Formação de Professores Indígenas - Repensando Trajetórias

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Formação de professores indígenas: repensando trajetórias Brasília, fevereiro de 2006. Organização Luís Donisete Benzi Grupioni

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Formação de Professores Indígenas - Repensando Trajetórias - Coleção Educação Para Todos

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  • Formao de professores

    indgenas:repensando

    trajetrias

    Braslia, fevereiro de 2006.

    OrganizaoLus Donisete Benzi Grupioni

  • Edies MEC/UNESCO

    Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da EducaoFernando Haddad

    Secretrio-ExecutivoJairo Jorge da Silva

    Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeRicardo Henriques

    SECAD Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeCoordenao Geral de Educao Escolar Indgena (CGEEI)Edifcio CNE SGAS Quadra 607, Lote 50, Sala 20870.068-900 Braslia - DFTel: (61) 2104-6156 Fax: (61) 2104-6245

    Organizaes das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaRepresentao no Brasil SAS, Quadra5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar, CEP: 70070-914 - Braslia-DF - BrasilTel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

  • OrganizaoLus Donisete Benzi Grupioni

    Formao de professores

    indgenas:repensando

    trajetrias

  • Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da SECAD/MEC e UNESCO, nem comprometem a Secretaria e a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da SECAD/MEC e UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, ou da delimitao de suas fronteiras ou limites.

    2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD/MEC) e Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO).

    Conselho Editorial da Coleo Educao para TodosAdama OuaneAlberto MeloClio da CunhaDalila ShepardOsmar FveroRicardo Henriques

    Equipe Tcnica:Eduardo Vieira BarnesGeraldo Coelho de Oliveira JniorKleber Gesteira MatosMrcia Maria Spyer ResendeMarcia Moraes BlanckMnica Theresa Soares PechinchaSusana Martelleti Grillo GuimaresThiago Almeida Garcia

    Coordenao Editorial: Maria Lcia de Santana Braga

    Reviso, Diagramao e Capa: Projects Brasil MultimdiaTiragem: 5.000 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Centro de Informao e Biblioteca em Educao (CIBEC)

    Formao de professores indgenas : repensando trajetrias / Organizao Lus Donisete Benzi Grupioni. Braslia : Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, 2006. ISBN 85-296-0041-X 230 p. (Coleo Educao para Todos; 8)

    1. Formao de professores. 2. Professor indgena. 3. Educao escolar indgena. I. Grupioni, Lus Donisete Benzi. CDU: 371.13(=081:81)

  • SUMRIO

    ApresentaoRicardo Henriques ...................................................................................07

    FORMANDO NDIOS COMO PROFESSORES: UMA NOVA POLTICA PBLICA

    Formao de Professores Indgenas: uma discusso introdutria Terezinha Machado Maher ...................................................................... 11

    Contextualizando o campo da formao de professores indgenas no Brasil Lus Donisete Benzi Grupioni ..................................................................39

    O estado da arte da formao de professores indgenas no BrasilKleber Gesteira Matos e Nietta Lindenberg Monte .....................................69

    EDUCAO E DIVERSIDADE: REFLEXES SOBRE O LUGAR DA ESCOLA INDGENA

    Interculturalidade e educao escolar indgena: um breve histricoCelia Letcia Gouva Collet .................................................................... 115

    Poltica e Planejamento Lingstico nas sociedades indgenas do Brasil hoje: o espao e o futuro das lnguas indgenasRuth Maria Fonini Monserrat ................................................................ 131

    Contra a ditadura da escolaWilmar da Rocha D Angelis .................................................................. 155

  • SABER MILITANTE: REFLEXES DE FORMADORES DE FORMADORES

    O resgate cultural como valor: refl exes antropolgicas sobre a formao de professores indgenasJos Augusto Laranjeiras Sampaio ...........................................................165

    O que quer a Lingstica e o que se quer da Lingstica a delicada questo da assessoria lingstica no movimento indgenaGilvan Mller de Oliveira .....................................................................175

    Notas em torno de discursos e prticas na educao escolar indgena Bruna Franchetto ..................................................................................191

    PONTOS DE VISTA A PARTIR DA PRTICA: REFLEXES DE PROFESSORES INDGENAS

    Experincia em formao de professoresBruno Kaingang .................................................................................... 201

    A educao escolar indgena e a diversidade cultural no BrasilFrancisca Novatino P. de ngelo ............................................................207

    Educao na viso do professor indgenaFausto da Silva Mandulo ..................................................................... 217

    Sobre os autores ...................................................................................227

  • APRESENTAO

    A criao da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) no Ministrio da Educao marcou o reconhecimento da necessidade de estabelecer polticas especfi cas que pudessem, de um lado, garantir a incluso educacional de diferentes segmentos da populao brasileira educao, e, de outro, valorizar a nossa diversidade tnico-racial, cultural, de gnero, social, ambiental e regional. Para tanto, tem se buscado construir polticas educacionais que garantam no s o acesso e permanncia na escola, mas qualidade na educao, redimensionando aes em busca da superao da desigualdade, do preconceito e da intolerncia.

    Com essa orientao, a poltica educacional para a modalidade de educao escolar indgena tem se pautado pela necessidade de institucionalizar a escola indgena dentro dos sistemas de ensino, garantindo aos estudantes indgenas os benefcios dos programas de melhoria da qualidade da educao, ao mesmo tempo em que se reforam as aes especfi cas de formao de professores indgenas e de produo de materiais didticos diferenciados.

    A formao de membros das comunidades indgenas como professores para as escolas localizadas nas aldeias um desafi o, e deve ser uma prioridade, para todo o sistema educacional brasileiro, devendo congregar os esforos de todos: gestores e tcnicos governamentais, especialistas, lideranas e comunidades indgenas. Este livro, voltado refl exo da formao de professores indgenas, pretende ser um subsdio para a atuao daqueles profi ssionais que esto envolvidos na formulao e implementao de programas de formao de professores indgenas no Brasil.

  • Os textos aqui reunidos expressam diferentes vises a respeito da educao escolar indgena e do desafi o de formar professores ndios para atuarem nas escolas de suas aldeias. Essas diferentes vises resultam da formao diversifi cada dos autores, entre os quais esto antroplogos, lingistas, pedagogos e professores indgenas, e de suas diferentes experincias de refl exo acadmica, militncia indigenista e prtica educativa. Todos eles estiveram e esto engajados em projetos de formao de professores indgenas, alguns deles pioneiros no Brasil. A riqueza da refl exo que eles nos trazem nesses textos algo que a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade tem todo interesse em compartilhar com os tcnicos e gestores governamentais, com os professores indgenas em formao e em atuao nas milhares de escolas indgenas do pas e com a comunidade acadmica brasileira.

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada,

    Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao

  • FORMANDO NDIOS COMO PROFESSORES: UMA NOVA POLTICA PBLICA

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA1

    Terezinha Machado Maher

    Engajar-se em projetos de formao de professores indgenas? Sim, mas no sem antes se informar sobre as questes de fundo envolvidas nessa to complexa empreitada. Esse texto pretende introduzir educadores particularmente aqueles que pretendem atuar na rea da gesto governamental de polticas educativas voltadas aos povos indgenas a algumas dessas questes.

    Mas esse no o nico objetivo que pretendo alcanar com esse texto. Como nele teo consideraes sobre aspectos do processo educacional das crianas indgenas sobretudo do ponto de vista de sua problemtica lingstica , minha expectativa de que a familiaridade com essas questes possa ser til na refl exo sobre as experincias educacionais de outras crianas. Explico porque: entendo que a escola indgena se confi gura como uma situao limite em termos de educao. Nela, parece-me, as difi culdades, os dilemas so sempre colocados de forma muito contundente, o que obriga o educador a ter que olh-los prontamente de frente. Porque creio que problemas semelhantes apaream de forma

    1 Esse texto uma verso revista e ampliada de Maher, 2005.

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA

    mais sutil, ou no so postos com a mesma urgncia, em outras esferas educativas, suspeito ser freqentemente mais fcil contemporizar a busca de solues para esses problemas ou at mesmo no reconhec-los como tais. O fato que meu trabalho junto a projetos de Educao Escolar Indgena tem signifi cativamente retroalimetado minhas outras prticas como pesquisadora e docente na rea da linguagem e, assim sendo, espero que o contedo desse texto possa tambm lanar luz nas refl exes sobre as prticas educativas de quem agora o l, tanto daqueles que esto em sala de aula, quanto daqueles que esto em postos administrativos, gerenciando polticas de educao escolar.

    Mapear, ainda que de forma bastante geral, a questo indgena no Brasil pode ser um bom esteio no qual assentar meus argumentos iniciais. Vejamos:

    O BRASIL INDGENA CONTEMPORNEO

    Estima-se que em 1500 poca em que os europeus chegaram ao Brasil , a populao indgena local girasse em torno de 2 a 4 milhes de pessoas. Hoje, essa populao de apenas 370.000 habitantes!2 Embora os povos indgenas estejam em fase de crescimento demogrfico significativo, esse nmero ainda muito pequeno, no representando atualmente mais do que 0,2% da populao brasileira. Essa depopulao explicada pelas polticas, ora mais, ora menos explcitas, de extermnio fsico e/ou cultural historicamente impostas aos grupos indgenas em nosso pas. Essas polticas explicam tambm o nmero de lnguas indgenas desaparecidas: das 1300, 1500 lnguas que, presume-se, existiam quando Cabral aqui chegou com suas esquadras, restam hoje apenas cerca de 180... Mas se, por um lado, os nmeros que venho apresentando no so alentadores, por outro, eles revelam a incrvel tenacidade e capacidade de resistncia

    2 Os dados numricos mencionados nesse texto foram obtidos na pgina eletrnica do Instituto Socioambiental (ISA) www.socioambiental.org, acessada em 10/04/2005.

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    TEREZINHA MACHADO MAHER

    dos povos indgenas: garruchas, decretos, bblias, epidemias, usurpaes territoriais e tantas outras aes predatrias que os vm acometendo ao longo da Histria no conseguiram erradic-los totalmente do territrio brasileiro!

    Aqui se faz necessrio fazer uma pausa e chamar a ateno para um do equvoco histrico que diz respeito noo constantemente reafi rmada pela escola de que o Brasil foi descoberto. Embora, felizmente, alguns livros didticos publicados mais recentemente j no trabalhem mais com essa fantasia, vrios deles, ignorando o fato de que os povos indgenas estavam aqui antes de Colombo, e, portanto, muito antes de Cabral chegar, descrevem, para nossos alunos, a descoberta de nossas terras, quando deveriam descrever sua invaso. preciso ensinar as crianas brasileiras, desde a mais tenra idade, que o Brasil tinha donos quando os europeus chegaram! da maior importncia esclarecer que houve um projeto europeu, em nada pacfi co, de conquista e que os povos indgenas aqui lotados perderam essa guerra. Insisto: fundamental que se diga, sem meias palavras, que os portugueses invadiram, ocuparam fora, as terras desses povos. E mais, preciso compreender, que essa guerra ainda no terminou: o projeto de ocupao das terras indgenas continua em curso ainda hoje. Nada mais fcil, para qualquer professor, do que recolher, na mdia, evidncias dos dramticos esforos dos povos indgenas em, contemporaneamente, assegurar as poucas terras que lhes foi permitido continuar ocupando. Quanto mais cedo o cidado brasileiro se inteirar da histria real de seu pas, mais condies ele ter de exercer, de forma responsvel e solidria, sua cidadania no futuro. Nenhuma cidadania dessa natureza pode passar ao largo do respeito diferena, do respeito s minorias em nosso pas.

