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EDUCAO SUPERIOR EM DEBATEVolume 8

Formao de Professores para Educao Profissional e Tecnolgica

EDUCAO SUPERIOR EM DEBATEVolume 8

Formao de Professores para Educao Profissional e Tecnolgica

Braslia, 26, 27 e 28 setembro de 2006

Braslia-DF 2008

Coordenao-Geral do Simpsio Educao superior em debate Dilvo Ristoff Jaqueline Moll Palmira Sevegnani de Freitas Organizao do Simpsio Avaliao participativa: perspectivas e debates Dilvo Ristoff

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep) permitida a reproduo total ou parcial desta publicao, desde que citada a fonte.

ASSESSORA DE EDITORAO E PUBLICAES Lia Scholze PROGRAMAO VISUAL Mrcia Terezinha dos Reis EDITOR EXECUTIVO Jair Santana Moraes REVISO E NORMALIZAO BIBLIOGRFICA Focalize Eventos e Servios Ltda. CAPA Marcos Hartwich DIAGRAMAO Celi Rosalia Soares de Melo TIRAGEM 1.000 exemplares EDITORIA Inep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo II, 4 Andar, Sala 414 CEP 70047-900 Braslia-DF Brasil Fones: (61) 2104-8438, 2104-8042 Fax: (61) 2104-9812 [email protected] DISTRIBUIO Inep Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo II, 4 Andar, Sala 404 CEP 70047-900 Braslia-DF Brasil Fone: (61)2104-9509 [email protected] http://www.publicacoes.inep.gov.br/ A exatido das informaes e os conceitos e opinies emitidos so de exclusiva responsabilidade dos autores. Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Formao de Professores para Educao Profissional e Tecnolgica : Braslia, 26, 27 e 28 de setembro de 2006. Braslia : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira, 2008. 304 p. (Coleo Educao Superior em Debate ; v. 8) 1. Educao profissional e tecnolgica. 2. Formao docente. 3. Ensino superior. I. Srie. CDU 377.8

SUMRIOApresentao Eliezer Pacheco ................................................................................. Introduo Jaqueline Moll .................................................................................. Parte I Contribuies Mesa-redonda Formao de professores para a educao profissional e tecnolgica: perspectivas histricas e desafios contemporneos. ........................................................ Acacia Zeneida Kuenzer ....................................................................... Maria Ciavatta Franco ........................................................................ Luclia Regina de Souza Machado .........................................................

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Mesa-redonda Formao de professores para a educao profissional e tecnolgica no mbito da legislao educacional brasileira e do ensino superior no Brasil .................................................... 83 Bertha de Borja Reis do Valle ....................................................... 85 Regina Vinhaes Gracindo .............................................................. 109 Eloisa Helena Santos ..................................................................... 125 Olgamir Francisco de Carvalho ...................................................... 141

Mesa-redonda: A Rede Federal de Educao Profissional e Tecnolgica e a Formao de Professores para a Educao Profissional e Tecnolgica .................................................................................... Maria Rita Neto Sales Oliveira ...................................................... Cibele Daher Botelho Monteiro e Luiz Augusto Caldas Pereira ..... Dante Henrique Moura ...................................................................

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Parte II Debates ..................................................................... 225 26/9/2006 .................................................................................... 227 27/9/2006 .................................................................................... 259 28/9/2006 .................................................................................... 281

APRESENTAO

Eliezer Pacheco*

O debate Formao de Professores para a Educao Profissional e Tecnolgica est conectado ao conjunto de debates dos grandes temas de Educao Profissional e Tecnolgica, no Brasil de hoje. Na ordem direta das nossas preocupaes est a formao docente, que necessita ir alm da Resoluo 02/97, do CNE, mas, sobretudo, est o debate acerca da matriz de conhecimentos que poder constituir processos formativos que aproximem cincia, tecnologia, arte e cultura. Impe-se perguntar de que pedagogia (ou andragogia) estamos falando, quando pensamos em educao para o mundo do trabalho. O que importante em termos de saberes pedaggicos para a formao de professores para a educao profissional e tecnolgica? Para qual sociedade e para que tipo de insero profissional preparamos nossos alunos? Faz-se necessrio retomar um iderio perdido ao longo dos anos 90, porque as prticas sociais e polticas e seus discursos introduzem, nestes anos, alm de toda ideologia do estado mnimo, um contedo narcsico e individualista no campo do trabalho docente. No cotidiano das instituies, muitos professores e professoras sequer percebem que cumprem uma funo social. preciso retomar o debate curricular, pedaggico, as matrizes histricas e polticas nos seus condicionantes.* Secretrio de Educao Profissional e Tecnolgica (Setec/MEC).

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Alm disso, faz-se necessrio refletir sobre o lugar da rede federal de Educao Profissional e Tecnolgica (EPT) neste cenrio de formao docente para a EPT. H um papel especfico desta rede como ator social na construo de parmetros para essa discusso. importante que no trabalhemos com o ou, mas com e em termos de possibilidades formativas: da licenciatura tecnolgica aos programas de ps-graduao lato sensu e aos programas especiais de formao. Assumimos, enquanto Setec, o compromisso de constituirmos um grupo de trabalho e desencadear o dilogo com o CNE, a Anfope, a ANPEd e outros organismos. Reunindo pesquisadores deste campo de conhecimento, propomos o debate com a participao de todas as representaes, construindo em conjunto formas que nos possibilitem enfrentar o desafio de oferecer sociedade polticas pblicas para uma Educao Profissional e Tecnolgica de qualidade. Agradecemos o empenho e a disponibilidade do Inep para que este Simpsio pudesse acontecer, bem como o empenho dos participantes em permanecerem conosco neste trs dias, para avanarmos no debate sobre a formao de professores para Educao Profissional e Tecnolgica.

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INTRODUO

Jaqueline Moll*

A realizao do VIII Simpsio da srie Educao Superior em Debate com o tema Formao de Professores para a Educao Profissional e Tecnolgica resultado do fecundo dilogo entre o Inep e a Setec. Honra-nos a presena das professoras-pesquisadoras Acacia Kuenzer (UFPR), Lucilia Machado (Una) e Maria Ciavatta (Uerj), pois elas representam o pensamento sobre educao profissional e tecnolgica, produzido no Brasil nos ltimos 20 anos. Honra-nos, tambm, a presena de representantes da Anfope, do Conselho Nacional de Educao, de diretores e professores da rede federal de Educao Profissional e Tecnolgica (EPT)1, e de colegas professores universitrios. No mbito da Setec, o debate sobre a formao de professores para educao profissional e tecnolgica impe-se no atual contexto de expanso da rede que passar de 144 unidades (final de 2005) para 354, at o final de 2010. Trs critrios balizam a expanso que ocorrer nos prximos anos: implantao de escolas nos Estados onde no existiam,2 a interiorizao das*

Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretora do Departamento de Polticas e Articulao Institucional da Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica (Setec/MEC). E-mail: [email protected] Esta composta por Centros Federais de Educao Profissional e Tecnolgica, por Escolas Agrotcnicas, Escola Tcnica de Palmas (TO) Escolas Tcnicas e Agrcolas vinculadas s universidades federais, Colgio Pedro II e Universidade Tecnolgica Federal do Paran. Amap, Acre, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal.

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escolas para chegarmos ao corao do Pas, aos lugares desprovidos desse aparato da educao pblica, inclusive como estratgia para diminuir a migrao para os grandes centros urbanos e colaborar para o desenvolvimento local e regional, e, ainda, a instalao das escolas em regies perifricas, sobretudo, das grandes cidades. O pressuposto que acompanha a expanso o da indissociabilidade entre formao geral e profissional. Acreditamos que este um n importante para ser desatado: como integrar elementos da formao geral dos campos da cincia, da cultura e das artes com a formao tecnolgica especfica para determinados campos profissionais? Entendemos que nos debates proporcionados por este Simpsio se coloca, entre outros, um problema epistemolgico que tem que ser enfrentado. No campo da proposta educativa, tal problema se traduz no desafio de construo de estratgias pedaggicas para a leitura e compreenso do mundo, no s do mundo do trabalho, mas para a insero laboral e social qualificada e cidad. Outro pressuposto o da indissociabilidade entre a universalizao da educao bsica e a educao profissional e tecnolgica. Dados apontam cerca de 60 milhes de brasileiros e brasileiras com 18 anos e mais que no concluram a escolaridade bsica. Ento, no se pode continuar dissociando educao tcnica e escolarizao, conforme propunha o Decreto n 2.208/97, sob pena de alimentarmos, na histria da educao brasileira, a dualidade perversa que reservou para alguns um conhecimento mais elaborado e, para a maioria, o acesso aos rudimentos do ler, escrever e contar e o iniciar-se em alguma instruo profissionalizante. Nas polticas pblicas propostas pelo governo Lula, estes pressupostos traduzem-se, sobretudo, na preferencialidade pelo modo integrado de oferta da educao tcnica de nvel mdio e pelo Programa Nacional de Integrao da Educao Profissional com a Educao Bsica na Modalidade de Educao de Jovens e Adultos (Proeja).

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Outro princpio importante o da incluso social emancipatria, por acreditarmos que necessrio irmos muito alm do ensino de rudimentos que s permitiro uma vida de trabalho precrio. Queremos uma educao plena que inclua em seu olhar e em suas temticas afro-descendentes, indgenas, mulheres, populaes ribeirinhas, pescadores, marisqueiras, portadores de necessidades especiais. Tais pressupostos articulam-se na perspectiva da construo de uma poltica pblica de educao profissional e tecnolgica para o Estado brasileiro. Neste sentido, o debate acerca da formao de professores para a EPT, que temos o prazer de desencadear em colaborao com o Inep, insere-se em um contexto de grandes desafios: de ampliao das matrculas de educao tcnica no nvel mdio, sobretudo, a partir de uma matriz integrada, e de consolidao dos itinerrios formativos que atravessem os diferentes vrios nveis de educao profissional e tecnolgica. Para tanto, precisamos de professoras e professores que coloquem em dilogo conhecimentos humansticos e tecnolgicos, num momento importante da histria poltica, econmica e social do Brasil. Este contexto insere-se em um cenrio maior de profundas mudanas de paradigmas ante ao campo das cincias. H, sim, uma revoluo em curso. Acreditamos que este Simpsio proporcionar trs dias muito intensos que traro belos resultados para a educao brasileira. Agradecemos ao Inep, especialmente ao professor Dilvo Ristoff, pela possibilidade criada, para um tema to caro educao profissional e tecnolgica brasileira.

