Forma mercadoria, forma do pensamento e direito na obra de Alfred Sohn-Rethel - Lion.pdf

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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE THIAGO FERREIRA LION FORMA MERCADORIA, FORMA PENSAMENTO E DIREITO NA OBRA DE ALFRED SOHN-RETHEL São Paulo – SP 2011

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    THIAGO FERREIRA LION

    FORMA MERCADORIA, FORMA PENSAMENTO E DIREITO NA OBRA DE ALFRED SOHN-RETHEL

    So Paulo SP

    2011

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    Thiago Ferreira Lion

    FORMA MERCADORIA, FORMA PENSAMENTO E DIREITO NA OBRA DE ALFRED SOHN-RETHEL

    Dissertao apresentada ao programa de Ps- Graduao em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial a obteno do titulo de Mestre em Direito Poltico e Econmico.

    Orientador: Prof. Dr. Alysson Leandro Barbate Mascaro

    So Paulo SP

    2011

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    THIAGO FERREIRA LION

    FORMA MERCADORIA, FORMA PENSAMENTO E DIREITO NA OBRA DE ALFRED SOHN-RETHEL

    Dissertao apresentada ao programa de Ps- Graduao em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial a obteno do titulo de Mestre em Direito Poltico e Econmico.

    Aprovado em:

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Alysson Leandro Barbate Mascaro - Orientador

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Gilberto Bercovici

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr. Mrcio Bilharinho Naves

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    Dedico este trabalho a minha amada me,

    Anglica Baganha Ferreira, que, neste momento, resiste bravamente!

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    RESUMO

    Esta pesquisa dedicada obra do filsofo, historiador e economista alemo Alfred

    Sohn-Rethel e s contribuies que sua teoria tem a oferecer para a anlise do

    direito. A anlise da forma mercadoria efetuada por Marx o ponto de partida para a

    crtica da teoria do conhecimento feita pelo autor, que revela como possvel os

    humanos terem um conhecimento puro, desvinculado do nvel emprico, ao qual se

    refere Kant quando afirma a existncia de categorias a priori do conhecimento. O

    surgimento do pensamento conceitual, da lgica formal, o debate principal de sua

    obra e base a partir da qual se retira elementos para a anlise daquele fenmeno

    social ao qual chamamos de direito.

    Palavras-chave: Alfred Sohn-Rethel, forma mercadoria, forma valor, economia,

    abstrao real, dialtica, materialismo histrico, teoria do conhecimento, direito,

    sujeito de direito.

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    ABSTRACT

    This research is dedicated to the work of the philosopher, historian and German

    economist Alfred Sohn-Rethel and the contributions that his theory has to offer for

    the analyses of law. The analysis of the commodity form made by Marx is the starting

    point for criticism of the theory of knowledge by the author which shows how humans

    can have a pure knowledge, separated from the empirical level, which Kant refers

    to when he says of the existence of a priori categories of knowledge. The emergence

    of conceptual thinking, of formal logic, is the main discussion of his work and base

    from which to take elements to the analysis of that social phenomenon which we call

    law.

    Keywords: Alfred Sohn-Rethel, commodity form, value form, economy, real

    abstraction, dialectics, historical materialism, theory of knowledge, law, subject of

    law.

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    SUMRIO

    Introduo ............................................................................................................................ 9

    1 - Marxismo e bases do pensamento de Sohn-Rethel ................................................ 15

    1.1- Dialtica e questo da verdade ............................................................................ 15

    1.2- Materialismo histrico e crtica gentica. ............................................................. 32

    2 - Sntese social e lei do valor ........................................................................................ 43

    2.1 O conceito de sntese social ............................................................................... 43

    2.2 Sociedades de produo (comunismo primitivo) .............................................. 49

    2.3 Sociedades de apropriao unilateral (modo de produo asitico) .............. 53

    2.4 - Sociedades de apropriao recproca (lei do valor) .......................................... 66

    2.4.1 Da apropriao unilateral apropriao recproca .................................... 66

    2.4.2 Forma valor como eixo do materialismo histrico ...................................... 71

    2.4.3 Os limites da anlise do valor em Sohn-Rethel ......................................... 79

    2.4.4 Lei do valor e escravagismo......................................................................... 90

    2.4.4 Lei do valor e feudalismo .............................................................................. 97

    2.4.5 Lei do valor e capitalismo ........................................................................... 102

    3 - Abstrao real e crtica da epistemologia ............................................................... 110

    3.1 - Materialismo histrico e teoria do conhecimento............................................. 110

    3.2 - A abstrao real ............................................................................................... 120

    3.3 - Limites da compreenso da abstrao real por Sohn-Rethel ........................ 136

    3.4 - A anlise da abstrao da troca ........................................................................ 144

    3.4.1 Solipsismo Prtico ....................................................................................... 145

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    3.4.2 - Quantidade abstrata e postulado da equao da troca .......................... 147

    3.4.3 - Tempo e espao abstratos .......................................................................... 149

    3.4.4 - Substncia e acidentes ............................................................................... 150

    3.4.5 - Atomicidade .................................................................................................. 152

    3.4.6 - Movimento abstrato ..................................................................................... 153

    3.4.7 - Causalidade estrita ...................................................................................... 154

    4 - Sohn-Rethel e o direito ............................................................................................. 157

    4.1 O direito diretamente tratado por Sohn-Rethel ............................................... 157

    4.2 Intelecto independente, subjetividade, luta de classes e direito .................. 163

    4.3 - Poltica e direito como decorrncia do valor como forma social total ......... 178

    4.4 - Abstrao real e direito: implicaes da teoria de Sohn-Rethel na anlise da forma jurdica por Pachukanis .................................................................................... 187

    Concluso ........................................................................................................................ 209

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 213

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    Introduo

    Este trabalho tem por tema o direito na obra de Alfred Sohn-Rethel,

    importante pensador marxista alemo. Apesar de ainda pouco conhecida, a teoria

    desenvolvida por ele tem mxima relevncia para a explicao de uma grande gama

    de fenmenos sociais e mesmo sua integrao com nossa compreenso dos

    fenmenos naturais. Sua obra mostra-nos como a anlise da forma mercadoria

    efetuada por Marx no apenas serve como base para a crtica da economia

    poltica, mas como em seu desenvolvimento est contido o fundamento para a

    crtica da prpria teoria do conhecimento, o ponto nodal da filosofia e da explicao

    de toda a forma de conhecimento cientfico.

    A mercadoria no meramente uma coisa, um objeto puro e simples, como a

    princpio possa parecer, mas uma relao social projetada na coisa. Esta relao

    abstrata, mas seu carter de abstrao est na prpria prtica mercantil do homem

    e no primeiramente em sua conscincia. A mercadoria , assim, uma abstrao

    real, abstrao que se passa fora das mentes, mas que possibilita o pensamento

    conceitual provendo a conscincia de sua forma, que constitui a base da lgica

    formal e da cincia.

    O direito no ponto de partida para esta anlise da forma mercadoria, antes

    sua compreenso que depende da anlise desta. Sohn-Rethel, por este motivo,

    no se debrua longamente sobre o especificamente jurdico. Seu caminho terico

    da forma mercadoria para a forma de conhecimento. Nesta ltima, no entanto,

    encontra-se toda a base pela qual o direito articula-se, pela qual ele se torna objeto

    do conhecimento e operacionalizado. A prtica jurdica no somente prtica,

    mesmo em seu nvel menos complexo ela mostra-se como uma relao social que

    envolve teoria na utilizao de determinada racionalidade para desencadear seus

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    efeitos prticos. O direito no uma coisa material, mas algo abstrato e, no entanto,

    no deixa de ser portador de uma objetividade.

    O direito articula-se como idia, ele no algo emprico que exista por si,

    longe da conscincia humana, mas ao mesmo tempo no se trata de uma idia

    subjetiva, concernente a um nico indivduo. Nele est vivo um paradoxo insolvel

    pela forma tradicional de pensamento, que v o mundo a partir da oposio

    sujeito/objeto. Tal se d, pois apesar de existir apenas pela mente dos indivduos, o

    direito no trata de algo subjetivo concernente a cada indivduo isoladamente. Ao

    contrrio, as normas jurdicas so de observncia obrigatria, no so

    subjetivamente que elas valem, independentemente do indivduo elas existem no

    tecido social. O direito no real no sentido de objeto concreto, que exista per se,

    mas tambm no s idia, pois ganha uma concretude ao passo em que parte

    das relaes sociais. Ele uma abstrao, mas uma que pelas relaes do homem,

    adquire uma existncia real, objetiva.

    Analisado por este ngulo, o direito se revela, assim como a forma

    mercadoria, uma abstrao real, um produto das relaes sociais, um determinado

    tipo de conscincia social necessria para existncia daquelas relaes. O direito,

    enquanto abstrao, no entanto, no surgiu por si. Ele mesmo s existe em

    decorrncia de outra abstrao, mais profunda, surgida com a produo de

    mercadorias. a abstrao real da forma mercadoria, a gnese da abstrao do

    pensamento em formas puras da razo e a condio para outras abstraes que

    dominam a vida social, como autnomas face ao indivduo. Explicar esta abstrao

    matriz da forma valor o foco da obra de Sohn-Rethel.

    O estudo desta abstrao coloca em evidncia a relao entre o pensar e o

    ser, a dialtica constitutiva do ser social em todas as suas manifestaes. O direito

    apenas parte subordinada ao todo composto pelas relaes dos homens entre eles

    prprios e com a natureza. Como parte, ele depende, para ser corretamente

    compreendido, da explicao prvia de seu surgimento e desenvolvimento a partir

    desta relao do homem entre si e com o ambiente.