    Continuemos: se a populao indgena atual de cerca de 370 mil pessoas, como afi rmei, importantssimo deixar claro que essa populao est dividida em 220 povos distintos. Esses povos diferem, entre si, em muitos aspectos. No quadro abaixo possvel perceber o modo como, por exemplo, 12 deles diferem em termos populacionais:

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA

    Guarani 34.000 pessoas

    Kaingang 25.875 pessoas

    Guajajara 13.100 pessoas

    Xavante 6.000 pessoas

    Kaxinaw 3.964 pessoas

    Xikrin 1.052 pessoas

    Palikur 918 pessoas

    Waipi 525 pessoas

    Panar 202 pessoas

    Zo 152 pessoas

    Ofai 56 pessoas

    Karipuna 21 pessoas

    Como se v, h diferenas populacionais signifi cativas entre os povos indgenas, mas isso no tudo. Os Guarani, por exemplo, interagem com o que denominamos sociedade nacional h 500 anos, enquanto que os Waipi s conheceram o homem branco h cerca de 30 anos.3 Evidentemente, as diferentes experincias de contato com a sociedade envolvente fazem com que os povos indgenas no Brasil tenham, comparativamente, confi guraes atuais muito particulares.4 Mas as diferenas entre eles tampouco param a. Vejamos: os Zo falam uma lngua da famlia Tupi-Guarani; a lngua falada pelos Kaxinaw, entretanto, pertence famlia lingstica Pano. Isso signifi ca que um Zo e um Kaxinaw observam matrizes culturais possivelmente to distintas quanto, digamos, um latino e um oriental. E mesmo se considerarmos os grupos que falam lnguas da mesma famlia lingstica como o caso dos Xavante, dos Kaingang e dos Xikrin, todos falantes de lnguas J , ainda assim as diferenas entre esses povos no so nada desprezveis. Pensar o contrrio seria o mesmo que pensar que um italiano, um francs e um brasileiro, porque

    3 A partir de uma conveno estabelecida, entre lingistas e antroplogos, em 1953, ficou estabelecido que o substantivo gentlico referente ao nome de um povo indgena seria grafado com maiscula e nunca pluralizado: tal substantivo, alm de muitas vezes j estar no plural na lngua indgena de referncia, designativo de um povo, de uma sociedade, de uma coletividade nica e no apenas de um conjunto de indivduos. Da nos referirmos aos Palikur, e no aos Palikures; aos Guajajara, e no aos Guajajaras.4 importante esclarecer que h, em territrio nacional, cerca de 54 povos indgenas que ainda no foram contatados.

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    TEREZINHA MACHADO MAHER

    falam lnguas romnicas, seriam idnticos... Ora, as implicaes de tamanha diversidade no interior do Brasil indgena no podem ser desconsideradas em nossas escolas, por isso imperioso que a noo de ndio genrico seja desconstruda j na Educao Infantil, para que nossas crianas no cresam tendo uma viso equivocada dos povos indgenas em nosso pas. Quando digo s pessoas que trabalho em um projeto de educao indgena que compreende nove diferentes etnias,5 elas geralmente demonstram muita curiosidade: Voc trabalha com ndios? Como que eles so?. A minha resposta sempre vem em forma de uma pergunta. Sobre que ndios voc quer saber? Voc quer saber sobre aqueles que fazem parte do povo Kaxinaw, do povo Asheninka, do Katukina, do Shawdawa, do Apurin, do Yawanawa, do Jaminawa ou do Manchineri? Essa minha pergunta sempre parece desconsertar as pessoas. Tal desconforto facilmente explicvel: fomos educados no interior de um sistema de educao construdo a partir de um posicionamento ideolgico que procura diluir as identidades indgenas com o intuito de torn-las menos visveis aos olhos da nao brasileira. Para tanto, vimos, desde os primrdios da nossa Histria, procurando fi rmar essa noo de ndio genrico para desidentifi car os povos indgenas: uma estratgia efi caz quando se quer dominar algum destitu-lo de qualquer singularidade, emprestar-lhe invisibilidade. Vai da todos os povos que habitavam/habitam o territrio brasileiro terem sido/estarem sendo postos em uma mesma categoria e rotulados de ndios. Ora, esse nosso ato seria o equivalente a, digamos, colocar, lado a lado, um caipira do interior de So Paulo, um ndio boliviano, um mestre de capoeira da Bahia, um compositor de rap de Nova York, um executivo argentino, uma top model de Ipanema, um fazendeiro do Texas e, em seguida, afi rmar: Vocs, americanos, so isso, so aquilo... Essas pessoas certamente iriam se entreolhar e, surpresas, perguntar: Ns quem, cara plida?. Um exemplo como esse pode parecer exagerado, mas justamente isso que fazemos quando nos dirigimos s crianas e fazemos afi rmaes categricas sobre como so, como vivem os

    5 Refiro-me ao o projeto Por uma Experincia de Autoria realizado pela Comisso Pr-ndio do Acre (CPI-AC). Essa entidade, uma organizao no-governamental laica, d assessoria s escolas indgenas de nove etnias do Acre e sudoeste do Amazonas, alm de formar seus professores. E a partir dos contornos dessa experincia que eu me baseio para afirmar muito do que afirmo nessa parte do texto.

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA

    ndios brasileiros. O que se tem, em nosso pas, so 220 etnias diferentes, com lnguas diferentes, crenas diferentes, modos diferentes de estar no mundo, de atribuir sentido s coisas do mundo. Por isso, creio que algo importante e urgente a ser ensinado s crianas brasileiras que no existem ndios, em abstrato, no Brasil: existem 220 povos indgenas em nosso pas. Cada um deles com as suas especifi cidades. O que esses povos tm em comum o fato de todos eles, em primeiro lugar, serem de origem pr-colombiana e, em segundo, de terem sido vtimas de uma experincia traumtica de contato. Quaisquer outras generalizaes precisam ser feitas com muita parcimnia.

    Isso posto, importantssimo deixar claro que estarei, no que segue, referindo-me apenas ao que me parece ser um denominador mais ou menos comum nos processos educacionais das crianas indgenas: os leitores desse texto devem atentar, o tempo todo, para o fato de que minhas observaes sobre a questo so generalizaes feitas a partir de leituras e de minha prpria experincia com diferentes grupos indgenas no pas. O que eu digo a seguir provavelmente corresponde a muitos contextos educacionais indgenas, mas certamente no corresponde a todos eles.

    Feito o alerta, passo a focalizar, na expectativa de j ter construdo um cenrio mais favorvel para tanto, a questo da educao entre os povos indgenas brasileiros.

    EDUCAO INDGENA VERSUS EDUCAO ESCOLAR INDGENA

    Como so educadas as crianas indgenas? Impossvel refletir sobre essa pergunta sem estabelecermos uma distino importante entre o que se convencionou denominar Educao Indgena e Educao Escolar Indgena.6 Quando fazemos meno Educao Indgena, estamos nos referindo aos processos educativos tradicionais de cada povo indgena. Aos

    6 Essa distino foi inicialmente sugerida por Bartomeu Meli, em 1979.

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    TEREZINHA MACHADO MAHER

    processos nativos de socializao de suas crianas. Quando observamos mesmo as atividades mais corriqueiras realizadas no interior de uma aldeia Yanomami, por exemplo, podemos perceber que a ocorre um intenso e complexo processo de ensino/aprendizagem, no qual crianas e jovens so preparados para exercerem sua fl orestania, para se tornarem sujeitos plenos e produtivos de seu grupo tnico. Esse empreendimento, preciso entender, no implica, no passa por conhecimento escolar algum. Antigamente, essa era a nica forma de educao existente entre os povos indgenas: o conhecimento assim transmitido era mais do que sufi ciente para dar conta das demandas do mundo do qual faziam parte. A partir do contato com o branco, no entanto, esse conhecimento passou a ser insufi ciente para garantir a sobrevivncia, o bem-estar dessas sociedades. preciso agora tambm conhecer os cdigos e os smbolos dos no-ndios, j que estes e suas aes passaram a povoar o entorno indgena. E assim que, historicamente, surgiu a Educao Escolar Indgena. a partir de seu contato conosco que a escrita, a matemtica formal e vrios outros de nossos saberes entraram no mundo Yanomami, no mundo Tikuna, no mundo Yawalapiti, etc.

    COMO O NDIO APRENDE A SER NDIO?

    Uma caracterstica que chama a ateno na Educao Indgena tradicional o fato de, nesse tipo de educao, o ensino e a aprendizagem ocorrerem de forma continuada, sem que haja cortes abruptos nas atividades do cotidiano. Entre ns, o ensino e a aprendizagem se do em momentos e contextos muitos especfi cos: Est na hora de levar meu fi lho para a escola para que ele possa ser alfabetizado; Minha fi lha est fazendo um curso, em uma escola de informtica, das 4:00 s 5:30 da tarde. Nas sociedades indgenas, o ensinar e o aprender so aes mescladas, incorporadas rotina do dia a dia, ao trabalho e ao lazer e no esto restritas a nenhum espao especfi co. A escola todo o espao fsico da comunidade. Ensina-se a pescar no rio, evidentemente. Ensina-se a plantar no roado. Para aprender, para ensinar, qualquer lugar lugar, qualquer hora hora...

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA

    O processo de ensino/aprendizagem, na Educao Indgena, uma empreitada social. Isso signifi ca que ele est calcado na cooperao e na funo utilitria do conhecimento. No podemos nos esquecer que as sociedades indgenas so sociedades numericamente pequenas, como demonstra o quadro apresentado anteriormente. Uma sociedade de 400 pessoas no pode se dar ao luxo, por exemplo, de ver um de seus membros afi rmar: Ah, eu no quero aprender a pescar eu quero aprender snscrito!. Aprender snscrito para qu? O conhecimento tem que ser til para garantir a sobrevivncia do grupo. Ento, no se valoriza muito o saber relevante para apenas um nico indivduo. Muito pelo contrrio: valoriza-se a aquisio de conhecimentos que sejam teis para o bem-estar comunitrio. E, alm disso, o ensino no uma responsabilidade de uma nica pessoa, ele responsabilidade de todos. Na Educao Indgena, no existe a fi gura do professor. So vrios os professores da criana. A me ensina; ela professora. O pai professor, o velho professor, o tio professor, o irmo mais velho professor. Todo mundo professor... e todo mundo aluno. No h, como em nossa sociedade, um nico detentor do saber autorizado por uma instituio para educar as crianas e os jovens.