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Parte

CONTRIBUIES

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MESA REDONDA:

Formao de professores para a educao profissional e tecnolgica: perspectivas histricas e desafios contemporneosAcacia Zeneida Kuenzer Maria Ciavatta Franco Luclia Regina de Souza Machado

PALESTRA

Acacia Zeneida Kuenzer*

Em primeiro lugar quero agradecer muitssimo Jaqueline pelo convite, cumprimentando-a pela estratgia de organizao deste Simpsio, que considero um importante espao de qualificao coletiva. Quero dizer do meu prazer, da minha alegria em estar compartilhando essa primeira manh com Maria e com Luclia, colegas com quem tenho partilhado a histria da pesquisa na rea de trabalho e educao neste Pas. Estar aqui hoje, graas ao esforo da Jaqueline, com essas companheiras de tanto tempo, sempre uma alegria porque h muito ns no temos tido oportunidade de participar as trs juntas de uma mesa. A minha contribuio neste Simpsio pauta-se, no apenas na minha experincia como pesquisadora da rea, mas tambm em oito anos de prtica como Diretora da Faculdade de Educao da UFPR, perodo em que ofertamos, para atender s necessidades do Senai, um curso de licenciatura para seus docentes. Neste sentido, a partir do contedo histrico e conceitual das falas que me antecederam, a minha contribuio estar voltada para os desafios que precisam ser enfrentados na formao de professores da educao profissional, buscando apreender o esprito do Simpsio e sem nenhuma*

Doutora em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP). Professora titular da Universidade Federal do Paran, aposentada, atuando no programa de mestrado e doutorado em Educao dessa Universidade. E-mail: [email protected]

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expectativa de pretender resolver essas questes, mas sim apontlas a partir das experincias de pesquisa e gesto. Inicio afirmando que as mudanas que ocorreram no mundo do trabalho nos ltimos vinte anos, de fato configuraram um lugar especial para a educao profissional. Penso que isso o ponto de partida, considerando a riqueza de elementos de anlise trazidos pela Luclia, ao recuperar a histria da formao dos professores para a educao profissional, fundamental para entendermos onde esto os seus dilemas. Na transio da hegemonia do paradigma taylorista/fordista de organizao e gesto do trabalho para os novos paradigmas, tendo em vista as novas demandas de acumulao que deram origem a um novo regime fundado na flexibilizao, configura-se uma nova concepo de educao profissional que, por conseqncia, traz novas demandas de formao de professores. Temos, portanto, sido solicitados a dar um salto de qualidade nesta formao, entendendo que a concepo da educao profissional e os espaos de atuao, a partir das mudanas ocorridas no mundo do trabalho, trazem novos desafios, tanto para o capital quanto para o trabalho. Embora no tenhamos tempo para aprofundar todas as dimenses deste debate, sobre o qual j h extensa e qualificada produo, desejo pontuar pelo menos, duas questes, a partir do que se configuram essas mudanas, s quais, do ponto de vista da economia, se caracterizam pela internacionalizao do capital, do ponto de vista da organizao do trabalho pela chamada reestruturao produtiva e do ponto de vista do Estado pela concepo de Estado Mnimo, que se materializa na concepo de pblico no-estatal ou nas parcerias pblico-privadas, que cada vez mais deslocam para a sociedade civil o financiamento da educao. E do ponto de vista da ideologia, as tendncias ps-modernas, s quais a Jaqueline se referiu, quando citou na abertura do Simpsio a expanso das lgicas da fragmentao, da pulverizao, da individualizao, da competitividade, do presentismo, que tm sido o cimento ideolgico das trs macrocategorias acima citadas.

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A partir destes pressupostos, portanto, as questes a apontar, que, dentre outras, conferem especificidade educao profissional neste regime de acumulao: a concepo de trabalho enquanto evento e a concepo de competncia enquanto prxis. Com base em Zarifian (2001, p. 135), pode-se afirmar que h uma mudana de eixo nas relaes entre trabalho e educao, a partir da mediao da base microeletrnica com seus impactos nas formas de toyotistas de organizar o trabalho, que se evidencia a partir da mudana na natureza do trabalho, que deixa de significar fazeres, para passar a significar interveno, quando os equipamentos ou sistemas apresentam comportamento anormal que exige atuao qualificada do trabalhador. Ou seja, como afirma o autor, o trabalho passa a significar enfrentar eventos, o que desloca o eixo da competncia da memorizao de procedimentos a serem repetidos para o enfrentamento de situaes anormais, com maior ou menor grau de previsibilidade. No limite, competncia passa a ser a capacidade para resolver situaes no previstas at mesmo desconhecidas, para o que se articulam conhecimentos tcitos e cientficos adquiridos ao longo da histria de vida, por meio das experincias de formao escolar e profissional e da experincia laboral. Mais do que memorizao, esta nova forma de conceber a competncia remete criatividade, capacidade comunicativa e educao continuada. A partir destas mudanas se estabelece uma aparente contradio: quanto mais se simplificam as tarefas, mais se exige conhecimento do trabalhador, e no apenas tcito. Ao contrrio, a crescente complexificao dos instrumentos de produo, informao e controle, nos quais a base eletromecnica substituda pela base microeletrnica, passa a exigiro desenvolvimento de competncias cognitivas complexas e de relacionamento, tais como anlise, sntese, estabelecimento de relaes, criao de solues inovadoras, rapidez de resposta,

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comunicao clara e precisa, interpretao e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar processos para atingir metas, trabalhar com prioridades, avaliar, lidar com as diferenas, enfrentar os desafios das mudanas permanentes, resistir a presses, desenvolver o raciocnio lgicoformal aliado intuio criadora, buscar aprender permanentemente, e assim por diante (Kuenzer, 1999).

Mesmo quando o trabalho simplificado, o elevado custo de um investimento tecnologicamente sofisticado e as demandas de competitividade exigem trabalhadores potencialmente capazes de intervir critica e criativamente quando necessrio, no s assegurando ndices razoveis de produtividade, atravs da observao de normas de segurana e da obteno de ndices mnimos de desperdcio, de paradas, de retrabalho e de riscos, mas tambm otimizando o sistema. O novo que, se para o desenvolvimento de competncias nas formas tayloristas/fordistas de organizao e gesto do trabalho bastava a prtica, agora no se prescinde do trabalho pedaggico escolar para o desenvolvimento das competncias cognitivas complexas, que passam pela relao com o conhecimento sistematizado, de modo a aprender a trabalhar intelectualmente, desenvolvendo o raciocnio lgico formal, as capacidades comunicativas e a criatividade. Neste modo de conceber a categoria competncia, a partir das demandas da acumulao flexvel, importante destacar que no desaparece a relevncia do conhecimento tcito em nome da supremacia do conhecimento cientfico, mas sim se restabelece a dialtica entre teoria e prtica, passando a competncia a assumir dimenso prxica. Em artigo recentemente publicado, mostra-se que os operadores da Repar, refinaria onde vem se realizando a pesquisa, percebem, a partir de seu conhecimento tcito, a dimenso prxica da categoria competncia bem como as relaes que ocorrem no seu trabalho entre

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teoria e prtica, reconhecendo o papel e a importncia destas dimenses que configuram a concepo de prxis e que se articulam, embora guardem especificidades (Kuenzer, 2002, p.7-8). Esta forma de compreender a categoria competncia levou ao seguinte entendimento, a partir das entrevistas com 144 operadores, levadas a efeito e sistematizadas por Invernizzi:capacidade de agir, em situaes previstas e no previstas, com rapidez e eficincia, articulando conhecimentos tcitos e cientficos a experincias de vida e laborais vivenciadas ao longo das histrias de vida. Ela (a competncia) tem sido vinculada idia de solucionar problemas, mobilizando conhecimentos de forma transdisciplinar a comportamentos e habilidades psicofsicas, e transferindo-os para novas situaes; supe, portanto, a capacidade de atuar mobilizando conhecimentos. (Kuenzer, 2002, p.8).

A partir desta concepo, passou-se a compreender, como faz Vasquez (1968, p. 185), a prtica como atividade, o ato ou conjunto de atos pelos quais o sujeito modifica uma matria-prima, independentemente de sua natureza, seja por meio do trabalho material ou do no-material. Da atividade resultam produtos, materiais ou no-materiais, que atendem a determinadas finalidades, de modo que o que a caracteriza seu carter real, sua materialidade. J o trabalho intelectual se constitui como um movimento do pensamento no pensamento, que se debrua sobre a prtica para apreend-la e compreend-la, de modo que no existe atividade terica fora da prtica, embora com ela no se confunda, j que se atm ao plano do conhecimento ao produzir idias, representaes e conceitos. Em conseqncia de ser o trabalho terico um processo de apropriao da realidade pelo pensamento, ele no suficiente para transformar a realidade. Ou, como diz Vazquez (1968, p. 203),A finalidade imediata da atividade terica elaborar ou transformar idealmente, e no realmente, para obter como produtos teorias que

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expliquem uma realidade presente ou modelos que prefigurem uma realidade futura. A atividade terica proporciona um conhecimento indispensvel para transformar a realidade...mas no transformam em si a realidade, a no ser quando apropriadas pela conscincia individual e coletiva, e ento se transformem as idias em aes.

