formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

22
Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 1 Reinventando a raça: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada Flávio Thales Ribeiro Francisco 1 Resumo A minha pesquisa analisa o modo como notícias e imagens de experiências negras dos Estados Unidos e da África foram utilizadas no jornal O Clarim da Alvorada (1924- 1932) para criação de um projeto de ascensão social para a população negra de São Paulo. Este periódico, que tinha grande notoriedade entre a imprensa negra paulista, se preocupou em entender o lugar do negro na sociedade brasileira. Nesse sentido, as estratégias políticas de negros norte-americanos e africanos serviam como referência para a organização política dos negros paulistanos. Essas informações chegavam aos jornalistas através de duas publicações da imprensa negra norte-americana, The Negro World e Chicago Defender. A autodeterminação dos negros norte-americanos e a luta pela descolonização das nações africanas eram tomadas como exemplo para a ação dos negros em São Paulo. Por outro lado, as políticas de segregação racial nos Estados Unidos eram reprovadas, o que valorizava o projeto dos jornalistas do O Clarim da Alvorada de luta pela assimilação da população negra à sociedade brasileira. No mês de janeiro de 1924, surgia o jornal O Clarim da Alvorada, criado por Jayme de Aguiar e José Correia Leite. O periódico fez parte do que muitos autores trataram como imprensa negra paulista, um conjunto de jornais editados por jornalistas negros e voltados para os negros da cidade e do Estado de São Paulo 2 . Já no ano de 1915, eles circulavam pelas cidades para trazer aos seus leitores informações relacionadas principalmente aos clubes sociais da população negra. Os jornais 1 Mestrando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] 2 FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH/USP, 1986.

Transcript of formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Page 1: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

1

Reinventando a raça:

formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Flávio Thales Ribeiro Francisco1

Resumo

A minha pesquisa analisa o modo como notícias e imagens de experiências negras dos

Estados Unidos e da África foram utilizadas no jornal O Clarim da Alvorada (1924-

1932) para criação de um projeto de ascensão social para a população negra de São

Paulo. Este periódico, que tinha grande notoriedade entre a imprensa negra paulista, se

preocupou em entender o lugar do negro na sociedade brasileira. Nesse sentido, as

estratégias políticas de negros norte-americanos e africanos serviam como referência

para a organização política dos negros paulistanos. Essas informações chegavam aos

jornalistas através de duas publicações da imprensa negra norte-americana, The Negro

World e Chicago Defender. A autodeterminação dos negros norte-americanos e a luta

pela descolonização das nações africanas eram tomadas como exemplo para a ação dos

negros em São Paulo. Por outro lado, as políticas de segregação racial nos Estados

Unidos eram reprovadas, o que valorizava o projeto dos jornalistas do O Clarim da

Alvorada de luta pela assimilação da população negra à sociedade brasileira.

No mês de janeiro de 1924, surgia o jornal O Clarim da Alvorada, criado por

Jayme de Aguiar e José Correia Leite. O periódico fez parte do que muitos autores

trataram como imprensa negra paulista, um conjunto de jornais editados por jornalistas

negros e voltados para os negros da cidade e do Estado de São Paulo2. Já no ano de

1915, eles circulavam pelas cidades para trazer aos seus leitores informações

relacionadas principalmente aos clubes sociais da população negra. Os jornais

1 Mestrando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

2 FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH/USP, 1986.

Page 2: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

2

estampavam imagens dos sócios mais ilustres destas instituições e publicavam notas de

solenidades e outras atividades recreativas.

Apesar da condição de pobreza de grande parte dos negros que viviam na cidade

de São Paulo, a publicação de artigos tratando da penúria destes e do preconceito de cor

não eram freqüentes. Contudo, os jornalistas não deixavam de chamar a atenção para a

necessidade do negro se educar e andar bem trajado para que pudesse ser visto com

bons olhos pelos outros. Os historiadores e pesquisadores de outras áreas trataram essas

edições como uma primeira etapa da imprensa negra paulista, uma espécie de ensaio

para periódicos com abordagens deliberadamente política que viriam pela frente.

Nesse sentido, O Clarim da Alvorada inaugura uma nova fase dessa imprensa

que, se sempre teve uma carência de recursos financeiros, pelo menos naquele momento

passou a contar com jornais estáveis e com uma tiragem maior do que a das publicações

da fase anterior. Ao invés de se restringir ao universo dos clubes sociais dos negros da

cidade, o Clarim procurou trazer notícias e opiniões de negros intelectualizados que

problematizavam o papel do negro na sociedade brasileira.

