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    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, v. 11, n. 4, p. 726-734, dezembro 2008 (Suplemento)

    Fontes e debates em torno da sade doescravo no Brasil do sculo XIX*

    ngela Prto

    Este trabalho apresenta uma amostragem da produoacadmica recente sobre a sade do escravo no Brasil e osdebates e tendncias atuais sobre a questo. Enfocam-se tantoos atuais trabalhos da rea de Histria como as principaisfontes disponveis sobre a questo at agora reunidas pelapesquisa, que coordeno na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Apesquisa busca reunir essas fontes, organizando-as em umbanco de dados, que ser brevemente disponibilizadopublicamente.Palavras-chave: Histria da Sade, escravido, bibliografia, Brasil

    * Verso modificada e ampliada de trabalho apresentado no XIV Congreso de la SociedadEspaola de Historia de la Medicina, na mesa temtica Males e infortunios de laesclavitud: visiones sobre las enfermedades de los negros esclavos en Amrica. Gra-nada, 11 a 14 de junho de 2008.

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    Observamos na historiografia brasileira que a questo da sade eda doena do escravo tem sido analisada apenas indiretamente nos tra-balhos acadmicos sobre a escravido em geral e que os mltiplos as-pectos relacionados a essa questo so apenas parcialmente conhecidos,alm de se encontrarem dispersos em fontes primrias de diversas ori-gens. Este quadro, no entanto, tem mudado nos ltimos anos. Tesesrecentes encontram no estudo das prticas de sade, doena e cura umespao de interessante valor histrico para a observao das tenses,conflitos e negociaes na sociedade escravista, ver por exemplo emWitter (2007) a negociao das liberdades permeada pelas questes desade, e em Sampaio (2001) e Pimenta (2003) a convivncia e os con-flitos entre teraputicas. Novos programas de pesquisa desenvolvem-sehoje com vistas a explicar as percepes historiogrficas da escravido,como os freqentes Encontros de Escravido e Liberdade no BrasilMeridional e os cada vez mais numerosos Simpsios Temticos volta-dos para escravido, organizados em Congressos de Histria; publica-es de divulgao de pesquisas como CD-ROM (Porto, ed. 2007) e GuiaBibliogrfico (Xavier, 2007) e Cursos, como o de Doenas e Escravi-do: sistema de sade e prticas teraputicas, no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Sade da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. To-dos esses empreendimentos visam abrir novos caminhos para temascomo a sade fsica e mental do escravo. Vale lembrar que nos ltimosanos, temas como suicdio e doena mental ganharam destaque, ver porexemplo Oda (2007), Lorenzo (2007) e Oliveira (2007 e 2008), entreoutros. O trabalho que desenvolvemos na Casa de Oswaldo Cruz tembuscado reunir fontes e pesquisas que dem devida visibilidade ao temada sade na histria da escravido, organizando-as em um banco dedados, que ser brevemente disponibilizado. Desde maro de 2006 ini-ciamos o projeto Sistema de sade do escravo no Brasil do sculo XIX:instituies, doenas e prticas teraputicas, que realiza uma srie deatividades com vistas a estimular pesquisas sobre essa temtica. Almde realizar tal sntese historiogrfica, nosso objetivo principal tem sido

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    analisar o pensamento mdico em torno da escravido, a partir das teses mdi-cas defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia e dos pe-ridicos mdicos, que elegeram temticas ligadas escravido e doenaassociada ao trfico. Buscamos verificar a hiptese da existncia de uma tradi-o especfica do pensamento mdico brasileiro e a associao de certas doen-as ao trfico de escravos, como expresso da trajetria histrica de umasociedade marcada pela escravido.

    O sculo XIX registrou o maior nmero de entradas de escravos africanosno Brasil e, ao mesmo tempo, das tentativas para a eliminao do chamado co-mrcio infame. Foi tambm nas primeiras dcadas do sculo XIX, que se deu acriao da Sociedade de Medicina no Rio de Janeiro, depois denominada Acade-mia Imperial de Medicina e das faculdades de medicina do Rio de Janeiro e Bahia,anteriormente academias mdico-cirrgicas, assim como o aparecimento de di-versos peridicos dedicados propagao do conhecimento mdico. Sobre asinstituies mdicas ver Edler (2003) e sobre os peridicos ver Ferreira (1999).Em meio s discusses travadas em torno da abolio do trfico de escravos, ainstitucionalizao da medicina levou produo de trabalhos sobre as principaisdoenas que acometiam a populao, datando dessa poca os primrdios dos es-tudos sobre as chamadas doenas africanas. Doenas como a febre amarela e asfilis foram atribudas ao trfico nas teses produzidas entre 1835 e 1855, comoverificaram Zampa e Kodama (2007). A atribuio de determinadas doenas aospovos provenientes da frica um assunto que est presente no pensamentomdico at os nossos dias, e cuja argumentao se consolidou com os estudosclssicos de Rodrigues (2004) e Freitas (1935). O objetivo da pesquisa de KaoriKodama, na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, analisar as coordenadas mais ge-rais do pensamento mdico brasileiro, relacionado problemtica da escravido,das raas e da constituio de um modelo de nao, ressaltando-se os discursossobre doenas dos escravos, ou de origem africana.