A concepo que toma competncia como prxis, a partir das mudanas ocorridas no trabalho, portanto, remete articulao entre teoria e prtica, entre atividade e trabalho intelectual para atingir a uma finalidade, o que define o seu carter transformador. Assim colocada a questo, torna-se necessrio melhor compreender o significado e as formas de articulao entre conhecimento tcito e conhecimento cientfico, a partir da mediao da base microeletrnica. As pesquisas que temos realizado em empresas reestruturadas permitem formular uma nova hiptese para posterior discusso: o conhecimento tcito no desaparece com a implantao de novas tecnologias, em particular com as de base microeletrnica, mas muda de qualidade, passando a exigir maior aporte de conhecimentos cientficos que no podem ser obtidos somente pela prtica, seno pelos cursos sistematizados. Ao reposicionar a relao entre conhecimento tcito e cientfico, a corporeidade passa a exercer papel fundamental, como mostra Dejours ao analisar o que chama de inteligncia prtica, que se distingue da inteligncia cognitiva. Afirma o autor que a primeira caracterstica da inteligncia prtica estar enraizada no corpo. Assim que os primeiros sinais de um evento (anormalidade) passam pelos sentidos, que acusam algum desconforto: um rudo, uma vibrao, um cheiro, desde que exista uma experincia anterior comum situao de trabalho. esta dimenso corprea que distingue a inteligncia prtica do raciocnio lgico; o corpo, pela percepo, que orientar a ao, conferindo inteligncia uma direo, de modo a proceder a um rpido diagnstico sucedido de interveno, cuja temporalidade inversa a de um raciocnio cientfico, que vir depois, para verificar, operacionalizar e

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disseminar a prtica que lhe foi sugerida pela intuio (Dejours, 1993, p. 286). desta forma que os operadores de refinaria, os pilotos de avio ou outros profissionais atuam, primeiro levando o sistema a uma condio segura, para depois verificar a melhor forma de retornar normalidade. A inteligncia prtica, assim concebida, implica desconsiderao e em alguns casos de desobedincia ao trabalho prescrito, no todo ou em parte, bem como a conhecimentos tcnicos e cientficos. Por isto Dejours a chama de inteligncia ardilosa, pois aqui o pensamento zomba do rigor. o reino da malcia, da esperteza, da astcia, do pensamento rpido. Embora a inteligncia prtica seja fundamentalmente corprea, no implica ausncia do pensamento, embora conduza a modelizaes prticas e representaes metafricas do conhecimento tcnico que no correspondem a clculos ou aplicaes rigorosas de procedimentos e instrues (Dejours, 1993, p. 288-290). Ela est, contudo, mais vinculada obteno de resultados do que ao conhecimento dos princpios e processos que servem de caminho ao pensamento; a questo posta resolver rapidamente o problema, com economia de esforo e de sofrimento do corpo. Finalmente, observa o autor, a inteligncia ardilosa criativa, fazendo surgir novas respostas, materiais, ferramentas, processos; e se faz presente em todos os homens, desde que estejam em boas condies gerais, e principalmente de sade. Nesta nova compreenso, que articula corporeidade e trabalho intelectual, o conhecimento tcito se constri com base no domnio cientfico-tecnolgico, ou seja, a partir da experincia fundamentada na teoria. Nas plantas produtivas que oferecem risco, nas de trabalho contnuo como as do setor petroqumico, esta nova concepo passa a ser determinante para a preservao ambiental, para a segurana das pessoas e para a segurana dos equipamentos, porque o alto risco exige essa capacidade de intervir nos sistemas de forma teoricamente sustentada, antes que os grandes acidentes industriais aconteam.

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interessante observar que os autores estudiosos dos grandes acidentes industriais tm constatado agravos que a soluo tecnolgica tem trazido. Geralmente, quando acontece um erro humano em um sistema, so criados novos mecanismos de proteo, ou de intertravamento, para evitar acidentes no caso do erro humano. O que as pesquisas tm mostrado que esses sistemas, cada vez mais complexos, criam situaes de normalidade que se estendem ao longo do tempo, passando os operadores por um longo perodo sem precisar intervir, em face do que no se capacitam para enfrentar problemas. Quando estes acontecem, exigindo interveno, so to complexos que aquele trabalhador que no foi qualificado para resolver emergncias por que elas quase no acontecem no tm condies de enfrent-las. Nestes casos, a formao cientfico-tecnolgica aliada experincia o recurso que dispem os trabalhadores para enfrentar eventos. Disponibilizar a formao cientfico-tecnolgica articulada prtica , portanto, o grande desafio colocado para a educao profissional a partir da base microeletrnica. O segundo ponto que, a partir da base microeletrnica, competncia passa a ter um outro significado. Concordo plenamente com a Maria, quando ela afirma referindo-se ao trabalho da Marise Ramos (2001), que desenvolver competncias no atribuio da escola. Nos artigos que escrevi relatando as pesquisas realizadas Repar, afirmo que o desenvolvimento de competncias acontece no espao laboral, embora os processos escolares contribuam para este desenvolvimento atravs da promoo do acesso ao conhecimento e ao domnio do mtodo cientfico, desde que integrados prtica social. H que considerar, contudo, que a crtica Pedagogia das Competncias, adequada ao apontar a apropriao levada a efeito pelo regime de acumulao flexvel, no pode deixar de considerar que competncia uma categoria antiga, presente nos estudos da OIT desde a dcada de 70, poca em que j se discutia modelos de certificao.

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O que acontece que, no modelo de acumulao flexvel, ao combinar modos de organizao e gesto do trabalho tayloristasfordistas aos toyotistas, de modo a assegurar a melhor combinao entre trabalho qualificado e trabalho precrio, tendo em vista a viabilizao do processo de acumulao do capital, h significativa mudana na compreenso do que seja competncia. Esta mudana de concepo impacta fortemente a educao profissional, que passa a ter outra especificidade. Se competncia no taylorismo-fordismo era fundamentalmente conhecimento tcito advindo da experincia, e de natureza psicofsica, em face das novas tecnologias passa a significar capacidade de trabalhar intelectualmente, de modo a enfrentar os problemas da prtica laboral e social. Para isto, se demanda conhecimento terico. Esta dimenso da competncia nova, e, por contradio, no atende necessariamente apenas ao capital, uma vez que impacta positivamente a formao dos trabalhadores, em razo do que so geradas novas necessidades relativas formao dos professores de educao profissional. Como relatou Luclia, por muito tempo os que ensinavam o trabalho eram chamados de instrutores, e no de professores, uma vez que, no taylorismo fordismo, o novo trabalhador era conduzido a desenvolver conhecimento tcito por meio da observao do trabalho dos mais experientes, seguida de memorizao e desenvolvimento de habilidades psicofsicas. No taylorismo-fordismo, o instrutor era aquele que dominava o saber vindo da experincia, o qual no era necessariamente sustentado em formao cientfico-tecnolgica consistente. Para sua formao pedaggica, considerava-se suficiente uma complementao de curta durao, porque o que ele tinha para ensinar vinha da sua experincia. Como o conhecimento tcito no se sistematiza e no se transmite, a forma pedaggica mais adequada acaba sendo a demonstrao. O Senai se notabilizou pelas sries metdicas, o mtodo por excelncia da educao profissional no taylorismo-fordismo. Nas empresas, o instrutor o trabalhador mais antigo que tem vasta e reconhecida experincia, ao qual so colados os novos

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trabalhadores. E ele instrutor, ele no professor, porque o trabalho intelectual no se coloca como necessidade. Ao mesmo tempo, o conhecimento tcito privilegia a competncia no fragmento, no contemplando a dimenso da totalidade do processo de trabalho em suas articulaes com a prtica social. Em sntese, o conhecimento tcito orgnico a um modo de organizar e gerir o trabalho que se estrutura sobre a relativa estabilidade dos processos, em face da reduzida dinamicidade da tecnologia sobre a fragmentao dos processos e sobre o saber fazer. Portanto, quando Maria aponta a dinamicidade das novas tecnologias, de base microeletrnica, de fato o saber tcito de natureza taylorista-fordista evidencia-se insuficiente, configurandose novas demandas educativas. No se sabe, inclusive, para quais tecnologias educa-se um jovem que vai se inserir no mundo do trabalho depois de trs anos. Para enfrentar a dinamicidade e a complexificao das relaes sociais e produtivas, o desenvolvimento do que chamamos competncias cognitivas complexas passa a ser crucial. Essas competncias cognitivas complexas referem-se menos ao saber fazer do que ao domnio do raciocnio lgico-formal, da capacidade de trabalhar com as idias, das competncias comunicativas, do domnio das linguagens, a partir da capacidade de anlise, de sntese, de criao. Esta nova concepo de competncia exige a formao de um professor de novo tipo, capaz de criar situaes de aprendizagem nas quais o jovem desenvolva a capacidade de trabalhar intelectualmente, a partir do que se capacita para enfrentar as situaes da prtica social e do trabalho. Um terceiro ponto que necessrio discutir, para da entrar no cerne do debate acerca da formao de professores para a educao profissional, a tese com a qual estou trabalhando mais recentemente, a partir das pesquisas realizadas no setor petroqumico

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e no setor coureiro-caladista. So dois setores completamente diferentes com relao s tecnologias, os quais tm permitido uma melhor compreenso das relaes entre dinamicidade e precarizao no regime de acumulao flexvel. Estas pesquisas tm mostrado que, do ponto de vista do mercado, ocorre um processo que estou chamando de excluso includente, ou seja, o mercado expulsa os trabalhadores do emprego formal, mas os reaproveita em pontos mais precarizados ao longo da cadeia. E esse processo de consumo predatrio da fora de trabalho, ao longo das cadeias produtivas, que assegura, pela reduo dos custos de produo, a competitividade nos planos nacional e internacional. Na indstria coureiro-caladista, a precarizao muito evidente, chegando-se a processos de quinterizao: da fbrica para o ateli, para o intemedirio e o trabalhador domiciliar que, no raras vezes, tambm repassa uma parte do trabalho para vizinhos, jovens ou para membros da prpria famlia. O trabalho domiciliar, onde so feitas as costuras e os trabalhos manuais conhecidos como enfiadinhos, incorporam trabalho infantil, dos idosos, dos encostados e dos desempregados da famlia. Estabelece-se uma cadeia de precarizao e de uso predatrio da fora de trabalho, que ainda faz com que a regio pesquisada continue competitiva no setor de calado feminino de luxo. o mesmo processo que fez a China ter dominado o mercado interno no Brasil, uma vez que naquele pas no h respeito aos direitos trabalhistas e as jornadas de trabalho so intensificadas, chegando a onze horas de trabalho por dia com descanso semanal de uma tarde por semana. Certamente, este rebaixamento no custo de mo-de-obra, resultante do uso predatrio ao longo da cadeia, contribui para a competitividade daquele pas no plano internacional. Reafirma-se, assim, o movimento do ponto de vista do mercado, a excluso includente, que incorpora trabalhos de diferentes qualidades ao longo das cadeias, independentemente da qualificao do trabalhador, qual muitas vezes excede as demandas do processo de trabalho.

