Folha Online - Ilustrada - _Estamos Nos Tornando Uma Teocracia_, Diz Harold Bloom - 24-09-2005

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24/09/2005 - 05h00 "Estamos nos tornando uma teocracia", diz Harold Bloom MARCELO PEN Crítico da Folha de S.Paulo Com uma voz cansada e melodiosa, que busca angariar afeição; expressando arrependimento por nunca ter visitado o Brasil e alegando que agora, aos 75 anos recém-completados, a longa viagem seria muito difícil, se não impossível: é assim que o crítico Harold Bloom atende ao telefonema da Folha, em sua casa de New Haven, Connecticut. Mas que o leitor não se engane. O americano tranqüilo, que chama o entrevistador quase o tempo todo de "meu querido" ("my dear"), é um crítico furioso. Dispara bem mais do que farpas contra o que ele chama de "fascismo de direita e de esquerda" nos Estados Unidos, um tipo de "puritanismo" que teria origem em Platão. A contracultura --hoje a "cultura oficial"-- estaria promovendo uma caça às bruxas, deitando à fogueira autores como Emerson e Shakespeare, enquanto louva outros por causa de "pigmentação da pele e a orientação sexual", dentre fatores menos literários. Entrementes, George, ou, melhor dizendo, "Benedito" Bush, lidera a "plutocracia" americana em sua sanha contra o que é minimamente dotado de inteligência --seja no Oriente Médio, seja em sua terra natal. Parte dos ataques está em "Onde Encontrar a Sabedoria?" (Objetiva, tradução de José Roberto O'Shea, 320 págs., R$ 44,90), conjunto de ensaios que procura retomar o debate sobre a suposta incompatibilidade entre filosofia e literatura, em voga pelo menos desde que Platão expatriou Homero (e os poetas) de sua República utópica. E a polêmica nos Estados Unidos deve continuar, conforme prevê o próprio Bloom, com o lançamento por lá de "Jesus e Jeová", que sugere que os últimos dois mil anos de religião ocidental, no mínimo, estiveram baseados numa impostura. Segurem os cintos. Folha - Ao referir-se ao "Eclesiastes", o senhor diz que, após os 70, poucos deixam de sentir um calafrio diante do ritmo repetitivo desse texto bíblico. Certas obras de arte só podem ser inteiramente apreciadas com a idade? Harold Bloom - Fiz 75 anos este verão e um dos meus alunos me perguntou isso, quando estava ensinando Walt Whitman. Eu havia dito que, ao ficar mais velho, adquiria um entendimento cada vez mais profundo do motivo pelo qual sua grande elegia é tão vibrante e poderosa. Não acho que seja a consciência da mortalidade próxima. Creio que é simplesmente um tipo de "perspectivismo" que ocorre quando envelhecemos --que não resulta do processo de envelhecimento, mas do fato de termos mais tempo acumulado de leitura, de releitura, de coisas memorizadas. É como ocorre com pessoas que conhecemos há muito tempo e, de repente, vemos algo nelas que não vimos antes. Assim também é com os livros. Folha Online - Ilustrada - "Estamos nos tornando uma teocracia", diz ... http://tools.folha.com.br/print?url=http://www1.folha.uol.com.br/folha/... 1 de 4 14/06/2015 22:37

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Entrevista com Harold Bloom sobre religião, política e literatura.

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  • MARCELO PENCrtico da Folha de S.Paulo

    Com uma voz cansada e melodiosa, que busca angariar afeio; expressandoarrependimento por nunca ter visitado o Brasil e alegando que agora, aos 75 anosrecm-completados, a longa viagem seria muito difcil, se no impossvel: assim que ocrtico Harold Bloom atende ao telefonema da Folha, em sua casa de New Haven,Connecticut.

    Mas que o leitor no se engane. O americano tranqilo, que chama o entrevistadorquase o tempo todo de "meu querido" ("my dear"), um crtico furioso. Dispara bemmais do que farpas contra o que ele chama de "fascismo de direita e de esquerda" nosEstados Unidos, um tipo de "puritanismo" que teria origem em Plato.

    A contracultura --hoje a "cultura oficial"-- estaria promovendo uma caa s bruxas,deitando fogueira autores como Emerson e Shakespeare, enquanto louva outros porcausa de "pigmentao da pele e a orientao sexual", dentre fatores menos literrios.Entrementes, George, ou, melhor dizendo, "Benedito" Bush, lidera a "plutocracia"americana em sua sanha contra o que minimamente dotado de inteligncia --seja noOriente Mdio, seja em sua terra natal.

    Parte dos ataques est em "Onde Encontrar a Sabedoria?" (Objetiva, traduo de JosRoberto O'Shea, 320 pgs., R$ 44,90), conjunto de ensaios que procura retomar odebate sobre a suposta incompatibilidade entre filosofia e literatura, em voga pelomenos desde que Plato expatriou Homero (e os poetas) de sua Repblica utpica.

