo do boi,que se destaca como a “passagem”paraa etapa seguinte, considerada o inícioritual do bumba.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Riode Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.AUGÉ, Marc. A construção do mundo. SãoPaulo, Perspectivas do Homem, 1974.SIMMEL, Georg. Sociologia. (Org.) MORA-ES, Filho. São Paulo, Ática, 1983.TURNER, Victor W. O processo ritual: es-trutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes,1974.

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9Boletim 42 / dezembro 2008 9

Nos grupos de Bumba-boi em SãoLuís têm destaque significativo os

cantadores ou amos15, considerados oslíderes da brincadeira, que mobilizamuma legião de fãs que os acompanhama qualquer momento e em qualquer gru-po em que estiverem cantando. No auto,representam o senhor da fazenda e odono do boi roubado. É nesse meio quese destacam os cantadores do sotaque16

da ilha, que são considerados pela mí-dia local e pelos brincantes e simpati-zantes como os “gigantes”, os “meda-lhões”, os “cantadores de peso”, os “titãs”e os “cobras”. São símbolos diferenciaisentre os grupos. Ter o “melhor” cantadoré muito importante para se perceber eser percebido como um “batalhão pesa-do”. Os cantadores, muitas vezes, sãomotivos de discussões e disputas entreos simpatizantes dos grupos. Os que maisse destacam nesse cenário criam para siapelidos que fazem referências a pássa-ros cantadores, mas também a animaisferozes, ressaltando um desejo de ani-quilar, devastar seus opositores, seus con-trários17, como mostram os exemplos quese seguem: “Guriatã”, “Leão Devorador”,“Corrupião”, “Onça”, “Canário Belga”,“Canário Novo”, “Sabiá”, entre outros. Oscantadores são artistas populares no uni-verso do Bumba-boi bem conhecidos ealgumas passagens de suas vidas são mo-tivos de zombaria entre eles. Um desa-fia o outro com toadas conhecidas comode pique, ou seja, aquelas “que semprevêm sendo usadas no Boi. Eles acham queé uma atração um saber a vida do outro etal (...) começam, tá cantando um para ooutro 18”, e quem está sendo satirizadotem o direito de se defender. Assim, to-adas de pique são músicas que falam davida dos cantadores em tom provocati-vo, o que muitas vezes causa desavenças

Os “gigantes”12 e o Bumba-meu-boi13

Abmalena Santos Sanches14

sérias e inimizades19. Fora do ciclo dafesta do boi, eles mantêm uma relaçãode cordialidade, respeito e até amiza-de, embora exista, como em toda regra,exceção. O Sr. Zé Alberto, cantador deboi, conta como surgiu a disputa entreele e outro importante cantador:

- Concita Castro chamou eu e o outro pradisputar no rádio. (...) quando saiu de lá ‘Can-tador Mata Mosquito’ e ‘Papagaio Ensaiado’[títulos de toadas].- Ele cantou:- ‘Cantador mata mosquito eu vou te avisar/Pega o teu martelo lata velha vai furar/Cuidada nossa saúde para o dengue não atacar’.- É quase assim, tá vendo? Ele cantou pramim, porque eu trabalhava na SUCAM, hojeeu estou aposentado. Aí o pessoal dizendo:‘Zé Alberto não responde.’ Eu procurei apren-der a toada dele porque é assim que se respon-de, é sabendo a toada do outro pra não deixarfalha pro outro responder. Não é só chegar edizer: ‘Malena´ falou mal de mim e disse isso’.Eu vou sem saber e deixo brecha, ela vem e ó!.Aí, eu cantei:- ‘Papagaio ensaiado eu vou te dizer/Tu temque nascer de novo se tu quiser me vencer/Tume chamou de fura lata/Que mata mosquitoeu sou/Essa é minha profissão por isso eu douvalor/Quero saber qual é a tua cantor/queandas perambulando pela Ilha do Amor/Quan-do jabuti está trepado/Meu povo tenham cer-teza que alguém trepou/Assim acontece comaquele cantador/Quando sai dos seus limitesporque alguém ensinou/Tu falas que o Brasilinteiro te conhece/Mas a minha custa foi quetu criou cartaz/Será que tu também já te es-queceu/Que gravando as minha toadas/Foique tu apareceu ...’ (entrevista em 11/07/02).

A competição entre esses líderes étravada em torno do domínio do conhe-cimento, do saber conduzir o grupo,compor toadas, cantar e ter a melhor voz.Esses elementos são os que tanto lhesatribuem prestígio e poder, quando osque perpetuam a constante disputa en-tre os já legitimados por seu trabalho eos neófitos, aqueles que lutam exaspe-radamente em busca do reconhecimen-to social.

Assim, as toadas de pique tambémservem de estratégias para o cantadorque está iniciando carreira tornar-se maisconhecido, entrar no círculo dos chama-dos “gigantes” e ser merecedores de co-mentários, fofocas, intrigas, amores e de-samores, enfim, estar no centro das aten-ções. Em uma das suas toadas em repos-ta a provocações, o Sr. Mané Onça dei-xa claro esse processo de promoção:“Com o meu nome tu não vai te promo-ver/Bota reparo, vê o que tu vai fazer/Cuidado com a onça pra ela não te co-mer20”. Geralmente, os alvos das provo-cações são os cantadores que já possu-em destaque:

O Astronauta da Maioba não acertou me res-ponder/Ou foi o mestre dele que não deixouele fazer/Ele andou falando que só respondepara os cobras/Só que tu te enganou que gran-de aí é a Maioba21 (Ronaldinho, cantador deBoi).

A toada acima exemplifica de formacontundente como um cantador menosconhecido ou mesmo que ainda seja umneófito pode se promover buscando cri-ar uma disputa com outro que esteja emmaior evidência e que seja mais conhe-cido. Ronaldinho iniciou sua carreiramais recentemente que o cantador queestá sendo provocado, e escolheu comoseu maior rival o atual cantador do Boida Maioba, que tem um nome reconhe-cido e cujo grupo é considerado um dosmaiores e melhores da Ilha. Quando taisprovocações resultam em respostas porparte dos considerados “gigantes”, “co-bras”, o outro cantador/neófito sente-seenaltecido, pois “fulano respondeu mi-nha toada22”. O Sr. Zé Alberto, conta quequando iniciou sua carreira fez desafiopara todos os cantadores de nome daépoca:

12 Aproximadamente 15 anos o bloco carnavalesco “Os Tremendões” promove um encontro com os principais cantadores do sotaque da Ilha, conhecido como “Encontro dosGigantes”. Essa festa foi organizada para angariar fundos para a brincadeira carnavalesca e hoje passa a fazer parte do calendário das festas juninas. Geralmente aconteceno início do mês de São João. É um momento de confraternização, mas, sobretudo de mostrar o repertório novo (incluindo as toadas de piques) e de rever toadas antigasque ainda fazem grandes sucessos. Nesse dia, o local da festa recebe as torcidas dos bois que vão prestigiar seus cantadores.

13 Este artigo é fruto da minha dissertação de mestrado “O universo do boi da ilha: um olhar sobre o Bumba-meu-boi em São Luís do Maranhão”, defendida em 2003 noPrograma de Pós-graduação em Antropologia da UFPE.

14 Abmalena Santos Sanches é graduada em Ciências Sociais pela UFMA, mestre em Antropologia pela UFPE.15 Todos os grupos de Bumba-boi têm em destaque o seu cantador, independente de que sotaque seja, mas essa disputa e esses conflitos entre eles estão mais presentes

nos Bois de matraca.16 Sotaque é uma expressão comumente usada tanto pelos órgãos e intuições que trabalham com a cultura popular quanto pelos produtores do Bumba-meu-boi em São Luís.

Serve para designar o estilo de cada grupo. Em São Luís, convencionalmente, temos cinco sotaques que se diferenciam no ritmo, na dança, nas indumentárias, no auto,nos instrumentos, nos personagens etc.

17 De acordo com Regina Prado (1977), contrário caracteriza-se como uma expressão de violência numa relação de confronto e de rivalidade entre os Bumba-bois. Contrário,pode ser, então, um outro grupo de boi, um brincante de outro grupo ou mesmo um torcedor, ou seja, qualquer pessoa ou Bumba-boi diferente, que pertence ou seidentifica com um outro que não seja eu ou do meu grupo.

18 Sr. Calça Curta, miolo do Boi da Madre Deus, em entrevista (16/05/02).19 Hoje é discurso comum entre os cantadores e todos que estão envolvidos no universo do boi que esses conflitos já foram mais constantes e sérios, hoje estão mais

abrandados.20 Trecho da toada “Cuidado com a onça” CD - Bumba-meu-boi da Madre Deus 1997.21 Trecho da toada “Astronauta da Maioba” CD da Madre Deus de 2000.22 Sr. Zé Alberto em entrevista dia 11/07/02.

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Boletim 42 / dezembro 20081010

Cantei pra todo mundo na ilha que eu tinhavontade, porque eu tava seguro num boi gran-de, tanto eu como Dico23. Provocando todomundo (Sr. Zé Alberto em entrevista no dia11/07/02).

Em suma, as toadas movem os basti-dores dos grupos e geram expectativasnos torcedores, que ficam esperando oano todo para saber se um cantador quefoi provocado, satirizado, irá responderà altura as provocações. As rádios queproduzem programas dedicados ao uni-verso do Bumba-boi também contribu-em para que essa rivalidade se mante-nha. Estimulam as disputas, abrindo es-paço para que os cantadores mostremseu repertório, dando ênfase às ditas to-adas de pique. Assim, é freqüente - nosmercados antigos da cidade, como PraiaGrande, Mercado Central e a Feira doJoão Paulo - ouvir comentários sobre esseou aquele cantador, sobre sua perfor-mance, se as respostas dadas aos seuscontrários foram melhores ou não do queas provocações.

Farei uma demonstração de como sãocriadas as provocações e as respostas,mas antes preciso contextualizar. Umfato que exemplifica o referido proces-so de rivalidade e promoção pessoal en-volve João Chiador24, que foi cantadordo Boi da Maioba durante 30 anos. Saiudo grupo em 1993, ao que se sabe, pelas“fofocas” que envolveram o fato na épo-ca, sendo convidado a cantar no Boi deSão José de Ribamar. A diretoria dessegrupo lhe ofereceu melhores condiçõesde trabalho. Chagas, que era o segundocantador do Boi da Maioba, com a saí-da de Chiador assumiu a condição deprincipal cantador do grupo. Essa trocagerou muita polêmica e fofocas, sendoaté hoje assunto de provocações entre oscantadores e seus batalhões, e que oslevam a se digladiar em cantoria:

Construíram um asilo no Outeiro/Para reco-lher cantador indigente/Não fiquei contente,eu tive dó/Ao ver aqueles velhinhos, cantandonuma nota só/No passado tiveram uma trin-cheira/Agora estão no final de carreira/Rapa-ziada, vamos ajudar/Aqueles velhinhos do asilodo Ribamar (Chagas, cantador do Boi daMaioba, em 2000).Tu tens que pedir a Deus/Pra tu chegar a mi-nha idade e como eu cheguei: não vou proasilo/Tenho casas pra morar, não vivo preocu-pado com o aluguel pra pagar/Tenho pena de

ti cantador da barra pesada/Que tu vais en-contrar/eu digo isso com muita propriedade,deixa de vaidade porque eu já passei por lá/Digo mais uma vez/Não vou pro asilo/Porque Deus é o maior e eu não canto em umanota só/Eu sou como vinho São Braz/Quan-to mais velho melhor (João Chiador, cantadordo Boi de São José de Ribamar, em 2001).