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Nestas relaes que se estabelecem na acumulao flexvel, com vista reduo do custo do produto final, o taylorismo-fordismo no desaparece, embora deixe de ser hegemnico; ao contrrio, suas formas de organizao e gesto da fora de trabalho integram organicamente o regime de acumulao flexvel, atendendo lgica da precarizao do trabalho ao longo das cadeias produtivas; permanece, pois, a demanda por qualificao de trabalhadores para este modo de organizao e gesto do trabalho. Formar a costureira, por exemplo, ainda importante para viabilizar uma incluso menos precria, em que pese as necessidades derivadas da complexificao tecnolgica, o que reveste de maior complexidade a educao profissional com todas as suas nuances, em particular a partir dos processos de flexibilizao do trabalho. Se h um processo de excluso includente do ponto de vista do mercado, do ponto de vista da educao ocorre um processo similar e contrrio quele dialeticamente relacionado: a incluso excludente. Ou seja, professam-se polticas e criam-se alternativas educacionais que atendam incluso de um nmero cada vez maior de alunos ao longo do sistema educacional. Esta incluso, contudo, quando se d em percursos pedaggicos precrios, constitui-se falsa incluso, muitas vezes com carter meramente formal e certificatrio, sem que dela resulte qualidade de formao. Desta forma, a incluso excludente na ponta da educao apenas refora, quando no justifica, o consumo predatrio da fora de trabalho ao longo das cadeias produtivas. H inmeras alternativas e so incontveis os exemplos de educao profissional, supletiva ou mesmo regular, em que a qualidade dos percursos formativos no asseguram uma incluso um pouco mais cidad, expressando o que tenho chamado de incluso excludente. Sobre esta dimenso preciso ter clareza de que, sobre a gide do capitalismo, a incluso sempre subordinada aos interesses

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mercantis, e, em decorrncia, sempre concedida. Esta a natureza do ser social capitalista. A partir destes trs pontos apresentados, possvel compreender que a funo dos profissionais da educao profissional melhorar as condies dessa incluso concedida, como limite de possibilidade, porm importante na luta pela construo de uma sociedade mais justa e igualitria. Ao considerar que a especificidade que as mudanas no mundo do trabalho conferem educao profissional a lgica da polarizao de competncias, ou seja, preparar para atender s demandas dos diferentes pontos da cadeia produtiva, dos mais dinmicos aos mais precarizados, de fato h de formar um professor de novo tipo que domine esses processos. Este professor dever estar qualificado para no se subordinar lgica da incluso excludente, mas para enfrentla de forma politicamente correta e tecnicamente consistente, ampliando as possibilidades de democratizao do acesso formao de qualidade, para alm das restries apresentadas pelo mercado. Essa a primeira dimenso da formao: conhecer o mundo do trabalho sem ingenuidade, a partir da apreenso do carter de totalidade das relaes sociais e produtivas. A segunda dimenso a ser considerada exige que se tenha clareza a respeito de qual educao profissional se est falando, uma vez que ela atende a diversos nveis, da bsica cientfico-tecnolgica de alto nvel, incluindo os nveis de mestrado e doutorado. Em decorrncia, as polticas de formao de professores para a educao profissional tambm no tm sido homogneas. Assim que as exigncias para o exerccio da docncia nas universidades e Cefets, por exemplo, incluem qualificao especfica em mestrado e em doutorado, tendo em vista o desenvolvimento da pesquisa, ou pelo menos em cursos de licenciatura, tendo em vista a capacitao para a docncia, alm da dedicao integral e exclusiva. Nestes casos, h planos de carreira e condies de trabalho que viabilizam a qualificao continuada, e assim, o exerccio profissional qualificado.

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O mesmo no acontece com o grande nmero de instrutores ou monitores que esto trabalhando nas ONGs, no Sistema S e em outras instituies que tm participado do Programa Nacional de Estmulo ao Primeiro Emprego (PNPE). Nestes programas, que so de curta durao e de oferta descontnua, no se configuram relaes estveis de trabalho docente e muitas vezes as condies de trabalho no so adequadas. De modo geral, o trabalho docente precarizado, quando se trata de educar para o trabalho precarizado. So instrutores que so recrutados dentre os mais diferentes profissionais, sem formao para a docncia e que trabalham por perodos determinados e geralmente muito curtos, atravs de contratos de prestao de servios. No se profissionalizam, portanto, como professores, e muitas vezes nem se reconhecem como tal. E infelizmente, so muito numerosos, em face dos programas filiados ao PNPE, em andamento. Embora seja difcil vislumbrar estratgias adequadas de qualificao para estes professores, dada a natureza deste tipo de trabalho e a quantidade e a diversidade dos campos, reas e formas de atuao, necessrio faz-lo. Esta diferenciao resultante da prpria lgica da incluso excludente, da qual resulta a desigualdade e a diferenciao das estratgias de educao profissional. Em decorrncia, h diferenciao e desigualdade tambm nos processos de formao de professores para a educao profissional. A formulao de polticas para esta formao, portanto, deve levar em conta a educao profissional da qual est se tratando, para que as estratgias definidas de fato impactem o segmento que realmente demanda ateno: a formao de professores para os programas que atendem aos precariamente includos, aos excludos e aos que esto em situao de vulnerabilidade. Feitas estas consideraes, a terceira dimenso a ser tratada a existncia de conhecimentos, elaborados atravs de pesquisas realizadas nas ltimas dcadas que permitem configurar uma pedagogia do trabalho adequada ao caso brasileiro, a ser considerada

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na elaborao dos programas de formao de professores de educao profissional. A partir de resultados de processos investigativos com trabalhadores includos e com desempregados, tm sido desenvolvidos e acompanhados processos experimentais que objetivam implementar percursos formativos a partir de categorias que foram sistematizadas, tendo em vista a formulao de uma pedagogia do trabalho. Estas experincias, j avaliadas, tm apresentado resultados positivos a partir da considerao de alguns princpios bsicos: a considerao do processo de trabalho, compreendido como relao social, como foco para a seleo e organizao de contedos; a adoo das categorias do mtodo da economia poltica com destaque para a relao entre parte e totalidade, entre teoria e prtica e entre conhecimento geral e especfico; e as trajetrias de vida e de trabalho dos alunos como ponto de partida (Kuenzer, 2003, 2004). H, com base nos clssicos, farto material resultante de pesquisas na rea de trabalho e educao, que podem sustentar tericopraticamente os processos de formao de professores para a educao profissional. Entre outras dimenses, este professor dever estudar o trabalho na dimenso ontolgica, como constituinte do ser social capitalista; h de estudar como as bases materiais cimentadas pela ideologia conformam subjetividades que no se reconhecem como excludas. Em recente pesquisa realizada na regio metropolitana de Curitiba, foram entrevistados 84 trabalhadores de indstrias metalrgicas, com a finalidade de compreender as relaes entre conhecimento e acidentes de trabalho, nas prensas e guilhotinas. Os resultados mostraram que, de modo geral, os trabalhadores que haviam concludo o ensino mdio, chamavam a si a responsabilidade pelos acidentes, justificados pela distrao. Estes trabalhadores no reconheciam a intensificao do trabalho, a tecnologia superada, a idade das mquinas e equipamentos, a falta de mecanismos de

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segurana, causas provveis apontadas pelos entrevistados menos escolarizados. Outra situao semelhante foi observada entre os jovens na Regio do Vale do Rio dos Sinos, que freqentam os programas socioeducativos. Os entrevistados, na sua expressiva maioria, respondiam que se matriculavam no EJA para freqentarem o Programa que, embora no resolvesse nada, era melhor que a cadeia. Ento a gente vai l e se matricula, mas educao no d nada. O fato de estes jovens no serem includos em trabalhos permanentes e no serem includos na escola faz com que eles tenham lucidez sobre o seu lugar; eles sabem que aqueles programas socioeducativos so uma alternativa para aquele momento, que no vo mudar sua condio de vida. J os que permanecem na escola e em empregos formais por mais tempo, tm uma viso idealizada da realidade, calcada na possibilidade do sucesso a partir do esforo pessoal. De modo geral, no se reconhecem como trabalhadores, assumindo um discurso que mais se aproxima do empresarial. Estes dois exemplos evidenciam a relevncia da compreenso, teoricamente fundamentada, da dimenso ontolgica na conformao das subjetividades, a partir do significado do trabalho no modo de produo capitalista. De pouco adianta qualificar tecnicamente o professor se ele no tiver uma ampla compreenso acerca da natureza do trabalho, tal como ele se d no regime de acumulao flexvel, para o que contribui decisivamente o conhecimento das categorias da pedagogia do trabalho. Finalmente, gostaria de retomar a discusso das polticas e dos programas de formao de professores para a educao profissional a partir da afirmao da Luclia ao encerrar sua brilhante contribuio: preciso rever a Res. 02/97. Sobre esta matria, est em tramitao o Parecer 5/2006, de abril, do Conselho Nacional de Educao, apresentado pela Comisso Bicameral responsvel pela compatibilizao das diretrizes

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curriculares da formao de professores da educao bsica e profissional, uma vez que foi aprovado um conjunto de diretrizes que apresenta incompatibilidades. Este parecer, embora aprovado por unanimidade pelo Conselho Pleno, no foi homologado at o momento em que se realiza este Simpsio. Este documento reafirma que a formao de professores para todos os nveis e modalidades, incluindo, portanto, a educao profissional, deve ser feita em cursos de licenciatura. Reconhecendo a complexidade que reveste esta proposio, o Parecer apresenta algumas alternativas. Em primeiro, uma licenciatura como qualquer outra, em nvel de graduao. Aqui comeam as questes: quem seria o aluno a se matricular nessa licenciatura? A multiplicidade de reas, modalidades e nveis de educao profissional tornam invivel a proposio de uma licenciatura em educao profissional, de carter genrico. A partir desta constatao, o Parecer aponta como alternativa a oferta de habilitaes especializadas por componente curricular para o caso do ensino mdio integrado, ou por campo de conhecimento ou campo de atuao profissional, no caso da educao profissional. Desenvolvendo esta linha de raciocnio, seria possvel ofertar uma licenciatura de educao profissional na rea de mecnica. Qualquer egresso de escola mdia pode fazer uma licenciatura em educao profissional na rea de mecnica? Ou seria pr-requisito ter curso tcnico em nvel mdio ou superior, nesta rea? Seria exigvel experincia profissional prvia? possvel ensinar um trabalho em suas dimenses terico-prticas sem nunca t-lo exercido? Particularmente penso que deveria haver vinculao entre a licenciatura e a formao tcnica de nvel mdio, seja mdio integrado, ou tcnico concomitante ou seqencial, mas com alguma direo para a rea que ensinar. E tambm experincia profissional prvia.