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    primeira vista pode parecer estranho estudar o direito a partir da crtica da

    teoria do conhecimento, mas, se levando em conta que esta a base, por vezes

    inconsciente, de sustentao de todas as teorias jusfilosficas, sua necessidade

    para uma interpretao original e crtica do direito resta clara. A poltica e o direito

    tm de ser explicados historicamente e analisados em conjunto com a totalidade das

    relaes sociais, e no como fenmenos apartados, autnomos desde a gnese,

    como eles comumente aparecem ao pensamento. Dentro da totalidade das relaes

    do homem, as econmicas so as mais profundas, econmicas no apenas no

    sentido capitalista de geradoras de valor, mas como relaes que os homens

    mantm entre si para obter da natureza o seu sustento.

    A obra de Sohn-Rethel ainda pouco conhecida at mesmo dentro do

    marxismo, mas aps o longo perodo em que foi ignorada, a mesma tem sido

    descoberta por grandes pensadores contemporneos. Deste modo, o conhecido

    filsofo esloveno Slavoj Zizek aps descrever a anlise da forma mercadoria como

    uma verso pura destilada, por assim dizer, de um mecanismo que nos oferece

    uma chave para compreender fenmenos que, primeira vista, nada tm a ver com

    o campo da economia poltica (direito, religio etc.)1, continua a explicar esta,

    dizendo de sua relao com o autor aqui pesquisado:

    Definitivamente h mais em jogo na forma mercadoria que a forma mercadoria em si, e foi precisamente esse algo a mais que exerceu um poder de atrao to fascinante. O terico que foi mais longe na revelao do alcance universal da forma-mercadoria foi, sem sombra de dvida, Alfred Sohn-Rethel, um dos companheiros de viagem da Escola de Frankfurt. 1

    Da mesma forma, a vertente marxista hoje conhecida como crtica do valor,

    tem Sohn-Rethel como uma de suas bases. Anselm Jappe, conhecido membro do

    grupo Krisis/Exit, diz sobre o autor:

    Sohn-Rethel um dos raros marxistas que ainda tem alguma coisa a nos dizer para a compreenso do sculo XXI. De incio, porque ele retomou, no conjunto da teoria de Marx, o ncleo mais valioso e mais profundo: A anlise da lgica do valor e da mercadoria. Sohn-Rethel compreendeu bem em uma poca em que quase ningum conseguia que segundo Marx a

    1 SLAVOJ, Zizek. Como Marx inventou o sintoma?.In___ Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998. p.301.

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    caracterstica mais essencial do capitalismo a abstrao que este impe vida social2.

    O fato de ter sido ignorada pelas correntes dominantes dentro do marxismo,

    no significa que grandes pensadores no tiveram contato com a obra de Sohn-

    Rethel, prova disso a amizade mantida por mais de trinta anos com Adorno. Entre

    a correspondncia trocada por eles podemos ler elogios de Adorno como os da

    passagem abaixo:

    Eu creio de no exagerar, se lhe disser que sua carta significou a maior sacudida espiritual que eu experimentei em filosofia depois de meu primeiro encontro com o trabalho de Benjamin - e isso foi no ano de 1923! Essa sacudida registra a profundidade de uma concordncia, que vai muito alm do que o Senhor podia suspeitar e eu mesmo suspeitava. E somente a conscincia dessa concordncia (da qual pode ter percebido traos no conceito da falsa sntese no trabalho sobre jazz), mas que no essencial est na transposio crtico-imanente (= identificao dialtica) do idealismo em materialismo dialtico; no conhecimento de que no a verdade que est contida na histria, mas a histria na verdade; e na tentativa de uma proto-histria da lgica consiste - s esta concordncia ingente e ratificadora me impede de designar seu trabalho de genial - a angstia, de que se quereria que fosse tambm o prprio! Com nossa explicao social da razo pura desvanece a impossibilidade antinmica de unidade da cincia natural e da cincia do esprito, respectivamente da histria. Com isso devia estar aberto o caminho para uma compreenso universal da histria da humanidade ocidental.3

    Outro grande amigo e parceiro intelectual de Sohn-Rethel foi George

    Thomson, historiador e lingista marxista, autor de importantes livros como Os

    Primeiros Filsofos, em cuja apresentao pode-se ler:

    Este estudo muito deve ao Dr. Alfred Sohn-Rethel, a que o estudo de Kant conduziu, independentemente, s mesmas concluses, as quais, poderemos encontrar no seu livro, Trabalho Manual e Trabalho Intelectual. No s me permitiu a leitura do manuscrito do seu livro, como, discutindo o

    2 Sohn-Rethel est un des rares marxistes qui ont encore quelque chose nous dire pour comprende le XXI sicle. Dabord, parce quil a repris, dans lensemble de la thorie de Marx, le noyau le plus valable et le plus profond: Lanalyse de la logique de la valeur et de la marchandise. Sohn-Rethel a bien compris une poque o presque personne n`y arrivait que selon Marx la caractristique la plus essentielle du capitalisme est l quil fait subir la vie sociale. JAPPE, Anselm. Pourquoi lire Sohn-Rethel Aujourdhui? In___ La Pense-Marchandise, Broissieux: ditions du Croquant, 2010.p.7-8. 3 Carta de Adorno para Sohn-Rethel, 17 de novembro de 1936, de Oxford apud SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.77).

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    meu, me auxiliou a apreender plenamente o profundo significado filosfico dos primeiros captulos de O Capital. 4

    Antes de entrar no cerne da teoria de Sohn-Rethel e dela alcanarmos

    concluses para o direito, precisaremos, no entanto, nos aprofundar em algumas

    discusses mais amplas do marxismo presentes em sua obra, como materialismo

    histrico e a dialtica, debate que compor o primeiro captulo deste trabalho.

    Tambm se faz necessrio analisar sua leitura da crtica marxiana da economia

    poltica, o que, conjuntamente com seu conceito de sntese social e um breve

    desenvolvimento histrico, ir compor o captulo segundo. Isso se faz necessrio,

    pois toda a discusso sobre a teoria de Sohn-Rethel, mesmo quando o autor era

    vivo, quase nunca se referia sua prpria crtica da teoria do conhecimento, mas ao

    seu desenvolvimento crtico dos conceitos da economia poltica 5.

    No captulo terceiro adentraremos no cerne de sua teoria, desenvolvendo a

    idia de que a forma mercadoria a base da forma pensamento que trabalha com

    categorias puras da razo. A partir de sua teoria, e das bases desenvolvidas nos

    captulos anteriores, que no quarto captulo faremos o debate sobre o direito. Para

    tanto, entendemos ser mais relevante retirar de seu todo terico elementos chave

    para uma anlise do fenmeno jurdico, ao invs de nos focar nas passagens nas

    quais ele explicitamente fala do direito, que so escassas.

    Para a entrega deste trabalho, fazem-se necessrias algumas explicaes

    adicionais. A dificuldade de um estudo sobre Sohn-Rethel no Brasil comea pelo fato

    de sua obra no ter sido traduzida para o portugus. O material que temos em nossa

    lngua consiste na traduo do alemo de metade da ltima verso de seu livro

    principal, de 1989, Geistige und krperliche Arbeit. Zur Epistemologie der

    abendlndischen Geschichte. (Trabalho espiritual e corporal. Para a epistemologia

    da histria ocidental), acompanhada de alguns anexos. Esta traduo est

    disponvel no link http://adorno.planetaclix.pt/sohn-rethel.htm e foi feita por Cesare

    Giuseppe Galvan, professor da Universidade Federal da Paraba e autor de vrios

    4 THOMSON, George. Os Primeiros Filsofos: estudos sobre a sociedade grega antiga, volume I. Lisboa: Estampa, 1974. p.11-12. 5 KURZ, Robert apud JAPPE, Anselm. Pourquoi lire Sohn-Rethel Aujourdhui? In SOHN-RETHEL, Alfred. La Pense Marchandise. Broissieux: ditions du Croquant, 2010. p. 25.

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    artigos sobre a obra de Sohn-Rethel. Como esta traduo no est numerada,

    colocamos nas suas referncias, sempre entre parnteses, numerao atribuda por

    conta prpria, apenas para facilitar a identificao do local de onde foi retirada a

    citao.

    Em ingls, temos traduzida em 1978, pelo filho do autor, a verso anterior

    deste mesmo livro sob o nome de Intellectual and Manual Labour: a critique of

    epistemology, que atualmente a verso mais citada da obra de Sohn-Rethel, a

    utilizada por Zizek, por exemplo. Em francs, a primeira traduo sria de Sohn-

    Rethel data de maro de 2010, sendo uma coletnea com trs dos mais importantes

    ensaios do autor, que s se encontravam em lngua alem e que tratam das

    mesmas idias debatidas em seu livro principal j citado. Essa traduo, que saiu

    sob o nome de La pense-marchandise traz em sua abertura um prefcio crtico de

    Anselm Jappe, seu organizador, onde tambm encontramos importantes dados

    biogrficos. Destas edies em lngua estrangeira, traduzimos as citaes para o

    portugus e mantivemos o original como nota de rodap, para o caso das tradues

    poderem apresentar alguma diferena em comparao ao sentido original. O

    trabalho se encontra baseado nestas trs edies citadas acima, que parecem

    compor a base de sua obra e, ao mesmo tempo, so acessveis para o estudioso

    no familiarizado com o alemo.