A troca de cantadores sempre foi co-mum entre os grupos, mesmo em épo-cas passadas, e a década de noventa foimarcada pela intensificação desse fato.Grandes foram às surpresas, cantadoresque tinham fortes vínculos com deter-minados grupos romperam e foram paraoutros. Nessas ocasiões, ou os grupos con-trataram outro cantador ou promovemum dos seus à condição de primeiro. Hágrupos que possuem 2, 3 ou 4 cantado-res, sendo um deles o principal. As rela-ções que aí se estabelecem podem acar-retar desavenças, principalmente se hou-ver muita discrepância entre os privilé-gios concedidos a um em detrimento dosoutros. Geralmente, a condição de se-gundo ou terceiro cantador incomoda,pois o primeiro tem maiores regalias,como receber um cachê maior, gravarmais toadas, ser, em suma, responsávelpelo Boi e, portanto, ser aquele que devepassar na avenida do João Paulo com ogrupo, ser convidado a representar o Boinos meios de comunicação, além, é cla-ro, de cantar primeiro nas apresentaçõese realizar a morte do Boi.

O valor do cachê e melhores condi-ções de trabalho, bem como a vaidade,o desejo do reconhecimento público eas intrigas são os moveis que movimen-tam essas trocas, muitas vezes vistascomo uma traição do cantador ao gru-po. Tal idéia é alimentada pelo canta-dor que substitui o que saiu em suas to-adas. Nelas reforçam a traição e um su-posto sentimento de desprezo que o an-tigo amo teria demonstrado pelo grupoe que ele (o cantador atual, aquele quepassou a assumir o batalhão) é incapazde tal atitude: “Trair meu povo, morenabela, jamais/Porque foi ele, dona, queme deu cartaz25”. Diz-se que há temposatrás, os amos eram geralmente nasci-dos nas localidades dos grupos que re-presentavam, não recebiam cachês emuitos cantavam por devoção ou por pra-zer, só às vezes ganhavam um “agradi-

nho”. Hoje, predominam as relações con-tratuais e a profissionalização desses ar-tistas populares. Tanto os grupos quantoos cantadores passam a assumir umapostura mais empresarial

Ressalto que diferenças existem tan-to nas histórias de vida das pessoas quecriam os grupos, como nos grupos quepassam a ter suas próprias histórias. Nocenário atual das brincadeiras de Bum-ba-boi encontram-se tanto grupos quesurgiram através de promessas aos san-tos juninos, quanto àqueles feitos mera-mente para a diversão de uma comuni-dade ou mesmo como um negócio eco-nômico. Além dos que são chamados “al-ternativos”, esses últimos parecem maisaptos e dispostos a assumir uma posturaempresarial. O que não quer dizer queaqueles considerados “tradicionais”, quepossuem como princípio fundante a pro-messa, além de uma profunda ligaçãocom o local de origem da brincadeira,não estejam envolvidos por essa mesmalógica.

Os Bois alternativos e alguns do sota-que de orquestra costumam pagar cachêspara grande parte do corpo de baile26

diferenciando-se assim, dos Bois do so-taque da ilha ou de matraca que não pa-gam cachês a todos os brincantes. Salvoalguns como, o cantador, o Pai Francis-co e o miolo (às vezes).

Voltando aos “gigantes”, ter vaidadeé uma condição presente nos discursodesses artistas em defesa de si próprio:“Sem modéstia, eu sei que sou um de-les, qualquer pesquisa que fizer no Ma-ranhão, não fico no rabo da fila. Porqueos outros dizem que tem 4 cantadoresna Ilha, são chamados de medalhões27”.Ser “o melhor”, estar entre “os melho-res”, leva esses homens a vivenciar umprocesso de auto-afirmação constante.Almejam o reconhecimento público emidiático pelo seu talento, carisma, li-derança, dedicação ao grupo que estãorepresentando, bem como depreciandoos seus contrários.

Muitos acreditam que cantar Bum-ba-boi é um dom e encaram isso comomissão, um dever para com o santo. Emsuas toadas, falam de sua devoção, agra-decem e reforçam os laços de compro-misso com sagrado, acreditam que a pro-

CONTINUAÇÃO

23 Sr. Dico é cantador de Boi, na época da minha pesquisa pertencia ao grupo do Sítio do Apicum.24 Sobre a trajetória de cantoria de João Chiador ver: REIS (2002).25 Trecho de uma toada de Chagas (2001), cantador do Boi da Maioba que substituiu João Chiador.26 Categoria usada por alguns membros desses próprios grupos.27 Sr. Zé Alberto, cantador de boi, em 11/07/02.

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11Boletim 42 / dezembro 2008 11

teção virá como retribuição. Nessa rela-ção entre homens e deuses, é impossívelnão pensar no “Ensaio sobre a Dádiva”de Marcel Mauss (1974), para quem ofato de presentear estabelece entre oshomens, entre os homens e os deuses aobrigação de trocas simbólicas atravésdas dádivas ofertadas, recebidas e retri-buídas. Como se pode perceber nos frag-mentos das toadas abaixo transcritas:

(...) Palmeira linda, vento norte ama você/SãoJoão meu santo forte me ajuda a guarnecê(Toada de Humberto, cantador do Boi de Ma-racanã, em 1999). (...) quem é bom já nasce feito/E eu nasci pracantar Boi pra São João (Toada de Zé Alberto,cantador do Boi da Madre Deus, em 1999).

Na competição, vale usar também aprática de feitiço, ou melhor, se prote-ger dele. Dizem que o feitiço é umaconstante no mundo do Bumba-boi egeralmente é feito para atingir a voz docantador, impossibilitando-o de cantarou prejudicando sua apresentação. Apresença do feitiço no Bumba-meu-boi,de acordo com Regina Prado (1977,p.110-111), pode-se caracterizar tambémcomo uma expressão da violência, sen-do que velada, menos aberta, e envoltapor mistérios e segredos. A autora fazreferência à figura do “pajé”28 presentena cultura (Baixada Ocidental Mara-nhense) estudada por ela. Este, segun-do a autora, reúne em si o poder de con-trolar certas doenças ou males, mas nun-ca se apresenta como o produtor do“mal”, aquele que coloca do “mal”. Nocaso aqui estudado, também os brincan-tes, e em especial os cantadores, não seassumem como mandantes dessas práti-cas, apenas como vítimas e por isso es-tão sempre se protegendo contra umapossível investida de um contrário29. Sãomuito precavidos contra possíveis feiti-ços e tomam algumas precauções: nãobebem no copo de todo mundo, tomambanho de ervas de cheiro, não entregamo seu maracá (símbolo de poder do can-

tador30) para qualquer pessoa, além derezarem, pedirem proteção ou “fechar ocorpo” antes de sair de casa.

Para preservar e apurar a voz duran-te a temporada junina bebem líquidosem temperatura ambiente, levam sem-pre uma sacola que fica ao encargo daesposa ou da companheira ou de umapessoa de confiança31, onde guardam al-guns preparados, como: mel com limão,cachaça com pimenta do reino ou comcasca de laranja, mel com conhaque,leite morno, romã, cravinho, alho, “fu-são” de ervas, chás e outros.

No depoimento abaixo, o Sr. Zé Al-berto descreve o seu envolvimento e ode outros cantadores com práticas reli-giosas peculiares às religiões afro-mara-nhenses (outra dimensão da religiosida-de presente no Bumba-boi, além do ca-tolicismo popular). No entanto, não re-vela seus segredos, pois se tem comoperigosa a revelação dos meios utiliza-dos em prol de um bom desempenho na“missão” de cantar Bumba-boi. Acredi-ta que a quebra do segredo pode acarre-tar sérios prejuízos pessoais ou mesmopara o grupo.

- Faço todo dia, procuro levar as coisas certas,aí é que às vezes as pessoas não aceitam. Di-zem: ‘Aqui não tinha isso’. Eu digo: Não ti-nha, mas comigo tem! Acender vela no pé domourão, botar sal no buraco onde vai botar omourão, tá vendo? Eles perguntam: ‘Tu é cu-rador?’ Eu digo: Não sou 100%, mas 50% eusou. Tenho as minhas obrigações. Tá vendo?Secretas.- Por que?- Não, é secreta e o bom cantador que se prezetem isso. Porque as feras desse mundo nósestamos olhando, mas as feras do fundo32 nãose tá olhando. Eu não saio da minha casa parapegar o maracá do meu Bumba-boi aberto,com o corpo aberto, eu não levo nenhumafaca, mas minha defesa interna. Eu já saiodaqui de casa preparado, tá vendo? E não sousó, eu que faço isso (Sr. Zé Alberto, em 11/07/02).

Os segredos presentes nesse universopodem ser compreendidos a partir dopensamento de Balandier, que ao anali-

sar a dinamicidade das sociedades ditastradicionais, percebe que aos que pos-suem o domínio dos segredos é garanti-do um poder, pois são considerados “de-tentores dos bens mais valiosos; deten-tores dos signos e dos símbolos sociaismais valorizados”, dos saberes, do conhe-cimento, do motivo da criação e do modode organização dos grupos; ficam sen-do, portanto, os guardiões do que per-manece sob as rédeas dessa tradição. Tra-dição essa que rompe fronteiras no tem-po e esgarça os limites para aquisiçãode elementos que permitam sua conti-nuidade e manutenção (BALANDIER,1997).

Há quem diga, também, que para serum bom amo de Boi “tem que ir à casade curador, pra cantar. Não tem esse,eles que não digam pra mim não, quetodos eles vão. Todos eles têm professo-res33. Se não tiver o professor, eles nãocantam34”. Assim, a prática religiosa nabrincadeira não se restringe à devoçãoaos santos católicos São João, São Pe-dro e São Marçal, como a maioria dabibliografia sobre o Bumba-boi retrata.É incluído também toda a encantariamaranhense ou o povo do fundo. Dizemassim que cada cantador possui seu“povo”, ou seja, seu guia35 espiritual queo ilumina e o ensina a criar suas belastoadas.

Portanto, os cantadores são alvos cons-tantes, entre si, de acusações envolven-do essa relação com terreiros de mina36

e/ou com alguma entidade espiritual,pois se atribuem ao poder dos guias, asabedoria e a poesia do cantador. Osguias seriam os responsáveis pela inspi-ração e o sucesso desses artistas. Algunsse defendem dessa aproximação com asentidades, outros confirmam esta rela-ção, mas o fato é que ainda é vista comum certo preconceito a ligação com asreligiões afro-maranhenses.

- Tem alguma coisa que os canta-dores fazem para se proteger?

CONTINUAÇÃO

28 Pajé é a designação dada a pessoa que tem como atribuição tratar doenças, perturbações, maus estares, feitiço e etc. O mesmo que xamã, curador. Segundo a crença,os pajés têm trânsito livre com os espíritos, com os encantados, com seres sobrenaturais. Eles podem tanto tirar o feitiço, curar a doença, como provocá-la. No interiordo Maranhão, principalmente na Baixada Ocidental, são muito numerosos e bastante procurados pela população, principalmente rural.

29 Um fato curioso: no ano de 2000, quando fui assistir ao batizado do Boi da Madre Deus, mostrei para um dos cantadores do grupo uma foto onde estava ele e outros doiscantadores. Disse então que tiraria outras três cópias para entregar uma para cada um deles. Ele me disse: “não faz isso, dê só pra mim porque as mulheres desses carasfazem feitiços, são tudo feiticeiras”. Eu guardei a foto, não a entreguei a nenhum deles e não falei mais no assunto.

30 O maracá do cantador pode ser visto como um símbolo do seu poder, pois é com esse instrumento que o amo guia o seu grupo durante as apresentações. A marcaçãorítmica é determinada pela forma como é manuseado o maracá.

31 No trabalho de campo, no ano de 2002, segurei por vezes a sacola do cantador da Madre Deus, Mané Onça, o que me deixou lisonjeada, na medida em que tal gesto disse-me que sou uma pessoa de sua confiança. Isso aconteceu porque sua esposa estava impossibilitada de acompanhar o grupo no período junino, pois estava muito doente.