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No basta, portanto, formular a norma enquanto princpio geral, com o qual, de modo geral, concordamos. H de refletir como materializ-la, dadas as especificidades da educao profissional. Uma dimenso que me parece importante no repetir a capacitao para a docncia por disciplina, como j se fez no passado, reproduzindo a lgica da fragmentao, mas pensar em um campo do conhecimento profissional, at por que o recorte disciplinar j no se justifica em face da dinamicidade e do carter interdisciplinar das mudanas cientficas e tecnolgicas. A segunda alternativa que o Parecer traz o aproveitamento de estudos para quem j tem curso superior. Neste caso, so propostas duas modalidades: a integralizao da licenciatura a partir do curso superior j concludo, com a finalidade de ser professor em sua rea de formao profissional. Neste caso, j h formao nos contedos especficos, de natureza cientfico-tecnolgica, e, portanto, tericoprtica, bastando cumprir as disciplinas e atividades que tm por objetivo a formao pedaggica. Assim sendo, se no for ofertado um curso especfico, por exemplo, para formar docentes para rea de mecnica, o candidato a professor poder cursar as disciplinas pedaggicas ofertadas por qualquer curso de licenciatura, o que poder levar um tempo prolongado, particularmente porque, no mbito das novas diretrizes, as disciplinas voltadas formao pedaggica devem ser ofertadas desde o incio do curso. A outra possibilidade a oferta de programas especiais de formao pedaggica, aos moldes do disposto na Res. 02/97, mas de forma menos aligeirada. A diferena entre as propostas destes dois pareceres que a Res. 02/97 tinha carter emergencial, enquanto o novo Parecer confere carter definitivo a esta proposta. E, sem sombra de dvida, pelo seu carter pragmtico, esta a alternativa mais atraente. A anlise cuidadosa do Parecer mostra que a concepo de programas especiais nele contido traz uma compreenso diferente, no devendo se constituir mera complementao pedaggica. Neste

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aspecto, o Parecer inicia o tratamento da questo afirmando que os programas especiais tm de cumprir as diretrizes curriculares da formao de professores; portanto, cumprir os princpios, as cargas horrias e assim por diante. Assim, estabelece como norma a mesma carga horria de formao pedaggica estabelecida para quem pretende cursar uma segunda habilitao; so 800 horas de atividades, ou seja, um ano de durao, obedecendo ao preceito da LDB relativo a 300 horas de durao do estgio. As 500 horas dedicadas formao terico-prtica constituem o mnimo permitido, podendo ser ampliadas. Em que pese a concepo proposta pelo Parecer, permanece a questo que permeou a discusso da Res. 02/97: possvel assegurar formao de qualidade para a docncia com 500 horas dedicadas apropriao do conhecimento cientfico-tecnolgico relativo docncia? No se estar, embora de forma menos aligeirada, apenas oferecendo complementao pedaggica em vez de licenciatura? Ao considerar os eixos propostos pela Res. 02/97 contextual, de fundamentao e metodolgico no parece tempo suficiente. Esta dvida surge a partir das afirmaes feitas anteriormente, acerca da necessidade do domnio dos fundamentos do trabalho e das relaes entre educao e trabalho no capitalismo e da necessidade de domnio terico-prtico das categorias da pedagogia do trabalho, para o que so necessrias incurses, por exemplo, na cincia poltica, na sociologia, na histria, na filosofia, na psicologia, na administrao, na epistemologia, alm das disciplinas voltadas propriamente para a pedagogia do trabalho. Embora os campos disciplinares sejam os mesmos, so outros os fundamentos centrados nas relaes entre trabalho e educao. H de considerar cuidadosamente, tambm, as interfaces entre os conhecimentos cientficos e o conhecimento escolar. Ser um bom engenheiro mecnico no significa ser um bom professor, capaz de transpor o conhecimento cientfico para os espaos escolares.

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Se for mais vivel a alternativa dos programas especiais, permanece uma questo j indicada anteriormente: estes programas sero ofertados independentemente da graduao anterior? O Parecer diz que no, afirmando pela primeira vez que deve haver organicidade e aderncia entre a formao anterior e o programa de formao pedaggica, o que se pode considerar um avano. importante destacar que, se o Parecer e a proposta de resoluo anexa forem homologados, fica revogada a Res. 2/97; tambm fica revogada a Res 02/02, que define 800 horas de durao para as atividades prticas, incluindo o estgio supervisionado. Neste caso, ficar valendo o que a LDB prescreve: 300 horas de estgio supervisionado, o que eu, particularmente, entendo mais adequado, por assegurar mais espao para adensamento terico e mais autonomia para as instituies apresentarem propostas exeqveis de atividades prticas, sempre supervisionadas, integradas ao trabalho das instituies educacionais e solidamente ancoradas na teoria. Para concluir, quero fazer mais duas consideraes. A primeira chamar reflexo acerca da necessidade de formar o pedagogo do trabalho, uma vez que as diretrizes curriculares reduzem a Pedagogia formao de professores para educao infantil e sries iniciais do ensino fundamental. Em decorrncia desta reduo epistemolgica, nos cursos de Pedagogia que sero ofertados daqui para diante, no h mais espao para formar um pedagogo com foco no EJA, na educao profissional, na educao tecnolgica ou mesmo na educao superior. A proposta presente nas diretrizes que esta formao seja feita em cursos de especializao. Assim, eu penso que, embora discorde firmemente das novas diretrizes para a Pedagogia, o caso de pensar com urgncia em ofertar cursos de especializao em Pedagogia do Trabalho. Este curso iniciaria a qualificao de profissionais da Educao que dominem a Cincia da Educao a partir da realidade do trabalho. Este profissional-pedagogo do trabalho teria um perfil diferente, por exemplo, daquele profissional que tem um programa de formao especial que o qualifica para ser professor das

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disciplinas vinculadas mecnica na educao profissional. Ele seria um especialista em educao capaz de criar as condies democrticas de construo do projeto poltico-pedaggico da educao dos trabalhadores, profissional e EJA, com foco nas relaes entre trabalho e educao. A segunda considerao refere-se ao fato que os cursos de mestrado e doutorado tm formado professores de nvel superior centrados na pesquisa, mas sem formao pedaggica. Estes profissionais so qualificados nas reas especficas e tornam-se professores sem estudar educao. So raros os programas de mestrado e doutorado que tm metodologia do ensino superior, por exemplo. Embora a Capes tenha criado o estgio em docncia, paradoxalmente os programas de ps-graduao o ofertam independentemente da oferta de formao para docncia, partindose do pressuposto de que se voc conhece a cincia a ser ensinada, torna-se professor automaticamente. Com relao a este aspecto, o Parecer 05/06 avana, quando prope que o exerccio da docncia exige licenciatura. A ltima considerao diz respeito competncia para ofertar os cursos de formao de professores de educao profissional, em nvel de licenciatura. Para algumas reas, os Cefets tm evidenciado competncia, a partir das experincias que vm sendo realizadas. Contudo, h outras reas, nas quais os Cefets no tm oferta de cursos, para o que a contribuio das demais Instituies de Ensino Superior, particularmente do setor pblico, necessria. Uma proposta para reflexo a formulao de um programa de formao em nvel nacional, planejado e executado de forma compartilhada pelas IES e Cefets, organizado e financiado a partir da Setec, enquanto poltica pblica. Esta uma boa proposta para o prximo governo, pois a formao de professores para a educao profissional uma questo pblica. Como afirmou Maria, sem financiamento pblico no vamos resolver esta questo.

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Caso no haja um programa pblico com um percurso pedaggico adequado, financiado e gerido pelo Estado a partir das demandas educativas daqueles que vivem do trabalho, acabaremos por reforar a relao entre excluso includente na ponta do mercado, articulada incluso excludente na ponta da educao, ofertando programas fazde-conta de formao de professores, os quais atendem ao consumo predatrio da fora de trabalho para atender lgica da acumulao flexvel. Era essa a contribuio que eu tinha a dar. Muito obrigada.

Referncias bibliogrficas

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DESAFIOS CONTEMPORNEOS*

A F ORMAO DE P ROFESSORES PARA A E DUCAO PROFISSIONAL E TECNOLGICA: PERSPECTIVA HISTRICA EMaria Ciavatta Franco Introduo

A formao de professores tem uma tradio de estudos baseados no indivduo, na pessoa do professor ou no profissional da educao. Nunca olhamos para uma s coisa de cada vez; estamos sempre a ver a relao entre as coisas e ns prprios. Assim, o socilogo J. Berger (1987) explicita a forma como o ser humano existe e produz sua existncia no mundo, mas geralmente no se reconhece como tal, pois est imbudo das ideologias individualistas e competitivas de vrios fundamentalismos (religioso, filosfico, econmico, poltico). esse olhar em relao ao outro, na profisso professor, que queremos desenvolver aqui. E tanto mais na educao profissional*

Este texto foi preparado para Educao Superior em Debate Simpsio Formao de Professores para Educao Profissional e Tecnolgica, MEC/Setec, Braslia, 26 a 28 de setembro de 2006, e serviu de base para a apresentao no Painel Formao e Valorizao dos Profissionais de Educao Profissional e Tecnolgica durante a 1 Conferncia Nacional de Educao Profissional e Tecnolgica, MEC/Setec, Braslia, 5 a 8 de novembro de 2006. Doutora em Cincias Humanas (Educao) pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com ps-doutorado em Sociologia do Trabalho pela Universit di Bologna (Itlia). Professora titular em Trabalho e Educao, associada ao Programa de ps-graduao em Educao da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora visitante da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]

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e tecnolgica. Um olhar relacionado com o mundo e, principalmente, com os alunos, e com os educandos que justificam nossa insero social como professores. A hegemonia do capital, no campo da economia e da cultura, tem um apelo enraizado na produo material e na circulao de bens para a sobrevivncia. Estamos imersos no mundo da tcnica, das tecnologias para a satisfao das necessidades bsicas ou para o consumismo que alimentam o individualismo e a competio entre os seres humanos. Pensar por si, defender seus prprios interesses. O mundo de hoje perdeu a simplicidade da compreenso pelo aparente. Vivemos cercados de objetos complexos, desde o outrora simples rdio de ondas curtas e longas at os celulares, as mquinas digitais, os televisores, computadores, Ipods, web 2.0, etc. Nossos alunos chegam escola sem livros, mas conhecendo mais as novas tecnologias que muitos de ns, professores. O ensino mdio, no Brasil, tributrio de uma sociedade de classes, de herana escravista e preconceituosa contra o trabalho manual, solicitado a preparar todos para os exames de acesso universidade. Por sinal, nico caminho de mobilidade social para os que pertencem aos setores desfavorecidos e sonham chegar l.1 Os meios televisivos aperfeioam-se em vender a iluso da identidade superior pautada no consumo. Qual o papel dos professores diante de uma populao em que predominam os analfabetos funcionais, os trabalhadores de baixa escolaridade, a nsia de ter um ttulo de educao superior a qualquer preo? Queremos mudar o ngulo de viso e ter como ponto de partida o professor no apenas como ser humano individual, mas como um1

Expresso corrente no tempo do milagre econmico, durante a Ditadura dos anos 1960 e 1970.