No primeiro número do jornal, os editores deixam claros os objetivos do

periódico e as questões que envolveriam as notícias e os artigos publicados em suas

páginas. Moyses Cintra, por exemplo, fala da cidade de São Paulo como a terra de

progresso, indústria e comércio, lugar onde o negro, para se inserir socialmente, deveria

imitar os seus patrícios. A mensagem do autor não se restringia a uma receita para que

os negros pudessem buscar as suas estratégias individuais, era necessário que todos

tivessem unidos em torno de uma causa comum: o progresso intelectual e moral. Nesta

mesma edição, José Correia Leite volta a fazer referência à união dos negros paulistas

que vivem em um ambiente marcado pela miséria e pelos vícios, em completa

desorganização3.

As opiniões publicadas nas páginas do O Clarim da Alvorada são na maioria das

vezes relacionadas ao papel da população negra na construção da nação brasileira. O 3 O Clarim (São Paulo, 6 de janeiro de 1924).

Page 3: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

3

argumento dos jornalistas e colaboradores que escrevem para o jornal é o de que, apesar

da abolição da escravatura, o negro não se integrou à sociedade brasileira de maneira

satisfatória. Mesmo com a liberdade em mãos, ele não soube se preparar para uma nova

fase que exigia, sobretudo, uma mudança nos seus valores morais, voltados para a ética

do trabalho no universo capitalista.

Assim não deixa de ser comum a idéia de que a população negra do período pós-

abolição vivia em condições semelhantes ou piores do que as da escravidão. Alguns dos

textos publicados no periódico sugerem que a geração de jovens negros da década de

1920 coloca em risco todo o legado das gerações anteriores. Tanto os escravos como os

abolicionistas negros são considerados como heróis e representantes de um patriotismo

negro que perde o seu significado a medida que a mocidade preta de São Paulo

mergulha em vícios como a bebedeira e a vadiagem.

Os jornalistas do O Clarim da Alvorada e os ativistas do movimento negro que

se formara na década de 20 se apresentaram como uma liderança para elevar o moral

dos negros da cidade de São Paulo. Esse grupo se organizou a partir da criação do

Centro Cívico Palmares no ano de 1926, espaço onde se reuniam e discutiam a questão

racial. No periódico, José Correia Leite e Jayme de Aguiar defendiam uma disciplina

rígida para o comportamento dos negros, que deveriam usar a educação formal como

um meio de assimilar os valores vigentes da elite paulistana. A instrução, nesse sentido,

era o elemento primordial para a ascensão social dos negros da cidade de São Paulo.

O processo de integração dos negros brasileiros, entretanto, não viria somente

com a aquisição de uma boa educação e a conquista de um bom emprego. Era

necessário também que a população negra brasileira fosse também reconhecida como

parte fundamental da nação brasileira. Aqui é necessário lembrar que as idéias racistas e

evolucionistas ainda condicionavam de maneira profunda o pensamento de intelectuais,

determinando o uso de políticas oficiosas contra as populações negras do país. Nesse

sentido, o trabalho dos militantes negros do período era o de criar uma imagem digna e

modernizada do negro brasileiro, ou uma imagem que fosse completamente dissociada

da natureza degradada da escravidão

Page 4: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

4

Ao fazer a análise da política entre os negros de São Paulo, a historiadora Kim

Butler identificou um projeto comum entre as diferentes posições das lideranças do

movimento negro do período: uma integração social que deveria ser encaminhada

através da união entre os negros. Diferente das estratégias paternalistas de ascensão

individual e da criação de uma nação negra dentro de outra nação, como havia sido o

caso dos norte-americanos, os negros paulistas achavam necessária a criação de

instituições negras que pudessem auxiliá-los na integração material e moral à nação4.

Na edição de junho de 1924, Moyses Cintra fala da educação e da necessidade de uma

sociedade beneficente para negros:

Dentre taes promessas que os senhores leitores tiveram a opportunidade de ler, em nossos números passados, é que sempre temos preoccupado proclamar que necessitamos formar sociedades beneficentes, educativas para que, não vivamos por mais tempo em completo atrazo, como até presentemente.