    Nos processos educativos tradicionais h muito pouca instruo. No prprio das sociedades indgenas o discurso pedaggico como o conhecemos: Preste ateno: assim que faz. Primeiro, preciso.... No. O modelo de aprendizagem indgena passa pela demonstrao, pela observao, pela imitao, pela tentativa e erro. Pude observar pessoalmente essa caracterstica quando passei algum tempo em uma aldeia de um grupo tnico que habita o sudoeste do Amazonas, os Apurin. Nessa ocasio, tive a oportunidade de presenciar o modo como um menino aprendia a fazer a cestaria tpica do seu povo,7 porque fi quei hospedada na casa de sua famlia por algum tempo. Todas as tardes, a me dessa criana e eu fi cvamos no terreiro conversando, enquanto ela, ou preparava o material de que necessitava para fazer o artesanato, ou tranava suas cestas e peneiras de palha. Um de seus fi lhos, um menino de cerca de 6 anos, sempre se juntava a ns e fi cava algum tempo por ali ouvindo nossa conversa

    7 Antigamente, a feitura do artesanato Apurin era tarefa exclusivamente feminina; hoje, tambm meninos e rapazes participam dessa empreitada, dada necessidade de aumentar a produo para fazer frente demanda feita pelos locais de venda desse tipo de artesanato em Rio Branco.

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    TEREZINHA MACHADO MAHER

    enquanto observava a atividade dela. Depois de alguns dias, ele comeou a pegar o faco e a ajudar sua me no preparo do material extrado de um tipo de taquara. Mas ele no fi cava fazendo isso muito tempo, no. Logo saa e ia brincar com os outros meninos no aude, ia jogar bola... Algumas vezes ele voltava depois de algum tempo e continuava ajudando sua me mais um pouco, mas outras, no: s voltava no dia seguinte. Depois de algum tempo, o menino comeou a tranar a palha j preparada e percebi que estava tentando fazer uma peneirinha. O resultado de seu trabalho no fi cou, devo dizer, muito bom, se comparado com a qualidade do trabalho artesanal de sua me. Mas o que importante enfatizar aqui que, em todo esse processo, eu nunca ouvi aquela senhora Apurin dizer algo como: No, no v brincar, no. Fique aqui, voc no aprendeu tudo ainda. Ou mesmo: No assim que se faz, est errado. assim! Preste a ateno que eu vou explicar de novo. Na hora de recolher o material, ao cair da tarde, ela pegava o que ele havia feito, olhava e, sem dizer uma palavra, guardava a peneirinha do fi lho junto com sua prpria produo do dia. A impresso que me dava que ela sabia que o processo no qual seu fi lho comeara a se engajar seria um processo longo. No havia mesmo porque ter pressa: os jovens Apurin que se interessam pela venda de artesanato s comeam a se envolver nessa tarefa quando adultos, por volta dos 15, 16 anos. Experincias como estas explicam porque teorizaes parecem no fazer parte da agenda educativa tradicional dos povos indgenas.

    Tendo alinhavado algumas caractersticas da Pedagogia Indgena,8 discuto, a seguir, os contornos que a escola pode assumir no interior das comunidades indgenas.

    MODELOS DE EDUCAO ESCOLAR INDGENA

    A Educao Escolar Indgena pode ser encaixada em dois paradigmas. At muito recentemente at o fi m da dcada de 70 o paradigma predominante

    8 Duas referncias importantes para aqueles que querem saber mais sobre as caractersticas da Educao Indgena tradicional so Meli, 1979 e Lopes da Silva e al., 2001.

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA

    foi aquele denominado Paradigma Assimilacionista. Nesse paradigma, o que se pretende , em ltima instncia, educar o ndio para que ele deixe de ser ndio: o objetivo do trabalho pedaggico faz-lo abdicar de sua lngua, de suas crenas e de seus padres culturais e incorporar, assimilar os valores e comportamentos, inclusive lingsticos, da sociedade nacional. Inicialmente, tentou-se atingir tal objetivo atravs das orientaes fornecidas pelo Modelo Assimilacionista de Submerso.

    No Modelo Assimilacionista de Submerso, as crianas indgenas eram retiradas de suas famlias, de suas aldeias e colocadas em internatos para serem catequizadas, para aprenderem portugus e os nossos costumes, enfi m para aprenderem a ser gente. Porque o que se acreditava que os costumes e crenas indgenas no correspondiam aos valores da modernidade. H muita documentao escrita atestando que o ndio era visto como um bicho, um animal que precisava urgentemente, de acordo com o projeto de construo da Nao Brasileira, ser civilizado, humanizado. E escola cabia levar a cabo tal incumbncia, atravs de programas de submerso cultural e lingstica.

    Antes de prosseguirmos, creio ser necessrio fazer uma pausa para refl etirmos sobre a fi gura do ndio no imaginrio nacional. A nossa concepo do que vem a ser o ndio oscila na imprensa, nos livros didticos, na literatura entre uma viso satanizada e uma viso idlica de indianidade. 9 Em momentos, o ndio descrito como um ser destitudo de qualquer racionalidade e bom senso: um ser regido exclusivamente por instintos animalescos e, portanto, um ser agressivo, manhoso, no-confi vel, traioeiro. No outro extremo do espectro, a imagem construda do ndio aquela no qual ele visto como o bom selvagem: aquele que sempre protege as fl orestas, aquele que incapaz de qualquer maldade, um ser ingnuo, puro. Nenhuma dessas vises nem a viso satanizada, nem a viso idlica corresponde, evidentemente, realidade. O ndio um ser humano exatamente igual a todos ns e, por isso mesmo, capaz de, em momentos, agir com grande generosidade, e, em outros, de se

    9 Recomendo o texto de Marcia Spyer (1996) para aqueles que querem entender melhor a construo histrica dessa dicotomia.

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    comportar de modo menos louvvel, de modo no to nobre. ndio ri, ndio chora, tem cime, tem inveja, tem ambies pessoais, capaz de fazer renncias difi climas. Muitos protegem nossas fl orestas, alguns comercializam madeira de lei. O que importa deixar claro para nossos alunos que o ndio no , nem um ser animalesco, demonaco, nem tampouco um anjo de pureza como Ceci, personagem de Jos de Alencar. Ambas as noes so igualmente nocivas, perniciosas porque desumanizam o ndio, subtraem dele aquilo que, na base, melhor o defi ne: a sua condio de ser humano.

    Feito o hiato, retomemos, agora, os modelos de Educao Escolar Indgena. Como vimos, existe um modelo educacional que apregoa, de forma radical, a submerso cultural e lingstica do ndio na sociedade dominante com vistas sua assimilao. Desrespeitoso e extremamente violento para com a criana indgena, esse modelo se revelou tambm inefi ciente: a aprendizagem no acontecia nos moldes previstos. E no para menos: imaginem algum se apoderando abruptamente de nossos fi lhos, que falam portugus em casa, e colocando-os em uma escola na qual o professor fala, por exemplo, somente russo e todos os livros didticos esto escritos nessa lngua? Inimaginvel, no ? Mas foi justamente isso o que foi feito com as populaes indgenas por algumas misses religiosas e rgos do governo brasileiro durante anos a fi o. A inefi cincia dessas aes fez surgir o Modelo Assimilacionista de Transio. Nele, no h a retirada da criana indgena do seio familiar. Antes, cria-se uma escola na aldeia e a lngua de instruo, nas sries iniciais, a lngua indgena, porque, percebeu-se, extremamente difcil alfabetizar uma criana em uma lngua que ela no domina. Mas, nesse modelo, depois que a criana alfabetizada em sua lngua materna, depois que ela entende o que escrita, como o seu funcionamento, vai-se introduzindo o portugus paulatinamente at que a lngua indgena seja totalmente excluda do currculo escolar. A funo da lngua indgena apenas servir de elemento facilitador para a aprendizagem de lngua portuguesa, a qual, tendo sido aprendida, passar a ser a lngua de instruo na apresentao dos demais contedos escolares. Em termos lingsticos, esse modelo prope um bilingismo subtrativo. Seu objetivo fi nal subtrair a lngua materna do repertrio do falante: a criana comea

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    sua escolarizao monolnge em lngua indgena, passa a um bilingismo transitrio nas duas lnguas e termina monolnge na segunda lngua, na lngua portuguesa. Paralelamente, busca-se substituir o referencial cultural indgena pelos valores e prticas da sociedade dominante. Como se pode perceber, esse modelo segue sendo to violento quanto o Modelo Assimilacionista de Submerso. A nica diferena que a violncia cultural e lingstica agora praticada em doses homeopticas.

    Embora esse ltimo modelo ainda seja seguido em muitas escolas indgenas de forma agora mais dissimulada, verdade , nos ltimos vinte anos, pudemos presenciar uma modifi cao importante no cenrio da Educao Escolar Indgena, com a introduo de um novo paradigma, o Paradigma Emancipatrio. E sob seus princpios que construdo o Modelo de Enriquecimento Cultural e Lingstico. Nele, o que se quer promover um bilingismo aditivo10: pretende-se que o aluno indgena adicione a lngua portuguesa ao seu repertrio lingstico, mas pretende-se tambm que ele se torne cada vez mais profi ciente na lngua de seus ancestrais. Para tanto, insiste-se na importncia de que a lngua de instruo seja a lngua indgena ao longo de todo o processo de escolarizao e no apenas nas sries iniciais. Alm disso, esse modelo busca promover o respeito s crenas, aos saberes e s prticas culturais indgenas.

    importante esclarecer que a formulao dessa poltica educacional no aconteceu por acaso. Ela fruto de um movimento de fortalecimento poltico das associaes indgenas. Apoiadas por entidades da sociedade civil, as populaes indgenas passaram, no fi nal da dcada de 70, a se organizar politicamente em todo o territrio brasileiro. por isso que vimos o ndio ressurgir das cinzas nos anos 80. At ento, s tnhamos conhecimento dos povos indgenas atravs do livro didtico: Os ndios brasileiros eram assim ou assado, moravam em oca, seus chefes eram o cacique e o paj, etc.... O que se

    10 Enquanto que para ns, o bilingismo facultativo, para as comunidades indgenas, o que ocorre a existncia de um bilingismo compulsrio. A essas populaes no dada nenhuma opo: aps o contato, eles se viram obrigados a aprender a nossa lngua.

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    via era o ndio sempre no imperfeito, de modo a negar a sua existncia atual no interior da nao brasileira. Mas, na dcada de 80, os povos indgenas nos foraram a ter que admitir sua presena, a ter que v-los e ouvi-los novamente. Esses povos comearam a se fazer notar no Congresso Nacional, em Braslia. Comearam a utilizar a mdia impressa e televisiva para denunciar invases em suas terras, para reivindicar seus direitos. E conseguiram, com a Constituio de 1988, uma grande conquista legal: tiveram, pela primeira vez, assegurado em nossa Carta Magna o direito de terem suas lnguas, seus costumes e seus princpios educacionais respeitados no processo de escolarizao formal.