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ser social, como um ser em relao, que produz seus meios de vida junto com os demais, que se beneficia do conhecimento secularmente acumulado pela humanidade. Consciente ou no desse lado de si mesmo, o professor se forma no ato de ver e de ser visto, de conhecer e ser conhecido, de reconhecer e ser reconhecido, no ato de viver e de educar-se para educar outros seres humanos. Essa questo parece bvia, trivial. Mas no se a confrontarmos com a cultura de nosso tempo. A cultura filosfica, religiosa e econmica em que nos movemos no mundo ocidental a cultura do indivduo e do individualismo, Tambm no bvia nem trivial, se entendermos a formao como produto da sociabilidade que desenvolvemos no ato de educar. Essa mudana de ngulo de viso nos obriga a pensar em quem so nossos alunos, como eles aprendem ou no aprendem, rejeitam o que ensinamos, qual o contexto de vida dos alunos e de nossas vidas, de nossas escolas, do sistema educacional onde atuamos. O fato de nosso tema de reflexo ser a formao de professores para a educao profissional e tecnolgica no elide essas consideraes, apenas exige ateno especificidade dessa formao. O fato de ser uma questo que compreende a perspectiva histrica e os desafios contemporneos fortalece a exigncia de pensar o contexto em que essa formao se realiza. Dividimos nossa breve exposio em trs tpicos: considerando que o professor se faz professor na relao com o aluno. O primeiro que responde a esse vir-a-ser profissional so os fins da educao do aluno, cujas necessidades devem pautar a nossa formao. Segundo, como professores somos vinculados a instituies e devemos, pois, pensar nas bases e diretrizes da educao na sua historicidade, que o nosso espao de trabalho. Em terceiro, devemos pensar nos desafios dessa educao que se refere ao mundo do trabalho e de suas contradies. So desafios que se expressam nos contedos, nas novas tecnologias, nas formas de tratar a realidade desses contedos, de conviver com as novas tecnologias e na forma de organizar e conduzir os processos de ensino e aprendizagem. O

Maria Ciavatta Franco

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que faremos neste texto, por meio da proposta de formao integrada entre a educao geral e a formao especfica.21. Fins da educao profissional e tecnolgica

No tratamos aqui dos fins da educao definidos formalmente, como nos antigos manuais pedaggicos. Queremos pensar sobre os fins da educao em funo daqueles a quem a educao se destina. Neste sentido, cabe perguntar quem so nossos alunos em potencial? So os jovens e, tambm, adultos com escolaridade incompleta ou em busca de formao para o trabalho. Dados do Inep/MEC nos dizem que menos da metade dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos est cursando o ensino mdio, e apenas cerca de 50% chegam a conclu-lo e 60% esto em cursos noturnos, o que indica que esto fora da idade prevista para a escolaridade mdia diurna ou trabalham durante o dia. No campo, a situao ainda mais crtica, pouco mais de um quinto dos jovens na faixa de 15 a 17 anos est freqentando o ensino mdio, alm das diferenas entre as regies (apud Movimento..., 2006, p. 1). Esses so dados graves sobre o contexto da educao no Pas. Devemos educar a toda a populao ou concentrar-nos nos mais capazes? Se, democraticamente, optarmos por educar a toda populao jovem, que tipo de educao lhes devemos dar? Tratandose de educao profissional e tecnolgica, ela deve ser articulada2

Este tema tem por base o trabalho que resultou do estgio de pesquisa em institutos tcnicos da Regione Emilia-Romagna, Itlia, no perodo de maio a junho de 2006 (Ciavatta, 2006) e parte do Projeto de Pesquisa Memria e temporalidades da formao do cidado produtivo emancipado: do ensino mdio tcnico educao integrada profissional e tecnolgica, desenvolvido no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal Fluminense. (Bolsa de Produtividade CNPq/Faperj). Agradecemos a oportunidade de discusso de muitas destas idias com professores, coordenadores e gestores do MEC, dos Cefets e de escolas tcnicas estaduais em diferentes oportunidades, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, assim como em seminrios com os colegas professores, graduandos e ps-graduandos dos Projetos de Pesquisa Integrados UERJ, UFF e EPSJVFiocruz, no decorrer de 2006 e 2007.

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ao ensino mdio que daria os fundamentos cientfico-tecnolgicos e histrico-sociais das profisses e das tecnologias, ou deve ser operacional para atender s demandas do mercado de trabalho? Se optarmos por atender s demandas do mercado de trabalho, em grande parte, estaremos elidindo o fato gritante do desemprego. O Atlas da excluso social no Brasil (Pochmann, Amorim, 2003, p. 24) informa que diminuta a participao de assalariados em ocupaes formais no total da populao em idade ativa, em 36,1% das cidades do Brasil, e apenas 10,3% dos municpios contam com uma estrutura ocupacional de base assalariada formal. A crise econmica deflagrada nos anos 1970 s foi mais bem compreendida nos pases em desenvolvimento, nos anos 1980. As tentativas de encaminhamento de soluo para essa crise de acumulao foram alimentadas pela ideologia neoliberal e ganharam visibilidade por meio das transformaes ocorridas no mundo da produo. Expressaram-se na reestruturao produtiva, na introduo de novas tecnologias, nas novas formas de organizao do trabalho, na reduo de custos, no acirramento da competio entre as empresas, principalmente, as grandes multinacionais, na poltica guiada pelos organismos internacionais de reduo do papel do Estado, no desemprego estrutural e no empobrecimento de grandes massas da populao em todo mundo. A formao de mode-obra adequada s novas necessidades empresariais fez-se sentir nas mudanas ocorridas nos sistemas de formao profissional em todos os pases (Frigotto, Ciavatta, Ramos, 2005). O que os pases ricos do ncleo do capitalismo central (Arrighi, 1998) esto fazendo diante das rpidas transformaes da esfera produtiva e do mercado de trabalho? Primeiro, elevando a escolaridade obrigatria de nvel mdio at os 18 anos. Segundo, dando a essa educao elementos de formao cientficotecnolgica que capacite jovens e adultos desempregados a inserirse ou reinserir-se em um mundo que visualiza como futuro a sociedade do conhecimento.

Maria Ciavatta Franco

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O que faz um pas perifrico, dependente dos pases centrais como o Brasil onde setores de alta tecnologia e pessoal altamente preparado convivem com setores tradicionais e populaes semi-analfabetas? Somos um pas em que cerca de metade da populao economicamente ativa tem menos de oito anos de escolaridade, e aproximadamente 60% esto no mercado informal profundamente heterogneo, onde predominam os mais pobres e desamparados de qualquer proteo social. Se os fins da educao no so aforismos abstratos, mas imposies de formar para a sobrevivncia e a luta para a defesa dos direitos de cidadania, a formao dos professores de educao profissional e tecnolgica reveste-se de uma importncia crucial para o desenvolvimento social e cultural do Pas que inclua toda a populao. Significa, em termos breves, que os tipos de formao restrita, funcional a postos de trabalho que desaparecem ou funcional a atividades que beneficiam apenas a produo econmica so igualmente incompatveis com as necessidades de nossos alunos, em potencial, toda a populao jovem e adulta carentes de escolaridade. Em uma sociedade como a brasileira que se formou, inicialmente, pelo trabalho colonizado, subalterno, e depois pelo trabalho escravo e, ainda no sculo 21, mantm ambas as condies em bolses de misria, preciso reverter a regulao da sociedade pelo mercado, pelo consumismo. Significa que preservar os valores da vida humana e de sua dignidade, contextualizada nas dificuldades do presente, deve constituirse nos fins da educao para a qual devem ser formados os professores.2. Bases e diretrizes para a formao de professores de educao profissional e tecnolgica

Da antiga tradio livresca do Pas, herdamos as diretrizes que freqentemente se sobrepem s bases, no para instituir os fins da educao, identificar necessidades e buscar as bases humanas e materiais, mas para desenvolver um iderio educacional que no tem

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Modelos Institucionais de Educao Superior

condies prticas de realizao. Talvez o maior exemplo dessa ideologizao frustrante de uma diretriz normativa tenha sido a profissionalizao obrigatria (Lei n 5.692/71) que, em grande parte das instituies pblicas de ensino no se viabilizou na prtica por falta de instalaes e equipamentos ficou um faz-de-conta. Omitir as bases significa tambm estabelecer lacunas sobre o que determina dialeticamente o mundo em que vivemos, a superexplorao do trabalho e a sociedade com grandes desigualdades sociais que somos. Com isso queremos afirmar que a formao de professores de educao profissional e tecnolgica, assim como dos alunos, passa pela compreenso dos limites socioeconmicos do Pas, mas no prescinde da disponibilidade de recursos materiais e humanos que permitam realizar os fins da educao. Regulamentao do trabalho, garantia dos direitos, salrios compatveis com as exigncias da profisso e da vida pessoal, tempo remunerado para estudo e renovao das atividades didticas, laboratrios e oficinas. Uma questo crtica para a escola, hoje, a velocidade das mudanas tecnolgicas no mundo do trabalho. tarefa impossvel para as escolas renovarem seus equipamentos semelhana das empresas. As instituies escolares no reproduzem seus recursos por meio da fora de trabalho e no acumulam capital para novos investimentos produtivos, como fazem as empresas de produo e de servios. Por isso, contrariando a lgica da educao e confundindo-a com a lgica da produo (Ciavatta, 2006), alguns argumentam que a escola deve somente dar formao geral. Como essa opo contraria toda a tradio da formao profissional de base escolar, oferece-se aos jovens estudantes uma formao aligeirada, cursos inconsistentes do ponto de vista profissional e tecnolgico, porque no fundamentam as operaes prticas com uma viso social e uma base cientfica adequadas. Neste ponto coloca-se uma questo de mtodo, a relao parte e todo, a relao entre o objeto singular e o conceito geral que lhe d significado na particularidade histrica que o caracteriza; os