Tudo isso por causa do nosso desleixo... Portanto, quanto antes devemos pensar que não temos sociedades que tratem dos nossos interesses, que é de crenças uma verdadeira união. Creio que não há entre outras raças de povos civilisados, homens to crentes e divertidos como há em nossa.5

Era através de associações de ajuda mútua e de ações cívicas que valorizavam os

negros mais ilustres da história do Brasil que a população negra mostraria o seu preparo

para tomar parte da uma nação que se formara a partir da união de três raças6. Nesse

sentido, além de tirar aqueles mais pobres das ruas e livrá-los do processo contínuo de

degradação, era necessário que os jornais como o Clarim publicassem a biografia de

figuras que serviriam de exemplos a serem seguido pelos seus leitores. Entre elas as

mais comuns eram as de abolicionistas negros como André Rebouças, Luis Gama e José

do Patrocínio. Além de valorizá-los como negros letrados com circulação em ambientes

freqüentados por políticos ilustres, o jornal os tratava como símbolos da história

nacional.

4 BUTLER, Kim D. Freedoms given freedoms won: afro-brazilians in post-abolition São Paulo and Salvador. New Brunswick/New Jersey/ London: Rutgers University Press, 1998.

5 O Clarim (São Paulo, 22 de junho de 1924).

6 O Clarim (São Paulo, 12 de outubro de 1924).

Page 5: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

5

À medida que os artigos publicados no Clarim discutiam o lugar do negro na

sociedade brasileira, um fenômeno paralelo se manifestava nas páginas do periódico: a

idéia de uma coletividade negra, o discurso de pertença à nação era acompanhado pela

expressão de uma identidade negra paulistana. O clamor pela a união dos negros de São

Paulo se associava a divulgação de eventos políticos e recreativos de clubes sociais

organizados pelos negros paulistanos, o que configurava uma rede de informações que

circulavam entre a comunidade negra da cidade de São Paulo. Além disso, havia uma

variedade de termos utilizados para se referir aos negros brasileiros, paulistas e

paulistanos: irmãos de raça, patrícios, negros, pretos, homens de cor, família negra,

entre outros.

Entre todos eles, chama a atenção o modo como o termo raça é usado em

demasia, não somente em alusão aos negros como também à sociedade brasileira. O uso

da raça nos permite compreender as bases que definiam a identidade dos negros nas

páginas do Clarim. Aqui o termo não se refere a uma identidade política ou cultural

compartilhada pelas vítimas do preconceito de cor, e sim a um grupo racial. Aqueles

que se identificavam como irmãos de cor, acreditavam que, de uma forma ou de outra,

estavam ligados de forma sangüínea a todos os descendentes de africanos e escravos. O

conceito de raça que aparece nos editoriais e artigos do Clarim ainda carrega um sentido

biológico, como era comum naquele período.

Sendo assim, a integração dos negros, pelo menos no modo como aparece nas

páginas do periódico, envolve não somente a questão da cidadania política, mas também

incorporação da raça negra à raça brasileira. Assim como a narrativa das três raças se

apresentara na obra de outros pensadores e intérpretes do Brasil, aqui ela se manifesta

como um estágio inconcluso. Cabe aos negros se organizarem política e

economicamente para tomar parte de um espaço ainda não preenchido. Se o negro

brasileiro ainda não está integrado, a maior parcela da culpa é do próprio por não se

dedicar à educação e ao trabalho.

O Clarim se apresenta como um órgão de divulgação dos valores necessários

para a participação dos negros na sociedade capitalista que havia se estruturado no

Page 6: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

6

Estado de São Paulo. O periódico publica as vozes de lideranças negras que tentam

recuperar um suposto legado abolicionista, um projeto de nacionalização da raça negra

brasileira que se perdeu durante o período da República.

As páginas estão repletas de imagens e homenagens aos abolicionistas. A

princesa Isabel, por exemplo, é considerada como a redentora da raça negra. A

assinatura da Lei Áurea é o resultado da luta dos heróis abolicionistas, uma falange de

patriotas que reconheceu o valor do trabalho dos escravos africanos na construção da

nação brasileira7. No artigo O negro para o negro de julho de 19288, José Correia Leite

revela a sua admiração pelo abolicionista José do Patrocínio, figura emblemática do

abolicionismo brasileiro. Segundo Leite, o abolicionista colocou a causa da raça negra

acima de seus interesses particulares, um exemplo que deveria ser seguido pela sua

geração. Os ideais de Patrocínio, e outros grandes abolicionistas, se expressaram através

de um compromisso com a raça negra que foi quebrado no período pós-abolição, “a

legítima proteção do branco não veio totalmente ao encontro da raça negra do Brasil,

porque depois que o negro deixou de ser a formidável máquina produtora, ficou só,

parado na estrada do progresso”.