    Por uma escola indgena especfi ca, diferenciada, intercultural, bilnge e de qualidade, tornou-se, hoje, o moto daqueles que, renegando os modelos assimilacionistas, lutam pela implantao de programas de educao escolares que estejam a servio das comunidades indgenas, e no contra elas. claro que qualquer mudana de paradigma leva tempo, no se faz do dia para a noite, pois isso no envolve apenas realinhamentos ideolgicos, mudanas de discurso: preciso, sobretudo, descobrir formas concretas para tornar o desejo efetivamente realidade. E para escapar das arapucas que o antigo paradigma insiste em nos armar... Temos muitos projetos de Educao Escolar Indgena no pas envolvidos nessa complexa e rdua tarefa, procurando construir escolas indgenas culturalmente sensveis e politicamente relevantes para as comunidades indgenas. O primeiro passo para garantir a existncia desse tipo de escola que o condutor de todo o processo escolar seja, evidentemente, um professor indgena. Esse profi ssional, entende-se, seria o mais adequado para levar a cabo o projeto poltico-pedadgico de sua comunidade.

    FORMAO DE NDIOS COMO PROFESSORES

    A percepo da importncia de que a escolarizao formal de alunos indgenas fosse conduzida pelos prprios ndios comeou a se instalar, no Brasil, somente a partir da dcada de 70, poca em que os primeiros Programas de Formao de Professores Indgenas foram implementados por organizaes no-governamentais. Esses poucos programas pioneiros, no entanto, fi zeram

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    escola e rapidamente comearam a surgir, em todas as regies do pas, mais e mais programas de formao para o Magistrio Indgena. Durante a dcada de 80 e 90, um conjunto de medidas legais fez com que as questes que envolvem a Educao Escolar Indgena passassem a fazer parte do rol de responsabilidades do Estado e, hoje, vrios dos Programas de Formao de Professores Indgenas so geridos por secretarias estaduais de educao. A maior parte desses programas se desenvolve no mbito do ensino mdio, embora j existam iniciativas visando a uma formao especfi ca em nvel superior. Os cursos de licenciatura para professores indgenas promovidos pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Universidade de So Paulo (USP) so apenas trs exemplos dessa nova tendncia.

    Mas o que caracteriza um programa de formao de professores indgenas? Quais so as suas especifi cidades? No que programas dessa natureza diferem, enfi m, de outros programas de formao para a docncia?

    Em primeiro lugar, importante atentar para o fato de que, enquanto cabe ao professor no-ndio formar seus alunos como cidados brasileiros plenos, responsabilidade do professor indgena no apenas preparar as crianas, os jovens e os adultos, sob sua responsabilidade, para conhecerem e exercitarem seus direitos e deveres no interior da sociedade brasileira, mas tambm garantir que seus alunos continuem exercendo amplamente sua cidadania no interior da sociedade indgena ao qual pertencem. por esse motivo, ento, que os professores indgenas, em seu processo de formao, tm que, o tempo todo, refl etir criticamente sobre as possveis contradies embutidas nesse duplo objetivo, de modo a encontrar solues para os confl itos e tenses da resultantes. Apenas guisa de exemplo: costume, em vrias sociedades indgenas, manter reclusas suas adolescentes durante o perodo que antecede a primeira menstruao. Elaborar um calendrio escolar que garanta, ao mesmo tempo, o desenvolvimento, por parte das jovens alunas indgenas, das competncias acadmicas desejadas e o respeito a esse tipo de prtica cultural ilustra apenas um dos inmeros desafi os postos aos professores indgenas em seus cursos de formao.

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    Uma outra diferena signifi cativa que um aspirante no-ndio ao cargo de professor chega ao seu Curso de Formao para o Magistrio tendo passado por anos de escolarizao formal: em tese, ele j domina a maior parte do contedo que ir ensinar. Por outro lado, os programas para o Magistrio Indgena destinam-se a formar um tipo de professor que, na maior parte dos casos, j atua na escola de sua comunidade e tem pouca experincia de escolarizao formal: ele sempre traz em sua bagagem um amplo domnio dos conhecimentos acumulados por seu povo, mas seu conhecimento sobre os nossos saberes acadmicos restrito. Vai da que tais programas contemplam no apenas a formao para o exerccio profi ssional em servio, mas tambm o aprimoramento da escolarizao formal de seus participantes. Sendo assim, os currculos dos Cursos de Formao para o Magistrio Indgena so bastante extensos. Esse fato, aliado inconvenincia de manter os professores indgenas afastados de suas aldeias por longos perodos de tempo, faz com que tais cursos sejam realizados quase sempre em etapas presenciais e distncia.

    Quando um professor branco comea a lecionar, o currculo escolar da instituio que o contratou j est pronto e em funcionamento o mximo com o qual ele provavelmente tem que se preocupar com a montagem do programa de sua disciplina. Mas no assim com a imensa maioria dos professores indgenas em geral, cabe a eles a elaborao de todo o projeto poltico-pedaggico de suas escolas: o estabelecimento de seus objetivos educacionais, de seu calendrio, de sua grade curricular, do contedo das disciplinas e do seu sistema de avaliao. Alm disso, enquanto um professor no-ndio tem, sua disposio (em livrarias, em bibliotecas, em jornais, na Internet) toda uma variedade de materiais e recursos para servir de suporte pedaggico, um professor indgena no tem muito em que se apoiar para desenvolver seu trabalho: a maior parte dos materiais que lhe poderiam ser teis ainda esto por-fazer. Assim, caracterstica marcante dos cursos de formao para o magistrio indgena o investimento feito na formao do professor-elaborador de material didtico, o que implica, necessariamente, no desenvolvimento da capacidade de atuar como pesquisador em diferentes reas de investigao. O depoimento abaixo exemplifi ca esse tipo de atuao:

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    Eu j escrevi quatorze Cantos do Cip: faltam s oito pr pesquisar... Eu sempre pergunto para o meu pai, sabe? A eu aprendo e canto. Porque esses cantos, no todos que sabem cantar, no; s algumas poucas pessoas na aldeia ainda sabem cantar esses cantos. E depois que eu terminar minha pesquisa sobre os Cantos do Cip, eu vou comear a gravar os Cantos do Batismo. E quando eu terminar, eu vou registrar os Cantos do Mariri. E depois tem os Cantos de Cura... porque tem muitas doenas, n? E quando um ndio fi ca doente, muito doente, ento a tem que ajudar. Eu aprendi muito sobre a minha lngua com essas pesquisas porque esses cantos so muito longos... muito difcil. Eu gravo e depois eu escrevo com o meu lpis. Eu ponho tudinho na ponta do meu lpis, tudinho. E assim que eu aprendo pra depois pr na cartilha para os meus alunos aprenderem tambm. Ah, e eu fao pesquisa de planta que cura tambm. Sabe, tem doena que braba mesmo, s o canto no cura, no... tem que tomar remdio da mata tambm. E eu ponho tudo na cartilha: meus alunos l da minha escola no vo esquecer... Porque a medicina do ndio muito importante, ela tem igual valor, e a gente precisa mostrar isso l na escola... (Professor Ib Kaxinawa, Escola Chico Curumim, Terra Indgena Rio Jordo, Acre).

    Registrar os conhecimentos tradicionais indgenas, i.e., tornar-se guardio da herana cultural de seu povo, alm de ser considerado parte integrante da atividade do docente indgena, constitui-se, hoje, em uma de suas funes mais importantes.

    A grande maioria dos professores indgenas atua em comunidades bilnges e, por isso mesmo, esses professores freqentemente se vem envolvidos em atividades de traduo no seu cotidiano escolar, o que demanda o domnio de uma habilidade muito especfi ca. Uma outra competncia necessria para esses docentes a capacidade de tomar decises informadas sobre o modo adequado de grafar seu prprio idioma, j que os sistemas de escrita de muitas lnguas indgenas encontram-se em processo de defi nio. por isso que muitos dos programas de formao para o Magistrio Indgena incluem, em seus currculos, Cursos de Introduo Lingstica.

    Pensar que as responsabilidades de um professor indgenas se resumem quelas atividades circunscritas ao ambiente escolar , no entanto, um engano. O leque de atribuies que lhes cabem , quase sempre, muito mais amplo. O fato de terem acesso aos cdigos da sociedade brasileira faz com que se percebam, e com que sejam percebidos, como elementos cruciais na interlocuo cultural e poltica de seu grupo tnico com a sociedade envolvente. comum ver o

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    professor indgena liderando discusses e negociaes envolvendo, por exemplo, a posse e a segurana do territrio de seu povo ou os problemas de sade que acometem sua comunidade. Conscientes da importncia de seu cargo para a determinao do futuro das sociedades indgenas, os cerca de 6.000 professores indgenas em servio atualmente no Brasil,11 vm se organizando, desde o fi nal da dcada de 80, em entidades de classe,12 com o intuito de se fortalecerem politicamente. E a militncia desses professores no interior dessas entidades tem sido crucial para a formulao e o estabelecimento de polticas pblicas mais justas para os povos indgenas do pas.

    UM NOVO MODELO DE ESCOLA INDGENA

    Como a escola nos moldes ocidentais entra nas aldeias como decorrncia do contato com o outro, com os no-ndios, a questo da interculturalidade, isto , do conseguir fazer dialogar comportamentos e conhecimentos construdos sob bases culturais distintas e freqentemente confl itantes atualmente entendida como o esteio, a razo de ser da escola indgena. O desafi o posto pela interculturalidade no pode, nesse contexto, ser entendido como um plus, como um enriquecimento, como um bnus como parece ser o caso na maior parte das escolas no-indgenas porque o investimento no estabelecimento do dilogo, na capacidade de resoluo do confl ito intercultural o alicerce, o que justifi ca mesmo a existncia dessa escola, o que d a ela relevncia poltica. Ser que em um mundo to globalizado como o de hoje, nossas escolas principalmente aquelas nos grandes centros urbanos tambm no deveriam adotar mais categoricamente a interculturalidade como tema transversal, de modo a melhor preparar nossas crianas e jovens para o sempre difcil encontro com o outro, com o diferente?

    11 Dados obtidos junto ao Censo Escolar de 2003 realizado pelo INEP/MEC.12 Dentre as muitas entidades existentes, podemos citar, por exemplo, a Associao de Professores Bilnges Kaingang e Guarani (APBKG), a Comisso de Professores Indgenas de Pernambuco (COPIPE), a Organizao Geral de Professores Ticuna Bilnges (OGPTB), o Conselho de Professores Indgenas da Amaznia (COPIAM), a Associao da Educao Indgena Xacriab (ADIX), a Organizao dos Professores Indgenas do Acre (OPIAC), a Associao de Professores Indgenas do Alto do Rio Negro (APIARN), etc.

