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Fontes de Leitura e uma Biblioteca na Poesia de Machado de Assis

Rutzkaya Queiroz dos Reis

Resumo: No tempo em que o nome Machado de Assis não está limitado apenas

ao que o consagrou como grande escritor, mas circunscrito no estudo e compreensão de

toda sua obra, a proposta é um passeio pelas leituras por ele transformadas em

referências, e que compõem o que podemos chamar de "uma biblioteca mundial", usada

em seus poemas, desde Crisálidas (1864) até Ocidentais (1901). Da Bíblia a Gauthier,

Santa Teresa de Jesus, Shakespeare, Musset, Mickiewicz, Camões, George Farcy, Mme.

Émile de Girardin, Mme. de Stäel, H. Heine, André Chénier, Garção, La Fontaine,

Lamartine, C. Marot, A. Dumas Filho, Sá de Miranda, Dante e Poe; Machado de Assis

compõe um quadro que causa estranhamento em tempos de projeção da literatura

nacional, e supremacia francesa na vida social e cultural do Brasil de sua época.

Palavras-Chave: Machado de Assis, Literatura Brasileira, Poesia, Fontes.

. . . . . . . essa mesma foi levada cativa para uma terra estranha.

NAUM, cap. III, v. 10

O poema “A Cristã Nova”, do livro Americanas (1870), tem por epígrafe o

versículo do livro do profeta menor Naum, escrito em 663 a.C. Nesta parte do Antigo

Testamento, Naum discorre acerca dos cem anos que se passaram desde que os ninivitas

se converteram pela pregação de Jonas, outro personagem muito conhecido por ter

passado três dias no ventre de um grande peixe. Assim como Jonas pregou ao povo da

Assíria para que se convertesse de seus maus caminhos, Naum é o profeta enviado por

Deus com uma mensagem clara e objetiva que anunciava o fim de Nínive, capital da

Assíria à época. O povo havia se esquecido de transmitir a mensagem de Deus, outrora

deixada por Jonas, aos seus filhos, que rapidamente se voltaram para as antigas e cruéis

práticas pagãs. A profecia deste livro ficou conhecida como “canto fúnebre de Nínive”,

ou “clamor da humanidade pela justiça”.

Outros personagens e passagens da Bíblia são evocados ao longo do poema.

Dividido em duas partes assinaladas por algarismos romanos, com IX cantos na I parte e

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XIX cantos na II parte, o poema narra a história de um velho judeu, pai de uma jovem

cristã-nova, e que presos pelo Santo Ofício, são levados de volta para a Europa.

A circunscrição histórica desta composição poética de Machado de Assis nos

obriga a voltar aos idos de 1700, às invasões dos franceses no Rio de Janeiro, e às

questões que envolviam os marranos, isto é, os cristãos-novos. Para tanto, Machado

recorre a personagens e passagens bíblicas que ora servem para descrever os aspectos

físicos de Ângela, a filha do ancião-judeu, e cristã-nova, ora para apresentar a

melancolia do pai da moça, que olha tristemente para a Baía de Guanabara lembrando-

se de sua Jerusalém. No canto IV da I parte, por exemplo, surge a figura da açucena dos

Cantares de Salomão, e Ruth, que se tornou esposa de Boaz, e teve sua história contada

pelo profeta Samuel. 1 Outras alusões diretas são feitas ao longo do poema: a Jesus/

Cristo, Moisés, e Babilônia, em que todas funcionam como metáfora do sujeito que para

ser livre foi antes cativo. Há ainda alusões indiretas, como a que ocorre do 30º ao 35º

1 A palavra “profeta” ocorre ocasionalmente antes de Samuel, como por exemplo em

Gn. 20.7 e Ex. 7.1. Mas, Samuel, ao que parece, foi o fundador de uma ordem regular

de profetas, mantendo escolas, primeiro em Rama (1 Sm. 19.20), depois em Betel,

Jericó e Gilgal (2. Rs. 2.3-5; 4.38). O sacerdócio estava quase todo corrompido; e

simultaneamente com a organização do reino, Samuel, ao que parece, iniciou essas

escolas como uma espécie de freio moram para sacerdotes e reis. Esses profetas

funcionaram durante o período de uns 300 anos antes do tempo dos profetas que

escreveram os últimos 17 livros do Antigo Testamento. Chamam-se profetas “orais”,

para se distinguirem dos profetas “literários”, que escreveram os livros. Os profetas

“orais” de maior evidência foram: Samuel, organizador do Reino; Nata, conselheiro de

Davi; Aias, conselheiro de Jeroboão; Elias e Eliseu que comandaram a batalha contra o

baalismo. (HALLEY, Henry H. Manual Bíblico, um comentário abreviado da Bíblia. 4ª

ed. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 168). Hoje pensamos nos profetas como aqueles que

predizem o futuro, mas nos tempos bíblicos um profeta era um mensageiro que

transmitia as palavras de Deus ao povo. Às vezes, a mensagem se referia a eventos

futuros, mas às vezes não; estava relacionada ao dia-a-dia das pessoas. Para os que

prediziam o futuro, caso a profecia não se cumprisse, 100% tal como foi dita, o profeta

e toda sua família eram apedrejados.