Imprensa negra norte-americana em O Clarim da Alvorada

Como é possível observar em algumas páginas do Clarim, a experiência dos

negros norte-americanos e os movimentos anti-coloniais no continente africano foram

fontes de inspiração para a representação do negro moderno no periódico. À medida que

os artigos publicados tratavam mais da questão de raça no Brasil e questionavam uma

suposta harmonia racial na sociedade brasileira, passavam a discutir também a

importância da política racial entre os negros dos Estados Unidos. O exercício de

comparação entre a condição dos negros brasileiros e a dos negros norte-americanos

ampliou o debate para fora dos limites territoriais do Brasil, levando os jornalistas a

tratar da questão do colonialismo europeu na África.

7 O Clarim da alvorada (São Paulo, 13 de maio de 1928)

8 “O negro para o negro”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (01 de junho de 1928).

Page 7: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

7

As principais fontes sobre estes temas foram os jornais publicados pela imprensa

negra norte americana. Os jornalistas do Clarim recebiam exemplares do Chicago

Defender e uma versão traduzida do The Negro World. No ano de 1923, ao participar de

uma série de encontros com ativistas negros em São Paulo e no Rio de Janeiro, Robert

Abbot, editor do jornal afro-americano Chicago Defender, estabeleceu seus primeiros

contatos com jornalistas negros do Brasil. Como resultado deste evento, os brasileiros e

o editor passaram a trocar exemplares de suas publicações.

Já o jornal The Negro World, publicação do ativista negro de origem jamaicana

Marcus Garvey, chegou às mãos dos editores de O Clarim da Alvorada através de

Mario de Vasconcelos, um professor baiano de inglês interessado na ideologia do líder

jamaicano. Ele traduzia as edições do jornal e as enviava para São Paulo. O resultado

disto foi a introdução de uma coluna em 1930 no jornal sob o título de “O Mundo

Negro”.

Ou seja, a partir de 1924, várias informações relacionadas às experiências negras

fora do Brasil foram selecionadas no sentido de ajudar a delinear atitudes, ações,

compromissos e, por sua vez, uma identidade da população negra de São Paulo. Tudo

indica que a grande maioria das notícias publicadas sobre a vida dos negros nos Estados

Unidos e, curiosamente, na África vieram basicamente dos dois jornais afro-americanos

acima mencionados. O Clarim da Alvorada então usou estes periódicos como fontes de

informação, imagens e símbolos para refletir sobre a experiência dos negros de São

Paulo.

Não há dúvida de que a comparação entre os padrões de relações raciais

brasileiro e norte-americano não foi um fenômeno que se manifestou pela primeira vez

nas páginas do Clarim. Nas obras de Joaquim Nabuco e Nina Rodrigues já é possível

perceber a preocupação dos brasileiros em conduzir a integração do negro à sociedade

brasileira de modo a evitar a violência que se deu nesse mesmo processo na sociedade

Page 8: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

8

norte-americana9. Nesse sentido, a Guerra Civil e a Reconstrução norte-americana

apareceram como eventos definidores de uma diferença entre os dois países. O primeiro

evento desmontou a sociedade escravocrata no sul dos Estados Unidos no conflito entre

os estados sulinos e o resto da União. Já a Reconstrução foi marcada pelo processo

violento de integração do negro à sociedade norte-americana10.

Os resultados destes eventos, considerados pelos brasileiros como desastrosos,

ajudaram a delinear a já tradicional narrativa das três raças, presente desde a obra de

Francisco Adolfo Varnhagen, considerada como a primeira história do Brasil. Enquanto

o Brasil se transformara em uma nação com relações harmônicas entre negros e os

brancos, os Estados Unidos encaminhara para o segregacionismo, mantendo a

população negra distante dos recursos materiais e políticos para a reprodução de

riqueza. Mesmo com a presença da escravidão, e com a crença de inferioridade da “raça

negra”, os negros no Brasil ainda viviam em condições melhores do que a dos norte-

americanos.

A questão da diferença entre os dois países apareceu, naturalmente, nas páginas

da imprensa negra paulista. O Clarim não foi a primeira publicação a discutir tal

assunto, jornais publicados anteriormente já traziam uma pequena quantidade de artigos

que comparavam as experiências dos negros da América do Norte e da América do Sul.