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    1 - Marxismo e bases do pensamento de Sohn-Rethel

    1.1- Dialtica e questo da verdade

    A viso de Alfred Sohn-Rethel sobre conceitos fundamentais como a dialtica

    e o materialismo histrico, apesar de muito prxima de uma leitura literal de Marx,

    gera polmica entre os marxistas. Estes conceitos, no entanto, formam a base de

    qual ele ir partir para analisar a relao entre o ser social e suas formas de

    conscincia, o principal objeto de estudo de Sohn-Rethel. De fato possvel uma

    leitura simplificada de sua teoria, conforme o prprio autor oferece em suas

    exposies mais curtas sobre o tema6. Mas, por meio destas exposies resta por

    vezes a sensao de que falta algo a se explicar, um ponto de partida nem sempre

    muito claro para o leitor. Ao mesmo tempo passagens de sua obra que so frutferas

    para a anlise do direito ficariam sem ser compreendidas em sua amplitude no caso

    de partirmos da leitura simplificada. Por conta disso, o propsito do presente texto,

    inverter a ordem do prprio autor e debater primeiro aquilo que pode ser

    considerado seu mtodo, ou seja, a interpretao das descobertas mais amplas do

    marxismo que fornecem o ponto de partida para sua anlise.

    O marxismo parte de uma concepo radicalmente diferente de toda a

    filosofia e isso fundamental para sua compreenso. Por um lado ele nega que a

    realidade fruto da idia do indivduo, ou seja, que tudo que vemos um fenmeno

    meramente criado por nosso crebro, como tpico do racionalismo. Por outro lado 6 Como exemplo a coletnea de textos publicada recentemente em francs com o nome de La Pense-Marchandise. SOHN-RETHEL, Alfred. La Pense Marchandise. Broissieux: ditions du Croquant. 2010.

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    ele tambm nega que o humano seja fruto puro do fato, que ele seja uma mera

    tabula rasa que preenchida pelo que lhe passado pelos rgos sensoriais, como

    tpico do empirismo. O racionalismo explica a existncia da matemtica, do

    conhecimento lgico-matemtico, mas no pode explicar o conhecimento emprico.

    O empirismo explica o conhecimento emprico, mas no o lgico-matemtico. Eles

    so mutuamente excludentes e no do conta um de explicar a parte explicada pelo

    outro, esto, portanto, em contradio. Mais frente na histria da filosofia conclui-

    se que as idias no so algo meramente formado pelo crebro humano e nem so

    meramente formadas por nossa experincia sensorial, as duas possibilidades

    coexistem. Esta dupla negao feita por Kant que postula que os homens so

    dotados de um modo de pensamento a priori, como categorias puras da razo, que

    interpreta as experincias, ou seja, aquilo que percebido a posteriori por nossos

    sentidos, como nos explica Alysson Mascaro:

    H determinadas estruturas, no sujeito, que organizam o seu prprio conhecimento emprico. De onde vieram tais estruturas? Se elas viessem com a experincia alguns teriam ferramentas para o conhecimento diferentes dos demais. No haveria universalidade do conhecimento. Por isso, para Kant, essas estruturas no so conhecimentos apreendidos a partir das experincias, o que seria muito varivel. Pelo contrrio, so condies para que haja este entendimento, esse conhecimento. A apreenso dos fenmenos s racional porque h no sujeito estruturas prvias, chamadas ento por a priori, que possibilitam perfazer este conhecimento. Qualquer fenmeno que seja percebido s o ser porque h essas estruturas apriorsticas no sujeito do conhecimento. Tais estruturas a priori no so inatas, isto , no foram embutidas nos homens como uma essncia divina. Mas, justamente por serem a priori, tambm no so adquiridas com o conhecimento so prvias a ele. Do que se tratam, ento? Para Kant, so estruturas do pensamento universais, quer dizer, so ferramentas da razo humana utilizadas de forma necessria. No nascemos com elas inatas, mas todo o fenmeno do sujeito do conhecimento s pode ser compreendido com elas. Estas estruturas so formas que tanto possibilitam a percepo emprica, sensvel, quanto a elaborao do conhecimento intelectivo advindo destas prprias percepes7.

    Esta concluso de Kant ainda no d conta de explicar determinadas coisas,

    como por exemplo, como surgem historicamente estas categorias a priori? Qual a

    sua origem e de onde vem seu carter universal? Hegel ento supera Kant ao

    postular que a idia e mesmo a lgica so fenmenos histricos, eles no existiram

    sempre, so formas que se desenvolvem em determinado tempo histrico. O 7 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. So Paulo: Atlas, 2009. p. 212.

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    dualismo a priori e a posteriori de Kant no sobrevive perante esta constatao.

    Hegel ento entende todo o desenvolver do mundo como o desenvolver da idia,

    partindo esta dos nveis primitivos de conscincia at o nvel da lgica. Com este

    desenvolver desenvolve-se tambm a realidade do mundo, transformado pelas

    novas idias que aparecem na mente dos homens.

    Marx supera toda a filosofia ao inverter Hegel, mantendo seu profundo sentido

    histrico: no a idia que transforma a realidade, antes a realidade que se

    transforma pelas aes dos homens, que so feitas independentemente do que eles

    pensam, e esta transformao inconsciente do mundo que gera uma nova forma

    de conscincia. a realidade criada pela ao inconsciente que gera uma nova

    conscincia e no a conscincia que gera a realidade. O marxismo, assim, nega o

    caminho usualmente trilhado pela filosofia de proceder da idia para a realidade;

    nele o movimento inverso, da realidade para a idia.

    Esta concluso desgua na questo sobre o que se considera mtodo. Fala-

    se em mtodo para estudo das cincias sociais, inclusive de um mtodo marxista,

    o que geralmente causa confuso pela considerao da dialtica tambm como

    mero mtodo. Se entendermos mtodo como diretrizes pr-determinadas para se

    analisar as coisas, estaramos em frente de uma base j idealista, pois antes de

    analisar o real j se saberia o que deve ser ressaltado dele. Fazer um mtodo para

    compreender a realidade desde o incio submet-la ao julgo da idia, escondendo

    suas principais determinaes por detrs das determinaes j impostas pela diretriz

    metodolgica. Neste sentido no h um mtodo em Marx, pois este no colocado

    antes da realidade, mas deduzido dela. analisando cada coisa e percebendo suas

    determinaes essenciais em seu movimento que Marx procede. O modo

    materialista parte do estudo da histria (e mesmo parte da pr-histria) de forma a

    entender como se d seu processo de desenvolvimento, quais so suas principais

    determinaes e como elas funcionam e interagem. Para tanto sempre necessrio

    analisar o homem real, o homem que produz seus meios sociais de existncia em

    relao com a natureza. por meio da anlise da produo e das alteraes que ela

    imprime no mundo que possvel entendermos as transformaes ocorridas na

    forma humana de pensar. analisando a mudana no mundo do homem que

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    compreendemos as transformaes em sua conscincia. somente neste sentido

    que podemos falar de um mtodo em Marx.

    Da mesma forma que se parte da realidade para da ir para a teoria, o

    marxismo no prescreve um conjunto de valores para interpretar o mundo, como

    pretendem alguns. Isto iria diretamente contra sua prpria base, negando seu

    carter cientfico de investigao de causas e efeitos entre realidade e conscincia.

    Esta negao de quaisquer valores a priori j se encontra quando Marx diz que no

    a conscincia que determina o ser social, o ser social que determina a

    conscincia 8. Na contracorrente de grande parte do marxismo, Sohn-Rethel vai

    dizer que esta frase deve-se tomar em seu sentido literal: ela define o "ser social" e

    a "conscincia" pela relao de ambos entre si que ela afirma 9. A conscincia

    encarada como reflexo da prtica social nega todos os valores e princpios a priori.

    O pensamento passa a ser considerado como reflexo de determinado modo de

    existncia social, o que remete o pensamento e os valores ao campo histrico, ao

    campo da prtica material dos homens. Demonstrar a historicidade da razo implica

    em revelar o carter tambm histrico das idias e valores; explicar estes a partir da

    mudana no tipo de prtica social que os formou denunciar seu fetiche.

    Demonstrar que as idias que consideramos necessrias, verdadeiras, s so assim

    vistas por conta de determinada prtica social revela-nos a possibilidade do novo ao

    afastar o vu do misticismo10. As idias vem da prtica social, mudando-se esta

    8 MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. p-45; e a mesma idia j antes em MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem. 3. ed. So Paulo: Boitempo, 2007. p. 94; SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London, Macmillan, 1978. p. 190. Alm disso, como nos diz Engels: essa tese, de aparncia to simples de que a conscincia do homem determinada por sua existncia, e no o contrrio rechaa totalmente, j em suas primeiras conseqncia, qualquer idealismo, mesmo o mais dissimulado. Com ela, so negadas todas as idias tradicionais e disseminadas sobre as questes histricas. Todo modo tradicional da argumentao poltica cai por terra; a fidalguia patritica se agita, indignada, contra essa falta de princpios no modo de ver as coisas Comentrios sobre a Contribuio Crtica da Economia Poltica de Karl Marx. ENGELS, Friedrich. Comentrios sobre a Contribuio a Critica da Economia Poltica de Karl Marx. In: MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. p.75. 9 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponivel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.81). 10 A vida social essencialmente prtica. Todos os mistrios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua soluo racional na prxis humana e no compreender desta prxis. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem. 3. ed. So Paulo: Boitempo, 2007. p. 534.