32 Chama-se Povo do Fundo de forma geral a encantaria maranhense, o panteão de encantados, se for comparado com linha Astral (espíritos de mortos), são os encantadosque vem no ritual de cura e da linha da água doce. Para maiores informações sobre a encantaria maranhense ver: FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma. São Luís:SIOGE, 1993.

33 Professor aqui é uma alusão ao encantado que acompanha, ensina e ajuda o cantador no seu oficio.34 Depoimento de Dona Josefa, mãe-de-santo que acompanhou o Boi da Madre Deus no ano de 2001/2002.35 Guia: nome dado as principais entidades espirituais de um filho-de-santo no tambor de mina e na umbanda. Nome dado também aos cordões usados pelos adeptos

dessas religiões caracterizados pela cor que simboliza as entidades das quais são filhos.36 O Tambor de Mina é a religião afro-brasileira predominante no Maranhão. Para melhores informações ver: Ferretti S. (1995) e Ferretti M. (1993).

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Boletim 42 / dezembro 20081212

- Há... Tem! Cada cantador tem o seu guia,sabe? Tem aquelas pessoas que a gente confiaalém de Deus, né? Que Deus é o nosso PaiEterno, a gente tem confiança nele dia e noi-te, mas na terra existe de tudo, então a pessoatem que se proteger daquilo que tem na terra.- E vocês fazem o quê para se proteger?- No meu caso, eu me protejo. Eu tenho osmeus banhos, eu tenho aquela pessoa que euvou lá conversar, e que vai dizer: ‘você temque clarear sua mente pra isso,... Olha, issonão é legal pra você como cantador, você nãopode tá dando seu maracá pra todo mundo,você não pode beber bebida de qualquer pes-soa’. Tem aquelas precauções.- E o feitiço?- É, dizem que é o feitiço, que eu acho que ofeitiço deve existir.- E os guias?- É, os guias, a gente deixa os guias.- Você não pode me dizer?- Não, não pode porque isso é um segredo dagente. É coisas que a gente tem assim. “Des-culpa, eu não poder falar” (Sr. Miguelzinho,cantador de boi em 10/06/02).

Percebe-se, então, que o feitiço, arelação com terreiros de mina e umban-da e com entidades espirituais, assimcomo a religião católica e em especial adevoção a São João, são partes inerenteà visão de mundo das pessoas que vivemo Bumba-boi.

Sendo o Bumba-meu-boi cantado, orepertório musical e poético desses artis-tas não se resume às toadas de pique. Eles,todos os anos, são estimulados e obriga-dos a produzir um repertório novo de to-adas. A obrigação, como se viu, passapela devoção aos santos e aos guias espi-rituais, assim como pela própria dinâmi-ca da brincadeira, pois possuir um reper-tório novo é uma questão de prestígiopara os artistas, já que cada ano “há umboi novo”. Porém, no atual contexto o pres-tígio e a obrigação aliam-se à indústriafonográfica, à comercialização e a divul-gação dos grupos, pois os que mais se des-tacam, os que possuem mais prestígiosjunto aos poderes públicos e possuemmais condições financeiras gravam anu-almente um CD, que é rodado nas emis-soras de rádio, nos arraiais, e vendido naslojas do ramo, em lojas de artigos típicos,ou de artesanato da cidade, tornando asnovas toadas de certa forma conhecidapara o público interessado. Geralmente,a ordem de distribuição das toadas noCD obedece à seqüência37 determinadapelo auto do Bumba-meu-boi: guarnecer

CONTINUAÇÃO

(toada para reunir os brincantes), o lá vai(toada que indica onde o boi vai dançar),a chegada (avisando ao dono que o boichegou para brincar), o urro do boi (falada recuperação ou ressurreição do novi-lho), a despedida (última toada da apre-sentação, promessa de que o boi voltaraali para a alegria do público).

Ressalto que dentro dessa seqüênciaestão ainda as toadas de pique e as toadasde cordão. Estas últimas significam can-tigas com temas variados, geralmente sãocantadas antes do urro do boi; relatamfatos históricos, acontecimentos que fo-ram notícias durante o ano; homenagei-am a natureza, os santos, os encantados,a cidade de São Luís, o bairro, os políti-cos; falam de amores e outros temas.

Dessa forma, o Bumba-boi, para al-guns estudiosos como Viera Filho, pos-sui um alto poder de comunicação, sejaatravés do auto ou das toadas, que po-dem ser consideradas como um veículode informação ou uma revista anual, poissintetizam na letra fatos que acontece-ram e são lembrados, informando assimàs pessoas que acompanham o Bumba-boi. Para o citado autor:

O Bumba-meu-boi é sem dúvida um dos fol-guedos populares mais característicos do Ma-ranhão, com um elevado poder expressivo decomunicação. Auto dramatizado, com umaconstante temática conhecida, mas que se enri-quece cada ano de novos elementos, o Bumba-meu-boi tem um elevado poder de comunica-ção porque funciona, no plano sócio-psicológi-co, como uma espécie de revista do ano. Astoadas celebram acontecimentos verificados noano, marcando fatos e pessoas, numa identifi-cação comum de anseios, num nivelamentosocial (VIEIRA FILHO, 1977, p.09).

Essa seqüência também marca a tra-jetória das apresentações dos grupos pelosarraiais e pode ser entendida como umanova maneira de retratar o auto, já quehoje, em São Luís, os grupos, durante omês de junho, cumprem uma agenda de5 a 8 apresentações por noite, cada umacom aproximadamente uma hora ou 40 a45 minutos de duração. Como o auto, paraser realizado, precisa de 3 a 4 horas, a ques-tão das muitas apresentações inviabiliza,assim, a sua apresentação nos arraiais dacidade, como muito bem evidencia a falado Sr. Calça Curta: “Quer dizer que hojenão se vê mais isso, porque a brincadeirahoje é comercializada. Então, hoje, nãotem tempo pra isso. Por que se for fazer

37 Existe outra classificação para essa seqüência de toadas, ou seja, louvação, líricas, piques (repiques) e despedida. Sendo que a usada no texto é mais conhecida no meiodos boieiros (Vieira Filho apud Marques, 1999, p.69).

38 Sr. Calça Curta, miolo do Boi da Madre Deus em 14/07/96.39 Boneca de 2 a 3 metros presente em alguns grupos do sotaque da Ilha ou de Matraca. Sua função no auto é assustar Pai Francisco.

esse trabalho, você passa uma noite, e aívocê já viu. Aí não tem condição! A brin-cadeira até dá prejuízo com isso”38.

Desde a década de 80 do século XX,o auto do Bumba-boi foi deixando deser encenado nos arraiais da cidade deSão Luís. A aceleração do tempo, junta-mente com a indústria fonográfica, oaumento da comercialização, o turismoe a visibilidade midiática são elementosque contribuem para a ocorrência dealterações na dinâmica da brincadeira.Assim, é possível perceber que os pró-prios brincantes admitem criar estraté-gias para conviver com os “ditames” davida moderna e dar continuidade à brin-cadeira. Precisam adaptar-se. Nessa con-vivência estabelecem uma relação deinclusão, permanência, exclusão e retor-no de elementos, como por exemplo, apermanência, a retirada e o retorno dealguns personagens do auto, como Cai-pora39 e Catirina, a manutenção da se-qüência de toadas, a permanência damesma na ordem das toadas gravadas noCD, a gravação do auto por alguns gru-pos nos seus CDs, a permanência de ri-tuais como batismo e morte, a presençada religiosidade em suas várias concep-ções, a ausência do auto, entre outras,embora sempre ressemantizadas.

BIBLIOGRAFIA

BALANDIER, George. Segunda Parte – Amodernidade e suas Facetas e O imagináriona Modernidade. In.: O contorno: poder emodernidade – Cap. V e VI. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1997.FERRETTI, Mundicarmo. Desceu naGuma. 1º ed. São Luís: SIOGE, 1993.FERRETTI, Sérgio. Repensando o Sincretis-mo: estudo sobre a Casa das Minas. São Pau-lo: Editora da Universidade de São Paulo;São Luís: FAPEMA, 1995.MARQUES, Francisca Ester de Sá. Mídia eexperiência estética na cultura popular: o casodo Bumba-meu-boi. São Luís: Imprensa Uni-versitária, 1999.MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia.São Paulo, EPU, 1974.PRADO, Regina de Paula Santos. Todo anotem: as festas na estrutura social campone-sa. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1977.(mimeo). Dissertação de Mestrado.REIS, José Ribamar Sousa dos. João Chia-dor, 50 anos de glória: meio século de canto-ria. São Luís, 2002.VIEIRA FILHO, Domingos. Folclore brasilei-ro; Maranhão. Rio de Janeiro: Funarte, Cam-panha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1977.

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13Boletim 42 / dezembro 2008 13

Conforme o prometido no Boletim nº 27, e embora com muitoatraso (Antes tarde do que nunca, diz o ditado) estamos oferecendoaos leitores a continuação de nossas Reminiscências, agora com a

RUA DA PAZ

Sigamos este nosso roteiro, agora no sentido do Campo d´Ourique para o largo do

Carmo. Comecemos a Rua da Paz pela PraçaGomes de Castro, onde outrora existiu o “Colé-gio Rosa Castro”, da provecta educadora que lhedeu o nome, a vida inteira devotada à Educação,(atualmente ocupado pelo SESC) e a casa deErnani Maia Pereira, sócio de Francisco Aguiar& Cia. e casado com uma das filhas do ChicoAguiar. Era uma bela casa com terraço lateral eum grande jardim bem tratado e florido, ondeconstruíram o edifício do Banco do Brasil, aliás,mal situado, sem área de estacionamento, o quevem agravar o problema do trânsito no local.

Muito embora tenha entrada pela Rua doPasseio (Rodrigues Fernandes), vale a pena men-cionar o enorme palacete de esquina, de Manu-el Vaz Sardinha (Maneco), que tem escadariasenhorial, residência do filho, o advogado Dr.Marcelo Sardinha. Sabe-se lá por quê o rapazentrou em decadência, tomado por forte psicosede pobreza, tornou-se canhenga e, distante daesposa e dos filhos (que não mais suportaram oregime de fome) vivia sozinho no imenso casa-rão, mal vestido, magro e acabado. Correm pelacidade várias estórias a respeito dele. Dizem quemandava os filhos colher os frutos de um grandesapotizeiro que tem no quintal, mas dava umapito a cada um, com a obrigação de apitarempermanentemente para assegurar-se de que nãocomiam as frutas. Fala-se que sua sovinice che-ga ao ponto de, sofrendo uma dor de cabeça,tomar o comprimido de analgésico amarrado auma linha; produzido o efeito, que acontece emdois minutos, puxa fora o remédio e guarda-o,prevenido, para o próximo achaque!

Do outro lado da rua, agora propriamenteno começo da Rua da Paz, ficava a moradia doSr. Humberto Jansen, proprietário da tradicio-nal “Livraria Universal”, de Ramos d´Almeida& Cia., defronte da igreja do Carmo, onde seencontravam dos clássicos até os mais moder-nos escritores de então. Mais adiante morava oSr. Inácio Godinho, exatamente onde, antes deinstalara, provisoriamente, o Palácio do Gover-no, ao tempo do famigerado Paulo Martins deSouza Ramos.

A propósito: estando meu tio Nava preso,por sórdida vingança do potentado, d. MarocaMeireles (mãe do historiador Mário M. Meire-les, prima do governador, e aparentada e amigado ofendido) foi àquela casa protestar contra aarbitrariedade. Identificando-se, fez-se anunci-ar pelo Ajudante de Ordens, que lhe trouxe aresposta: Sua Excelência não podia recebê-la.D. Maroca insistiu, pedindo ao auxiliar quedeclinasse à prepotente autoridade sua condi-ção de parenta. Inutilmente. Desculpasse, masera-lhe impossível a entrevista. D. Maroca, quetinha o gênio esquentado, e já chegara possuí-da da santa indignação da injustiça, não tevedúvidas: “- Diga ao Paulo que sua prima, Maria

REMINISCÊNCIASMartins Meireles, mandou dizer que ele vá àmerda!” E ante a indecisão do oficial, confir-mou: “ - Diga-lhe assim mesmo, como lhe estoudizendo: - Que ele vá à merda! Com estas mes-mas palavras!” E desceu as escadas.