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    A multisseriao um fenmeno muito presente nas escolas indgenas. Porque as comunidades so pequenas, suas escolas tm poucos professores e alunos e, portanto, em uma mesma sala de aula, tem-se, freqentemente, alunos de faixas etrias e nveis de escolarizao diferentes e competncias variadas. O que eu tenho observado que a sala de aula multisseriada no chega a ser um problema to dramtico para os professores indgenas como o para a maioria de ns. Os professores indgenas parecem saber lidar melhor com isso. Eles do uma atividade para os pequenininhos e a vo trabalhar um pouco com os alunos mais adiantados; o aluno que j acabou a tarefa espera, pacientemente, sua vez de ter a ateno do professor, na maior parte das vezes desenhando. Impressiona ver como tudo feito com muita calma, muito vagar, sem estresse. Alis, se h uma coisa que parece caracterizar o cotidiano das escolas indgenas pelo menos as com as quais estou familiarizada que nele h muito menos estresse do que nas nossas. O estresse, quando ocorre, vem de cobranas de fora: culturalmente insensveis, alguns tcnicos de secretarias de educao pressionam os professores indgenas pelo cumprimento do programa, por exemplo, sem considerar que os princpios da pedagogia indgena esto assentados em outra noo de tempo de ensino e tempo de aprendizagem.13 Em outras ocasies, a cobrana refere-se ao cumprimento do ano letivo. Ora, o novo modelo de escola indgena pressupe, entre outras coisas, a construo de um calendrio escolar culturalmente especfi co: em poca de colheita e dos rituais a ela associados, por exemplo, as atividades tm que ser interrompidas na escola de modo a permitir que os alunos possam acompanhar os adultos nessa importante esfera de socializao.

    preciso insistir no fato de que a escola indgena que se quer aquela que seja capaz de preparar os alunos indgenas para os desafi os que o contato

    13 Diferenas de orientaes pedaggicas transparecem, no apenas nas escolas indgenas, mas tambm nos cursos de formao de professores indgenas. Como o modelo cultural de ensino-aprendizagem est assentado, no na teorizao, mas na demonstrao e observao, a aula terica, a aula expositiva no faz sentido para esses professores e causa neles muito desconforto. Certa vez, um professor Manchineri, aps uma aula com um especialista branco que havia falado ininterruptamente por mais de uma hora, expressou esse desconforto verbalmente, perguntou: Professora, por que o branco fala tanto quando vem aqui ensinar uma coisa pra gente? Senti em sua fala que no havia outra inteno que no tentar entender um modo de se comportar to estranho do ponto de vista de sua cultura de ensinar.

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    com a sociedade envolvente impe sem, no entanto, desrespeitar suas crenas e prticas culturais. Dentre essas prticas, uma das mais relevantes concerne ao uso das lnguas indgenas, j que, como afi rmei, at 1988, era proibida a utilizao, nas escolas brasileiras, de qualquer lngua que no fosse a lngua portuguesa. Por que essa proibio?

    O MITO DO MONOLINGISMO

    A Organizao das Naes Unidas (ONU) agrega, hoje, 193 pases. E a depender da fonte consultada, o nmero de lnguas existente no mundo varia entre 4.000 a 6.000 lnguas.14 Fiquemos com um nmero intermedirio, digamos, 5.000 lnguas. Atentar para esses nmeros (5.000 lnguas, 193 pases) signifi ca, de imediato, chegar concluso de que o multilingismo o estado de normalidade no mundo contemporneo. O monolingismo exceo. Na verdade, afi rma-se que o nmero de pases monolngues no mundo atual pode ser contado com os dedos de uma nica mo! Todos os demais so, pelo menos, bilnges.

    As cerca de 5.000 lnguas faladas no mundo no tm o mesmo peso, o mesmo valor. Apenas pouco mais de uma centena delas tm status de lnguas ofi ciais. E as 10 maiores lnguas do mundo so faladas por 85% da populao mundial. H, portanto, uma distribuio assimtrica das lnguas em nosso planeta.

    E no Brasil? Como o perfi l sociolingstico de nosso pas? Quantas lnguas so faladas aqui? Pouqussimos brasileiros sabem que no Brasil existem 180 lnguas indgenas.15 H, alm disso, 30 lnguas de imigrantes: h crianas

    14 A grande diferena numrica entre o nmero calculado de lnguas existentes no mundo atual deve-se utilizao de diferentes critrios de definio do que seja uma lngua. Algumas vezes, os levantamentos so feitos com base no critrio de compreensibilidade: se falantes de regies diferentes compreendem uns aos outros, conclui-se que falem dialetos de uma mesma lngua; caso haja incomunicabilidade, considera-se que sejam falantes de lnguas distintas. Em outras investigaes, os pesquisadores se orientam por definies dadas pelos falantes. A depender do critrio utilizado no levantamento, o nmero de lnguas compilado aumenta ou diminui.15 Esse nmero, convm lembrar, provavelmente maior, pois, como j foi dito, h grupos indgenas ainda no contatados na floresta amaznica.

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    brasileiras que, antes de entrarem na escola, falam exclusivamente a lngua do pas de origem de seus pais. Temos tambm, no pas, 2 lnguas de sinais: temos a lngua de sinais brasileira (LIBRAS) e a lngua de sinais dos Urubu-Kaapor16. E, evidentemente, h a lngua ofi cial do pas: a lngua portuguesa. Feitas as contas, so utilizadas hoje, por cidados brasileiros natos, pelo menos 213 lnguas como lnguas maternas.

    Mas, se perguntarmos imensa maioria dos brasileiros quantas lnguas so faladas no Brasil, a resposta vir, muito provavelmente e sem hesitao alguma, da seguinte forma: Uma, a lngua portuguesa. Por que as demais lnguas esto apagadas no imaginrio do brasileiro? Por que desconhecemos a riqueza do nosso Atlas Lingstico? Seriam as lnguas minoritrias do Brasil sistemas lingsticos imperfeitos quando comparados com o portugus? Do ponto de vista lingstico, toda lngua perfeita, completa, sufi ciente para as necessidades comunicativas da comunidade de fala onde ela utilizada. No esse o motivo. O que acontece que uma lngua vale o que o seu falante vale socialmente. E aos falantes de lnguas minoritrias (ndios, imigrantes, surdos) no se atribui valor social e poltico, por isso suas lnguas acabam no tendo prestgio, acabam no existindo.

    importante compreender que o fato de as pessoas pensarem que o Brasil um pas monolnge tambm resultado de um processo de inculcao ideolgica que vem sendo feita lentamente e que comeou h muito tempo. O mito do monolinguismo mundial tem antecedentes histricos. Sua construo se inicia, no tempo, com a Torre de Babel, o nosso grande castigo histrico. a que comea a se instalar a crena de que muitas lnguas equivalem a caos. Est localizada a a origem do mito de que o ser humano deve ser monolnge e de que o multilinguismo leva impossibilidade de comunicao entre os Homens, confuso mental, etc... Evidncias empricas abundantes, no entanto, provam que isso no corresponde aos fatos. Em vrios pases africanos, por exemplo, muito comum as pessoas falarem quatro, cinco lnguas, sem

    16 Esse grupo indgena desenvolveu um sistema lingstico de sinais prprio devido ao alto ndice de surdos em sua populao.

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    problema algum. Nesses contextos, a criana aprende a lngua do pai, a lngua da me, a lngua dos vizinhos, a lngua da escola e consegue se comunicar bem, com efi cincia, em todas elas. Na verdade, as pesquisas demonstram que ns subtilizamos, e muito, nossa capacidade de aprender lnguas.

    O mito do monolingismo se consolida, historicamente, na Revoluo Francesa, que quando surge o conceito de Estado-Nao. Instala-se nesse perodo o lema unidade igual uniformidade. Para se ter um Estado, uma unidade poltica, seria preciso garantir uniformidade lingstica e cultural no interior de seu territrio. E, assim, a averso diversidade lingstica vai se consolidando na Histria. Firma-se, pouco a pouco, a noo de que o plurilingismo seria algo nefasto, ruim, uma condio a ser evitada, combatida: o projeto de modernidade insiste na necessidade de tornar o Estado homogneo uma lngua, uma cultura, uma religio para garantir a continuidade da idia de nao constituda.17

    Bom, o fato que o monolinguismo, enquanto condio ideal de mundo, impe a interdio de milhares de lnguas. claro que, no processo de silenciamento de suas lnguas, os falantes das lnguas minoritrias se vem privados de algo fundamental em termos de direitos lingsticos. Recorro a Enrique Hamel, um sociolingista mexicano, para melhor entendermos o que vem a ser direitos lingsticos:

    Os direitos lingsticos fazem parte integral dos direitos humanos fundamentais, tanto individuais quanto coletivos. Tais direitos referem-se quelas prerrogativas que parecem atributos naturais, evidentes para todos os membros das maiorias lingsticas dominantes. Ou seja, o direito de usar sua prpria lngua em qualquer contexto cotidiano ofi cial, particularmente na educao, como tambm o direito de que as opes lingsticas do sujeito sejam respeitadas, e que esse no sofra discriminao alguma pela lngua que fala. (Hamel, 1995)

    O dito acima se refere a algo que os falantes de lngua dominantes tomam como dado. Uma me brasileira cuja lngua materna o portugus e que criou

    17 importante frisar que a intolerncia para com a diferena lingstico-cultural tem servido de libi para vrias das atrocidades que vimos presenciando ao longo da Histria: a barbrie da limpeza tnica entre os povos blticos, na dcada de 1990, apenas um dos incontveis exemplos desse tipo de intolerncia.

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    seu fi lho nessa lngua tem a expectativa de que, quando ele for para a escola, seu professor falar portugus com ele. De que os seus livros didticos estejam escritos em portugus. De que, se um dia, a criana precisar de um advogado, de um mdico, que estes se dirigiro a ela em portugus. Ou seja, a expectativa dessa me de que a lngua materna de seu fi lho seja a lngua amplamente utilizada, aceita, reconhecida em todos os mbitos sociais. E mais: ela no espera que ele sofra qualquer tipo de discriminao por conta do uso que faz dessa lngua. Esta expectativa mais do que razovel. Entretanto, no mundo atual, s os falantes de talvez 400 ou 500 lnguas gozam desses privilgios. H um contingente enorme de seres humanos que no pode usufruir seus direitos lingsticos mais bsicos. A necessidade vital de interagir em nossa lngua materna, principalmente quando se criana, pode ser assim expressa:

    Quero falar a minha lngua,nada tenho contra voc Bill,ou Jean ou Pablo ou Ilya.Mas desde o comecinho do mundoeu brinquei foi com o Joo............................Joo cantava era sambae baio,e foi a lngua deleque eu sempre entendi. 18

    importante deixar claro que com o que venho argumentando no pretendo endossar nenhuma poltica lingstica xenofbica. Muito pelo contrrio: sou a favor de que as pessoas adquiram tantas lnguas estrangeiras quanto for possvel. O que eu estou argumentando a favor do direito de utilizao da lngua materna, principalmente na escola: se for a lngua do Joo que a criana entende , obviamente, nessa lngua que ela deve poder aprender! Creio que entender e divulgar que esse direito fundamental de qualquer ser humano foi negado pelas leis brasileiras, at muito pouco tempo

    18 Trecho de um poema de Renato Castelo Branco (In: A Janela do Cu. So Paulo: Quatro Artes, 1969).

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    atrs, aos alunos das escolas indgenas, responsabilidade de todos que, nesse pas, se auto-intitulam educadores...