  • 19

    prtica as idias que dela surgiram tambm mudam. Tomando a mesma concluso

    e utilizando-a contrario sensu chegamos a outro importante resultado: as

    contradies tericas insolveis no pensamento so primeiramente contradies da

    prtica social que deu origem teoria. Assim, resolver as contradies do

    pensamento resolver as contradies da prtica social.

    do mesmo modo que uma filosofia autnoma deixa de existir; ela,

    enquanto reflexo da prtica material dos homens, no pode existir apenas em sua

    conscincia, sob pena de no compreender o real. No se pode estabelecer

    diretamente uma abstrao que pretenda dar sentido ao mundo, como diz Sohn-

    Rethel, uma prima filosofia est excluda em qualquer feio no marxismo 11. Ao

    invs disso necessria a anlise do movimento real da histria, o processo real de

    vida dos indivduos em determinado momento e as razes de sua mudana histrica

    para outra forma. A filosofia aps isso no algo fechado em torno de si, um

    conhecimento meramente especulativo, mas uma sntese da histria humana, no

    apenas no sentido do desenrolar da prtica material dos homens, mas tambm da

    forma reflexa da conscincia, de onde surge tudo aquilo que apreendemos sobre o

    nome de cultura. A dialtica, assim, como diz Sohn-Rethel aquilo que dela Hegel

    desenvolveu, unidade de pensar e ser, de sentido e realidade, e porque essa

    unidade, entendida materialisticamente, desde o comeo forma a essncia da

    histria humana 12.

    Como sntese cultural, se por um lado o marxismo refuta todo o idealismo, por

    outro ele se utiliza dele e deve explic-lo. Ao perceber o pensamento como reflexo

    da prtica humana historicamente situada, a anlise materialista permite encontrar

    os nexos internos entre as formas de representao da realidade no pensamento e a

    prpria realidade. Torna-se possvel, ao compreender a base material da vida social,

    compreender tambm sua forma reflexa de conscincia. Esta, justamente por ser

    reflexo de uma determinada realidade socialmente construda, constitui conscincia

    11 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.9) 12 Ibid., (p.7).

  • 20

    necessariamente falsa 13. Necessariamente falsa, pois a conscincia aparece como

    decorrncia mesma do mundo criado daquela forma, ela reflete o mundo, sem se

    perceber a possibilidade do mundo ser diferente.

    A crtica das formas de conscincia impe o dever de explic-las a partir da

    realidade, revelando-as como modos de representao invertida do viver prtico,

    como diz Marx, como a imagem capturada por uma cmera escura (...) da mesma

    forma como a inverso dos objetos na retina resulta de seu processo de vida

    imediatamente fsico 14. por isso que o marxismo deve ser capaz de explicar

    todas as representaes ideolgicas a partir de sua base material, da produo,

    assim que ele constitui o eixo lgico para anlise no s da sociedade enquanto tal,

    mas da literatura, religio, esportes e as demais formas de representao cultural. A

    noo no proclamada de sintoma 15 permeia a anlise marxista das representaes

    ideolgicas, verdadeiros reflexos sintomticos, mesmo que inconscientes, de um

    viver social que lhes deu possibilidade de existncia 16. Podemos encontrar esta

    profunda e complicada concluso e ainda alm, nos dizeres de Sohn-Rethel:

    A exigncia que eu fao ao marxismo, da qual segundo minha finalidade ele deve fazer justia, chega ao ponto que as anlises de um determinado ser histrico e social devem resultar em um nexo completo de derivao das ideologias que lhe pertencem, at em suas estruturas lgicas e, portanto at seu conceito de verdade. As ideologias so, por um lado, falsa conscincia, mas por outro lado elas so necessariamente condicionadas como tal, falsa conscincia em si, bem como tambm geneticamente. Nesse necessrio condicionamento encontram-se o problema da verdade da conscincia e o problema da crtica marxista das ideologias. Sim, eu quereria avanar ainda mais e dizer que nesse condicionamento necessrio das ideologias est situado o problema todo da logicidade da conscincia como conhecimento humano. O problema no est no fato de que a conscincia seja sempre em

    13 SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London, Macmillan, 1978. p. 197. 14 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem. 3. ed. So Paulo: Boitempo, 2007. p. 94. 15 Como disse Lacan e defende Slavoj Zizek em ZIZEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma?. In: ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998. 16 Marx nos d um exemplo da determinao da possibilidade de existncia de dada conscincia pelo nvel de desenvolvimento material do ser social. Eis porque a humanidade no se prope nunca seno os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a anlise, ver-se- sempre que o prprio problema s se apresenta quando as condies materiais para resolv-lo existem ou esto em vias de existir. MARX, Karl. Introduo Contribuio Crtica da Economia Poltica. In: ______. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. p. 46.

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    certo sentido invertida, mas no fato de que essa conscincia invertida, se ela estiver necessariamente invertida, contem a questo da verdade.17

    Quando diz verdade Sohn-Rethel est se referindo a determinada

    concepo do mundo pelo homem, uma concepo que pretende explicar o prprio

    mundo. A concepo de verdade da religio crist de que todo o mundo foi

    criado pelo deus cristo. O que Sohn-Rethel diz acima que essa concepo

    invertida, determinado ser social, determinado mundo dos homens socialmente

    construdo, que faz com que se acredite na divindade. Outros tipos de ser social,

    outras formas de construo do mundo pelos homens, do origem a outra

    concepes de verdade que nem sempre envolvem formas de divindade.

    A verdade, no entanto, no um problema que se coloca pelo marxismo,

    isso constituiria um idealismo, o marxismo sabe que a verdade muda conforme a

    histria. As ideologias surgindo no campo histrico so quem colocam esse

    problema, a prpria representao da realidade necessariamente carrega uma

    questo da verdade, uma correlao entre a conscincia que se questiona sobre o

    mundo. A inverso da conscincia esconde a questo da verdade, mas tambm

    ela que a coloca na conscincia do homem. que essa conscincia no foi invertida

    em determinado momento histrico, mais correto dizer que ela prpria nasce

    invertida e tarefa da crtica marxista desvir-la. Ver na divindade a verdade do

    mundo pode ser falso, mas essa idia, mesmo sendo falsa, traz embutida a questo

    sobre o que seria verdade. O fato da humanidade buscar uma explicao para o

    mundo, ainda que esta seja invertida, marca um novo momento na histria, o

    momento da busca de uma significao que transcenda a pura empiria do mundo. A

    verdade surge e se desenvolve no terreno histrico e o marxismo toma

    conhecimento dela no ao construir uma verdade prpria, mas se apropriando dela

    conforme ela surja e utilizando-a como arma da crtica, mostrando sua incoerncia

    de forma a impelir a transformao da prtica social que a fez surgir. Assim que

    podemos entender o que nos diz Sohn-Rethel:

    17 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.81).

  • 22

    O marxismo se faz colocar a questo da verdade pela histria da humanidade; ele a conhece s do fato de que ela aparece na histria (e com isso chegou tambm a ele); ele est na tradio dela e seu nico herdeiro legtimo, porque ele a agarra e toma a iniciativa de lev-la perfeio crtica. Ele a deixa, portanto, apresentar-se no para "destru-la" e lan-la nas atas como pura "ideologia", mas ao contrrio para tornar-se advogado dos projetos que - em seu sinal - se tornaram dependentes dos homens em sua prpria histria. Ele toma at esses processos (que, portanto os prprios homens - no ele - esclareceram para si mesmos) to mais a srio que os prprios homens, quando ele seu advogado crtico, a saber por causa da questo da verdade a levantada. S na relao dessa crtica o marxismo tem e conhece por sua parte a questo da verdade, portanto sem engolir junto com a questo da verdade uma ideologia a ela ligada.18

    A verdade trazida pela ideologia necessariamente falsa, mas ela coloca a

    questo de se considerar a representao do mundo na conscincia do homem

    como acertada, como viso correspondente realidade, estabelecendo assim uma

    relao de conformidade (ainda mistificada, contraditria, enquanto ideolgica) entre

    a idia e o ser. Sem essa representao de verdade embutida em cada ideologia,

    mesmo a prtica social correspondente no se mantm, pois o ser social sua

    unidade, no s prtica, mas tambm conscincia. Nessa unidade constitui-se a

    dialtica, a determinao do humano como ser prtico, mas tambm pensante:

    O ser social, prescindindo da conscincia, no nada ou, mais precisamente, no nada seno a aparncia fetichstica de pura facticidade; e a conscincia do ser social no tambm nada ou, mais precisamente, a aparncia fetichstica correspondente do "sujeito transcendental". Ao contrrio, a "conscincia" aquilo, que vem determinado pelo ser social, e o ser social aquilo, que a conscincia dos homens determina. a partir dessa relao que ambos tm sua realidade histrica e dialtica.19

    Entender a conscincia como reflexa da vida prtica material um ponto

    comumente olvidado, mas, superado este ponto, comum se torna a desprezar a

    conscincia como algo que mero reflexo da vida prtica, no constituinte ela

    mesma do ser social. O ser humano, no entanto, no um mero autmato; antes,

    18 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p. 79-80). 19 Ibid., (p. 81-82).

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    sua prpria prtica tambm determinada pelo seu pensar, os dois plos

    constituindo a mesma unidade. Em determinada poca, determinado tipo de relao

    social prtica s se torna possvel se os homens puderem, por exemplo, se

    comunicar, construir um computador, utilizar uma mquina, e tudo isso exige

    determinado nvel de conscincia. Esta determinao pela conscincia leva a

    questo da verdade como aparncia de coerncia entre a prtica e a ao e a

    chave para entender a humanidade em seu desenvolver desde seus primrdios.