A seguir, era o solar dos Perdigão, do velhoprofessor Domingos de Castro Perdigão e seusilustres filhos José Maria (que foi Cônsul do Bra-sil) e Fernando Eugênio, lente da Faculdade deDireito do Maranhão, fundada por seu pai. Namorada-inteira da esquina residia Nhô Macha-do; tinha uma filha bonita chamada Denise, queatraía muitos olhares, inclusive os nossos. De-fronte, a casa da família Moreira, de Seu Antô-nio “Buraco”, gente rica da firma Moreira & So-brinho. Um dos consortes das Moreira tinha, nãosei porquê, o apelido de “Pierrô Apaixonado”;era um homem baixo e gordo, sempre de roupaescura, a figura que imagino para o Hercule Poi-rot, de Agatha Christie. Chegava-se então, dooutro lado, ao prédio do “Instituto Cerveira”, diri-gido pelas eméritas educadoras Zoé e Raimun-da (Nhá Dica) Cerveira e que tinha como vice-diretora Nadir Moraes, filha do provecto mestredo Liceu, Nascimento Moraes. Colégio misto,fazia, no entanto, a separação dos sexos na salade aula: meninos de um lado, meninas do outro,porque, dizia Nhá Dica: “- Gasolina não podeficar perto do fogo!” Era uma morada-inteira ver-de, de janelas altas, de grades de ferro, e umpátio interno onde havia uma parreira de uvasverdes, responsáveis por muitos castigos, de carapara a parede. O Instituto Cerveira esteve, ante-riormente, no sobrado da mesma rua, na esqui-na do Beco dos Craveiros (Aluísio Azevedo) e láfoi que nos preparamos para o exame de admis-são ao Liceu, que, mutatis mutandis, era compa-rável ao atual vestibular. Um dia, comi todos osguajurus de uma colega e por isso fiquei até tar-de a escrever 100 vezes a frase: Não posso apro-priar-me do alheio sem o consentimento do dono.

Apegado ao Nhô Machado, era a residên-cia do Sr. Antônio Cruz, sócio-chefe da firma A.Cruz & Filhos, na Rua da Estrela. Um dessesfilhos foi aluno da Escola Militar e quando vi-nha de férias, bonitão, de farda espetaculosa,roubava a atenção das meninas, o que nos dei-xava a nós, pobres paisanos, cheios de inveja eraiva. Outro, o Antônio, seguiu com as irmãs ospassos do pai e manteve, por muito tempo, ocomércio herdado. Na esquina, morava JoãoVictor Ribeiro, pai do célebre “Piqui”, o “PauloRamos” do discurso de Carnaval, referido emoutra passagem destes relatos.

Do outro lado, o direito de quem nos acompa-nha, havia a belíssima residência do Dr. José Murta,que, em menino, aprendi a admirar e respeitarcomo um médico de muita competência e carida-de. Possuía um automóvel (dos pouquíssimos exis-tentes naquela época) um carro feio e esquisito,preto, com a altura desproporcional à largura, oque nos dava a impressão de que, a qualquermomento, tombaria, balançando-se perigosamen-te sobre as rodas estreitas, nas pedras irregularesdo calçamento. Depois, nesse magnífico prédiode dois andares (com entrada por um belo jardime quiosque alto, na esquina da Rua de Santa Rita)moraram sucessivamente Arnaldo Messeder (fun-cionário do B.B. e genro do Dr. Murta) e Jaime

Couto de Souza, conhecido como “Jaime Cu Sua-do”. Agora abriga o Unibanco.

Junto, morou, em companhia do irmão,Maria Santos, que se tornaria, sem querer, res-ponsável pela rebeldia do poeta Bandeira Tri-buzi, o qual deixou o hábito franciscano e comela casou-se, incorrendo na ira do poderoso co-merciante comendador Joaquim Pinheiro Go-mes. Ademais, era ela uma pobretona órfã, oque irritava ainda mais os melindres do pai doex-frade. No sobradinho próximo, o professorJerônimo de Viveiros aí esteve por muito tem-po; depois, o Sr. José Câmara, da firma CunhaSantos & Cia., nessa casa sucedido pelo Dr.Pádua Resende, casado com D. Celeste, damada alta sociedade e fabricante dos mais finosfios-de-ovos (capela) já feitos no Maranhão.

(Sempre intrigou-nos este nome – capela –usado, unicamente no Maranhão, para desig-nar fio-de-ovos. Segundo minhas pesquisas ededuções, parece-me que tal denominação de-riva de capillus, cabelo em latim, sendo o sufixoela um diminutivo, dando em conseqüênciacabelinho, haja vista o aspecto do doce, poisnão há como associar a guloseima a uma capelaou igreja! Se estamos errado que nos corrijam oslingüistas e dêem explicação melhor.)

Em frente, moraram os pais do meu amigoDr. Haroldo Silva Souza, Manoel Moreira deSouza Filho e D. Ana Rosa e, junto, meus ami-gos D. Maria José e José Carlos Franco de Sá,meu colega de Banco, e outro José Carlos, sobri-nho dele, oficial do Exército. Na meia moradaseguinte, d. Sinhazinha Carvalho ensinava pia-no e foi responsável por boa parte do bom gostomusical então reinante na sociedade... quandonão havia “Mamonas” e “Tiriricas”...

Fechando o quarteirão fronteiro, na esquinada Rua da Mangueira, o palacete de MarcelinoGomes de Almeida, um dos sócios da EmpresaFluvial Maranhense. Seu filho (Flávio?) tambémcompunha a turma dos cadetes que nos causa-vam preocupação. Ao lado, era a igreja protes-tante “Ebenézer”, dos Pereira (Zeca Pereira e fi-lhos) moradores na Rua do Sol, de quem falare-mos a seu tempo. E entestando-a, a casa de meutio José Nava Rodrigues, de muito caras recorda-ções. Junto, a residência dos Vilarinhos (Vilari-nhos? Vilarinhos? Ah! Carlos, a idade!...) ondemeu primo José Parga passou um vexame: Numafesta de aniversário lá estava ele quando lhe ser-viram um mísero “não-me-toques”, docinho mui-to comum em São Luís. Passado algum tempo, adona da casa perguntou-lhe: “- Já foi servido, seuParga?” E ele, que havia comido apenasaquela rosquinha minúscula, respondeu: “ -Não, senhora.” No mesmo instante pulou detrásdo piano um rapaz meio abilolado, pertencenteà família, que o contestou, incisivo: “ - Comeu,sim! Comeu! Comeu! Quer dizer que “não-me-toques” não é doce?”

A propósito de idade, dizem que o primeirosinal de velhice é o esquecimento que nos as-salta: primeiro esquece-se o nome das pessoas;depois, o das cousas; mais tarde, de fechar abraguilha; finalmente, de abri-la e aí... a gentese mija todo...

Aqui chegamos à casa de Glafira Castro...(Atenção: bater três vezes na madeira, pois ela

Carlos Lima 40

40 Historiador; Folclorista; Membro da Academia Maranhense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e da Comissão Maranhense de Folclore.

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era tida como “pesada”, de má sorte.) Tambémprofessora de piano e de artes. Pois bem, de-fronte dela... um outro azarento: Thomas Mo-ses, um americano magro e cego de um olho.

Então continuemos, agora que não corre-mos mais perigo: “Similia similibus curantur”,já dizia Hahnemann, o criador da Homeopatia.O semelhante cura o semelhante, ou seja, umazarento anula outro azarento.

Ao lado, numa casa assobradada, de jane-las altas, os Pinheiro Gomes, família do Tribuzi,o grande poeta que revelou Fernando Pessoaao Maranhão. Muito religioso, carola mesmo, opai Joaquim destinou o filho ao convento, como que, decerto, tratava de garantir seu própriopassaporte para a bem-aventurança. (Se é maisfácil um camelo passar pelo furo de uma agulhado que o rico entrar no céu...) Acontece que orapaz não tinha vocação, rompeu com a vidamonástica, deixou a batina, casou-se e acaboucomunista, o que lhe valeu até uma prisão. Foium escândalo a desobediência; nunca aceitou-a o pai, que chegou a deserdá-lo. Ganhou oMaranhão um técnico excepcional, integranteda equipe de moços que, com Sarney governa-dor, mudou a mentalidade retrógrada do Mara-nhão, e a cidade, seu cantor, autor da “Louva-ção a São Luís”, transformada em Hino da Ci-dade. Outro poeta, Travassos Furtado, tambémmorou na Rua da paz, defronte do Tribuzi, nobangalô de esquina com o Beco dos Craveiros.

Atravessando a rua, chega-se à casa do Sr.Alberto Tavares da Silva (pai do general Anacle-to, herói da FEB) e de sua sobrinha Constância,nossa professora na Escola Modelo. Lembro-medela cantando, com bela voz, a canção de Gon-çalves Dias: “Tão longe, de mim distante, aondeirá, aonde irá teu pensamento...” A seguir, vinham,já em outra época, o desembargador Tácito daSilveira Caldas, d. Maria Luísa Lago (Quantassaudades de tão agradável vizinhança!) com osfilhos Eduardo, Lenita, José, Benedito... e entãochegava-se à uma das minhas casas, no. 428,alugada a D. Albertina Marques e onde vivemosdias muito felizes, em companhia de papai emamãe. Tínhamos três filhos - Netinho, Álvaro eDanúzio. Zelinda fantasiava-os pelo Carnaval.Temos retratos dessa época: Netinho, de “Gatode Botas”, Alvinho, de “Mágico” e Danúzio, comoum arrogante “coq chanteclair”. Bem junto denós morava uma viúva, cujo nome não me ocor-re, que tinha um filho único, inteligência brilhan-te, um gênio - dizia-se - que de tanto estudarMedicina enlouqueceu, coitado!

Logo a seguir, a residência do Dr. Josias Cu-nha, cirurgião-dentista de fama, com consultóriono Largo do Carmo, em cima da “Casa Dias”.Adiante, depois da Rua das Flores (Pereira Rego),morava o Sr. Manoel João de Moraes Rego e,depois, o velho Ferreira, pai de Arnaldo e Alber-to Ferreira e na portinha-e-janela apegado, a fa-mosíssima doceira dona Rola Rego, noiva eter-na. Quando a conhecemos já era idosa e lembroperfeitamente do noivo, moreno, forte, com a ca-beça completamente branca. Falava-se que eramnoivos há vinte anos. Será que se casaram nocéu? Porque o sujeito era duro na queda... e,ranzinza, talvez pensasse: “ - Nem morto!”

Logo após, vinham os Borges - Antônio Bor-ges, família enorme, tão grande que o pai tevede numerar os filhos: José primeiro, José segun-

do, José terceiro e assim por diante. Ao ladoresidia Dr. Genésio Euvaldo de Moraes Rego,médico e chefe político, também de numerosaprole... Havia pouca diversão em São Luís, acidade cedo da noite fechava-se sobre si mes-ma, às dez horas as ruas eram desertas... Apopulação crescia...