    Mas os direitos lingsticos dos povos indgenas no se resumem ao direito de usar a lngua de seus ancestrais. Eles tambm merecem o direito de no serem discriminadas pelo uso que fazem da lngua portuguesa.

    O PORTUGUS: UMA LNGUA MERAMENTE EMPRESTADA?

    A lngua portuguesa no comumente identifi cada como um smbolo tradicional de indianidade. Muitos entendem que esta funo cabe s cerca de 180 lnguas indgenas faladas, hoje, em territrio brasileiro. O portugus seria exclusivamente a lngua do branco. Minha posio pessoal diferente: acredito que o portugus seja tambm uma lngua indgena, j que o ndio dela se apropria, tornando-a tambm sua. O primeiro fato a despertar minha ateno para essa questo foi uma fala de Antonio (Eutxani), um professor Shawdawa/Arara. Em 1992, esse professor, discorrendo sobre o desejo de incluir a lngua tradicional de seu povo no currculo de sua escola afi rmou, em depoimento gravado em vdeo:

    Essa vontade vem porque alm de ser a nossa lngua de minha comunidade, ela nossa lngua prpria mesmo. Eu estou falando aqui em portugus. A cara, a lngua, a boca, tudo minha, agora a fala no minha porque a lngua emprestada... (aps uma pequena pausa, sorrindo) No e , n? Vai e vem. e no ...

    Na hora, confesso que no entendi muito bem o que aquele professor estava querendo dizer ao afi rmar que o portugus era e no era uma lngua emprestada. medida, no entanto, que fui me familiarizando com os modos de utilizao da lngua portuguesa pelo ndio fui percebendo marcas muito particulares que ele imprimia nessa lngua a fi m de construir e revelar sua identidade tambm atravs de seu uso. Uma dessas marcas a reiterao tpica do discurso indgena pode ser percebida na prpria fala de Eutxani (a nossa lngua de minha comunidade... ela nossa lngua prpria mesmo). Um outro exemplo pode ser o que, certa vez, escreveu Norberto (Tene), um outro professor indgena em avaliao que fez de um curso do qual participara: Na

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    minha opinio Kaxinaw, eu acho que o curso foi muito bom porque... Ora, um enunciado do tipo Na minha opinio brasileira... no ocorre entre ns, no-ndios, porque no vemos como necessrio, ao darmos nossa opinio, marcarmos quem somos. Mas Tene tem o desejo, a necessidade de faz-lo e por isso faz uso desse tipo de reiterao semntica para enfatizar que pensa como pensa porque membro de uma nao que ideologicamente diferente, que indgena. O portugus do ndio um portugus muito colorido, muito criativo e no h, cientifi camente, motivo algum para pensar que ele no seja uma forma legtima de utilizao dessa lngua. Aqueles que acreditam que essa seria uma variedade bastarda, ilegtima da lngua nacional, o fazem por operarem com uma noo equivocada do que seja uma lngua. Para convencer o leitor da veracidade dessa minha afi rmao, descrevo, a seguir, um acontecimento do qual participei.

    Em 1992 assessorei um grupo de professores indgenas Kaxinaw a organizar um livro de estrias infantis em sua lngua tradicional. Os professores Kaxinaw que participaram da elaborao de textos para esse livro eram oriundos de duas reas indgenas distintas: a rea indgena do rio Purus e a do rio Jordo. Os Kaxinaw do Purus estavam em contato com o branco h mais tempo. Muitos deles, devido presena de missionrios norte-americanos em suas aldeias, haviam se tornado cristos. Tiveram tambm que aprender a conviver com a presena do exrcito brasileiro em sua rea. Porque habitam terras prximas ao Peru, eram, em sua maioria, trilnges (Kaxinaw, portugus e espanhol). A rea indgena do Jordo, por outro lado, uma regio de difcil acesso, e por isso os professores Kaxinaw que nela habitam haviam tido mais tempo para se organizar depois do contato, contato esse estabelecido com menos intromisso indevida.

    Importa explicar que a distncia geogrfi ca entre as duas reas provocou o surgimento, com o tempo, de variaes dialetais da lngua indgena Kaxinaw. A lngua Kaxinaw falada no Purus no mais idntica quela falada no Jordo: h diferenas lexicais, o padro entoacional difere em alguns contextos, algumas palavras j no so mais pronunciadas da mesma maneira. Durante a produo dos textos para o material didtico que estava sendo elaborado, essas diferenas comearam a ganhar relevncia, at que surgiu um impasse: como

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    TEREZINHA MACHADO MAHER

    grafar o som [h]? Os professores indgenas do Jordo entendiam que esse som devia ser grafado com a letra ag; os professores do Purus, por aproximao com o espanhol, queriam graf-lo com a letra jota. Tivemos longas discusses tcnicas sobre o assunto: expliquei-lhes que a escrita no uma transcrio da fala e que, portanto, tanto fazia grafar aquele som com h ou com j, mas que era preciso fazer uma escolha para que seus alunos se deparassem, no processo de alfabetizao, com um sistema consistente de escrita. Dei exemplo do fenmeno em portugus: a palavra tia pronunciada de forma diferente em, por exemplo, So Paulo e Porto Alegre, mas a sua grafi a sempre a mesma. Tenho certeza que os professores Kaxinaw entenderam muito bem a necessidade de se estabelecer uma conveno ortogrfi ca para sua lngua, at porque eles j haviam discutido a questo em seus cursos de lingstica inmeras vezes. Os professores passaram a discutir o problema entre eles, at que alguns dias depois, vieram ao meu encontro. Um professor do Jordo, muito assertivamente, afi rmou: Professora, ns chegamos a uma concluso: vamos usar a letra ag. Perguntei ao grupo se essa era uma deciso consensual. Todos me garantiram que sim. Qual no foi minha surpresa, no entanto, quando, duas semanas depois, vejo os professores Kaxinaw do Purus se aproximarem de mim e dizerem: Professora, pensamos bem e nas histrias que ns escrevemos para grafar aquelas palavrinhas com jota, t? Ficou claro, ento, que o que estava em jogo nesse incidente no era uma questo tcnica, era uma questo poltica. Os professores do Purus sabiam do risco que estavam correndo: no momento em que a variedade falada na regio do Jordo fosse escrita, essa variedade estaria sendo alada condio de variedade padro do Kaxinaw, ela viraria a lngua Kaxinaw. E eles se veriam na condio de falantes de um dialeto, de uma variedade desprestigiada dessa lngua.

    Narrei esse caso para tentar convencer o leitor de que lngua apenas um construto no limite, poderamos at mesmo dizer que lngua nacional, per se, algo que nunca existiu. O que ocorre que uma variedade dialetal foi eleita condio de lngua nacional, de lngua padro, porque os falantes dessa variedade conseguiram imp-la s demais. Na literatura sociolingstica costuma-se afi rmar que uma lngua nada mais do que um dialeto com um

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    A FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS: UMA DISCUSSO INTRODUTRIA

    exrcito e uma bandeira atrs dele. Por termos claro as condies scio-histricas que culminaram no surgimento do que chamamos de lngua portuguesa que muitos de ns, estudiosos da linguagem, insistimos que todas as variedades existentes dessa lngua no Brasil merecem a mesma considerao.

    Assim, o respeito aos direitos lingsticos indgenas incluem, no apenas a garantia do direito ao uso da lngua indgena, mas tambm o direito de no discriminao do portugus indgena. E porque a literatura, preciso reconhecer, consegue muitas vezes resumir de forma mais efi ciente o que a cincia apregoa, abro espao, nesse texto, para Kamala Das, uma poetisa indiana:

    Por que no me deixam falar do jeito que eu quero?A lngua que eu falo se torna minhaSuas distores, suas esquisiticesToda minha, s minha.Ela metade ingls, metade indiano,Engraada, talvez, mas honesta. to humana quanto eu sou humana, percebe?Ela expressa minhas alegrias, minhas tristezas,Minhas esperanas.E ela to til para mimQuanto o grasnar para o corvo,E o rugido para o leo.19

    Por que no me deixam falar do jeito que eu quero? ecoa a splica, no apenas dos alunos das escolas indgenas, mas tambm de uma multido de alunos de outras escolas brasileiras...

    19 Summer in Calcutta: fifty poems. Delhi: Rajinder Paul, 1965.

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    TEREZINHA MACHADO MAHER

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    HAMEL, R.E. Derechos humanos lingsticos en sociedades multiculturales. Alteridades, ano 5, n 10, 1995.

    DA SILVA, A. Lopes; MACEDO, A. V. S. e NUNES, A. (orgs.). Crianas Indgenas Ensaios Antropolgicos. So Paulo: Global, 2002.

    MAHER, T. M. A Criana Indgena: do Falar Materno ao Falar Emprestado. In: FARIA, A. L. G. de; MELLO, S. A. (orgs.) O Mundo da Escrita no Universo da Pequena Infncia. Campinas: Editora Autores Associados, 2005.

    MAHER, T. M. Sendo ndio em Portugus. In: SIGNORINI, I. (org.). Lnguagem e Identidade: Elementos para uma Discusso no Campo Aplicado. Campinas: Editora Mercado das letras, 1998:115-138.

    MELI, B. Educao Indgena e Alfabetizao. So Paulo: Edies Loyola, 1979.

    SPYER, M. A Questo da Identidade tnica na Sala de Aula: a Cultura Indgena. In: DAYRELL, J. (org.) Mltiplos Olhares sobre Educao e Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.

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    Este artigo tem um duplo propsito. O primeiro organizar um conjunto de informaes gerais, que permitam compreender a proposio de uma escola especfi ca para os povos indgenas hoje no Brasil. Trata-se, aqui, de procurar evidenciar a forma como a escola foi imposta aos povos indgenas em todo o pas e de perceber como esta vem sendo apropriada por eles em anos recentes. O segundo propsito, decorrente do primeiro, confi gurar o campo em que ocorrem as discusses a respeito da formao de ndios como professores para atuarem nas escolas localizadas nas comunidades indgenas. Desta feita, a proposio entender como prticas alternativas ao do Estado geraram um paradigma que foi legitimado por uma legislao recente e incorporado como pauta de uma poltica pblica especfi ca por parte do governo brasileiro.