Na sua edição de 28 de dezembro, por exemplo, A Liberdade publicou um artigo sobre

o preconceito contra a raça negra. O autor, que não se identifica, comenta sobre a

condição infeliz dos negros pelo mundo. Aqui a simples menção aos negros da nação

norte-americana serve para retratar uma experiência comum aos negros brasileiros e

norte-americanos. Mesmo vivendo em uma nação civilizada, os negros dos Estados

Unidos estão sujeitos às inconveniências do preconceito que afligem os brasileiros11.

9 Ver NABUCO, Joaquim. O abolicionismo: conferências e discursos abolicionistas. São Paulo: Progresso, 1929. Também ver RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004.

10 Para entender a abolição da escravatura nos Estados Unidos e a Reconstrução ver FONER, Eric. Reconstructon: America’s unfinished revolution (1863-1877). New York: Harper & Row, 1988.

11 “Hypocrisia da cor”. A Liberdade. São Paulo (28 de dezembro de 1919).

Page 9: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

9

No artigo mencionado acima o autor reconhece o preconceito de cor na

sociedade brasileira e enxerga semelhanças entre as experiências de negros brasileiros e

norte-americanos. Contudo, na coluna com o título Vagando, publicada na mesma

página, Matuto enfatiza as diferenças entre os conflitos raciais dos dois países. O autor

critica efusivamente os mulatos e negros de pele clara que não reconhecem a sua

identidade racial e procuram se afastar de suas famílias negras. Diferente do outro

artigo, Matuto nega veementemente o preconceito de cor na sociedade brasileira. Este

tipo de conflito é comum nos Estados Unidos onde “a luta é do branco contra o preto”.

No caso do Brasil, a preocupação do negro não deve ser dirigida aos brancos, de fato

eles não são preconceituosos, mas sim ao próprio preto que renega a sua “raça”12.

No Clarim, apesar de o jornal ter sido criado no ano de 1924, a primeira

referência aos negros norte-americanos aparece na edição de julho de 1925. Aqui, como

no artigo Hypocrisia da cor do periódico A Liberdade, a experiência dos negros dos

Estados Unidos é usada de forma a delinear uma narrativa histórica comum a todos os

negros do mundo13. Booker questiona a justificativa religiosa da diferença entre as

raças, que afirma que os negros fazem parte de um povo historicamente amaldiçoado.

Ele retorna aos tempos do Egito clássico para mostrar como na história da humanidade a

raça negra já havia sido soberana e criadora de conhecimento. Os brancos e outras raças

beberam muito dos ensinamentos dos negros, mas continuam a maltratá-los,

principalmente os “brancos selvagens da Norte América” que trucidam os negros de lá.

Este artigo deu início a uma série de outros que trataram do preconceito de cor

no Brasil, nos Estados Unidos e, conseqüentemente, em outras partes do mundo. Na

maioria das vezes, as experiências negras norte-americanas surgiram nas páginas do

jornal como um meio de caracterizar e, até mesmo, de mensurar a natureza harmônica

das relações entre negros e brancos no Brasil. Ao mesmo tempo que os jornalistas e

colaboradores do Clarim exaltavam o caráter pacífico das relações raciais do Brasil,

12 “Vagando”. A Liberdade. São Paulo (28 de dezembro de 1919).

13 “A raça maldita”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (26 de julho de 1925).

Page 10: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

10

criavam um outro ambiente permeado pela violência racial que afligia a sociedade

norte-americana .

Na edição de novembro de 1926, Gervásio de Moraes, um dos principais

colaboradores do jornal, fez uma crítica contundente aos Estados Unidos. O jornalista

condenou o espírito intolerante dos cidadãos norte-americanos, que apesar de

responsáveis por grandiosas obras da modernidade, estão por trás dos espetáculos mais

violentos de conflito racial. “(...) em meio àquele progresso que assombra e àquela

civilização que intimida, desdobra-se o manto negro de ridícula intolerância”14. Moraes

defende que os negros brasileiros estão em vantagem em relação aos negros dos Estados

Unidos, pois não alimentam nenhum tipo de ódio em relação aos brancos.

Até o momento em que os artigos e notícias não contavam com as informações

vindas dos jornais negros norte-americanos, o debate em torno da diferença entre ser

negro nos Estados Unidos e no Brasil se restringiu a oposição entre um ambiente

violento e outro harmônico. Mesmo assim, ainda é possível encontrar alguns artigos

sobre a contribuição importante de inventores negros e a presença do Jazz entre os

bailes dançantes dos clubes recreativos negros da cidade de São Paulo.