Aí era o Largo de São João, o largo mais estrei-to que já existiu: poucos metros quadrados ten-do por limites a igreja que lhe deu nome (onde foisepultado Joaquim Silvério dos Reis, o traidor daInconfidência Mineira. Há muito tempo quegente ordinária vem dar com os costados nestaterra!) a casa de Dr. Genésio, a Escola Modelo(depois Faculdade de Farmácia e Odontologia),a delegacia de polícia, onde esteve preso meutio, hoje pertencente e incorporada ao patrimô-nio da Maçonaria. No solar dos Rego (Que ultra-je!) agora funciona um Bingo! e transposta a ruade São João (Treze de Maio) na casa de esquina,de azulejos portugueses, moravam os Martins -Armando (Ver “Vida profissional”, nestas Memó-rias) e Carmem, com os filhos Maria José, Dani-lo, Armando, Lauro, Murilo e Carlos César. D.Carmem Berredo era renomada educadora e “Su-perintendente do Ensino Primário”, como elaprópria costumava apresentar-se, pronunciandoo título com ênfase especial e atropeladamente,num só fôlego. Demoliram o belo casarão paraem seu lugar erguerem um prédio comum, demau gosto, para abrigar um supermercado. E umcronista basbaque escreveu, no dia da inaugura-ção, que a arquitetura da cidade havia sido enri-quecida com aquela droga!

Junto da Escola Modelo morou o Sr. FelipeCamarão, funcionário da Casa Bancária Fran-cisco Aguiar e pai de Vanda, uma das nossaspreferidas namoradas, uma morena alta, ma-gra, bonita. (Sempre tivemos bom gosto, não sepode negar). Logo depois, residia a professoraMary Santos e seus dois irmãos advogado: Má-rio e José. Do outro lado da rua, nada nos cha-ma pela memória. Mas, no quarteirão seguinteestão, uma em frente da outra, a farmácia emoradia de nosso tio Antoninho Figueiredo (dequem falamos em outra ocasião) e a casa dafamília Araújo/Machado, do Sr. Amadeu Araú-jo e do cunhado Luís Machado, o Machadão,alto funcionário da Booth Line e nosso compa-nheiro no “Bloco do Zezinho”. O bloco era for-mado por uma meia dúzia de casais, sob a esfu-ziante liderança de Cristina Machado e JudithSantos, e compunha-se, ainda de Leôncio Ma-chado, Glacymar e Célia Marques, José Gui-marães dos Santos, Carlos e Zelinda Lima, Hei-tor e Amélia Costa, Lisle Novais, Sr. Diderot(Diretor os Correios), Ascânio Oliveira e maisum ou dois elementos ocasionais. Todos masca-rados, com exceção do Machadão e do Zezi-nho, que desse modo identificavam os demais.Por sinal que tanto o Machadão como o Zezi-nho eram as criaturas mais desanimadas, os fo-liões mais tristes que já conhecemos. Aquelelimitava-se, nos “assaltos” que promovíamos, abebericar, pachorrentamente, seu uísque; estenem isto; simplesmente andava atrás do blo-co... No tempo em que a cidade era civilizada,em que as pessoas tinham educação, eram fre-qüentes os assaltos às casas de família, aondese ia para uma diversão sadia e respeitosa epara assaltar a mesa e a adega do visitado.

Numa casa de janelas altas, pertencente aMartins & Irmão, junto à do Machadão, passa-mos uma semana de Carnaval, de mala e cuia,convidados da família dos Vasconcelos. A vidaera assim: tranqüila, e mudava-se de casa poruma semana para ficar no foco da folia, nasruas por onde passava o “corso”. (Mais adianterevelaremos o que era o “corso”.) O sobrado aolado era residência de Seu Zezinho Carne Seca,comandante de navio e pai de Levi (do Bancodo Brasil) e Luís Santos, do Banco do Estado doMaranhão. Na esquina, morava o Sr. MoisésTajra, o árabe dono dos cinemas, casado comD. Carmelita Belo, afamada modista - pais deMaria de Lourdes e José Bernardo, figuras derelevo na sociedade. O casamento de Lourdescom Gerd Pflueger abalou São Luís, com gentetrepada nos bancos da Sé Catedral, obrigandoo padre a ameaçar suspender a cerimônia e eva-cuar a igreja. No lado oposto, era a família Al-meida e Silva, cujo filho mais ilustre é o desem-bargador José Antônio, o “Anjinho” dos temposdo Colégio de São Luís. Havia ainda por aí osobrado do Dr. Filogônio Lisboa, médico, fun-dador do “Instituto Oswaldo Cruz” na Rua For-mosa (Afonso Pena), o primeiro laboratório deanálises clínicas de São Luís! Ali conhecemosFlory Gama, sobrinho do doutor, e que já serevelava o genial fantástico escultor, muitas ve-zes premiado no Brasil e no estrangeiro, autorda obra prima “Aprés midi dun faune”, que estána Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Apegado, o sobrado da Emília Veras, que,em uma tarde de 1900, recebeu o menino Hum-berto de Campos. A Emília que ele imortalizounas “Memórias”, amante de José Dias de Matos,o português proprietário da “Casa Trasmontana”,que ficava no térreo, e onde o caixeiro Humbertoviu chegar o século XX, dando balanço nos “se-cos e molhados” da mercearia da Rua da Paz.

Na morada-inteira em frente, residiam osNeves, onde duas irmãs bisbilhoteiras perma-nentemente grudadas às janelas, davam contade tudo e de todos, e, ao lado, o bangalô do Dr.Manequinho, irmão delas, o médico do célebrecaso do Casino... contado alhures. Do outro ladoda rua, na esquina da Godofredo Viana, a Aca-demia Maranhense de Letras, a “Casa de Antô-nio Lobo”, vetusta e muitas vezes ilustre pelainteligência e cultura dos que dela participam,há mais de um século atestando a grandeza doMaranhão-Atenas. (Quando supusemos um diapertencer a tão luzida companhia! Olhávamosde longe, solitário, buscando algum conheci-mento na leitura voraz de tudo o que nos caíasob as vistas e acompanhando a efervescênciacultural do Estado e rejubilando-nos, comomaranhense, com as glórias alcançadas por Jo-sué Montelo, Franklin de Oliveira, OswaldinoMarques, ou deliciando-nos com os versos deCorrea da Silva, que Lília Reis declamava comtanta emoção nos saraus literários; encompri-dando o olhar para dentro da Movelaria de Pe-dro Paiva... onde se respirava cultura).

Deste lado da rua nada mais resta a desta-car senão os muros seculares da Igreja do Car-mo, freqüente e criminosamente pichados compropaganda comercial. Não se respeita maisnada! Mas, do outro, além de algumas casascomerciais, há o sobradinho em que morou ogrande João Francisco Lisboa, o qual já conhe-ci ocupado pela família de Antônio Tavares dasNeves (o “Pechincha” ).

CONTINUAÇÃO

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ENCANTADOS E ENCANTARIASENCANTADOS E ENCANTARIASENCANTADOS E ENCANTARIASENCANTADOS E ENCANTARIASENCANTADOS E ENCANTARIASDO TAMBOR DE MINADO TAMBOR DE MINADO TAMBOR DE MINADO TAMBOR DE MINADO TAMBOR DE MINA4141414141

Mundicarmo Ferretti42

No Maranhão o termo encantado éusado nos terreiros de mina, tanto

nos fundados por africanos quanto nosmais novos e sincréticos, e nos salões decuradores ou pajés. Refere-se a uma ca-tegoria de seres espirituais recebidos emtranse mediúnico, que não podem ser ob-servados diretamente ou que se acreditapoderem ser vistos, ouvidos ou sentidosem sonho, ou em vigília por pessoas dota-das de vidência, mediunidade ou de per-cepção extra-sensorial, como alguns pre-ferem denominar. São voduns, gentis (no-bres) caboclos e índios que moram emencantarias africanas ou brasileiras e queincorporam em filhos-de-santo.

Apesar de totalmente invisíveis paraa maioria das pessoas, os encantados to-mam-se “visíveis” quando os médiuns emquem incorporam manifestam altera-ções de consciência e assumem outraidentidade, a de um determinado encan-tado, o que geralmente ocorre durantea realização de rituais. Esses encanta-dos apresentam-se geralmente à comu-nidade religiosa como alguém que tevevida terrena há muitos anos e desapare-ceu misteriosamente, tornando-se invi-sível, ou como seres que nunca tiverammatéria, mas podem também se comu-nicar com as pessoas incorporando emmédiuns. Os encantados não são consi-derados espíritos de mortos, como os“eguns” do candomblé e os espíritos quese comunicam com as pessoas em cen-tros espíritas e em seções de mesa bran-ca, nem mesmo quando se acredita quetiveram vida terrena. Pertencem a ou-tra categoria de seres espirituais43.

Os encantados da mina são freqüen-temente comparados aos “anjos de guar-da” entidades muito conhecidas no ca-tolicismo popular. São protetores doshomens dotados de poderes especiaisque estão “abaixo de Deus e dos santos”(mártires e outros), mas, ao contrário dosanjos de guarda, podem castigar severa-mente seus protegidos, como narrado em

casos registrados por nós no livro “Mara-nhão Encantado: encantaria maranhen-se e outras histórias” (FERRETTI, M.2000, p.97).

Afirma-se em São Luís que os encan-tados nunca levam propriamente as pes-soas ao mal, embora possam levá-las acertos comportamentos desaprovadossocialmente, pois, segundo a mitologia,muitos são alcoólatras, violentos, irreve-rentes como os da família de Légua Boji– entidade controvertida que para uns éum caboclo, filho adotivo ou afilhado deDom Pedro Angassu (classificado comovodum ou gentil – nobre associado a ori-xá), para outros é um vodum cambindae há quem afirme que ele é o poderosoLégba da cultura daomeana (jeje), quecorresponde ao Exu da cultura ioruba(nagô).

Em alguns terreiros da capital mara-nhense, as entidades espirituais não afri-canas ou caboclas mais antigas sãodenominadas·”vodunsos”, como ocorreno Terreiro Fé em Deus, de Mãe Elzita,onde Caboclo Velho, entidade por elarecebida, também conhecida por Sape-quara, o que atesta a influencia da Casa

das Minas - terreiro jeje fundado na pri-meira metade do século XIX – em ou-tros terreiros. Mas, de modo geral asentidades da mitologia indígena brasi-leiras como o Curupira, ou da mitologiacabocla, como a Mãe d´Água, não sãodenominadas “voduns”. Afirma-se que,no passado, essas entidades brasileirasnão eram conhecidas em terreiros demina de São Luís. Eram recebidas porpajés e curadores e só entraram quandoestes, fugindo de perseguições policiais,pois o curandeirismo era e ainda é cri-me contra a saúde pública no CódigoPenal Brasileiro, passaram a abrir terrei-ros de mina.

A RELAÇÃO DO BUMBA-MEU-BOI COM

ENCANTADOS NO MARANHÃO44

Embora o Bumba-boi seja classifica-do como folguedo profano, sua relaçãocom santos católicos é bastante conhe-cida. Em São Luís, São João, São Pedro,São Marçal, e Santo Antonio, festejadosno período junino, são muito ligados aoBoi. Muitos grupos de Boi que hoje seapresentam nos arraiais e adotaram es-

41 Retoma textos publicados no livro Maranhão Encantado: encantaria maranhense e outras histórias. São Luís: UEMA Editora, 2000, p. 15-16.42 Doutora em Antropologia; Membro da Comissão Maranhense de Folclore.43 Nos terreiros de São Luis os orixás e voduns são algumas vezes denominados invisíveis”e pertencentes a encantarias africanas, mas dificilmente se afirma que tiveram

matéria ou vida terrena, embora alguns deles sejam representados na mitologia como reis (Xangô, Pedro Angassu) ou tenham nomes de soberanos do antigo reino doDaomé (hoje Benin – África).