    POVOS INDGENAS NO BRASIL

    Durante quase cinco sculos, os ndios foram pensados como seres efmeros, em transio: transio para a cristandade, a civilizao, a assimilao, o desaparecimento. Hoje se sabe que as sociedades indgenas so parte de nosso futuro e no s do nosso passado.

    CONTEXTUALIZANDO O CAMPO DA FORMAO DE PROFESSORES

    INDGENAS NO BRASIL1

    Lus Donisete Benzi Grupioni

    1 Esse artigo uma verso revista e ampliada de Grupioni, 2004.

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    CONTEXTUALIZANDO O CAMPO DA FORMAO DE PROFESSORES INDGENAS NO BRASIL

    A nossa histria comum foi um rosrio de iniqidades cometidas contra elas. Resta esperar que as relaes que com elas se estabeleam a partir de agora sejam mais justas: e talvez o sexto centenrio do descobrimento da Amrica tenha algo a celebrar. (Manuela Carneiro da Cunha, in Histria dos ndios no Brasil)

    Remanescentes de um grande contigente populacional, cujas estimativas histricas indicam que poderia estar em torno de 6 milhes de indivduos, quando da chegada dos primeiros europeus no sculo XVI, os povos indgenas contemporneos no Brasil vivenciaram processos histricos distintos e so, ainda hoje, portadores de tradies culturais especfi cas, expressando uma diversidade cultural ainda pouco conhecida, reconhecida e respeitada.

    Nossas estatsticas, insensveis e defi cientes, insistem em nmeros no precisos, no absolutos. Seriam cerca de 220 povos, falantes de cerca de 180 lnguas, totalizando uma populao que se reconhece como integrante de uma categoria indgena que pode variar entre 370 a 700 mil indivduos, espalhados em centenas de aldeias em praticamente todo o territrio nacional2.

    Nesses mais de 500 anos de histria do Brasil, os povos indgenas foram vistos e interpretados de diferentes formas. O questionamento sobre que papel eles poderiam desempenhar na formao da sociedade brasileira pautou diferentes prticas a eles dirigidas. Entre o bom e o mau selvagem, a viso de que os ndios eram entraves ao progresso, que precisavam ser civilizados, salvos enquanto indivduos, aniquilados enquanto povos culturalmente diversifi cados, imps-se como paradigma at bem pouco tempo atrs.

    Foram dcadas de polticas claramente contrrias aos ndios, ou ainda que favorveis no plano do discurso e no plano legal, amplamente complacentes com prticas violentas, que visavam a extino da diferena. A transformao

    2 Nesses nmeros incluem-se, certamente, o contingente indgena que vive nas cidades, embora sobre eles no haja nenhum trabalho censitrio especfico. O certo em relao populao indgena dizer que ela tem crescido de forma constante nos ltimos anos, evidenciando o revigoramento destes povos. Mas h ainda vrios povos correndo o risco de extino, ameaa que tende a ser maior quando o povo indgena formado por poucos indivduos. E no Brasil, mais de 50% do total dos povos indgenas so integrados por menos de 500 pessoas. O mesmo vale para as lnguas indgenas: quanto menos falantes maior o risco dela deixar de ser falada. Hoje no Brasil so conhecidas 180 lnguas indgenas.

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    dos ndios em mo de obra talvez tenha sido, ao lado de sua converso f crist, uma das mais piedosas solues propostas para enfrentar o problema indgena.

    No comeo do sculo passado fi rmaram as bases para um protecionismo estatal, que se centrou na superioridade da cultura brasileira sobre a indgena, na necessidade de elevar o padro moral e tecnolgico dos ndios, permitindo sua evoluo rumo condio de partcipes da nao. O ndio passava a ser visto como um ser em vias de transformao: a ao tutelar do Estado iria providenciar a passagem de um estado inferior da evoluo ao estgio inferior da sociedade: da selvageria eles deveriam ser conduzidos ao posto de trabalhadores nacionais e a partir dali poderiam, despojados de atributos tnicos e culturais, progredir na escala social. Integrar foi o mote do processo histrico que moveu o Estado a elaborar uma poltica especfi ca para solucionar o problema indgena.

    Olhando retrospectivamente, temos uma histria de longa durao onde os ndios sempre foram vistos como um problema e a nica resposta que se conseguiu foi a formulao de polticas para que eles deixassem de ser o que eram.

    Mas ao longo dessa histria foi-se fi rmando a constatao de que, apesar das polticas contrrias, o sentimento de pertencimento tnico expresso por esses povos no se esvaa to facilmente e eles insistiam em manter suas identidades, que se materializam numa persistente distncia face a outros grupos indgenas e face aos demais segmentos da sociedade brasileira. O to esperado ndio genrico, que surgiria a partir do solapamento das diferenas culturais, sociais e ontolgicas existentes entre eles no vingou, e pequenas populaes re-encontraram o eixo de seu crescimento demogrfi co e, re-elaborando seus modos particulares de estar no mundo, fi rmaram-se enquanto coletividades diferenciadas.

    A proposta de valorizao das diferenas culturais de que os povos indgenas so portadores muito recente, e tem na Constituio de 1988 o seu grande momento. , portanto, embora no parea, algo muito novo a proposio de que os ndios tm direito a serem o que sempre foram, a decidirem o seu prprio

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    futuro, cabendo ao Estado o dever de proteg-los e de lhes oferecer meios e instrumentos para decidirem e trilharem seus prprios caminhos. E tambm so recentes os textos legais que vo, gradativamente, detalhando os preceitos constitucionais que garantem aos ndios o exerccio do direito diferena. Como tambm so recentes as polticas pblicas voltadas ao reconhecimento da diversidade cultural dos povos indgenas e seu direito, por exemplo, a programas de educao e de sade especfi cos. Datam de menos de uma dcada!

    Ainda que o preconceito e a discriminao, a intolerncia e a estigmatizao caracterizem historicamente o tipo de relao que se estabeleceu entre os povos indgenas e outros segmentos das sociedades nacionais, possvel afi rmar que os povos indgenas vivenciam hoje sinais de um novo tempo, em que j possvel a construo de canais de dilogo mais respeitosos com os Estados nos quais esto inseridos e com os segmentos das sociedades nacionais com os quais esto em contato (Cf. Hildebrand, 1996). Como j salientei em outra oportunidade, a tendncia presente em muitos Estados Nacionais de tratar os modelos de vida dos povos indgenas como fatores limitantes da unidade nacional, postulando uma homogeneidade lingstica e cultural, tem sido superada, atravs de novos ordenamentos constitucionais e legais, pela afi rmao da possibilidade desses povos manterem suas identidades e prticas, sinal de que esto se abrindo novos espaos jurdicos de aceitao da diversidade tnica e cultural por eles representada (Cf. Roldn, 1996) (Grupioni, 2001: 88).

    A educao escolar em terras indgenas hoje um desses espaos em que se defrontam concepes e prticas sobre o lugar dos ndios na sociedade brasileira, onde leis inovadoras se defrontam com prticas arcaicas, onde os povos indgenas tm buscado o exerccio de uma nova cidadania. disso que trato nas pginas seguintes.

    DA IMPOSIO REIVINDICAO

    Ento surgiu o questionamento: que tipo de escola temos e que escola queremos? Porque, na verdade, a escola formal estava ou ainda est afastando o ndio de sua prpria realidade, fazendo-o esquecer e deixando a sua cultura de lado. Isso fez com que os

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    professores, juntamente com as lideranas de cada povo, viessem a refl etir melhor a questo da educao. Depois de muitas discusses, os professores e lideranas afi rmaram que era preciso uma educao diferenciada para as comunidades indgenas. Hoje, no em todas as escolas, mas na maioria, temos professores indgenas trabalhando na sua prpria comunidade, onde ele responsvel pela formao do aluno-ndio. (Prof. Orlando Oliveira Justino, Macuxi de Roraima)

    A escola, como instituio, surge para os povos indgenas a partir do contato. Impondo-se por meio de diferentes modelos e formas, cumprindo objetivos e funes diversas, a escola esteve presente ao longo de toda histria de relacionamento dos povos indgenas com representantes do poder colonial e, posteriormente, com representantes do Estado-nao. Como num movimento pendular, pode-se dizer que a escola se moveu, num longo percurso, do passado aos dias de hoje, de algo que foi imposto aos ndios a uma demanda, que atualmente por eles reivindicada. Utilizada, no passado, para aniquilar culturalmente estes povos, hoje tem sido vista como um instrumento que pode lhes trazer de volta o sentimento de pertencimento tnico, resgatando valores, prticas e histrias esmaecidas pelo tempo e pela imposio de outros padres socioculturais.

    Num primeiro momento, a introduo da escola em meio indgena foi um dos principais instrumentos empregados para promover a domesticao dos povos indgenas, para alcanar sua submisso e para negar suas identidades, promovendo sua integrao na comunho nacional, desprovidos de suas lnguas maternas e de seus atributos tnicos e culturais.

    O exemplo mais acabado deste tipo de estratgia foi a criao de internatos indgenas com o intuito de promover a educao formal das crianas indgenas. Retiradas do convvio familiar, eram proibidas de se comunicarem em suas lnguas, obrigadas a aprenderem o portugus e introduzidas ao aprendizado de uma srie de ofcios. Ao atingirem determinada idade, eram devolvidas s suas comunidades, mas ali encontravam inmeras difi culdades de adaptao: no tinham mais laos afetivos com seus parentes, pois haviam vivido longe deles a maior parte de suas vidas; no conseguiam se comunicar na lngua de origem,

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    porque ela fora soterrada pelas prticas da escola monolnge; no se integravam vida cotidiana e ritual do grupo, pois lhes faltavam referenciais para entender e viver aquele modo de vida. Seu caminho natural era a busca por centros urbanos, integrando-se aos estratos mais baixos da vida produtiva e social. Esse caminho foi trilhado por muitos indivduos indgenas: alguns conseguiram realizar o movimento de volta, outros integraram-se sociedade regional.

    Este no foi o nico modelo de escola empregado para promover a educao formal dos ndios: a escola em meio indgena teve muitas faces e pautou-se por diferentes concepes, no s pedaggicas, mas tambm a cerca do lugar que os ndios deveriam ocupar na sociedade brasileira. A criao de escolas junto s comunidades indgenas, por meio da presena de professores no-ndios, assistidos por alguns ndios, que falantes do portugus, tornavam-se os tradutores das determinaes dos professores , foi outro modelo de escola largamente empregado pelo Brasil afora. Neste modelo, o ensino bilnge foi adotado como estratgico para o efetivo aprendizado do portugus e dos valores da sociedade dominante: valorizava-se a lngua indgena porque ela era a chave para o aprendizado da lngua nacional. Esse mtodo, usado pelo Estado em conjunto com misses religiosas, pode ser descrito como o bilingismo de transio, porque ele s serve para que as crianas saiam do monolingismo da sua lngua de origem para o monolingismo em portugus. Ao abandonarem suas lnguas, pressupunha-se que tambm abandonassem seus modos de vida e suas identidades diferenciadas. A escola em reas indgenas servia, assim, para a promoo da homogeneizao cultural3.