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conhecimentos e tcnicas bsicos e os complementares ou variveis no tempo e no espao da prpria construo do conhecimento. No sentido de alargar a expresso do que entendemos por diretrizes, alm da legislao pertinente e das bases materiais e humanas adequadas, queremos trazer uma reflexo sobre a questo curricular e das competncias, questes que so, basicamente, interpretadas segundo a formao e os vieses tcnico-profissionais dos professores. Dentro de uma viso simplificada, a organizao curricular foi, durante muito tempo, uma questo de distribuio de carga horria de disciplinas. Isso no quer dizer que a educao organizada, segundo essa concepo curricular, se reduzisse a esse aspecto operacional. A questo epistemolgica sempre esteve presente, mas obscurecida pelos objetivos prticos da organizao escolar. No entanto, nas ltimas dcadas ficaram mais agudas as interrogaes sobre o significado do currculo, sobre o que ensinar e como ensinar, sobre o papel das disciplinas, sobre o que se convencionou de chamar de currculo oculto. consenso hoje que contedo e for ma so aspectos indissociveis, que preciso compreender as disciplinas no processo histrico da construo e da apropriao dos conhecimentos no contexto dos pases e de seu estgio no desenvolvimento dos sistemas de ensino. Tomemos, por exemplo, hoje, a introduo da informtica e do ingls que, em geral, curso de formao profissional nas escolas pblicas em nosso pas, mas disciplina curricular em pases desenvolvidos, como a Itlia. Significa que, do ponto de vista educacional, esses conhecimentos ocupam lugares diferentes no conjunto das disciplinas, de acordo com a concepo do que educar hoje e de acordo com os recursos disponveis. Na ltima dcada ampliaram-se os estudos sobre o que acontecia no interior das escolas e sobre o significado dos contedos, carga horria, metodologias das diferentes disciplinas e seus diferentes impactos na educao. Em outros estudos emergiu a questo poltica

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do currculo, vista como o exerccio da dominao coerente com a lgica do mercado do mundo capitalista e a educao como um empreendimento tico, de resistncia e luta (Apple, 2005; Garcia, 2005, p. 13). Consideramos o currculo como um problema de fins e de objetivos da educao. O Brasil que , historicamente, uma sociedade dual, com marcantes diferenas entre as classes trabalhadoras subalternas e as elites dirigentes, organizou seus sistemas de ensino estabelecendo diviso e hierarquia entre as disciplinas e tcnicas que preparam para o trabalho e as que formam segundo a cultura geral das humanidades, da filosofia e das letras. O predomnio da ideologia dos valores de mercado da produo capitalista na educao introduziu uma nova diviso, separando as humanidades das cincias e das tecnologias, hierarquizando as ltimas, ora como alto desenvolvimento cientfico e tecnolgico, ora como necessidade estrita de operao nas empresas de indstria e servios. Essa concepo viesada pelos interesses produtivos conduziu, freqentemente, os professores ao exerccio do pragmatismo, em que educar preparar para o trabalho segundo as necessidades do mercado de trabalho, supondo-se que haveria empregos para todos. O mito da empregabilidade, a promessa emancipadora da sociedade moderna industrial, h mais de uma dcada, esto sendo desmentidos pela introduo de alta tecnologia com base na informtica, na microeletrnica e pela nova organizao do trabalho. Aos professores, tradicionalmente privados de autonomia, saturados de tarefas e oprimidos pelos horrios, destitudos de reconhecimento, de condies de trabalho e de remunerao adequadas ao exerccio da profisso, oferecem-se os limites de um currculo dualista e fragmentado em disciplinas, desenvolvido por meio de uma prtica pedaggica baseada na transmisso de contedos. A estas prescries, veio somar-se, na ltima dcada, a pedagogia das competncias, em contexto bastante autoritrio pelo carter impositivo de sua utilizao (Ramos, 2005, p. 107).

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No vamos nos deter nas matrizes das competncias que trouxeram uma dificuldade adicional compreenso e organizao curricular nas escolas. Destacamos apenas que elas tm por base modelos epistemolgicos, formas de construir a verdade sobre o que e o que deve ser a vida humana e a qualificao para o trabalho. Sua referncia o modo de produo capitalista e de suas ideologias que, em termos de currculo, tem produzido, periodicamente, novas matrizes de organizao do conhecimento: a matriz condutivistabehaviorista, a matriz funcionalista e a matriz construtivista (Ramos, 2001). Com o sentido de resistncia educao adaptativa, a matriz crtico-emancipatria tem seus fundamentos no pensamento crtico e dialtico epretende no s ressignificar a noo de competncia, atribuindolhe um sentido que atenda aos interesses dos trabalhadores, mas apontar princpios orientadores para a investigao dos processos de trabalho, para a organizao do currculo e para uma proposta de educao profissional ampliada (Deluiz, 2001, apud Ramos, 2003, p. 95).

Esta concepo de competncias e de currculo, que est em processo de discusso e disputa na educao brasileira, defende que a organizao curricular deve ter em conta que: a) a realidade uma totalidade em que esto presentes os aspectos econmicos, polticos, histricos, culturais, cientficos, tcnico-operacionais, ambientais; b) o ser humano atua sobre a natureza e sobre a sociedade a que pertence em situao social e no apenas individual; c) nesse processo que ocorre a objetivao de bens, produtos e servios e a subjetivao do prprio produtor; d) a aprendizagem significativa supe que os contedos devem ser contextualizados, e a realidade deve ser pensada criticamente alm do senso comum; e) a simples opo metodolgica no d conta de todas as implicaes histricas e epistemolgicas do conhecimento secularmente acumulado pela humanidade; f) na educao ocorre um processo contnuo de apropriao, objetivao

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e subjetivao dos contedos disciplinares em relao ntima com os mtodos e processos utilizados.3 Em sntese, trata-se de alcanar uma outra qualidade da educao que se inicia pela formao e adeso do professor.3. Perspectiva histrica e desafios contemporneos

A formao profissional no Brasil nasceu primeiro de uma viso moralista do trabalho e assistencialista da educao de rfos e desamparados no incio do sculo 20 com o Decreto n 7.566/1909 do Presidente Nilo Peanha que criou as Escolas de Aprendizes Artfices nos estados da Federao.4 O segundo momento, que marca seu carter de ensino industrial, foi a criao do Senai dirigido pela Confederao Nacional da Indstria, atravs do Decreto-lei n 4.048, de 22 de janeiro de 1942; e a Lei Orgnica do Ensino Industrial, Decreto-lei n 4.073, de 30 de janeiro de 1942 que veio unificar a organizao do ensino profissional em todo o pas, definir suas bases pedaggicas e as normas gerais de funcionamento das escolas (Fonseca, 1986, v. 2., p. 9). Todo este segundo momento foi precedido pelo trabalho de engenheiros ligados s estradas de ferro, a exemplo de Jos Joaquim da Silva Freire, Roberto Mange, talo Bologna que organizaram os trabalhos de formao de artfices para os servios ferrovirios desde 1906 na Estrada de Ferro Central do Brasil e, no decorrer dos anos 1920-1930, em um movimento que se espalhou pelas estradas de ferro de todo o Pas e teve um importante centro de formao em So Paulo com Escola de Aprendizes Artfices da Companhia3

Esta tentativa de caracterizao do que seria uma proposta de educao bsica e profissional ampliada teve por base Ramos, 2003, p. 96. Considerando que o aumento constante da populao das cidades exige que se facilite s classes proletrias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existncia; que para isso se torna necessrio no s habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensvel preparo tcnico e intelectual, como faz-los adquirir hbitos de trabalho profcuo, que os afastar da ociosidade, escola do vcio e do crime (...) (Fonseca, 1986, v. 1, p. 177).

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Paulista de Estradas de Ferro, posteriormente, Centro de Ensino e Seleo Profissional (Fonseca, 1986, v. 2, p. 213-238). Do ponto de vista da formao profissional e tecnolgica, como uma totalidade social, que aqui queremos discutir, alm do reconhecimento do trabalho pioneiro desses engenheiros da indstria, importa reconhecer que essa formao teve sua inspirao e orientao poltico-pedaggica nas necessidades da indstria. Nos anos subseqentes at a atualidade, pela especificidade tcnica dessa formao, pelo carter hegemnico da presena dos industriais (Rodrigues, 1998) e pela ausncia de um projeto educacional que articulasse a cultura da escola com a cultura do trabalho, prevalecem na educao profissional e tecnolgica os objetivos operacionais de preparao para o mercado de trabalho. Os exemplos mais recentes desse processo so a separao entre o ensino mdio e a educao profissional por meio do Decreto n 2.208/97 e sua vinculao pedagogia das competncias apropriada pelo pragmatismo da lgica do mercado, fragmentada em funo das necessidades empresariais, restringindo-se formao para o trabalho simples, ao adestramento ou conformao disciplinar para o trabalho flexvel, a cooperao, a aceitao agradecida do welfare empresarial expresso em cafs-da-manh com as chefias, confidenciamento das prticas do trabalho, subsdios para a educao dos filhos, planos de sade, o distanciamento da organizao sindical, confinamento ideolgico s necessidades e valores do mercado expressos em vestir a camisa da empresa, pertencer famlia da fbrica. A formao do cidado produtivo emancipado Esse quadro legal e institucional, que reduz a educao a uma parte apenas do que deve ser a formao humana, representa um desafio formao dos professores da educao profissional e tecnolgica, habituados por formao e por prtica docente aos valores de mercado. A alternativa legal de reverso desse quadro o Decreto n 5.154/2004, cuja aplicao depende de uma deciso das instituies, por intermdio