44 Parte de trabalho apresentado no VI Seminário de Ações Integradas em Folclore. São Paulo, 13-18/9/2008.

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CONTINUAÇÃO

trutura de empresa, nasceram de umapromessa feita por seus fundadores emmomento de aflição e todos são batiza-dos, rendem homenagem a São Pedrona capela desse santo e/ou participamda procissão marítima organizada no dia29 de junho. Mas o Boi do Maranhãotem também uma relação muito estrei-ta com encantados e certo número de-les foi organizado para atender a umdesejo deles anunciado em sonho ou emvigília ou para pagar uma promessa fei-ta a um deles, como pode ser constata-do na analise de depoimentos de Hum-berto, dono do Boi do Maracanã, e Cláu-dia Regina, filha e sucessora do Leonar-do, fundador do Boi da Liberdade pu-blicados em Memória de Velhos –volu-me VII (LIMA, Z., 2008).

No repertório do Boi do Maracanãexiste uma toada de autoria de Hum-berto, intitulada “Reis da ´Incantaria´”sobre encantados conhecidos no Mara-nhão que mostra claramente o lugar ocu-pado por eles no Bumba-meu-boi:

“Reis da ´Incantaria´”Salve os terreiros;e o pai Oxalá;Turquia, Casa das Minas;E a Casa de Nagô;Viva Deus;Viva as Rainhas;E os Reis da incantaria;Reis Badé, rei Verequete;O rei da Alexandria;Rei Guajá, Rei Surrupira;Rei Dom Luís, Rei Dom João;Rei dos feiticeiros, dos Exus;E Rei Leão;Rei Oxossi, Rei Xangô;Rei Camundá, XapanãE Barão, Rei de Guaré;Proteja o Boi do Maracanã;Rei da Bandeira, o Rei da Maresia;Rei de Itabaiana, salve o Rei da BahiaE os reis que eu não falei em verso;Falo no meu coração;Salve Rei dos Índios;Salve o Rei Sebastião.

Como muitos encantados gostam deBoi, vários terreiros maranhenses possu-em um boizinho, às vezes de vara, e or-ganizam anualmente uma brincadeirade Boi para eles com batismo, morte equebra de mourão, como ocorre na Ten-da Santa Terezinha, no Angelim, para

Tombasse, ou pelo menos uma ́ vaqueja-da´, como às vezes ocorre no Terreiro Féem Deus, para Surrupirinha.

Entre os encantados mais ligados aoBoi que são recebidos em terreiros ma-ranhenses podem ser citados:

1) Os que têm nomes derivados ou rela-cionados aos dos santos festejados nomês de junho: João da Mata, Pedri-nho, Antonio Luís;

2) Rei Sebastião, encantado num touronegro na Praia dos Lençóis e outrasentidades ligadas a ele;

3) Légua-Boji, chefe de uma grande fa-mília de encantados e apresentadocomo “vaqueiro” e muitos outros.

Em nosso trabalho de campo reali-zado em terreiros da capital maranhen-se tivemos oportunidade de observarbrincadeiras de Bumba-boi para diver-sos encantados:

1) Légua-Boji, no Terreiro de Jorge daFé em Deus;

2) Surrupirinha, na casa de dona Elzi-ta, no Sacavém;

3) Antonio Luís, na casa de dona Cla-rinda, no bairro de Santo Antonio;

4) Tombasse, na casa de Mariinha, noAngelim;

5) Preto Velho, em dona Neném, naCasa de Nagô;

6) Lealdino, na casa de dona Raimun-dinha, no João Paulo.

Observamos também em Codó abrincadeira do Boi de Zezinho, no ter-reiro de Bita do Barão, e, em Cururu-pu, tomamos conhecimento da existên-cia do Boi de Caboclo Aracanguira, or-ganizado por Betinho – curador.

Os Bois de Encantados geralmentenão têm uma organização muito com-plexa, pois neles os brincantes costumamser os pais e filhos-de-santo, tocadores eauxiliares dos terreiros. Mas alguns de-les costumam contar com a participa-ção de grupos de Boi comandados porpessoas amigas ou cujo dono é devotoda entidade a quem pertence o boizi-nho e para quem é oferecida a brinca-deira, como tivemos oportunidade deobservar na Casa de Nagô, na morte doboi de Preto Velho45. Pratica semelhan-te costuma ocorrer com o Tambor de Cri-oula, manifestação folclórica maranhen-

se de grande importância realizada fre-qüentemente em terreiros da capital nasfestas de São Benedito ou do vodumAverequete, devoto daquele santo. OTambor de Crioula é também dançadoem terreiros maranhenses por pessoas emtranse nas brincadeiras organizadas pe-los terreiros na abertura e no encerra-mento de suas festas grandes; em festasrealizadas em homenagem a pretos ve-lhos, como a que ocorre tradicionalmen-te no Terreiro de Iemanjá no dia 13 demaio, em que se comemora a aboliçãoda escravidão no Brasil; e em festas deentidades caboclas que gostam muitodaquela brincadeira, como ocorria nopassado no terreiro de dona Elzita, nobairro do Sacavém na festa de São Rai-mundo, de Jariodama.

Voltando à relação de encantados deterreiros maranhenses com a brincadei-ra de Bumba-meu-boi, vamos encerraressa nossa intervenção com versos can-tados em 2004 na casa de Mãe Marii-nha, no bairro do Angelim, por ocasiãoda “morte do boi” do encantado Tom-basse, onde essa relação aparece clara-mente:

“Chegou o Brilho da Bandeira”Chegou o Brilho da BandeiraCom todo seu guarnicê (bis).

Dança Tombassé,Dança João de UnaDança Preta VelhaE a Cabocla Mariana (bis)”

Benção e Luz“Vamos reunir o nosso batalhãoCom proteção de Senhor São João(bis)

Só peço a DeusE a Virgem de NazaréQue abençõe e dê luzAo batalhão de Tombasse”

REFERENCIAS

FERRETTI, Mundicarmo. MaranhãoEncantado: encantaria maranhense eoutras histórias. São Luís: UEMAEditora, 2000.LIMA, Zelinda. Memória de Velhos:depoimentos. Memória oral na cultu-ra popular maranhense. Volume VII.São Luis: CMF/SECMA, 2008.

45 Com o falecimento de dona Neném, que recebia o encantado conhecido por Preto Velho, aquela brincadeira foi encerrada e o boizinho foi doado ao museu do Centro deCultura popular Domingos Vieira Filho, após a realização de alguns ritos internos para a sua dessacralização.

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Fernando Viana51

JANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPO4444466666

O acervo de documentos que se não perderam ou não são suficientemente

raros para terem escapado até agora às inves-tidas dos curiosos, isso que chamamos his-tória, não favorece a suposição duma largainfluencia dos negros dos Rios da Guiné, deCabo Verde e Serra-Leoa na Bahia. Era maisfácil encontrá-la no Maranhão, onde Ninaencontrou bijagós e eu, visitante de hoje,não a encontrei nem me lembrei de procu-rá-la. Para a Baía foram em pequena quanti-dade negros de Bissau e Cacheu, alguns re-vendidos dos mercados importadores doNorte. Até aqui a história, que é a verdade,não toda, mas uma grande, a maior parte daverdade.

A história do tráfico negreiro terminamuito antes de ter este terminado. O tráfi-co passou a exercer-se ilegalmente: nunca elefora tão ativo como se tornou então, masfalta uma documentação discriminativa.Não devem, porém, restar dúvidas de que,uma vez declarado ilegal nos territórios doNorte do Equador, o tráfico da Senagambiatenha entrado em rápido declínio, em pro-veito das regiões do Sul. No Daomé e Nigé-ria manterá ele ainda uma certa vitalidade,mas será Angola principalmente que daránegros ao Brasil neste período. A importa-ção de negros de Bissau e Cacheu é, comcerteza, escassa no Brasil independente.

Sabe-se que houve mandingas na Bahia.O culto male é prova irrefutável duma certainfluência dessa grande família negra na tra-dição baiana, mas as aparências históricassão ainda um pouco injustas com ela, co-brindo-as com o resplendor dos fastos dou-tras nações: grandes propagandistas e márti-res do islamismo na Bahia, que foram haus-

CANDOMBLE E SAMBACANDOMBLE E SAMBACANDOMBLE E SAMBACANDOMBLE E SAMBACANDOMBLE E SAMBA4747474747

Edmundo Correia Lopes48

46 Respeitada a grafia do original47 Publicado na Revista do Brasil, ano V – 3ª fase, nº 47, maio 1942, p. 5-7.48 Lingüista português que realizou pesquisa no Maranhão.49 Trata-se duma fórmula de 2 compassos binários com acentuação no 2º tempo do segundo, menos forte que no ritmo versado por Nepomuceno no seu Batuque para

orquestra. Suponhamos, caso que não admito que se desse, mas que faço figurar aqui a título explicativo, que essa acentuação se tornava, ao contrário, mais forte, a ponto50 Publicado no jornal “O Imparcial”, 13 de julho de 1969.51 Fernando R. Viana, ocupante da cadeira nº 2 da Academia Maranhense de Letras, patrocinada pelo romancista Aluísio Azevedo, autor de O Mulato. de deslocar a barra do

compasso (em vez de 1, 2/ 1, 2, temos 2, 3, 4 / 1). Seria, com certas compensações, de necessidade bem compreensível, ao equilíbrio rítmico, o batuque dos ranchos baianos.

sás (o Haussá é, de fato, uma das nações afri-canas de maior irradiação espiritual), profis-sões de fé mulçumana nas portas das habita-ções baianas, mas em língua ioruba. No en-tanto, fosse muita ou fosse pouca, fosse es-parsa ou fosse densa a influência mandingana Bahia e no Brasil, o certo é que os man-dingas e os seus vizinhos, os fulas, ligam asua recordação a duas tradições de máximaimportância, uma na Baía – o candomblé –e outra em todo o Brasil – o samba.

Facilita-se muito a prova de que o samba éa dansa fula do mesmo nome desde que seconsiga provar que “candomblé” é voz mandeda Serra-Leoa. Esta prova subsidiária parece-me fácil. Com efeito, quem ler a revista Áfri-ca de H. Labouret e D. Westermann do anode 1935, a págs. 556-7 fica, a saber, por umacomunicação de Kailahun (Serra-Leoa), queos mandes tem uma sociedade de combate àsbruxas, que prepara uma medicina contra osfeitiços – o kondoi, o povo de Kondoi – Kon-dobla, “De noite” ouvem-se os cânticos dosKondobla, que andam a matar bruxas.” É inu-til procurar o sentido primitivo de “candom-blé” na Bahia. Esse sentido tornou-se hojedemasiado genérico. Não se pode dizer que ésudanês, angola ou caboclo. Teria existido al-gum dia Komdobla na Cidade de Salvador?Também me parece força de imaginação. Maso candomblé não é uma sociedade onde secanta (no Brasil, geralmente, de noite) e ondese vai procurar remédio contra bruxedos?Aíestá a vidência do nome. Com muita ou compouca propriedade, o certo é que o nome pe-gou. Pode haver ainda alguém que duvide.Eu mesmo não quero apresentar a minhaconvicção como argumento. A palavra “can-domblé” poderia ter outra origem. Ioruba,

São Luís, velha catita, minha terrinha bonita, e esquisita, que imita cidadesde Portugal, foste a cidade marcada para ser um dia a sonhada capital ambici-onada da França Equinocial.

Cidade que eu amo tanto, São Luís do meu encanto, eu derramo em cadacanto minha ternura por ti; tu és meu filão sem ganga, minha cidade-miçan-ga, que o rio Anil e o Bacanga te cingem como uma tanga de caboclinha tupi.São Luís de mil ladeiras, de lindas moças brejeiras e viridentes palmeiras, “ondecanta o sabiá”; da procissão do bendito meu senhor São Benedito; do gostosopeixe frito e do arroz de cuxá.

São Luís das marés baixas que expõem c’roas que são faixas onde habita ocamarão; das belas e extensas praias, rendadas, como cambraias em perene

MINHA VELHA SÃO LUÍS50

não. Qual? A afirmação ficará de pé enquan-to a não deitarem abaixo. E haverá que con-tar com ela enquanto o nosso conhecimentodos povos e das línguas africanas nos não per-mitir encará-la sem hesitações.