    Segundo Sohn-Rethel, importante para a compreenso do processo histrico

    desta relao entre a idia e a prtica a noo de forma. Fala-se de forma da

    relao social e forma de conscincia e no de contedo da relao social ou

    contedo do pensamento em referncia ao carter formal que designa o prprio

    campo da possibilidade historicamente dada, o limite dos contedos, o absoluto

    hegeliano. Criticar a forma revelar os limites da relao entre o pensar e agir em

    determinado tempo histrico, limites onde repousam os possveis contedos do

    pensamento. A anlise marxista do tipo ento que se ocupa principalmente com a

    anlise das formas histricas que determinam a relao dialtica entre o pensar e o

    ser, buscando compreender sua lei da mudana:

    Forma do esprito ou forma da sociedade tm em comum que so formas. O modo de pensar marxiano caracteriza-se por uma concepo das formas, na qual ele se afasta de todos os outros modos de pensar. Ele se guia a partir de Hegel, mas to somente para tambm afastar-se de Hegel logo a seguir. Forma para Marx algo temporalmente condicionado. (...) o tempo, que domina a gnese e a mudana das formas, estende-se de antemo como histrico, tempo da histria natural ou humana. Por isso no se pode descobrir nada de antemo sobre as formas 20.

    Na interpretao das formas e de seu processo de desenvolvimento,

    necessrio o estudo da histria em confrontamento da idia que determinada poca

    faz de si com sua realidade prtica. A relao entre o ser e o pensar e o molde no

    qual se d esta relao o substrato da prpria dialtica. Do mesmo jeito que Marx

    critica a representao ideolgica da religio como sublimado necessrio de

    20 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.9).

  • 24

    determinado processo de vida material as formas ideolgicas atuais tambm so

    submetidas anlise. O que a princpio est visvel nas diversas etapas histricas

    este prprio sublimado, a idia que tal poca faz de si (por meio dos indivduos que

    nela vivem) e que lhe aparece como absoluta. A crtica marxista deve retirar o vu

    que estas formas representam de maneira que seja possvel vislumbrar a

    contradio da prpria prtica humana. A conscincia alienada conforme a prpria

    prtica alienada, a tarefa da crtica desenganar o homem recolocando o

    problema da idia para a prtica. De maneira histrica, mas tambm de maneira

    lgica, esta crtica das formas de alienao tem um sentido que, como nos explica

    Marx, vai da religio 21 para as formas ideolgicas terrenas:

    A crtica da religio desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razo a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religio apenas um sol fictcio que se desloca em torno do homem enquanto este no se move em torno de si mesmo. Assim, superada a crena no que est alm da verdade, a misso da histria consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienao humana, a misso da filosofia, que est servio da histria, consiste no desmascaramento da autoalienao em suas formas no santificadas. Com isto, a crtica do cu se converte na crtica da terra, a crtica da religio na critica do direito, a crtica da teologia na crtica da Poltica. 22

    A religio a crena no que est alm da verdade, f e como tal no

    busca uma verdade no mundo, mas uma verdade no alm, contentando-se com o

    dogma para explicar a vida terrena. Superando-se criticamente a representao

    religiosa, a vida terrena passa a ser entendida a partir de determinada concepo

    que se enxerga como verdade. Marx afirma que a filosofia ento tem por misso

    desmascarar a alienao nestas formas, averiguando estas aparncias de verdade.

    A crtica passa ento a ser crtica daquelas coisas que a princpio nos aparecem

    como verdades necessrias, como lgica, como conscincia no alienada. As

    representaes do mundo dos homens no direito, no Estado e nas demais formas

    21 Marx, Karl. Introduo crtica da filosofia do Direito de Hegel. Disponvel em: http://poars1982.wordpress.com/2008/07/07/introducao-a-critica-da-filosofia-do-direito-de-hegel-karl-marx. Acesso em: 5 dez. 2011. 22 Marx, Karl. Introduo crtica da filosofia do Direito de Hegel. Disponvel em: http://poars1982.wordpress.com/2008/07/07/introducao-a-critica-da-filosofia-do-direito-de-hegel-karl-marx. Acesso em: 5 dez. 2011.

  • 25

    ideolgicas mantm-se vivas por se revestirem de um aspecto de verdade, da

    aparncia de um imperativo lgico, de uma necessidade inescapvel.

    A tarefa da crtica mostrar a alienao existente nestas formas, sua no

    lgica, no verdade e no necessidade, apontando seu carter ideolgico com vistas

    transformao prtica da sociedade desde sua base, de onde emanam estas

    sublimaes. neste sentido de averiguar a verdade daquilo que nos circunda

    para desmascarar a autoalienao que Sohn-Rethel diz que s o problema da

    verdade o ponto de apoio, no qual a transformao dos problemas teorticos em

    prticos se pode levar adiante 23, e que, sem a questo da verdade todo o

    marxismo se tornaria um chato materialismo vulgar 24. A crtica, assim, deve ser

    efetivada colocando-se a verdade ideologicamente estabelecida em contraste com a

    prpria coisa que ela supostamente representa, pois, como explica Sohn-Rethel:

    (...) manifestar a verdade exige um mtodo, que eu denomino identificao dialtica (...). O modo de proceder desse mtodo est expresso em Marx: Devem-se levar a danar essas relaes petrificadas tocando-lhes sua prpria melodia.25 Todo O Capital est construdo de acordo com esse princpio. Os encobrimentos no podem suportar sua identificao dialtica: nisso eles se traem 26.

    Ao colocar criticamente em confronto a idia da coisa com a prpria coisa da

    qual ela parece emanar, a primeira se trai revelando a contradio, a no identidade

    entre a coisa e sua representao. A verdade ideolgica se revela no verdadeira.

    Esta no identidade a expresso no pensamento da contradio existente na

    prpria prtica que, como reflexo tambm contraditrio, a lgica no pode

    corretamente interpretar. O pensamento reflexo da prtica social e, sendo a prtica

    contraditria, gera-se tambm um reflexo contraditrio. O pensamento do nosso

    tempo histrico expresso no que chamamos de lgica, por exemplo, no pode dar

    uniformemente conta da realidade, pois ele em si, reflexo contraditrio. A realidade

    23 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.82). 24 Ibid., (p. 82). 25 MARX, Karl. Introduo Contribuio Crtica da Economia Poltica. In:___. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. 26 SOHN-RETHEL, op.cit., (p.86).

  • 26

    pela lgica s pode ser captada de maneira fragmentada, pois, por sua vez, a

    realidade tambm um todo permeado de contradies que no pode ser

    coerentemente explicado.

    Dizemos aqui que a realidade contraditria, precisamente, por que podemos

    entender esta contradio no choque entre idia e prtica 27. A realidade o mundo

    dos homens, uma realidade j construda conforme a prpria relao de inteligncia

    e controle da natureza pelos humanos, esses expressos de forma mais clara na

    prpria lgica. A prpria estrutura do mundo ordenado pelos homens o lastro desta

    idia de lgica pela qual, por exemplo, formula-se a cincia econmica burguesa.

    Esta, para ser coerente, deveria dar conta de explicar os fenmenos que existem na

    realidade econmica e ainda no incorrer em incoerncias em sua ligao com a

    explicao dos fenmenos que so estudados por outras reas do conhecimento,

    posto que todas elas se encontram na unidade da relao do homem com seu meio.

    Isto, no entanto, no acontece, as diversas cincias aparecem em oposio

    irreconcilivel uma com as outras e s podem se encaixar de maneira mecnica,

    elas aparecem como algo separado do homem e no como uma relao do prprio

    homem com o mundo. Com a identificao dialtica da idia com a prtica de

    nosso modo de produo, isto , com desenvolvimento coerente das leis da

    produo burguesa e seu confronto com a economia poltica, esta ltima revela suas

    incoerncias 28.

    Marx, ao analisar os pontos fundamentais da produo capitalista, mostra

    essa concluso de maneira palpvel, como quando explica que o fetiche da

    mercadoria s pode ser entendido recorrendo-se regio nebulosa do mundo da 27 Como diz Sohn-Rethel: O princpio competente de meu mtodo portanto aquele da identificao dialtica, como eu o denomino, ou seja de confrontar a essncia consigo mesma em sua contraditoriedade. SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.91). 28 Como diz Engels sobre Contribuio crtica da Economia Poltica: Este livro, desde o primeiro momento, encaminha-se para uma sntese sistemtica de todo o conjunto da cincia econmica, para desenvolver coerentemente as leis da produo burguesa e do comrcio burgus. E como os economistas no so mais que intrpretes e apologistas dessas leis, desenvolv-las , ao mesmo tempo, fazer a crtica de toda a literatura econmica. ENGELS, Friedrich. Comentrios sobre a Contribuio Critica da Economia Poltica de Karl Marx. In: MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. p. 276.

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    religio 29, ou ainda ao demonstrar que a existncia da mais-valia, da explorao

    capitalista, est escondida debaixo da aparncia da lei da equivalncia 30,

    fundamento da troca de mercadorias e, diria Sohn-Rethel, da prpria lgica 31. No

    que Marx no tenha conseguido aprofundar suas anlises nestes pontos por sua

    deficincia terica, ele chegou ao ponto mais fundo possvel, a questo que o

    prprio objeto analisado prescinde de lgica. Desenvolvido at seu limite o

    capitalismo no pode ser coerentemente explicado, pois ele mesmo incoerente, do

    mesmo jeito que no se pode explicar coerentemente a divindade.