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versos do VII canto da I parte do poema, quando Machado retoma os versículos 9 e 13

do capítulo 16 do livro do profeta Ezequiel.2

Ao que parece, os textos e figuras bíblicas funcionam como metáforas de um

determinado momento histórico do Brasil, quando muitos judeus imigram para nossa

terra após serem expulsos da Península Ibérica, para mais tarde serem levados

novamente para a Europa pelo tribunal do Santo Ofício. Muitos desses judeus

professaram a fé cristã-católica, e ficaram conhecidos como “cristãos-novos”. Trata-se,

portanto, de uma história de cativos e exilados, que mesmo estando seguros em terra

estranha, em alguns casos se vêem cativos de outra cultura para que suas vidas sejam

poupadas. Com exceção da açucena dos Cantares de Salomão, as outras referências

bíblicas evocam o aspecto “peregrino” e “cativo” do povo hebreu. Ruth era moabita,

mas adota o Deus de Noemi, sua sogra e judia, como seu próprio Deus. Samuel é figura

marcante na história de Saul e Davi, ambos reis de Israel, sendo o primeiro aquele que

se esquece do seu Deus e o segundo aquele que se mantém fiel; o primeiro cativo dele

mesmo, pois se envaidece e perde o trono para o segundo, que cativo de alguns pecados,

arrepende-se sempre e volta-se para Deus. Tanto Saul quanto Davi foram peregrinos em

suas próprias terras, uma vez que travaram inúmeras batalhas para manter a unidade e

poderio do Reino. Já a referência à Babilônia remonta aos tempos do cativeiro do povo

judeu, tendo como episódio mais famoso, o momento em que Daniel é levado cativo

junto com seus três amigos que se vêem obrigados a negar a própria fé para não serem

mortos. Moisés por sua vez, ficou conhecido como o “príncipe do Egito”, pois fora

adotado pela família do Faraó, e mais tarde se negou a permanecer nela a fim de libertar

seu povo do cativeiro. Ezequiel foi profeta do cativeiro, levado para a Babilônia em 597

2 As edições até hoje publicadas, mesmo a mais recente, lançada pela Editora Record

(2008) traz como referência para esses versículos o livro do profeta Daniel. No entanto,

Machado de Assis deixou passar essa gralha até a última edição de suas Poesias

Completas, em 1902, não corrigindo a referência de Daniel para Ezequiel. O livro do

profeta Daniel tem apenas 12 capítulos, e o conteúdo dos versos alude aos versículos

presentes no livro do profeta Ezequiel. O livro de Daniel foi escrito por volta de 606

a.C. e Ezequiel por volta de 592 a.C. Mas, na organização dos textos na Bíblia, o livro

de Ezequiel vem antes do livro de Daniel.

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a.C. para anunciar a queda de Jerusalém, a restauração e o futuro glorioso de Israel. E

Jesus, o Cristo, é o Salvador de todos os homens, cativos do pecado.

Mas, por que Machado volta-se para textos antigos e retrata um momento

histórico do Brasil que aparentemente nada tem a ver com o tema central da maioria dos

poemas de Americanas, e mais grave que isso – ao menos aos olhos da crítica da época,

nada tem a ver com a literatura brasileira, tão sonhada, alardeada, projetada e divulgada

por seus confrades na literatura?

Foi lugar-comum da crítica contemporânea de Machado ver nele um autor

estranho à própria pátria e aos temas que interessavam à literatura. Em 1870, por

ocasião do lançamento de Americanas, as opiniões se dividiram. De um lado aqueles

que já reféns de um nome que se tornava cada dia mais conhecido e respeitado, e de

outro, aqueles que não rendiam graças ou louvores, fosse à sua literatura ou a seu lugar

como escritor:

Grande felicidade é, para quem hoje enceta essa crônica

literária, ter por assunto de seu primeiro artigo um livro de

Machado de Assis. As Americanas não careciam de trazer

assinatura: não h[a aí página, não há frase, em que se não revele

a bem caracterizada feição literária do escritor de A Mão e a

luva, do poeta das Falenas: ninguém mais no Brasil escreveria

livro igual. Assim, pois, a primeira coisa que se pode afirmar,

depois da leitura da sua última produção, é que a inspiração de

Machado de Assis e a sua maneira conservaram-se idênticas.