No mesmo caso está o samba. Só aquientre as coisas representadas pelo mesmonome pelos fulas duma pequena região (queeu saiba) e pelas gentes do Brasil todo (hojeem dia), as aparências de identidade são ain-da maiores. Na Guiné Portuguesa, um ho-mem canta e mima, dansando, uma série deprovocações duma rapariga a certo indiví-duo chamado Samba, donde vem o nome àdansa. O ritmo é um ritmo binário muitosimples, que se presta a deslocações do cará-ter daquelas por que enveredou o ritmo bra-sileiro49. No Brasil é “às vezes, um homemprovocado por uma mulher que dansa..., ocantador que sustenta a dansa” (LucianoGallet, apud Artur Ramos).

Não insistirei mais sobre as duas hipóte-ses. Chamo-lhes hipóteses, porque reconhe-ço que, para virem a ser aceitas como fatos,importa examiná-las melhor. Não as apresen-to pela glória, que não seria prêmio vil, de des-cobridor da origem de dois vocábulos envol-vendo dois tão grandes conceitos, samba, can-domblé... Mas aspiraria a assegurar-me essaglória. Seria, pelo menos, uma prova ao Brasilausente e presente na memória agradecidade tão profundas emoções estéticas ali vivi-das, de que aqui se pensa nele. Praticamenteestas linhas destinam-se. Apenas, a chamar aatenção dos estudiosos para problemas nãobem esclarecidos ainda e que receberiam pos-sivelmente alguma luz do estudo sistemáticodas revivescências do culto male no Brasil. Senão for já demasiado tarde.

exposição, na graciosa cadeia, que abrange a Ponta d’Areia, Olho d’Água eAraçagi, e, do outro lado, a da Guia, que é por onde principia a do porto doItaqui.

Os teus ocasos grandiosos, assombrosos, majestosos, têm tanto fulgor de luzque a gente fica pensando que o sol rubro, agonizando, parece mesmo irtombando na baía de São Marcos, cheia de velas e barcos, brancas, vermelhas,azuis; de velas triangulares, elegantes, singulares, garbosas cortando os mares,a vento bom que as conduz!

São Luís, velha catita, minha cidade bonita, debruçada sobre o Anil, podemjulgar-te mendiga, desairosa rapariga, mas, para mim, minha amiga, não há nin-guém que consiga conter-me ou impedir-me que diga que és a melhor do Brasil.

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Boletim 42 / dezembro 20081818

RESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASMONOGRAFIAS • 2008AIRES, Maria do Socorro. Ter-reiro Fé em Deus: um estudo de ri-tuais não africanos. Ciências Soci-ais – UFMA, 2008. Orientador:Sergio Ferretti.RESUMO

Neste trabalho, analisamos oTambor de Mina em um terreirode São Luis no bairro Sacavém - oTerreiro Fé em Deus - e as suasrelações com outras práticas religi-osa: o ritual de Cura e o Tambor deBorá. Uma das vias pela qual, orealizamos se constituiu da obser-vação participante, tarefa centraldesta etnografia que, busca a com-preensão e os sentidos das açõessimbólicas dos rituais religiosos atra-vés dos elementos colhidos emcampo que se configuram em nar-rativas, depoimentos e observaçãodos rituais realizados neste terrei-ro. No Tambor de Borá, realizadouma vez por ano, são recebidas asentidades espirituais indígenas e,ao mesmo tempo, se homenageiaa São Miguel Arcanjo. Este ritualse caracteriza como um preceden-te no sistema de crenças do Tam-bor de Mina do Maranhão para oculto as entidades ameríndias. SãoMiguel Arcanjo também é invoca-do na abertura do ritual de Curaque é realizado no terreiro pelaentidade espiritual que participatanto da Mina quanto da Cura efaz “viradas” de um contexto paraoutro, utilizando elementos simbó-licos que expressam as duas repre-sentações desta entidade espiritu-al dentro do terreiro. Desta manei-ra, este trabalho visa contribuir paraa compreensão da junção dos di-versos elementos religiosos quecompõem o sistema de crenças doTerreiro Fé em Deus, que se mani-festa fora do modelo tradicional ecaracteriza uma dimensão agrega-dora do Tambor de Mina, com apresença de aspectos não africanos.

BRITO, Fabrine Pereira de. Tam-bor de Mina e Umbanda: sincretis-mo em terreiros de São Luís. Ciên-cias Sociais – UFMA, 2008. Orien-tador: Sergio Ferretti.RESUMO

Análise das religiões afro-bra-sileiras Tambor de Mina e Umban-da. Mina e Umbanda são cultosde origem africana caracterizadoscomo de transe ou possessão, ondesão invocadas ou cultuadas enti-dades sobrenaturais que incorpo-ram em participantes das religiões,conhecidos como médiuns, em ri-tuais com cânticos e danças, exe-cutados ao som dos tambores eoutros instrumentos. A partir doestudo das tendas Santo Antônio(Mina) e Santa Teresinha (Umban-

da) busca-se conhecer as manifes-tações religiosas do Tambor deMina e da Umbanda em São Luíse ao longo desse conhecimentoperceber as diversidades nos ter-reiros. Discute-se o sincretismocatólico nessas religiões e o sincre-tismo que se manifesta entre elas.Apresentam-se as entidades Tom-bacé e Legbá/Exu encontradastanto no Tambor de Mina quantona Umbanda e, através do parale-lo entre as duas manifestações, ex-põe-se a situação atual dos terrei-ros quanto à diversidade religiosa.

FERREIRA, Rosenilde Rodri-gues. O jogo cênico em espaço circu-lar: Diálogo teatral entre o jogo e aroda do Tambor de Crioula na pro-messa ao São Benedito em Alcânta-ra-MA. São Luís, Licenciatura emEducação Artística – Artes Cênicas.UFMA, 2008. Orientadora: ProfªEsp. Célida Maria Lima Braga.RESUMO

O Tambor de Crioula enquan-to elemento de dimensão simbólicaagindo como difusor de aspectossociais, estéticos e pedagógicos parao ensino de teatro a partir da cria-ção cênica. Identifica-se a impor-tância do jogo ritualístico (de entra-da e saída na roda do Tambor), ob-servando a interação entre brincan-tes e público no círculo. Busca-se odiálogo entre jogo teatral e jogo ritu-alístico na promessa ao São Bene-dito em Alcântara-MA.

2007DIAS, Carolina Cécio Soares.São José de Ribamar: cidade da FES-TA. São Luís, Ciências Sociais.UFMA, 2007. Orientador: Dr. Ale-xandre Fernandes Corrêa.RESUMO

Breve abordagem histórica sobrea cidade de São José de Ribamar(MA) e sobre o inicio da realizaçãodos festejos; como o festejo se reali-za; calendário de festas realizadasno município; momentos sagrados eprofanos ocorridos no decorrer dosfestejos; importância política e eco-nômica das festas na cidade.

PEREIRA, Keila Cristina San-tana. A festa do Divino EspíritoSanto. O Teatro das Memórias Po-pulares: uma análise a partir dos per-sonagens da festa na Casa das Mi-nas. São Luís, Licenciatura em Edu-cação Artística – Artes Cênicas.UFMA, 2007. Orientador: Profª Dr.Alexandre Fernandes Correa.RESUMO

A monografia A festa do Divi-no Espírito Santo. O Teatro dasMemórias Populares: uma análisea partir dos personagens da festa naCasa das Minas é um trabalho aca-

dêmico associado a vivencia de seisanos da autora no universo dasFestas do Divino Espírito Santo emSão Luís, tendo como leit motiv arealização da festa na Casa dasMinas. Graduada em Artes Cêni-cas, a autora busca estimular umolhar aguçado sobre a festa no quetange a sua teatralidade em seusmais variados aspectos como: ce-nário, figurino, personagem. E,além disso, desvelar os sentidosque se escondem sob o véu da purareligiosidade para compreenderrelações sociais ali estabelecidas.

2006MATOS, Elisene Castro. CA-ZUMBA: a criatividade e a místi-ca do personagem do Bumba-meu-boi de Penalva e suas possíveiscontribuições no ensino da Arte.MONOGRAFIA. São Luís, EdArtística/UFMA, 2006. Orienta-dora Izabel Mota Costa(UFMA).RESUMOEste trabalho tem como objetivoanalisar o cazumba, personagemde referência dos grupos de bum-ba-boi do município de Penalva.Desenvolvido através de pesquisabibliográfica e trabalho de campo.Tendo como roteiro básico, o histó-rico do cazumba e consideraçõesacerca da indumentária, de suafunção na brincadeira, da relaçãocom entidades africanas, a dançae a criatividade de quem produzo personagem; e finalmente, apon-tamentos sobre a possível contri-buição do cazumba no ensino deArte.

DISSERTAÇÕES

PEREIRA, Paulo Sergio Castro.O Baile de São Gonçalo em SãoVicente Férrer: a representação doguia na relação com o santo e com opromesseiro. São Luís, Mestrado emCiências Sociais. UFMA, 2008.Orientador: Profª Dr. AlexandreFernandes Correa.RESUMO

O estudo versa sobre o Bailede São Gonçalo na cidade de SãoVicente Ferrer- Maranhão. Essamanifestação da religiosidade po-pular se implantou no Brasil aindano período colonial trazida por co-lonizadores portugueses. Partindoda compreensão dessa manifesta-ção desde o seu contexto de ori-gem, avançaremos para o espaçobrasileiro e para o vicentino demodo particular. Estuda-se o rituala partir da visão de vários teóricosdas categorias: ritual e festa. Pas-sa-se pelas influências através docontato com outras manifestações,bem como suas características bar-

rocas. A etnografia do ritual buscamostrar o baile em toda a sua ri-queza. Observa-se o baile como umelemento agregador da comunida-de com um grande poder de que-brar a rotina e estabelecer o envol-vimento de todos no entorno dafesta. A promessa é vista como con-dição essencial para realização doBaile. É através desta que o pro-messeiro refaz seus laços com oSanto e ritual liderado pelo guia dobaile se realiza. Por fim, analisa-seo baile como uma força viva den-tro do imaginário vicentino semtendência ao desaparecimento.

2007BARROS, Antonio Evaldo Almei-da. O Pantheon Encantado: culturase heranças étnicas na formação deidentidade maranhense. 2007. 319 p.Dissertação (Mestrado em EstudosÉtnicos e Africanos) – IFCH, PÓS-AFRO, CEAO, Salvador, UFBA,2007. Orientador: Prof. Dr. JocélioTeles dos Santos. Co-orientador: Prof.Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti.RESUMO

Longe de ser algo natural e atá-vico, identidade maranhense con-siste em um processo identitário e,como tal, passa por modelações,adaptações e transformações, comose pode observar nos anos 1937-65,particularmente quando se enfoca,de modo inter-relacionado, o cam-po das representações e do imagi-nário, e as dinâmicas, conflitos einterações entre os diferentes e de-siguais sujeitos, setores e grupossociais. Determinadas manifesta-ções culturais, também identificá-veis como heranças étnico-culturais(a exemplo do Bumba-meu-boi, doTambor de mina, da Pajelança, daAtenas Brasileira e da São Luís Fran-cesa), de um lado, apresentam-secomo elementos ora destacados, oraobliterados, na formação de identi-dade maranhense, e, de outro, cons-tituem-se, especialmente em suasocasiões festivas, como meios atra-vés dos quais se representa a região.A adaptação de identidade mara-nhense em meados do século XXrelaciona-se a diversas práticas, ins-tituições e representações de cará-ter nacional e mesmo latino-ameri-cano, e também a trânsitos e via-gens de diversos sujeitos, inclusiveos pobres, negros e iletrados. Amodelação da identidade da regiãose deu nos caminhos da “cultura” eda “tradição” e nas trilhas do “povo”e da “raça”. Processos de exclusão einclusão, constantes ou temporári-os, resultantes de relações amigá-veis ou conflitivas entre os indiví-duos e grupos sociais, estabelecemos elementos identificáveis comosímbolos da identidade regional.