    Alm da identificao dialtica Sohn-Rethel nos diz de outro modo pelo qual

    se torna possvel perceber a contradio, este emprico, quando a irracionalidade do

    sistema se mostra na prtica e a aparncia de coerncia da explicao burguesa

    cientfica se dissipa:

    Eles [os encobrimentos TFL] se traem tambm, porm, a partir de outra forma de experincia: quando no alcanam nenhuma construo da sntese ("sntese" aqui no sentido de Kant e Hegel; onde o capital empreende a confirmar a plenitude de seu domnio do ser) construda a partir do material (material de encobrimento fetichisticamente mgico, alis conceitos de reflexo filosfica) prprio deles. Aqui se descobre sua desordem: do falhar de toda e cada tentativa de simular a essncia. Nessas tentativas de evocao da sorte o capital no pode nunca falhar, mas contudo tambm nunca pode lev-las a bom resultado. 32

    De difcil compreenso so estas passagens da carta de Sohn-Rethel enviada

    a Adorno, mais adiante ele aprofunda a tentativa de explicar sua viso:

    Na construo filosfica da sntese" trata-se no de uma sntese da matria, que o capital tem que dominar na realidade. O no alcanar a

    29 MARX, Karl. O Capital: Critica da Economia Poltica, volume 1. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 71. 30 Assim o que se defronta diretamente ao possuidor do dinheiro no de fato, o trabalho, mas o trabalhador. O que este ltimo vende sua fora de trabalho. (...). O trabalho a substncia e a medida imanente dos valores, mas ele mesmo no tem valor. Ibid., p.128. 31 Esse assunto, entre outros conexos, o tema do captulo terceiro. 32 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010, (p.86).

  • 28

    sntese no sentido real mostra-se nas crises, e a teoria das crises a critica apropriada de todos os postulados idealistas da "sntese. 33

    Podemos compreender estas complicadas passagens conforme se segue. A

    realidade falha ao construir sua sntese, quando ela mesma mostra sua

    contradio, sua condio no unitria, sua ruptura. Quando isso acontece a idia

    de verdade do mundo que constitui os encobrimentos (a ideologia) falha ao construir

    sua sntese, falha ao tentar explicar coerentemente a realidade, no alcana

    uniformidade lgica. Isto o no conseguir simular a essncia, a no

    possibilidade de explicar o real conforme sua prpria idia reflexa. Descola-se aqui a

    idia da realidade, mostra-se seu descompasso, a contradio entre a prtica e o

    pensamento que se faz dela e a partir dela. Este no alcanar da realidade se

    mostra nas crises do capitalismo, quando este falha em construir sua sntese,

    trazendo tona sua irracionalidade. Torna-se clara a falta de lgica do sistema

    quando as pessoas precisam consumir e querem trabalhar ao mesmo tempo em que

    h matrias primas e meios de produo e, no entanto, no se produz, no se

    trabalha, e as pessoas morrem de fome. A economia burguesa no consegue

    explicar o porqu das crises, contentando-se a tom-las como dado, assim, dizer

    que a oferta e a demanda no se encontraram o mesmo que no dizer nada. A

    explicao de como ocorrem as crises no pode ser alcanada pela base mesma

    sobre a qual se erige a teoria burguesa, antes, s com as mais profundas e

    importantes descobertas do marxismo, pois como diz Sohn-Rethel:

    (...) a teoria das crises tambm a pea mais difcil em toda a teoria marxista; a soluo do problema das crises implica que em suas condies ao mesmo tempo se torna transparente toda a histria, que leva s crises, portanto toda a histria da explorao, recuando at a sada do "comunismo primitivo" 34

    Por esta complexidade mesmo, a teoria da crise no ser objeto deste

    trabalho, dando aqui continuidade explicao da dialtica e da questo da verdade

    no pensamento de Sohn-Rethel. A identificao dialtica, a reconduo crtica da 33 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p. 87). 34 Ibid., (p 87).

  • 29

    verdade prpria coisa mostra os encobrimentos, revela a ideologia. Falamos aqui,

    no entanto, da impossibilidade da lgica de explicar coerentemente o mundo em sua

    totalidade. A pergunta que agora se faz , sendo o marxismo uma teoria, como ele

    faz para manter sua coerncia ao explicar a realidade incoerente do capitalismo? A

    resposta que a forma de se encontrar coerncia interna em uma teoria que trata da

    existncia de uma realidade incoerente declarar esta incoerncia, explicando-a

    historicamente. Com esta concluso que podemos entender Sohn-Rethel, quando

    ele, dissolvendo a teoria de Hegel no campo histrico aberto pela revoluo

    francesa, diz que:

    Pensar e ser esto para ele no mais em relao como opostos, eles tornaram-se uno, e o mesmo valia correspondentemente para todas as antteses e dicotomias da reflexo filosfica. Essa unidade daquilo que, desde sempre, tinha sido entendido com pensar e ser, ideal e realidade, essncia e aparncia, forma e matria, etc.; sua unidade era aquilo que elas significavam, era sua verdade. Assim, da lgica veio a dialtica. As determinaes realizaram-se, mas em sua realizao mudaram as condies de sua realizao, de modo que cada determinao, para realizar-se, desenvolver-se, para ser ela mesma, devia tornar-se algo outro de si. A verdade tornou-se processo gerador do tempo, que devia estar certo (o que sempre ocorria) com aquilo que se encontrava no tempo e nele se realizava 35.

    A afirmao de que a lgica precisou se transformar em dialtica para que

    possa ser ela mesma parece, a princpio, um tanto confusa. A forma que

    encontramos de interpretar esta afirmao de Sohn-Rethel coerentemente a

    seguinte: o que classicamente consideramos lgica so princpios para coerncia do

    pensamento (identidade, no contradio, terceiro excludo e razo suficiente)

    considerados de validade universal ao menos at Kant. Com os desenvolvimentos

    da cincia moderna, como a teoria da relatividade e a fsica quntica, estes

    princpios tm sido quebrados, isto , sua validade universal tem sido cientificamente

    contestada36. Muito antes da formulao destas teorias cientficas modernas, no

    35 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponivel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010, (p.6). 36 A mesma idia expressa quando Sohn-Rethel diz que: Science and technology have developed to new forms. But while classical physics is securely based on its mathematical and experimental method, the relativity theory and quantum physics have thrown science into methodological uncertain.

  • 30

    entanto, Hegel percebeu que a lgica no bastava para explicar a realidade quando

    considerada de forma histrica, e assim explicou a realidade no como lgica, mas

    como dialtica, pois percebeu a contradio no desenvolvimento histrico, como

    explica Alysson Mascaro:

    A dialtica, para Hegel, um processo ao mesmo tempo de entendimento racional e filosfico do mundo, mas tambm o prprio modo pelo qual se d o desenvolvimento da realidade. O indivduo, por meio de sua apreenso imediata, percebe o conflito; dialeticamente, consegue entender racionalmente o quadro geral no qual est inserida a realidade conflituosa, e entende a razo que est ligada a esse ser. Assim, a dialtica o processo de entendimento do mundo37.

    Esta explicao parte da base mesma da lgica, que a de ter coerncia

    interna, o fazer sentido na unidade, e somente divide-se em dois plos contraditrios

    conforme a prpria realidade contraditria. A dialtica, considerada deste modo,

    no o princpio da dualidade em oposio ao princpio da unidade da lgica. Em

    relao ao pensamento ela a dualidade na interpretao do real apenas para se

    poder manter a unidade da teoria. Fazer uma teoria coerente demonstrar a

    contradio prtica, a contradio do ser social, isto limpa a conscincia da

    contradio ao passo que impele prtica revolucionria.

    deste modo que podemos compreender a ligao carnal da tese de que o

    que importa transform-lo [o mundo TFL] 38 com o mtodo dialtico. No se trata

    de partes destacadas, independentes, mas de representaes do mesmo todo

    orgnico de uma teoria cientfica que tem de explicar coerentemente a totalidade em

    seu desenvolver histrico, servindo por isso concretizao da verdade imanente na

    prpria histria:

    (...) ele [o marxismo TFL] realmente no coloca nada como a determinao gentica, ou seja, no acrescenta nada s coisas, portanto pura cincia, e que isso mesmo a fornalha da crtica revolucionria. Onde se encontra isso? Com a antecipao do conceito da dialtica, aqui s se remeteria para adiante o problema com a questo sobre a essncia da "dialtica". Encontra-se muito mais no fato de que a determinao marxista reconduz ao ser histrico a conscincia a respeito de sua questo da

    SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London, Macmillan, 1978. p. 179. 37. MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. So Paulo: Atlas, 2009. p. 245 38 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem. 3. ed. So Paulo: Boitempo, 2007. p. 535.

  • 31

    verdade, os conceitos sobre seu carter de validade. E aqui primeiro que se constitui seu carter dialtico, pois aqui se encontra simplesmente todo o problema da dialtica (conjuntamente com a razo de porque ela no se pode efectuar). Eu vejo, portanto, na explicao gentica da validade do conhecimento tambm a base da distino do materialismo marxista daquele burgus e do empirismo. Pois ela de fato a mesma base que do porque na reduo burguesa-sociolgica o "ser" se torna facticidade crua, enquanto na reduo marxista estabelece seu carter como praxis material, na qual a criticada exigncia de verdade se transforma em energia revolucionria. 39

    A partir desta conexo, mesmo o surgimento da dialtica pode ser remetido

    ao campo histrico. Ela surge quando a prtica material humana passa a ser

    colocada como prtica necessria, como dado da realidade; quando afastado o

    fundamento religioso do mundo, passamos a interpret-lo como verdade prtica.