[...]

E, diga-se em honra da verdade e dos críticos que tem tido o

autor das Falenas, todos os seus louros, que abundantes são,

deve-os ele à consumada arte com que lavra, cinzela e pule as

suas obras. (Machado, 2003, p. 102)

Mas, “temos para nós que o Sr. Machado de Assis ainda não tomou o caminho de

Damasco”, escreveu a respeito das Americanas Sílvio Romero, o mais agressivo dentre

aqueles que se dispuseram a comentar ao longo dos anos a literatura machadiana. Na

poesia ou conto, e mais tarde no romance, Machado foi tido como aquele que era

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estranho para as letras de sua terra por evocar nomes, textos, e momentos históricos

pouco afeitos à preceptística do projeto nacionalista do romantismo, preferindo o

indivíduo à paisagem, o homem à política, o universal ao brasileiro. “A luz miraculosa

que mudou as idéias de Saulo não brilhou para o vate de Potira e o sentimento

americano não se apossou de sua alma, mais subjugada por natureza alheia”, continuava

Sílvio Romero.3

Mesmo os que não se levantaram contra, assinalaram e sentiram, do mesmo

modo, a falta do que anuncia o título do livro:

Entretanto, ao ler o título de seu último livro, era lícito supor que

se ia admirar nova face de tão claro estro, que a alma americana,

ainda que um pouco tolhida nas vestes com que usa de

apresentar-se a musa do ilustre poeta, palpitasse nessas páginas.

Mas não. Não falamos já do estilo, demasiado português;

referimo-nos ao “essencial”, que é a alma do homem. Essa é

que, nas Americanas, não é americana. Onde os pensamentos

virgens como a flora opulenta de nossas selvas? Onde as grandes

paixões generosas e indômitas como os leões de nossos ermos?

Onde a poética singeleza do dizer primitivo? E as paisagens

sempre várias e novas desta natureza sem par? Onde, em sua, a

grandiosa incorreção que é o cunho da incauta beleza do mundo

novo? (Machado, 2003, p. 103)

Houve voz na crítica que para se livrar da tarefa de apontar a falta da “cor local”

nos versos de Machado de Assis, criticou outros poetas que tentaram, sem sucesso, dar a

seus versos esse aspecto de nacionalidade:

O último trabalho do conceituado poeta, se não é revelação

perfeita do que deve ser a poesia propriamente americana, é pelo

menos muito mais aceitável e curial do que a infeliz tentativa de

alguns outros poetas brasileiros que, a pretexto de fazerem

poesia nacional, foram imitando a torto e a direito o gênero

3 MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 99.

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quase selvagem iniciado por Gonçalves Dias. (Machado, 2003,

p. 104)

Três anos após a publicação de Americanas, no conhecido ensaio crítico “Notícia

da atual literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade”, Machado observa que há certo

instinto de nacionalidade até “nas manifestações de opinião, aliás mal formuladas ainda,

restrita ao extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia

e literatura”. Acrescenta que “há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as

obras que trazem os toques nacionais”. 4

Leitor do que liam seus confrades de versos e da literatura no Brasil, Machado

desde o início de sua carreira demonstra disposição para, além disso, elencar outros

nomes e literaturas. Conhecido por sua ávida leitura da Bíblia, especialmente do

“Eclesiastes” de Salomão, vaza dos versos de “A cristã-nova” essa leitura bíblica.

Os títulos e epígrafes de maior parte dos poemas que compõem Americanas

deixam clara a intenção no trabalho com o elemento nacional através da figura do índio,

principalmente; uma marca do trabalho romântico por excelência.

Nosso índio, brasileiro, teve assim como os judeus o contato com o cristianismo e

a experiência de uma conversão, genuína ou política. Padre Antônio Vieira viu nos

índios brasileiros os hebreus perdidos, os peregrinos, que precisavam de Cristo para

encontrarem salvação e lugar na terra. Essa visão do índio era num primeiro plano

literal, ou seja, o índio era de fato o perdido, tanto quanto o hebreu. Num segundo

plano, alegórica, posto que o índio representava naquele momento histórico brasileiro, o

hebreu dos tempos bíblicos.

