Folha de S.Paulo - Poder, p. 5

1
TERÇA-FEIRA, 14 DE FEVEREIRO DE 2017 H H H poder A5 ab DE BRASÍLIA O presidente Michel Temer afirmou nesta segunda-feira (13) que não houve censura no episódio em que a Justiça de Brasília proibiu a veicula- ção de reportagem da Folha sobre uma tentativa de extor- são sofrida pela primeira-da- ma Marcela Temer. No final de um pronuncia- mento, no Palácio do Planal- to, o peemedebista foi ques- tionado pela Folha se houve censura ao jornal. “Não houve isso. Você sa- be que não houve”, respon- deu Michel Temer. A petição para proibir a reportagem ar- gumenta que as informações poderiam violar a intimidade da primeira-dama. Parlamentares da base go- vernista no Congresso tam- bém defenderam a posição do Palácio do Planalto. O líder do DEM na Câmara, Efraim Filho (PB) defendeu a liberdade de imprensa, mas disse que a Justiça deve garan- tir o equilíbrio entre esse direi- to e a inviolabilidade da vida privada. “Há uma linha mui- to tênue que separa a inviola- bilidade da intimidade priva- da e a censura prévia a infor- mações. Buscar o equilíbrio necessário entre ambas é a ár- dua tarefa que cabe ao juiz.” Também aliado de Temer, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câ- mara, Osmar Serraglio (PMDB-PR), disse ter consi- derado correta a atitude do governo e a decisão da Justi- ça de primeira instância. Se- gundo ele, uma das medidas cabíveis por parte de quem se sente atingido por uma repor- tagem é pedir a sua retirada, além da reparação de danos. “Se considero haver um crime continuado, é aceitável que peça a sua suspensão”, afirmou. Ele ressaltou, entre- tanto, que por estar no inte- rior do Estado não leu a re- portagem e não tem como emitir opinião sobre seu teor. O presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), também defendeu a liberda- de de imprensa. “Qualquer restrição, obviamente, não tem o meu apoio”, afirmou. Eunício não quis comen- tar o fato de ação em benefí- cio da primeira-dama ter si- do movida pelo subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Gustavo do Vale Rocha. CRÍTICA Ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff, o advogado José Eduardo Cardozo afir- mou que o governo Temer praticou “evidente ato de censura prévia”. “Me causa espécie que o governo tome medidas para impedir que a sociedade sai- ba de realidades tornadas pú- blicas. É profundamente la- mentável e atentatório ao Es- tado de Direito”, completou. Parlamentares da base do governo na Câmara concordam com o Planalto e consideram pedido correto Planalto pediu à Justiça que proibisse veiculação de reportagem sobre extorsão à primeira-dama Marcela Temer Presidente diz que não houve censura ANÁLISE Constituição criou regime de liberdade com responsabilidade OSCAR VILHENA VIEIRA COLUNISTA DA FOLHA Matéria jornalística infor- mando sobre processo crimi- nal que envolve hacker conde- nado por tentar extorquir a mulher do então vice, atual presidente, pode ser objeto de censura judicial? A Constituição de 1988 concebeu um robusto siste- ma de proteção à liberdade de expressão e ao direito à in- formação. Por intermédio do artigo 5º, IX, assim como do seu artigo 220, a Constituição vetou, de maneira peremptó- ria, a censura. Mais do que is- so, por força do parágrafo 1º, do mesmo artigo 220, proibiu que qualquer lei contenha dispositivo que constitua “embaraço à liberdade de in- formação jornalística”. Isso não significa, porém, que a liberdade de expressão se configure como direito ab- soluto. Ela tem limites. Aque- les que se utilizarem abusiva- mente dela, violando a priva- cidade, intimidade, honra e imagem de outra pessoa po- dem ser condenados a indeni- zar suas vítimas pelos danos morais e materiais que causa- rem. Podem, inclusive, ser pe- nalmente condenados, se a conduta configurar crime de calúnia, injúria ou difamação. Ao proibir a censura, nos- so sistema constitucional cri- ou um sistema de ampla pro- teção à liberdade de expres- são, ficando aquele que dela abusar, no entanto, sujeito a sanções posteriores de natu- reza cível ou mesmo criminal, que lhe forem impostas após devido processo legal. Trata- se de um regime de liberda- de com responsabilidade. No presente caso, o que se tem, aparentemente, é um processo criminal que diz respeito a crime que afeta di- retamente a Presidência. Lo- go, assunto de absoluto e le- gítimo interesse de toda a so- ciedade. Proibir a veiculação de matérias relativas a esse processo constitui não ape- nas afronta ao direito à liber- dade de imprensa, mas vio- lação ao direito à plena liber- dade de informação. Caso os meios de comuni- cação ultrapassem as barrei- ras do interesse público, inva- dindo a privacidade do casal presidencial, poderão ser pu- nidos, mas a posteriori. Aos meios de comunicação, e não ao juiz, cumpre fazer essa dis- tinção e correr o risco de serem responsabilizados se tomarem a decisão errada. Esse é o pre- ço de não se aceitar a censu- ra, como meio de controle da liberdade de expressão. O que justifica o tratamento preferencial dado à liberdade de expressão e ao direito à in- formação pela Constituição é a sua centralidade para a exis- tência de regime democrático. CENSURA À FOLHA OSCAR VILHENA VIEIRA é professor da FGV Direito SP