    Com a revoluo francesa, a lgica, at ento algo exclusivo do pensamento,

    apartado da prtica, direciona-se para a realidade, constituindo a verdade na terra

    (em contraposio verdade da f). Em Marx, que colocou a dialtica sobre suas

    bases corretas, as contradies servem tambm para nos mostrar a historicidade

    determinada da razo. A contradio no pensamento o que demonstra a

    necessidade de uma transformao na prtica. esse o motivo de Sohn-Rethel e

    Adorno concordarem quando o primeiro diz que a histria est na verdade 40.

    Tambm por isso que eles concluem que a crtica marxista uma crtica que por

    caminhos imanentes visa transformar-se transcendente 41. Imanente, pois no

    coloca idealmente sua questo da verdade; e transcendente, pois se aplica a todo

    esse descompasso, que existe nas diversas pocas histricas, entre a vida prtica

    humana e sua representao ideal. Esta concepo nega o tom humanista com o

    qual muitas vezes identificam o marxismo, nega o voluntarismo em sua base a partir

    de uma concepo cientfica da forma de relacionamento entre a realidade e a razo

    humana. 39 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010, (p.80). 40 ADORNO, Theodor apud SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a espitemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Episemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.77). 41 SOHN-RETHEL, op. cit., (p.86).

  • 32

    Por meio do choque entre a idia e a realidade na histria que se pode

    perceber a lei da mudana de um tempo histrico para o outro. Sem um nexo

    interno que busque explicar a histria, a dialtica no pode ser compreendida. Sem

    a dialtica, por outro lado, no pode se compreender a histria em sua profundidade.

    A razo e a realidade so o desdobrar de uma nica existncia, a do homem no

    mundo, e o processo de uma conscincia que quer se conhecer colocar a si

    prpria sob crtica. Neste processo a conscincia depura-se e desdobra-se,

    mostrando sua prpria inconsistncia sob a forma de contradies. Com o olhar

    dialtico a histria deixa de ser uma coleo de fatos mortos e ganha um sentido, o

    sentido do desdobrar da conscincia humana para a conformao com sua prtica

    material. A busca de coerncia entre pensar e ser implica em uma teoria que aponte

    para uma prxis social consciente, livrando o homem de sua autoalienao. Aqui se

    une de maneira necessria, teoria, prtica, histria, dialtica e a necessidade de

    revoluo social como partes indissociveis do mesmo todo orgnico, pois como diz

    Sohn-Rethel, o marxismo reconduz de volta as questes dos homens dirigidas ao

    "absoluto", de sua relao ideolgica para a relao materialista, ao ser social

    desses homens, e assim ele transforma as questes insolveis da teoria em

    questes solveis da prxis. 42

    1.2- Materialismo histrico e crtica gentica.

    A dialtica e o materialismo histrico esto indissociavelmente ligados, no

    so coisas distintas que possam ser compreendidas isoladamente, pois constituem

    partes de um mesmo todo orgnico. Podemos ler em Sohn-Rethel esta relao

    42 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010, (p.82).

  • 33

    como mutuamente determinante da prpria constituio da dialtica e do

    materialismo histrico:

    Se algum for positivista, e, portanto registra a "verdade" como pedra e pedras, fato e fatos, a ele nunca a dialtica daria sequer uma ensinadela. Contudo a dialtica encontra-se na histria, mas ela se mostra s quele que considera a histria sob o postulado metodolgico do materialismo histrico.43

    Acima Sohn-Rethel declara que o materialismo histrico um postulado

    metodolgico por meio do qual a histria deve ser entendida em seu conjunto. Por

    meio dele , inclusive, que a dialtica faz sentido. A noo de postulado, no entanto,

    parece desde o princpio como idealismo, como um a priori, algo contrrio ao que

    Sohn-Rethel defende ao negar a instituio de uma Prima Filosofia. Para esclarecer

    este ponto e continuarmos a anlise convm citarmos a passagem de Marx no

    prefcio da Contribuio Crtica da Economia Poltica onde ele sinteticamente

    expe o resultado geral de seus estudos:

    O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente assim: na produo social da prpria existncia, os homens entram em relaes determinadas, necessrias, independentes de sua vontade; essas relaes de produo correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. A totalidade dessas relaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual correspondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo de produo da vida material condiciona o processo de vida social, poltica e intelectual. No a conscincia dos homens que determina o seu ser; ao contrrio, o seu ser social que determina sua conscincia. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade entram em contradio com as relaes de produo existentes, ou, o que no mais que sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido at ento. De formas evolutivas das foras produtivas que eram, essas relaes convertem-se em entraves. Abre-se, ento, uma poca de revoluo social 44.

    43 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponvel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010. (p.07). 44 MARX, Karl. Introduo Contribuio Crtica da Economia Poltica. In: ___. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. p.45.

  • 34

    O materialismo histrico esse resultado geral a que Marx chegou aps

    seus estudos da relao entre a conscincia e as relaes de produo em vrias

    pocas da histria. A partir do momento em que foi alcanado, passou a servir

    mesmo como um guia para estudos posteriores, uma espcie de postulado, em

    conformidade com o que Sohn-Rethel diz 45. O materialismo histrico no , no

    entanto, um postulado colocado por Marx a priori, ele no surge da cabea do

    grande pensador alemo, mas decorre da anlise minuciosa das diversas relaes

    histricas mantidas pelo homem. Este postulado serve explicao e incio da

    anlise de todas as formas de civilizao existentes at hoje e o que ele

    primeiramente revela que a histria humana parte da histria natural 46, como

    explica Sohn-Rethel:

    Com tal expresso, "materialismo histrico", entende-se que a histria humana parte da histria natural, ou seja, dominada em ltima instncia por necessidades naturais. Estas necessidades naturais tornam-se humanas, ou seja, a natureza experimenta sua continuao na forma de histria humana l onde comea o trabalho. Que os homens no vivem em um pas das delcias, ou seja, que no vivem de graa, mas nem so nutridos cegamente pela natureza como os animais, e sim vivem na medida de seu trabalho, portanto em fora da sua produo, por eles mesmos gerada, empreendida e levada a termo, aqui est a base natural dos homens e o "materialismo" da histria humana.47

    O desenvolver das sociedades condicionado pelas necessidades naturais,

    que se tornam humanas quando surge o trabalho, quando a intencionalidade

    humana48 passa a alterar a natureza. Estas necessidades so transformadas a partir

    da prpria forma de interao do homem com a base natural para produzir sua

    sntese, para obter seu sustento socialmente determinado, e variam amplamente.

    O fato de o homem no controlar o caminho de sua prpria sociedade, de no

    45 SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho Espiritual e Corporal: para a epistemologia da historia ocidental. Traduo: GALVAN, Cesare Giuseppe - Geistige und Korperliche Arbeit: Epistemologie der abendlandischen Geschichte. Bremen: Stiftung fur Philosophie, 1989. Disponivel em: http://antivalor.viabol.uol.com.br Acesso em: 06 de out. de 2010, (p.6-7) ; A Idia de postulado j se encontrava expressamente na verso SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London: Macmillan, 1978. p.193. 46 Ibid., p.75. 47 SOHN-RETHEL, op. cit., (p. 6-7). 48 Como explica Marx: o que distingue, de antemo, o pior arquiteto da melhor abelha que ele construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio deste existiu na imaginao do trabalhador, e, portanto, idealmente. MARX, Karl. O Capital: Critica da Economia Poltica, volume 1. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 149-150.

  • 35

    conseguir planejar conscientemente seu futuro, a consequncia (e ao mesmo

    tempo causa) deste domnio cego ainda imposto pela natureza.

    O homem surgiu do macaco e j, naquele tempo, vivia em sociedade. Ele

    aparece como animal e emerge da natureza quando passa a produzir

    conscientemente. Esta modificao em seu ambiente altera sua percepo do

    mundo, alterando e desenvolvendo sua conscincia pela gerao de possibilidades

    e necessidades novas. A produo, relao na qual o homem faz a sntese com a

    natureza para suprir suas necessidades, assim tambm a produo de sua

    conscincia. O nvel da tcnica, o nvel de compreenso da natureza e sua

    possibilidade de utiliz-la de maneira produtiva o que Marx chama de foras

    produtivas materiais. impossvel conceitu-las de modo restritivo, pois nesse

    conceito encaixa-se tanto o maquinrio de uma fbrica como o conhecimento

    matemtico que deu base para sua confeco. A prpria lgica pode ser

    considerada como fora produtiva, bem como a descoberta do fogo e da roda. Para

    ilustrar este conceito Marx utiliza a imagem de uma escada, onde cada degrau

    subido representa um nvel maior de domnio da natureza.

    Determinado nvel de desenvolvimento das foras produtivas corresponde a

    determinado tipo de relao social. Isto ocorre, pois a depender do nvel de controle

    da natureza, determinadas relaes so logicamente possveis ou no. Ao conjunto

    das relaes de produo em conformidade com dado nvel de foras produtivas o

    que Marx chama de modo de produo. As foras produtivas so o domnio da

    tcnica e as relaes de produo so determinadas formas de relacionamento

    entre os homens, que so constitudas a partir do desenvolver histrico, mas

    tambm - e isso o essencial - de sua possibilidade lgica material.