    E a polmica nos Estados Unidos deve continuar, conforme prev o prprio Bloom, como lanamento por l de "Jesus e Jeov", que sugere que os ltimos dois mil anos dereligio ocidental, no mnimo, estiveram baseados numa impostura. Segurem os cintos.

    Folha - Ao referir-se ao "Eclesiastes", o senhor diz que, aps os 70, poucosdeixam de sentir um calafrio diante do ritmo repetitivo desse texto bblico. Certasobras de arte s podem ser inteiramente apreciadas com a idade?

    Harold Bloom - Fiz 75 anos este vero e um dos meus alunos me perguntou isso,quando estava ensinando Walt Whitman. Eu havia dito que, ao ficar mais velho, adquiriaum entendimento cada vez mais profundo do motivo pelo qual sua grande elegia tovibrante e poderosa. No acho que seja a conscincia da mortalidade prxima. Creioque simplesmente um tipo de "perspectivismo" que ocorre quando envelhecemos--que no resulta do processo de envelhecimento, mas do fato de termos mais tempoacumulado de leitura, de releitura, de coisas memorizadas. como ocorre com pessoasque conhecemos h muito tempo e, de repente, vemos algo nelas que no vimos antes.Assim tambm com os livros.

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  • Folha - Poderia explicar o que quer dizer com a "Era do Ressentimento"?

    Bloom - No mundo de lngua inglesa, desde o final dos anos de 1960, os estudosliterrios ficaram mais politizados. O que ocorre nas universidades, hoje em dia, daAustrlia aos Estados Unidos, da Gr-Bretanha Nova Zelndia, que as obrasliterrias utilizadas para o estudo so escolhidas, no porque so esteticamente maispoderosas ou porque so mais sbias. O intelecto, a sabedoria e a beleza sosubstitudos por consideraes acerca da orientao sexual, gnero, pigmentao dapele, etnicidade e assim por diante. isso que quero dizer quando me refiro aRessentimento com "R" maisculo. Obviamente, estou jogando com o uso queNietzsche fez do termo francs "ressentiment", as instncias do "ressentiment".

    Folha - O senhor sugere que h um legado de Plato nessa ideologia.

    Bloom - Ah, sim, o tipo de puritanismo que hoje percorre as instituies de ensino. hipcrita, claro. A campanha contra o abuso sexual, por exemplo. Em ltima instncia,tudo tem origem em uma grande figura, cognitiva e esteticamente forte em sua beleza esabedoria como nenhum outro escritor jamais foi, que Plato. Profundamenteressentido contra Homero, porm, desde "A Repblica" at as "As Leis", foi se tornandocada vez mais puritano, cada vez mais moralista, mais e mais depreciador do estticoem sua tentativa desesperada de exilar os poetas da repblica, porque acusa Homerode contar mentiras, de no ensinar aos cidados do Estado as virtudes apropriadas. Emresumo, embora possa parecer que quero fazer uma indevida relao com o sculo 20,Plato tornou-se mais fascista. O que acho muito ruim sobre os Estados Unidos hoje emdia o fato de termos um fascismo de direita e um fascismo de esquerda. Temos ofascismo da contracultura que hoje se tornou a cultura oficial e que insiste em fazer seusjulgamentos com base num slogan, que ela chama de ps-colonialismo. Por outro lado,temos, claro, um regime belicoso, nos Estados Unidos, que devasta o Iraque, exploraos cidados pobres, especialmente os negros. No foi por acaso que toda aquela pobrepopulao desesperada, sem carro, que no pde fugir de Nova Orleans, fossecomposta por negros. No que o Brasil seja muito diferente, em relao a este ltimoponto, pelo que me contam meus amigos brasileiros, pois parece haver uma grandepopulao negra, explorada e miservel, no seu pas. Na verdade, nunca fui ao Brasil, adespeito dos vrios convites que recebi, e me arrependo disso, pois agora estou muitovelho para ir. No sei se vocs, em sua arena poltica, tenham algum que seja topssimo quanto o presidente Bush.

    Folha - Talvez no to poderoso.

    Bloom - Pelo que sei seu presidente reformista mostrou-se um tanto dbio, no ?

    Folha - As notcias sobre a crise poltica brasileira chegaram ao senhor?

    Bloom - Receio que haja uma longa tradio de coisas como essas ocorrendo emnossos pases. A corrupo grassa em qualquer lugar. Creio que a foi corrupofinanceira. Com rarssimas excees, um presidente sempre mais trapaceiro do que oanterior. muito triste ter ocorrido isso num momento em que o Brasil precisa todesesperadamente de um reformista. Aqui, nunca nos livraremos deste.

    Folha - Por qu?

    Bloom -- Acho que em janeiro de 2009, nosso novo presidente da Suprema Corte

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  • [John] Roberts se postar radiante perto do primeiro presidente Bush, do segundopresidente Bush e da sacrossanta me Barbara, todos igualmente radiantes, enquantoJeb Bush, o governador da Flrida, sagrar-se- presidente. Os Estados Unidos so hojeuma oligarquia e plutocracia, pior do que qualquer coisa possa haver no Brasil. Etambm estamos nos tornando uma teocracia.