O ancião judeu, pai da cristã-nova dos versos de Machado, bem que poderia ser

um índio brasileiro, que consciente do domínio europeu, narra sua história como se

fosse a de seu próprio povo, lembrando que embora tenha perdido as terras, seu Deus

continua intacto e firme em seu coração; eis a pátria suprema, o sentimento “íntimo, que

o torna homem do seu tempo e do seu país, ainda que trate de assuntos remotos no

tempo e no espaço”5:

“ Vaso é digno de ti, lírio dos vales,

Terra solene e bela. A natureza 4 ASSIS, Machado de. Obra Completa. Vol. 3. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1992, p. 801. 5 Ibid., p. 804.

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Aqui pomposa, compassiva e grande,

No regaço recebe a alma que chora

E o coração que túmido suspira.

Contudo, a sombra pesarosa e errante

Do povo que acabou pranteia ainda

Ao longo das areias,

Onde o mar bate, ou no cerrado bosque

Inda povoado das relíquias suas,

Que o nome de Tupã confessar podem

No próprio templo augusto. Última e forte

Consolação é esta do vencido

Que viu tudo perder-se no passado,

E único salva do naufrágio imenso

O seu Deus. Pátria não. Uma há na terra

Que eu nunca vi . . . Hoje é ruína tudo,

E viuvez e morte. Um tempo, entanto,

Bela e forte ela foi; mas longe, longe

Os dias vão de fortaleza e glória

Escoados de todo como as águas

Que não volvem jamais.6

A leitura que Machado faz do elemento nacional foge das linhas do domínio

romântico, propõe uma literatura brasileira atenta às referências da literatura universal,

sem deixar de vislumbrar o horizonte local e nacional. Trata-se de um índio que embora

brasileiro, não é único em sua condição de peregrino e cativo, pois é antes de ser índio,

humano, mas é também índio porque se reconhece como humano através da cultura na

qual foi formado. A alegoria de Vieira ganha novas proporções com Machado, que

reaproveita a primeira instância alegórica, o hebreu, a segunda, o judeu marrano, para 6 Versos de 9 a 30 do canto VII da I parte de “A cristã-nova”. Texto estabelecido por

REIS, Rutzkaya Queiroz dos. Poesias Completas: um passeio pelas edições para o

estabelecimento dos textos. Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária.

Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas, 2003.

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sugerir numa terceira, o índio brasileiro. Não se pode afirmar que Machado lê Vieira

para fazer o brasileiro de sua época ler um novo índio em seus versos. A Bíblia é leitura

certa, e com ela a leitura e conhecimento acerca da condição dos marranos e dos

cristãos-novos que aportaram em terras brasileiras. A epígrafe que abre o poema é o

mote para a escritura dos versos, mas também da literatura desejada e construída por

Machado, mote esse que promove ainda o espaço para novas referências dentro do

próprio poema, e na poesia e literatura machadianas.

O índio, nos versos de Machado, é brasileiro na medida em que lê e percebe sua

condição e lugar no momento histórico em que vive. Tal leitura considera, portanto, a

terra, o lugar, os movimentos desta terra e lugar, as pessoas que nela estão, e nela, por e

para ela trabalham ou dominam. Mas esse índio é além de brasileiro, humano, na

medida em que lê e percebe que sua história é outra e diversa no tempo e espaço, e

concomitantemente a mesma que de outros, em outros tempos e espaços, por isso,

independe, ao mesmo tempo que depende, do lugar, do espaço, do povo e do momento

histórico. O índio machadiano se eleva em sua individualidade e brasilidade quando

circunscrito como brasileiro no universo humano, é brasileiro não apenas por estar e

falar do Brasil, mas por estar e falar de um Brasil que compõe e faz parte do mundo.

A capacidade para ler, citar e trabalhar com Gauthier, Santa Teresa de Jesus,

Shakespeare, Musset, Mickiewicz, Camões, George Farcy, Mme. Émile de Girardin,

Mme. de Stäel, H. Heine, André Chénier, Garção, La Fontaine, Lamartine, C. Marot, A.

Dumas Filho, Sá de Miranda, Dante e Poe, como fontes de leitura que produz uma

literatura que é brasileira também porque se inscreve na literatura universal, é

característica presente já no Machado poeta, da chamada 1ª fase, e não apenas no

Machado prosador, especialmente o da 2ª fase, como tão bem já assinalou a crítica ao

longo desses últimos anos.

Há um predomínio da literatura européia. João Roberto Faria (2006), mostra que

Machado de Assis foi leitor voraz da literatura européia sem pretender esconder as

fontes ou mesmo negar as influências sofridas, ao contrário, fez sempre questão de

explicitar os seus empréstimos e apropriações.