    Ao conjunto das relaes de produo Marx chama de estrutura, s

    representaes do mundo que so derivadas deste modo determinado de produo,

    ele chama de superestrutura. A estrutura ento a base real sobre a qual se eleva

    uma superestrutura jurdica e poltica, ela a prtica social do homem em sntese

    com a natureza, o locus de onde surge a conscincia humana. A superestrutura se

    coloca por cima da estrutura, pois deriva desta de forma reflexa, o prprio

  • 36

    sublimado necessrio de determinado modo de produo. A conscincia o

    resultado ideolgico do processo de produo, assim tambm o so o direito e o

    Estado. Ideolgico, como j dissemos, no no sentido de conhecimento errado da

    realidade, mas de conhecimento necessariamente invertido da realidade, e que por

    isso traz de maneira implcita a questo da verdade. Deus criado a partir de uma

    determinada prtica social, no ele que a cria. O Estado e o direito so tambm

    sublimados necessrios de determinado tipo de relao social de produo, eles

    no so em si e para si. Marx expressa isso ao dizer:

    Minhas investigaes me conduziram ao seguinte resultado: as relaes jurdicas, bem como as formas do Estado, no podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evoluo geral do esprito humano; essas relaes tm, ao contrrio, suas razes nas condies materiais de existncia, em suas totalidades, condies estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do sculo 18, compreendiam sob o nome de sociedade civil 49

    O evoluir da sociedade inconsciente e se d pelo choque do desenvolver

    das foras produtivas com as relaes de produo. As relaes de produo so a

    estrutura que gera a superestrutura, o todo ideolgico que a prpria conscincia do

    homem. por meio desta forma de representao reflexa do mundo que

    percebemos nossa condio existencial. Este reflexo nossa conscincia,

    considerada positivamente, mas tambm de maneira negativa, como limite formal de

    nossa conscincia, as barreiras que delimitando a possibilidade de conhecer

    moldam o absoluto. por isso que, como explica Sohn-Rethel, a conscincia

    necessariamente falsa e no conscincia errada. Ela , ao contrrio, logicamente

    correta, conscincia inerentemente incorrigvel. Ela chamada de falsa no contra

    seus prprios padres de verdade, mas contra o ser social 50. Este tema da

    conscincia necessariamente falsa muito importante para o conjunto das anlises

    do autor aqui estudado e para a compreenso do prprio pensamento marxiano.

    Sohn-Rethel explica a conscincia necessariamente falsa como sendo:

    49 MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2007. p. 45. 50 Necessary false consciousness, then, is not, faulty consciousness. It is, on the contrary, logically correct, inherently incorrigible consciousness. It is called false, not against its own standards of truth, but against social existence. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London, Macmillan, 1978. p.197.

  • 37

    (...) (1) necessria no sentido de irrepreensvel rigor sistemtico; (2) necessariamente determinada geneticamente. necessria por causa histrica. Esta a verdade da existncia, no imanentemente infervel pela conscincia em questo. Esta a verdade especfica do materialismo; (3) conscincia necessariamente falsa determinada geneticamente ento como falsa por necessidade. Sua falsidade no pode ser endireitada por meios de lgica ou ajustes conceituais; e (4) pragmaticamente necessria. necessria para a perpetuao da ordem social na qual ela mantm o domnio sobre as mentes dos homens 51.

    Esta explicao de Sohn-Rethel deve bastar para afastar quaisquer das

    interpretaes que coloquem a conscincia como meramente falseada, como mero

    erro de julgamento em relao realidade. A conscincia necessariamente falsa que

    permeia todo espectro ideolgico deve ser entendida primeiramente como uma

    caracterstica do ser social em dado momento histrico, o problema ento est na

    prpria realidade antes de estar na conscincia humana. Determinado modo de

    pensar mesmo o modo do ser e nessa unidade que eles permitem a continuao

    da ordem social, a reproduo do mesmo ser social. A realidade s pode existir de

    determinado modo, pois a conscincia dos homens no capaz de perceber sua

    essncia, esta criada pelas aes destes mesmos homens. Se estes percebessem o

    resultado geral de suas aes como tal, eles deixariam de pratic-las e aquela

    realidade seria transformada. Slavoj Zizek comenta esta idia de Sohn-Rethel ao

    tratar sobre marxismo e ideologia, explicando que no s a conscincia, mas o

    prprio ser ideolgico:

    Essa, provavelmente, a dimenso fundamental da ideologia: a ideologia no simplesmente uma falsa conscincia, uma representao ilusria da realidade; antes, essa mesma realidade que j deve ser concebida como ideolgica: ideolgica no a falsa conscincia de um ser (social), mas esse prprio ser, na medida em que ele sustentado pela falsa conscincia. 52

    51 Necessary false consciousness, then, is (:) (1) necessary in the sense of faultless systematic stringency ( ;) is (2) necessarily determined genetically. It is necessary by historical causation. This is the truth of existence, not immanently inferable from the consciousness concerned. It is the truth specific of materialism. ( ;) is (3) necessarily false consciousness determined genetically so as to be false by necessity. Its falseness cannot be straightened out by means of logic and by conceptual adjustments (...) (4) necessary pragmatically. It is necessary for the perpetuation of the social order in which it holds sway over mens minds. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London, Macmillan, 1978. p.197-198. 52 ZIZEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma?. In: ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998. p. 305-306.

  • 38

    Este ponto fundamental para a compreenso de diversos fenmenos, entre

    eles o jurdico. A forma de nossa conscincia necessria para a sustentao de

    nosso ser social. Num mundo abstrato como o nosso em que as relaes aparecem

    na conscincia ideolgica como verdadeiras, racionais, necessrias, esta

    prpria forma de conscincia que possibilita a reproduo deste ser social. Um

    mundo que se pauta pela abstratividade do dinheiro depende de determinado modo

    de conscincia que igualmente se paute pelo dinheiro. Sem a conscincia prpria de

    determinado tipo de ser social no se trocaria papel moeda por alimento e nem se

    obedeceriam as normas abstratas do direito. O ser social no s prtica e nem s

    conscincia, ele a prtica que depende de determinada conscincia e a

    conscincia que depende de determinada prtica, ele dialtico.

    Sohn-Rethel diz que conscincia no uma funo da mente capaz de

    absoluta autocrtica nas linhas da lgica pura e isso, pois a lgica pura ela mesmo

    no controla, mas controlada por esta idia atemporal de verdade; desta idia por

    si no h confirmao ou critica imanente 53. A lgica , assim, ela mesma reflexo

    da realidade deste mundo, que espelha uma verdade de caracterstica atemporal 54,

    que no pode criticar a si mesma. Pergunta-se ento: se toda conscincia

    necessariamente falsa, o que ns [marxistas TFL] sabemos da existncia social

    que ns opomos conscincia 55 como base de nossa anlise? Segundo Sohn-

    Rethel a resposta seria que sabemos to pouco como os no marxistas, mas que

    sabemos onde procurar e que o caminho para se fazer isso traar a origem

    gentica de quaisquer conceitos ou idias correntes, em seus prprios padres. A

    existncia social aquilo que devemos encontrar que determina estas idias e

    conceitos 56. Toda idia remonta a algum tipo de prtica social; no entanto, a partir

    53 Consciousness is not the function of a mind capable of absolute self criticism on lines of pure logic. Pure logic itself does not control, but is controlled by, its timeless idea of the truth; of this idea itself there is no immanent criticism or confirmation. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a critique of epistemology. London, Macmillan, 1978. p.197. 54 A anlise da conscincia como lgica tema do terceiro captulo, aqui nos limitamos ao debate anterior, da conscincia necessariamente falsa, que permeia o prprio debate da lgica, sem, no entanto, tocar em suas categorias internas, como a atemporalidade. 55 what we know of that social existence which we oppose to consciousness. SOHN-RETHEL,op. cit., p.195. 56 The way to do so is to trace the genetical origin of any current ideas and concepts, on the very standards of them. Social existence is that which we shall find determines these ideas and concepts. Ibid., p.195.

  • 39

    de seu surgimento a idia tende a aparecer como autnoma, passa a figurar como

    razo da prpria prtica e os conceitos tericos se formam em torno deste sentido

    atribudo a uma realidade. Sohn-Rethel explica assim, como j o havia feito Marx, o

    surgimento de todas as teorias idealistas como ruptura na prxis:

    (...) o surgimento histrico de toda teoria independente e dotada do signo da autonomia lgica, ou seja, portanto, do "conhecimento" em qualquer sentido idealista, explica-se em ltima instncia somente a partir de uma ruptura na praxis do ser social, ruptura caracterstica e muito profunda. Isso corresponde (em geral) quele ponto de vista marxista bem fundamental, segundo o qual todos os problemas da teoria humana na realidade remontam a problemas da praxis humana e que por isso a tarefa da crtica marxista da ideologia se resume em reconduzir na praxis os problemas da teoria aos problemas que esto em seu fundamento, ou seja as contradies. Essa reconduo possui at finalidade prtica: serve praxis e mudana prtica do ser material 57.

    Sohn-Rethel aponta aqui para a razo pela qual a crtica gentica (crtica da

    gnese dos conceitos) a base da crtica marxista, revelando como as idias nas

    quais o ser humano se aliena surgem, e, ao mostrar este surgimento, dissolve seu

    fetiche. Revelar a prtica como condicionada a uma idia fetichista o passo

    decisivo para se desfazer seu encanto, liberando a prtica para a ao consciente 58.

    Em O Capital podemos ver a importncia da crtica gentica, no desvendar do

    surgimento da forma valor, que gera a forma dinheiro, condio de existncia do

    capital. L a reconduo das idias que fazemos do mundo para o momento de

    surgimento da prtica que lhes deu causa, resolve as grandes contradies do

    capitalismo na potncia j presente na contradio entre valor de uso e valor,

    existentes devido a uma prtica inconscientemente condicionada pelas

    necessi