    Folha - Em seu livro, o senhor afirma que a oligarquia e a plutocracia tomaram olugar da democracia.

    Bloom - A verdadeira perspectiva do que hoje ocorre na Amrica foi prevista pelogovernador e senador da Louisiana no final dos anos de 1920 e incio de 1930, HueyLong. Pouco antes de morrer, assassinado, em 1935, ele disse: "Claro que teremosfascismo na Amrica, mas ns a denominaremos democracia". isso o que estocorrendo aqui. Gosto de me referir a nosso presidente atual como Benito Bush.

    Folha - O senhor parece ter dvidas sobre pensadores de corte moral como Platoe Pascal. Acha que eles sempre se dispem contra a natureza humana, tal como descrita por Montaigne e Shakespeare?

    Bloom - Voc pode pr Shakespeare em oposio a Plato e Montaigne em oposio aPascal. Shakespeare e Montaigne so verdadeiros humanistas, ao passo Pascal no seimporta com a liberdade humana; para ele, tudo Deus, assim como para Plato,embora o deus platnico seja um tanto estranho.

    Folha - Acha que a sabedoria passa melhor sem a moral?

    Bloom - O ideal seria se as duas pudessem coexistir. Mas, como est, acho que todosns passaramos bem melhor se pudermos manter a sabedoria ideal o mais longepossvel tanto da religio quanto do moralismo.

    Folha - O senhor religioso?

    Bloom - Creio que sou religioso, mas de um modo hertico. Acho que em algum lugar,alm deste reino, alm do nosso cosmo, haja um sonho em exlio, um princpio divino, eacho que h um fragmento disso em cada ser humano, mas este se acha enterrado tofundo, to oculto no cerne ptreo do ser, que impossvel de ser escavado. Venhomeditando bastante a esse respeito, pois h um livro meu que vai me causar problemaquando for lanado, em duas semanas. Chama-se "Jesus and Yahweh: The NamesDivine" (Jesus e Jeov: Os Nomes Adivinham).

    Folha - Qual ser a polmica?

    Bloom - Em essncia, o livro defende que no h relao nenhuma entre o mais oumenos histrico Jesus de Nazar; o deus grego holstico dos mistrios, o teolgicoJesus Cristo, e o demasiado humano Deus hebraico Jeov. Isso significa que os ltimosdois mil anos de religio ocidental so uma farsa, sobretudo nos EUA, porque somoscada vez mais uma sociedade to teocrtica quanto a do Ir.

    Folha - Por que afirma que o livro de Freud, "O Mal-Estar na Civilizao" podeestar ultrapassado?

    Bloom - No est ultrapassado como anlise de nossos papis como seres humanos,mas parece fora do contexto social, que estava ainda embebido na cultura de Goethe, a

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  • idia de crescimento individual, de moldar o carter e o intelecto por meio da educao:acho que isso acabou quase em definitivo. A idia do crescimento humanista doindivduo por meio do conhecimento, a possibilidade de uma cultura mais alta, oaumento da civilizao, isso tudo tem muito pouco a ver com o sculo 21. O que"Bildung" significa hoje nos Estados Unidos, que elegeu ... cham-lo semi-analfabetoseria um elogio, no acho que ele tenha lido um s livro em toda a vida? Na verdadeestamos na Idade da Tela: os jovens crescem vidrados na tela da TV, na tela docomputador, do cinema. Na Idade da Tela, as pessoas no lem de modo profundo esrio. E se no se l profunda e seriamente, no se raciocina muito bem. O pensamentodepende da memria e o que iremos lembrar se no lembramos o melhor do que foiescrito? No sei quantos jovens no Brasil hoje lem Camus, quantos jovens italianoslem Dante, quanto jovens alemes lem Goethe ou quantos jovens aqui lem WaltWhitman. Acho que algo est ruindo. todo esse horrvel fenmeno "Harry Potter", queno tem nada a ver com leitura. Parece que estamos resvalando para o barbarismo, eesse fenmeno universal.

    Folha - Por que o senhor escolheu voltar a Jesus e a Santo Agostinho no final dolivro?

    Bloom - Trata-se do Jesus heterodoxo do "Evangelho de Tom". Agostinho decerto bastante ortodoxo, mas o que mais me interessa nele o fato de ele ser o maior tericoocidental (maior do que Nietzsche ou Freud, nesse sentido) da natureza da leitura, doque ocorre quando lemos, do papel da memria durante a leitura. Santo Agostinhocomo leitor que me fascina.

    Folha - Foi por isso que o senhor resolveu coment-lo no final.

    Bloom - Sim, porque ele fornece o modelo da leitura, a qual corremos o risco de perder.

    Leia o que j foi publicado sobre Harold Bloom

    Endereo da pgina:

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    Leia o que j foi publicado sobre Harold Bloomhttp://busca.folha.uol.com.br/search?q=%22Harold+Bloom%22&site=online&src=redacao

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