    Nesse processo de traduo daquele que ensina, criou-se uma nova categoria: a dos monitores bilnges, prevista no quadro de funes do rgo indigenista ofi cial. Com o abandono da escola por parte desses professores no-ndios, quase sempre despreparados para o tamanho e a difi culdade da tarefa, esses monitores acabavam por assumir as escolas, tomando a si a funo

    3 Para uma discusso dos modelos de escola em meio indgena implementados pelo Servio de Proteo aos ndios (SPI) e posteriormente pela Fundao Nacional do ndio (Funai), consultar o trabalho de Luiz Otvio Pinheiro da Cunha A poltica indigenista no Brasil: as escolas mantidas pela Funai, Dissertao de Mestrado em Educao, Universidade de Braslia, Braslia, 1990, 129 pgs, mimeo.

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    da docncia nas escolas indgenas: da que surgem vrios dos professores indgenas em atuao ainda hoje.

    A escola missionria e a escola civilizadora so dois exemplos das muitas e diversas situaes vividas pelos povos indgenas em relao aos processos de escolarizao que chegaram at eles. Foram evocados aqui, de forma muito esquemtica, com o intuito de demarcar um novo cenrio que comeou a se confi gurar com fora nos ltimos anos e que, em certa medida, uma resposta a essas situaes: o da apropriao da escola pelos prprios povos indgenas..De algo historicamente imposto, a escola passou a ser tomada e depois reivindicada por comunidades indgenas, que pressentiram nela a possibilidade de construo de novos caminhos para se relacionarem e se posicionarem frente aos representantes da sociedade envolvente, com a qual esto cada vez mais em contato. Novos modelos de escola indgena esto surgindo, pautados por paradigmas de respeito ao pluralismo cultural e de valorizao das identidades tnicas.

    Hoje o Brasil abriga em seu territrio uma rica diversidade nativa, composta por mais de 220 povos indgenas espalhados em vrias aldeias em praticamente todos os estados da federao (somente no Rio Grande do Norte e Piau no existem povos indgenas), com uma populao estimada em torno de 370.000 a 700.000 mil indivduos, computando-se aqueles que vivem em reas urbanas e se identifi cam como ndios. J foram muito mais no passado: em 1500, estima-se que a populao indgena chegasse a 6 milhes de indivduos, falando mais de 1.200 lnguas. J foram menos tambm: na primeira metade do sculo XX, teriam sido reduzidos a 200 mil indivduos. Nos ltimos anos, essa populao tem crescido de forma constante e em taxas superiores s do restante da populao brasileira. Alguns grupos, aps passarem anos procurando esconder suas origens tnicas, reivindicam hoje o reconhecimento de suas identidades diferenciadas.

    nesse contexto que os povos indgenas no Brasil tm reivindicado uma escola indgena que lhes sirva de instrumento para a construo de projetos autnomos de futuro, dando-lhes acesso a conhecimentos necessrios para um novo tipo de interlocuo com o mundo de fora da aldeia. Nesse processo,

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    a escola ganhou relevncia dentro do movimento indgena, e os professores indgenas, organizados em uma nova categoria de profi ssionais, tm hoje uma pauta prpria de luta e reivindicaes. A questo da educao est na agenda do movimento indgena contemporneo, presente em todas as assemblias e reunies, vista como um tema central para a conquista da autonomia indgena. Nesse novo cenrio, associaes de professores indgenas tm surgido e cumprido um importante papel na organizao dos professores, na reivindicao junto a diferentes rgos de governo, na proposio de encontros, seminrios e estudos de temas relacionados prtica escolar, na formulao de princpios e de metas a serem conquistadas4.

    MUDANDO OS PARADIGMAS

    Estamos num momento importante da Educao Escolar Indgena, num perodo de transio entre a escola para ndios imposta desde a colonizao, e a nova escola indgena construda pelos ndios. (Professora Francisca Novantino, Pareci de Mato Grosso)

    Resultados dessa maior mobilizao dos prprios povos indgenas e de suas organizaes, bem como de setores organizados da sociedade civil, podem ser verifi cados nas importantes e signifi cativas mudanas ocorridas tanto na legislao quanto na poltica governamental em relao aos povos indgenas no Brasil. Uma das reas em que essas mudanas mais se realizaram foi no

    4 Algumas destas organizaes so constitudas a partir de bases tnicas, como o caso da Organizao Geral dos Professores Ticuna Bilnges (OGPTB), no Amazonas, ou a da Associao dos Professores Bilnges Kaingang e Guarani (APBKG), no Rio Grande do Sul, que renem respectivamente os professores Ticuna, na primeira, e os Kaingang e Guarani, na segunda. Outras renem professores de vrias etnias, mas localizados numa mesma terra indgena ou num mesmo estado, como a Organizao dos Professores Indgenas de Roraima (OPIR), que congrega representantes dos professores Macuxi, Wapichana, Taurepang e outros povos que vivem naquele estado, ou a Organizao dos Professores Indgenas do Acre (OPIAC), recentemente formalizada, embora j estivesse h um bom tempo em gestao. E h tambm aquelas que se propem a uma articulao mais regional, para fazer frente no s as demandas locais, mas tambm nacionais, como o atual Copiam, Conselho de Professores Indgenas da Amaznia, que rene anualmente, desde 1988, delegaes de professores indgenas da regio Norte e tem formulado questionamentos e apresentado proposies interessantes em termos de novas concepes de educao escolar indgena, que tm influenciado positivamente alguns rgos responsveis pela execuo da poltica de educao escolar indgena.

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    campo da educao escolar indgena. Se, historicamente, a introduo da escola em meio indgena serviu de instrumento de imposio de valores alheios e de negao de identidades diferenciadas, por meio de diferentes processos, como a catequizao, a civilizao e a integrao forada dos ndios comunho nacional, atualmente a escola ganhou um novo sentido para os povos indgenas, tornando-se um meio de acesso a conhecimentos universais e de valorizao e sistematizao de saberes e conhecimentos tradicionais. De algo imposto, como vimos, a educao e a criao de escolas em terras indgenas passaram a ser uma demanda dos prprios povos indgenas, interessados em adquirir conhecimentos sobre o mundo de fora das aldeias e em construir novas formas de relacionamento com a sociedade brasileira e com o mundo.

    Em vrias regies do pas, desenvolvem-se projetos educacionais especfi cos realidade sociocultural e histrica dos povos indgenas, a partir de um novo paradigma educacional de respeito interculturalidade, ao multilingismo e etnicidade. Esses projetos tiveram incio com o surgimento de entidades da sociedade civil de apoio aos ndios, que passaram a atuar junto a determinadas comunidades indgenas. Estas entidades estruturaram-se nos anos 70, no bojo do processo mais geral de redemocratizao da sociedade brasileira. Nesse perodo, a principal bandeira de luta centrava-se no reconhecimento dos territrios tradicionais e na busca de alternativas econmicas que possibilitassem uma maior autonomia para as comunidades indgenas. Paralelamente, a questo da escola ganhava importncia na medida em que se percebia que os ndios precisavam adquirir conhecimentos qualifi cados sobre o mundo dos brancos, para que pudessem estabelecer relaes menos submissas e mais igualitrias tanto com setores do indigenismo ofi cial, quanto com outros segmentos da sociedade brasileira. Aprender o idioma portugus, dominar algumas operaes matemticas eram necessidades prementes para alguns povos, para darem um basta s relaes de subordinao e de dominao em que se encontravam5.

    5 Para uma contextualizao da histria de alguns projetos de responsabilidade de organizaes no-governamentais, com enfoque para o trabalho da Comisso Pr-ndio do Acre e para a questo dos currculos interculturais, consultar o artigo de Nietta Lindenberg Monte Os outros, quem somos? Formao de Professores indgenas e identidades interculturais. In: Fundao Carlos Chagas Cadernos de pesquisa, n. 111. So Paulo: Editora Autores Associados, 2000.

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    Deste perodo aos dias de hoje, muito se avanou na refl exo e na prtica da presena da escola em terras indgenas. Consensos que hoje parecem bvios foram construdos com muito esforo, vencendo resistncias e preconceitos, e gerando idias e experincias que atualmente servem de referncia para a prpria estruturao de uma poltica nacional de educao escolar indgena6.

    Talvez a idia mais forte que tenha se firmado ao longo desse perodo seja a de que a escola pode ser apropriada pelos povos indgenas, que podem dar a ela um novo significado e um novo sentido, transformando essa instituio de origem ocidental em um instrumento a seu favor. Se historicamente a escola foi utilizada para promover a integrao dos ndios comunho nacional, por meio do aprendizado do portugus e pelo progressivo abandono de suas lnguas nativas e prticas culturais, hoje esse aprendizado ocorre paralelamente a processos de sistematizao, registro e valorizao de saberes e conhecimentos tradicionais.

    A demanda por escola est presente em quase todas as comunidades indgenas que mantm relacionamentos com segmentos da sociedade brasileira. E essa demanda no por qualquer tipo de escola, mas por uma escola gerida por representantes das comunidades indgenas, que permita acesso a saberes universais e sirva de ponto de referncia para processos de valorizao e resgate cultural. Passado o momento de absoro de uma instituio tipicamente ocidental, o que se assiste hoje, em todo o pas, o processo de dar uma feio indgena instituio escolar nas aldeias.

    Outro ponto sobre o qual parece haver um consenso total que os processos escolares devem ser conduzidos pelos prprios ndios, membros das respectivas comunidades onde a escola esteja inserida. Para tanto, professores indgenas tm sido formados para atuarem nas escolas das aldeias, a partir de diferentes programas de formao, primeiramente alavancados por organizaes

    6 Para uma viso geral do campo da educao escolar indgena no Brasil, consultar o peridico Em Aberto, Vol.76, Tema Experincias e Desafios na Formao de Professores Indgenas no Brasil (fev, 2003) e o Vol. 63, Tema Educao Escolar Indgena (jul/set, 1994), ambos publicados pelo INEP/MEC (Braslia-DF), bem como as coletneas organizadas por DAngelis, Wilmar e Veiga, Juracilda (orgs.) (1997), Lopes da Silva, Aracy e Ferreira, Mariana Kawall (2001), e Veiga, Juracilda e Salanova, Andrs (2001).

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    da sociedade civil de apoio aos ndios, e hoje j assumidos em muitos estados pelas Secretarias Estaduais de Educao. Para que este processo encontre bom termo, muitas discusses tm ocorrido em todo o Brasil, no sentido de se defi nir um currculo para esse magistrio intercultural, a partir da realidade de cada segmento de professores indgenas em formao. Tempo de contato, grau de domnio do portugus, experincias anteriores de escolarizao, prtica docente em sala de aula so alguns dos fatores levados em considerao quando