Os versos de “Polônia”, em Crisálidas, trazem a voz de Adam Mickiewicz, poeta

romântico que dedicou parte de sua poesia ao estudo da nação polaca em tempos de

opressão e guerra. O lusitano Camões que é evocado numa epígrafe, é erigido tal como

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um busto nos versos de “Elegia”. Dante e Shakespeare dão voz à musa nos “Versos a

Corina”, “Quando ela fala”. Nada mais brasileiro, de um povo treinado desde 1500 para

receber incursões jesuítas e de tantos outros religiosos de terras estranhas, que trazer a

carmelita espanhola Santa Teresa de Jesus na epígrafe para abrir o poema-oração “Fé”,

justamente ela que é reconhecida como mestra insuperável da oração. A francesa

Delphine Gay de Girardin, a Mme. Émile de Girardin, canta o amor de um escravo pela

rainha do Egito, Cleópatra. D’A Commedia dell'Arte, italiana, saem os “Arlequins”

machadianos tirados à francesa Mme. de Stäel. Tem-se ainda o Sá de Miranda viajante

nos versos de cata-vento e mulher d’“As Ventoinhas”, que deixa ainda “No Espaço” da

poesia machadiana, lugar para Lovelace e Romeu conversarem com La Rochefoucauld.

Com “O Corvo” de Edgar Allan Poe, Machado “nunca mais” “bateu à porta de

mansinho” da literatura brasileira que dormitava sempre nas mesmas referências.

Shakespeare empresta um “To be or not to be” que longe de ser dúvida, para Machado é

resposta, o encontro com a unidade, individualidade, portanto, com a nacionalidade, e

do escritor com sua identidade literária.

A Bíblia, essa leitura recorrente em Machado, tem sua unidade a partir dos seus

66 livros escritos ao longo de mais de 1500 anos, por mais de 40 autores; desde médico,

copeiro, rabino e coletor de impostos, até monarcas e outros líderes políticos e

religiosos.

Peregrinos em terra estranha, no chão da formação de uma literatura nacional, os

contemporâneos de Machado não foram profetas posto que suas “profecias” não se

cumpriram de todo. Para a formação de uma identidade nacional, de um nome literário

não era necessário o sacrifício do passado histórico ou a construção de ícones e

símbolos para a representação literária.

Mas é nessa Babel de muitas vozes, línguas, povos e nações presentes nas

referências e epígrafes da poesia machadiana, em que se forma uma biblioteca inteira,

que há traços de um mundo brasileiro, parte constituinte do universo literário, e que

permite então a percepção e construção de sua individualidade, de sua identidade

literária.

Seguir sempre os mesmos modelos, alimentar escritores com a mesma linguagem,

nutrir as mesmas expectativas é processo de aprisionamento, em que a literatura torna-

se prisioneira de si mesma, e uma prisioneira disforme nem tanto pelo cansaço e agruras

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da prisão, mas por ainda não ter uma feição delineada. Ao contrário do que profetizaram

os escritores contemporâneos de Machado, descobre-se em seus versos que terra

estranha não é a literatura estrangeira evocada pelo escritor nascido brasileiro, mas a

literatura produzida por todo escritor nascido em terra brasileira que ao imitar a língua

da literatura estrangeira que evoca, faz da literatura que produz cativa do modelo que

ela elege, em remendos pretensamente brasileiros. Descobre-se nos versos machadianos

que as fontes revelam uma multiplicidade, uma pluralidade fruto natural da leitura do

Machado brasileiro, que evocar o estrangeiro não é falta de “cor local”; não saber o que

fazer com ele assim que aporta em nossas terras é sim, o desnudamento e o revelar da

estranheza com o próprio fazer literário, o não ser escritor, não ser poeta.

A Biblioteca formada e formadora dos versos de Machado revela um brasileiro,

escritor e poeta.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado. Obra Completa. Vol. 3. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1992.

FARIA, João Roberto. “Machado de Assis, leitor de Musset”. In: Teresa: revista de

Literatura brasileira 6/7, p. 365, 2006.

HALLEY, Henry H. Manual Bíblico, um comentário abreviado da Bíblia. 4ª ed. São

Paulo: Vida Nova, 1994.

MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. Rio de Janeiro:

EdUERJ, 2003.

NOVINSKY, Anita.O olhar judaico em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Expressão e

Cultura, 1991.

REIS, Rutzkaya Queiroz dos. Poesias Completas: um passeio pelas edições para o

estabelecimento dos textos. Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária.

Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas, 2003.

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