Transcript of Folha de S.Paulo - Poder, p. 5

Page 1: Folha de S.Paulo - Poder, p. 5

Terça-Feira, 14 De Fevereiro De 2017 H H H poder a5ab

DE BRASÍLIA

OpresidenteMichelTemerafirmou nesta segunda-feira(13) que não houve censurano episódio em que a Justiçade Brasília proibiu a veicula-ção de reportagem da Folha

sobreumatentativadeextor-são sofridapelaprimeira-da-maMarcela Temer.No final deumpronuncia-

mento,noPaláciodoPlanal-to, o peemedebista foi ques-tionado pela Folha se houvecensura ao jornal.“Não houve isso. Você sa-

be que não houve”, respon-deuMichel Temer. A petiçãoparaproibir a reportagemar-gumentaqueas informaçõespoderiamviolara intimidadeda primeira-dama.Parlamentaresdabasego-

vernista no Congresso tam-bém defenderam a posiçãodo Palácio do Planalto.O líderdoDEMnaCâmara,

Efraim Filho (PB) defendeu aliberdade de imprensa, masdissequeaJustiçadevegaran-tiroequilíbrioentreessedirei-to e a inviolabilidade da vidaprivada. “Há uma linha mui-to tênueque separa a inviola-bilidade da intimidade priva-da e a censura prévia a infor-mações. Buscar o equilíbrionecessárioentreambaséaár-dua tarefa que cabe ao juiz.”

Também aliado de Temer,o presidente da Comissão deConstituição e Justiça da Câ-mara, Osmar Serraglio(PMDB-PR), disse ter consi-derado correta a atitude dogoverno e a decisão da Justi-ça de primeira instância. Se-gundo ele, umadasmedidascabíveisporpartedequemsesenteatingidoporumarepor-tagem é pedir a sua retirada,alémda reparaçãodedanos.“Se considero haver um

crimecontinuado,éaceitávelque peça a sua suspensão”,

afirmou.Ele ressaltou, entre-tanto, que por estar no inte-rior do Estado não leu a re-portagem e não tem comoemitir opiniãosobre seu teor.O presidente do Senado,

Eunício Oliveira (PMDB-CE),também defendeu a liberda-de de imprensa. “Qualquerrestrição, obviamente, nãotem omeu apoio”, afirmou.Eunício não quis comen-

tar o fato de ação em benefí-cio da primeira-dama ter si-do movida pelo subchefe deAssuntos Jurídicos da Casa

Civil,GustavodoValeRocha.

CRÍTICAEx-ministro da Justiça de

Dilma Rousseff, o advogadoJosé Eduardo Cardozo afir-mou que o governo Temerpraticou “evidente ato decensura prévia”.“Me causa espécie que o

governo tome medidas paraimpedir que a sociedade sai-baderealidades tornadaspú-blicas. É profundamente la-mentável e atentatórioaoEs-tado de Direito”, completou.

Parlamentares da basedo governonaCâmaraconcordamcomoPlanalto e considerampedido correto

Planalto pediu à Justiça que proibisse veiculação de reportagem sobre extorsão à primeira-damaMarcela Temer

Presidentediz quenãohouve censura

ANÁLISE

Constituiçãocriouregimedeliberdadecomresponsabilidade

OSCAR VILHENA VIEIRACOLUNISTA DA FOLHA

Matéria jornalística infor-mando sobre processo crimi-nalqueenvolvehackerconde-nado por tentar extorquir amulher do então vice, atualpresidente,podeserobjetodecensura judicial?A Constituição de 1988

concebeu um robusto siste-ma de proteção à liberdadedeexpressãoeaodireitoà in-formação. Por intermédio doartigo 5º, IX, assim como doseuartigo220,aConstituiçãovetou,demaneiraperemptó-ria, acensura.Maisdoque is-so, por força doparágrafo 1º,domesmoartigo220,proibiuque qualquer lei contenhadispositivo que constitua“embaraçoà liberdadede in-formação jornalística”.Isso não significa, porém,

que a liberdade de expressãose configure como direito ab-soluto. Ela tem limites.Aque-lesque seutilizaremabusiva-mente dela, violando apriva-cidade, intimidade, honra eimagem de outra pessoa po-demsercondenadosaindeni-zar suas vítimas pelos danosmoraisemateriaisquecausa-rem.Podem,inclusive,serpe-nalmente condenados, se aconduta configurar crime decalúnia, injúriaoudifamação.Ao proibir a censura, nos-

so sistemaconstitucional cri-ouumsistemadeamplapro-teção à liberdade de expres-são, ficando aquele que delaabusar, no entanto, sujeito asanções posteriores de natu-rezacíveloumesmocriminal,que lhe forem impostas apósdevidoprocesso legal. Trata-se de um regime de liberda-de com responsabilidade.Nopresente caso, o que se

tem, aparentemente, é umprocesso criminal que dizrespeito a crimequeafetadi-retamente aPresidência. Lo-go, assunto de absoluto e le-gítimo interessede todaa so-ciedade. Proibir a veiculaçãode matérias relativas a esseprocesso constitui não ape-nas afronta aodireito à liber-dade de imprensa, mas vio-laçãoaodireito àplena liber-dade de informação.Caso os meios de comuni-

cação ultrapassem as barrei-rasdointeressepúblico, inva-dindo a privacidade do casalpresidencial, poderão ser pu-nidos, mas a posteriori. Aosmeiosdecomunicação, enãoao juiz,cumpre fazeressadis-tinçãoecorreroriscodeseremresponsabilizadossetomaremadecisãoerrada.Esseéopre-ço de não se aceitar a censu-ra, comomeio de controle daliberdade de expressão.Oquejustificaotratamento

preferencial dado à liberdadede expressão e ao direito à in-formação pela Constituição éasuacentralidadeparaaexis-tênciaderegimedemocrático.

cENSurA à foLhA

OSCARVILHENAVIEIRAéprofessor da FGVDireito SP