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de seus gestores e professores que podem optar por articular o ensino mdio e a educao profissional, tcnica e tecnolgica, em moldes diferentes do que existia tradicionalmente nos Cefets. Nosso objetivo aqui refletir sobre o potencial dessa abertura da lei e sobre o duplo carter da formao, a produtividade e a emancipao.5 A luta da classe trabalhadora e de seus intelectuais, ao longo de dois sculos do capitalismo, foi buscar, sistematicamente, no s desmascarar o falseamento das noes de produtividade e de trabalhador produtivo, mas lograr conquistas importantes em termos de regulamentao do capital e de frear a superexplorao do trabalho. A regulamentao da jornada de trabalho , sem dvida, uma de suas conquistas fundamentais. compreensvel que, no contexto da desregulamentao do capital, na nova (des)ordem mundial sob a gide da ideologia neoliberal, a vulgata da produtividade, das competncias, volte com grande peso. Cabe um sistemtico embate para explicitar o significado deste novo senso comum. No sentido absoluto de produo de bens, valores de uso ou de servios, tanto no plano material como imaterial, toda atividade humana produz algo e, neste sentido, produtiva. Vemos, tambm que, variando os meios utilizados, a tecnologia, etc. e qualquer atividade podem ter maior ou menor produtividade. A maior produtividade decorre de obter, em um menor ou igual tempo e espao de trabalho, mais produtos e de melhor qualidade. Improdutivo, seria, ento, aquele que vive do cio e no faz coisa alguma. Ou que, em relao aos produtivos, produz menos. Mas, no contexto da superexplorao do trabalho (jornada extensa, baixos salrios etc.), a produtividade se define por padres sempre mais exigentes de aumento quantitativo da produo com menos custos, o que resulta em uma margem sempre maior do valor da produo apropriado pelo dono do capital. No senso comum e dentro da vulgata5

Para uma exposio aprofundada do tema, ver Frigotto e Ciavatta, 2006.

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neoliberal, hoje, trabalho e trabalhador produtivos esto profundamente permeados pela idia de que aquele que faz, produz mais rapidamente, aquele que tem qualidade ou que mais competente. Nesse contexto, o que significa formar um cidado produtivo emancipado? Entendemos que a educao deve ser, obrigatoriamente, emancipatria. Um currculo crticoemancipatrio deve proporcionar aos jovens estudantes uma leitura ampliada do mundo e uma preparao intelectual e profissional para atuar e obter meios de vida, mesmo em um mundo onde cresce o desemprego, a desregulamentao das relaes de trabalho, o empobrecimento generalizado de grandes massas da populao. O sentido etimolgico do termo latino emancipare tem o mesmo sentido em portugus. No h ambigidade em seu sentido estrito: emancipar tornar livre, libertar ou libertar-se, tornar ou tornar-se independente, dar liberdade ou libertar-se do jugo, da escravido, da tutela de outro ou do ptrio poder. A ambigidade est no sentido poltico ou histrico em que a libertao ocorre, nas condies da liberdade a que tem direito. Um exemplo recorrente a libertao dos escravos no Brasil que foi jurdica, nos termos da lei e, na prtica, historicamente, foi o abandono dos escravos sua prpria condio, no geral, de iletrados e desprovidos dos recursos materiais e de cultura poltica e educacional para assumir a prpria liberdade. A evidncia histrica que eles, dificilmente, foram sujeitos protagonistas de sua liberdade e, sim, foram sujeitados a novas opresses. A emancipao, nesse sentido, supe que o ser humano seja sujeito artfice de seu prprio agir. A educadora Graziela Frigerio (2006), falando a professores sobre as adversidades educacionais deixadas pelas polticas neoliberais em seu pas, refere-se emancipao e ao conhecimento no sentido de que Emancipar-se tambm implica um modo de conhecer. Conhecer com outros. Construir um mundo onde seja possvel pensar como sujeitos, resistir s polticas de excluso. Tornar-se um cidado de direitos e lutar por eles.

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No pensamento marxiano, o conceito de cidadania tem uma complexidade maior e est ligado ao coletivo ao qual o homem pertence: Somente quando o homem individual real recupera em si o cidado abstrato e se converte, como homem individual, em ser genrico, em seu trabalho individual e em suas relaes individuais; somente quando o homem tem reconhecido e organizado suas prprias foras como foras sociais e quando, portanto, j no separa de si a fora social sob a forma de fora poltica, somente ento se processa a emancipao humana (Marx, 1991, p. 52, grifos do autor). A integrao possvel entre o ensino mdio e a educao profissional O ponto de vista terico-metodolgico dos processos educacionais, a rea trabalho e educao tem como eixo terico norteador a crtica economia poltica que conduz a uma viso histrica da relao entre o mundo do trabalho e os fenmenos educacionais, buscando-se compreender e reconstruir no nvel do discurso as diferentes mediaes sociais constitutivas dessa relao. Tanto o trabalho quanto a educao ocorrem em uma dupla perspectiva. O trabalho tem um sentido ontolgico, de atividade criativa e fundamental da vida humana; e tem formas histricas, socialmente produzidas, particularmente, no espao das relaes capitalistas (Lukcs, 1978). A educao tem seu sentido fundamental como formao humana e humanizadora, com base em valores e em prticas tica e culturalmente elevados; e tambm ocorre em formas pragmticas a servio de interesses e valores do mercado, da produo capitalista, nem sempre convergentes com o seu sentido fundamental (Frigotto, Ciavatta, 2001). No contexto da discusso e da implementao do ensino mdio e da educao profissional no Brasil, essa distino do trabalho como princpio educativo fundamental para tentar superar o dualismo, tanto nas relaes docentes como na organizao curricular e nas relaes com as empresas. com esta perspectiva terica que apresentaremos a experincia de formao integrada, no como objeto de cpia, mas de reflexo.

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Antes de iniciarmos o relato da experincia, que observamos na Regio Emilia-Romagna, na Itlia, no incio do ano que findou, cabe situar alguns aspectos dos estudos comparados6 para que ela no se apresente como mais um modelo a ser seguido, mas como um elemento de reflexo para atuar sobre nossa realidade. O primeiro deles a questo conceitual e metodolgica dos trabalhos comparativos em que comparar no copiar. Os estudos comparados em educao no Brasil e na Amrica Latina tm uma tradio de grandes surveys quantitativos, buscando a comparao pelo destaque s descries quantitativas permitidas pela homogeneizao operada nos dados estatsticos. Esse tratamento til para se avaliar a qualidade, o significado da quantidade, mas no responde, tendo em vista o contexto, nem d as razes do comportamento dos fenmenos. Em trabalho anterior sobre estudos comparados, chamamos a ateno para o significado da comparao nos processos de conhecimento dos indivduos e das sociedades:Fazer analogias, comparar so processos inerentes conscincia e vida humana. Da mesma forma, procurar conhecer as diferentes solues que outros pases e outros povos do aos seus problemas, s suas instituies, como na caso da educao, sempre foi um meio de desenvolvimento e de enriquecimento. Mas, para fazer comparaes, alm da dificuldade de entender as diferentes lnguas e seus complexos significados, h o problema do conhecimento e da interpretao de sua histria e de sua cultura. No mundo atual, pelos recursos dos meios de comunicao e pelos problemas postos, primeiro, pela internacionalizao e, depois, pela globalizao da economia, pelas relaes desiguais entre os pases, pelo aumento da pobreza e a necessidade de imigrar, de encontrar trabalho e meios de vida em alguma parte, a questo do outro e das relaes interculturais passam a ter um lugar central nas cincias sociais, nos projetos de solidariedade e cooperao. Sob

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Parte desta seo consta de Ciavatta, 2006.

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estas relaes esto sempre as situaes de analogia e de comparao (Ciavatta, 2000, p. 198).

O segundo aspecto a destacar so as diferenas scio-econmicas e educacionais entre o Brasil e a Itlia. Diferente do Brasil, apesar das dificuldades que o pas atravessa hoje, a Itlia um pas do centro hegemnico do capital, com uma tradio secular nas humanidades, cincias e tecnologias. No campo educacional, um pas que universalizou a educao fundamental e mdia pblica, gratuita e de qualidade, obrigatria para toda a populao. A obrigatoriedade escolar vai at os 18 anos, trmino do ensino mdio. Para se integrar na Unio Europia como sociedade do conhecimento, necessrio melhorar a qualidade da educao, torn-la mais viva e motivadora para os jovens de hoje, reduzindo e prevenindo o abandono escolar. Um problema adicional so os jovens imigrantes que tm direito escolaridade regular, mas tm lacunas na lngua, na cultura local e, muitas vezes, necessidade de trabalhar. Um terceiro elemento nessa comparao a relao cultura escolar versus cultura do trabalho. O movimento da formao integrada tem o argumento de que a escola mdia italiana os liceus uma escola abstrata, literria, com nfase nas humanidades, alheia prtica e s exigncias do mundo do trabalho. Neste caso, possvel dizer que perseguimos o caminho quase inverso, isto , fazer a educao profissional ser permeada da cultura geral, dos fundamentos cientfico-tecnolgicos e histrico-sociais presentes no ensino mdio que prepara para o ensino superior. Na verdade, no estamos alheios necessidade da incluso da prtica na cultura geral que fundamenta o ensino mdio, mas a lacuna maior de nossa educao e a carncia de educao bsica (fundamental e mdia) para todos os jovens e a sociedade dual que se reproduz tambm na dualidade, formao geral/formao para o trabalho nos sistemas de ensino. Conhecer para saber fazer No apenas conhecer por conhecer, ou fazer por fazer, a palavra de ordem dessa experincia

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que inicia o seu quarto ano de existncia, tendo sido um dedicado preparao (2003) e trs dedicados implantao do projeto e avaliao dos resultados (2004/2005 e 2005/2006, sendo o ltimo em processo, 2006/2007). Na Conferncia de Abertura de um seminrio de apresentao da avaliao dos percursos integrados no perodo 2005/20067, a secretria de Educao de Regio EmiliaRomagna, na poca, Dra. Maringela Bastico, falou sobre A inovao dos processos de aprendizagem e dos sistemas de educao e de formao profissional como idia e prtica de uma reforma a partir de baixo. Diferente de reformas anteriores, realizadas a partir de uma lei, do poder central, esta reforma buscou envolver as escolas e os professores interessados na alternativa da formao integrada. O projeto visa formao dos jovens como pessoas e ao desenvolvimento do gosto pelo ato de aprender, para aumentar a escolarizao e prevenir o abandono escolar. Responsvel principal por essa iniciativa, enfatizou a transformao dos procedimentos didticos e metodolgicos no sentido da integrao entr