    A higiene do escravo e as doenas que mais os acometiam foram tema deteses, manuais, tratados e artigos em peridicos mdicos especializados. Os ma-nuais dedicados aos proprietrios de escravos tm claro intuito civilizador e, maisdo que prescrever teraputicas, seus autores se dedicam a aconselhar condutasmorais e a educar higienicamente. A partir do relato das enfermidades, os auto-res orientam os senhores no trato de sua escravaria, arrolando doenas, causas,tratamento e cuidados no processo curativo e preventivo de enfermidades maiscomuns. Ver, por exemplo, os manuais de Imbert (1834), Fonseca (1863) e Tau-nay (1839); o captulo III, dedicado s enfermidades dos negros, do clssico tra-tado de Sigaud (1844); e os dicionrios mdicos de Chernoviz (1890) eLanggaard (1873), que trazem observaes especficas quanto aos negros.

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    Quanto s teses das faculdades de medicina, apenas quatro teses elegendoa temtica higiene do escravo foram defendidas no Rio de Janeiro: Jardim(1847), Duarte (1849), Souza (1851) e Teuscher (1853). Na Bahia, nenhuma teseelegeu essa temtica; o assunto , porm, abordado em trabalhos que no tm oescravo como foco principal. O negro africano, escravo ou no, estar referidoem inmeras teses de ambas as faculdades. Como observa Silvio Lima, douto-rando do Programa de Ps-Graduao em Histria das Cincias da Sade, a partirde levantamentos cuidadosos de artigos e teses do sculo XIX, existe uma con-sidervel produo intelectual que aborda o tema o negro e as doenas proce-dentes da frica. Alm disso, ao relacionar os africanos, cativos ou libertos, adeterminadas doenas, mdicos e cirurgies produzem inmeros relatos nos pe-ridicos mdicos, originrios da observao de doenas em negros. Para citar al-guns desses jornais: O Atheneo: peridico cientfico e literrio dos estudantes daescola Mdica da Bahia; Archivo Mdico Brasileiro: gazeta mensal de medici-na, cirurgia e sciencias accessorias e Jornal da Academia Mdico-Homeopticado Brasil; todos publicados entre os anos 1840 e 1850 do sculo XIX.

    Igualmente, com o objetivo de estimular a discusso e as perspectivas denovas abordagens sobre a vida higinica dos escravos no Brasil, efetuamos o le-vantamento e anlise do conjunto documental do Arquivo da Santa Casa de Mi-sericrdia do Rio de Janeiro e da Bahia, nica instituio a prestar atendimentohospitalar aos escravos at a primeira metade do sculo XIX e responsvel pelossepultamentos. A Santa Casa a administradora dos cemitrios pblicos, desdeque foram criados, em 1851, tendo recebido, desde 1831, com o encerramentodo cemitrio dos Pretos Novos, os cadveres de africanos livres e escravos parasepultamento no Cemitrio da Misericrdia. Guarda, portanto, farta documenta-o sobre bitos de escravos.

    Jorge Prata de Sousa (2003) j observou, a respeito dos registros de bi-tos dos cemitrios pblicos administrados pela Santa Casa, que:

    Esses manuscritos so ricos em detalhes, oferecem informaes sobre ascausas mortis, o nome do falecido, condio jurdica e estado conjugal, idade,ofcio e endereo (...) obedecem a uma sistemtica, possuindo estrutura fixa e na-tureza serial. Possibilitam comparar bitos de escravos com de livres, forros e afri-canos livres; mapear as causas de morte; observar a sazonalidade de algumasdoenas epidmicas; calcular ndices de mortalidade por sexo, idade, nacionali-dade; e a distribuio de escravos por proprietrios. Alm desses itens pode-seainda analisar a nomenclatura das doenas como expresso de um sistema clas-sificatrio que reflete o conhecimento da patologia clnica da poca. (p. 35)

    Pretendemos, ao divulgar a documentao dos Hospitais da Santa Casa, abrircaminhos para a pesquisa em histria da sade dos escravos no Brasil e forne-

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    cer um aspecto um pouco mais amplo do tratamento das doenas em escravos,fazendo uso no apenas dos registros de bitos, mas de variada documentao.Os resultados demonstrados por Karasch (2000), em seu estudo at hoje incom-parvel, sobre a vida dos escravos no Rio de Janeiro, baseia-se fundamentalmentena documentao desse mesmo arquivo. Sabemos que, ao contrrio da SantaCasa de Misericrdia d