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Notícias

É com pesar que a CMFcomunica o falecimento no dia26 de novembro de Dona Tere-zinha Jansen, membro destaComissão, a grande batalhado-ra do Boi e do Tambor de Cri-oula da Fé em Deus. Therezi-nha Jansen foi velada na Salada Pax União até as doze horas,depois foi transportada para aIgreja de São Benedito, onde

INRC do Bumba-meu-boi do MaranhãoA Superintendência do

Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional(IPHAN) está realizando o In-ventário de Referências Cultu-rais (INRC) do Bumba-meu-boido Maranhão tendo em vista oregistro dessa manifestação po-pular como Patrimônio Cultu-

ral do Brasil. Paralelamente aoINRC, a Superintendênciaestá procedendo a instruçãotécnica do processo de registrodo Bumba-meu-boi e para issoestá sendo realizado um levan-tamento de dados históricosreferentes ao século XIX até oinício do século XX, com o

objetivo de montar o dossiê doregistro. Diante da escassez defontes de pesquisa, solicita aquem possuir dados referentesa esse período, que entre em con-tato com Abmalena Sanches, noe-mail [email protected] pelo telefone (98) 3236-1230.

Prêmio CulturasPrêmio CulturasPrêmio CulturasPrêmio CulturasPrêmio CulturasPPPPPopulares 2008opulares 2008opulares 2008opulares 2008opulares 2008

– Mestre– Mestre– Mestre– Mestre– MestreHumberto doHumberto doHumberto doHumberto doHumberto do

MaracanãMaracanãMaracanãMaracanãMaracanãO Ministério da Cultura,

através da sua Secretaria daIdentidade e DiversidadeCultural, concedeu o PrêmioCulturas Populares 2008 –Mestre Humberto do Maraca-nã a 19 pessoas e grupos ma-ranhenses: 14, dentre 90 sele-cionados na Categoria Mes-tres; 2, dentre 40 premiadosna categoria Grupos Tradici-onais Informais; e 3 GruposFormais, dentre 40 seleciona-dos. Essa posição destacadademonstra a importância e oreconhecimento conquista-do pela cultura popular doMaranhão.

Memória deMemória deMemória deMemória deMemória deVVVVVelhos - Velhos - Velhos - Velhos - Velhos - Volumeolumeolumeolumeolume

VIIVIIVIIVIIVII

A CMF e a SECMA lan-çam na 2ª Feira do Li-

vro de São Luís, no dia 20 deoutubro, o 7º volume da cole-ção Memória de Velhos. Aobra, dedicada a mestres deBumba-meu-boi, foi coorde-nada por Zelinda Lima, bata-lhadora incansável pela cultu-ra popular e uma das perso-nalidades destacadas no Volu-me VI da mesma coleção. Ovolume VII reúne depoimen-tos de: Abel Teixeira, Apolô-nio Melônio, Diomar Leite,Francisco Naiva, Humbertodo Maracanã, TherezinhaJansen, Leonardo Santos eCláudia Regina Santos, filhae sucessora de Leonardo. Osdepoimentos foram coletadospor Márcia Teresa Mendes eJosimar Silva, ambas Licenci-adas em História e membrosda CMF. A editoração foi rea-lizada por Mundicarmo Fer-retti.

Atualização do site da CMFA CMF anuncia no Boletim

42 a atualização no seu site, hos-pedado na UFMA –www.cmfolclore.ufma.br -, ondepodem ser lidos e impressos to-

dos os números do Boletim e po-dem ser consultados seus índicesde autores e de assuntos. O traba-lho foi realizado pelo professor Je-ferson Francisco Selbach, do De-

partamento de Sociologia e An-tropologia, com apoio do Grupode Pesquisa Religião e CulturaPopular, coordenado por SergioFerretti, membro da CMF.

A cultura popular maranhenseperde uma grande mestra

Eleita e empossada a direto-ria da Comissão Nacional deFolclore para o quadriênio 2008-2012., a presidente Maria deLourdes Macena enviou, aosmembros das Comissões Esta-duais, carta que transcrevemosa seguir: Fortaleza, 25 de setem-bro de 2008. Caros amigos dasCulturas Tradicionais Popula-res, Informamos que assumimosem São Paulo, no dia 17 de se-tembro p.p., durante o VI Semi-nário de Ações Integradas, a di-retoria da CNF – Comissão Na-cional de Folclore. A CNF foicriada por Renato Almeida em1947 no Rio de Janeiro (na épo-ca, capital Federal da Repúblicado Brasil), funcionando no seiodo IBECC – Instituto Brasilei-ro de Educação, Ciência e Cul-tura (Comissão Nacional daUNESCO), cuja sede está no Pa-

foi celebrada uma missa de cor-po presente, e em seguida foi le-vada para o Barracão do Boi daFé em Deus, onde recebeu ashomenagens dos boieiros, toca-dores e coreiras do tambor decrioula, brincadeiras que forampara ela motivo de orgulho e ra-zão de viver, desde 1975, quan-do as recebeu de Laurentino.Dona Terezinha nasceu em São

Luís, em 15 de dezembro de1928. Muito católica era devo-ta de São Benedito, São Joséde Ribamar e Nossa Senhorada Conceição o que a levava avestir os santos, decorar os an-dores e rezar ladainhas duran-te seus festejos. A cultura po-pular maranhense perde umagrande mestra no saber coman-dar brincadeiras populares.

Eleição e posse diretoria da CNFEleição e posse diretoria da CNFEleição e posse diretoria da CNFEleição e posse diretoria da CNFEleição e posse diretoria da CNF, em São P, em São P, em São P, em São P, em São Pauloauloauloauloaulolácio do Itamaraty com o acervodestes sessenta anos de ativida-des em prol dos estudos, regis-tros e luta pela salvaguarda, valo-rização, difusão e apoio da cul-tura tradicional popular do povobrasileiro. Durante os quatroanos de nossa gestão desejamosestabelecer laços permanentespara ações integradas de valori-zação das expressões culturaistradicionais do nosso povo, bus-cando dinamizar o Folclorecomo Cultura Viva como sem-pre foi visto pelos folcloristasbrasileiros. (...) Esperamos podercontribuir com as várias redesde ações em benefício do Folclo-re do nosso país, nestas tramasdiversas que nos ligam com algocomum. Abraços fraternos.Lourdes Macena (CE) Presi-dente da Comissão Nacional deFolclore e todos nós da Direto-

ria - 1º. Vice-Presidente: AglaéD’ Avila Fontes de Alencar (SE);2º. Vice-Presidente: AfonsoFurtado da Silva (RJ); Secretá-rio: Simone Oliveira de Castro(CE); Vice—Secretário: SérgioFigueiredo Ferretti (MA); Te-soureiro; Raimundo OswaldCavalcante Barroso (CE); Vice-Tesoureira: Francisca Raimun-da Nogueira Mendes (CE). Con-selheiros - Sudeste: EliomarCarlos Mazzoco (ES), ÂngelaSavastano (SP); Norte: WalcirJosé da Silva Monteiro (PA),Deocleoma Lobato Pereira(AP); Nordeste: SeverinoVicente (RN), Roza Maria dosSantos (MA); Centro-Oeste:Marlei Sigrist (MS), Waldomi-ro Bariani Ortêncio (G0); Sul:Lélia Pereira da Silva Nunes(SC) e Neusa Marli Bonna Sec-chi (RS).

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Boletim 42 / dezembro 20082020

Perfil Popular

CULTURAwww.culturapopular.ma.gov.br

Therezinha de Jesus Jansen Pereira,do Boi da Fé em Deus, filha caçula

de uma família numerosa, nasceu em SãoLuís, em 15/12/1928 e faleceu em 25/11/2008. Branca, de família abastada,Therezinha Jansen estudou no ColégioSanta Teresa, das irmãs Dorotéias, fre-qüentou ambientes participados pelaselites locais, mas, desde criança, teve con-tato com Bumba-meu-boi, que vinha brin-car em sua casa. Orgulhava-se de ser bis-neta de Ana Jansen, cognominada “rai-nha do Maranhão” e uma das figuras maislendárias do estado. Exerceu durantemuitos anos a profissão de funcionáriapública do estado, na Secretaria da Fa-zenda, quase o tempo todo no Tesouro,onde se aposentou, mas sempre trabalhouem costura e bordados – durante muitosanos fez os plissados usados nas saias dasfardas de colégios de São Luís.

Era muito religiosa e tinha grandesensibilidade para a cultura popular.Devota de São Benedito e de São Joséde Ribamar realizava para eles uma la-dainha em sua residência e participavade seus festejos na cidade, preparandoa roupa dos santos, decorando o andoretc. Foi muito ligada a Maximiana, mãe-de-santo que recebeu em 1938 a Missãode Pesquisa Folclórica, criada por Má-rio de Andrade; madrinha do Terreiro deIemanjá, do saudoso Jorge Itaci, que estácomemorando em 2008 seus 50 anos; eera muito ligada à Casa das Minas – ter-reiro de mina mais antigo de São Luís,tombado em 2002 pelo IPHAN.

Apesar de seus pais gostarem de Boi,Therezinha não assumiu o comando doBoi da Fé em Deus (sotaque guimaranti-no/ zabumba) por herança de família.Quando funcionária pública do estado,tornou-se amiga de Seu Laurentino, donodaquele Boi, que também trabalhara no

Mundicarmo Ferretti52

Therezinha Jansen

estado e que fora amigo do seu pai - foivárias vezes madrinha do Boi. O Boi, fun-dado em 1/5/1930, foi entregue a The-rezinha por ele, no leito de morte, emsetembro de 1975, para que não desapa-recesse com ele, conforme declarado porela em depoimento à CMF para a sérieMemória de Velhos. A partir daí ela pas-sou a comandá-lo como uma obrigaçãopara com ele, com o seu santo (São João)e para com a cultura popular maranhen-se, reunindo um grupo de mais de 100brincantes, a maioria de São Luís, masagregando cerca de 40 pessoas proveni-entes dos municípios de Guimarães, Ce-dral, Central, Mirinzal e Buriti.

Therezinha Jansen foi uma das lide-ranças da cultura popular maranhensemais conhecidas e respeitadas, daí por-que fragmentos de sua história de vidaforam publicados em dois livros da cole-ção Memória de velhos: depoimentos,publicados pela CMF e pela SECMA,em 2007 (volume VI, p. 171-216) e 2008(volume VI, p.217-244). Competente,organizada, responsável, sensível, não

52 Antropóloga; membro da CMF.

media esforços para ajudar os amigos epara apresentar o Bumba-boi e o Tam-bor de Crioula, da melhor forma possí-vel, em todos os espaços e em eventosonde fosse convidada.

Membro atuante da Comissão Ma-ranhense de Folclore e do INTECAB –Instituto Nacional da Tradição e Cultu-ra Afro-brasileira – nunca faltava às suasreuniões, mesmo quando já estava como problema de locomoção que a levou àcirurgia que, devido a complicações res-piratórias surgidas no pós-operatório, foia sua última atividade.

Além da saudade deixada por The-rezinha, o seu desaparecimento do nos-so meio acarreta uma grande perda paraa cultura popular maranhense. Pelo quese sabe, ela não teve tempo de entregarà outra pessoa a obrigação recebida deLaurentino, mas, como não estava sozi-nha no comando do Boi e do Tambor deCrioula da Fé em Deus, espera-se queoutras lideranças dêem continuidadeaquelas brincadeiras, assumidas por elapor obrigação e devoção.

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