Na edição de março de 1926, por exemplo, Booker apresentou aos leitores do

jornal os inventores do “primeiro relógio da América”, do auto-piano e de um aparelho

que registrava chamadas telefônicas. Ele deu destaque a Joseph Hunter Dickinson, que

além de ser inventor do auto-piano e portador de doze patentes, se revelara um

excelente empreendedor com sua grande fábrica de pianos15. Em um outro artigo nas

mesma página, um autor que se identificara como Tuta comenta como o Jazz e sua

estética “futurística” influenciou desastrosamente a juventude negra. Ele manifesta o

seu sentimento nostálgico ao criticar a atual geração que perde o seu tempo com uma

14 “A inquisição moderna”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (14 de novembro de 1926).

15 “Negro!...”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (21/03/1926)

Page 11: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

11

música barulhenta ao invés de valorizar os ritmos musicais que revelam “o lirismo do

verbo amar”16.

O debate em torno da experiência negra nos Estados Unidos ganharia novos

contornos em 1928. A partir desse ano é que é possível perceber a prática jornalística

em torno desse tema. Embora a passagem do editor do Chicago Defender pelo Brasil

tenha acontecido no ano de 1923, o intercâmbio de informações entre o jornal norte-

americano e o Clarim só apresentou seus resultados alguns anos depois. A primeira

referência que se faz ao jornal de Robert Abbot nas páginas do Clarim somente é feita

em 1926 como resposta a artigos publicados no Chicago Defender. Gervásio Moraes

relembra a passagem de Abbot pelo Brasil para fazer uma crítica à falta de sensibilidade

do editor norte-americano à realidade brasileira. Ao que tudo indica, o jornalista

brasileiro teve acesso a esses artigos publicados no Chicago Defender em 1923. Moraes

condena Abbot por não se preocupar em aprofundar o seu conhecimento sobre o Brasil,

já que o jornalista da “América irmã” retornou ao seu país e fez alguns comentários

inapropriados sobre alguns dos costumes dos Brasileiros. Sem especificar quais deles,

Gervásio Moraes acusa Robert Abbot de semear a intolerância racial norte-americana

no seio da sociedade brasileira17.

No que se refere à imprensa negra em geral, a primeira alusão ao Chicago

Defender se dá nos jornais O Kosmos e Getulino, respectivamente em abril e outubro de

192318. Nestas edições os jornalistas comentam a presença de Robert Abbot no Brasil e

seu interesse em conhecer um país onde negros e brancos convivem sem conflitos.

No artigo em que discute a alteridade no contato entre Abbot e os ativistas

brasileiros, o historiador Petrônio Domingues traz informações interessantes sobre o

jornalista norte-americano. Ao que parece, o objetivo de Robert Abbot não era somente

o de estabelecer uma aliança política com as lideranças de um suposto movimento negro

16 “Amor e jazz”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (21/03/1926)

17 “A inquisição moderna”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (14 de novembro de 1926).

18 Ver O Kosmos (São Paulo, 18 de Abril de 1923) e Getulino (Campinas, 21 de outubro de 1923).

Page 12: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

12

no Brasil, mas também o de avaliar o potencial da economia brasileira para investidores

afro-americanos19.

O Chicago Defender, que tinha uma distribuição nacional, era naquele período o

maior e o mais influente jornal afro-americano. Fundado no dia 5 de Maio de 1905 pelo

próprio Robert Abbot, o periódico se tornou um porta-voz importante contra a

segregação racial nos Estados Unidos. Além de denunciar a prática de linchamentos

contra a população negra, o Chicago Defender recomendava aos seus leitores do sul do

país que migrassem para os estados do norte, onde as oportunidades eram muito

maiores e o preconceito racial menos pernicioso20.

De acordo com Domingues, o Brasil se apresentara aos norte-americanos como

uma nova fronteira racial, um lugar onde o caminho para a ascensão social e o sucesso

econômico estava aberto para pessoas de qualquer raça. Nesse sentido, o território

brasileiro surgia como uma alternativa aos Estados Unidos. A tradicional propaganda de

“imigração negra” do sul para o norte do país poderia ser utilizada para divulgar o

paraíso racial brasileiro.

A projeção que o Chicago Defender tinha nos Estados Unidos, com uma tiragem

de 250.000 exemplares21, propiciou a Robert Abbot os recursos necessários para viajar

pela América do Sul e satisfazer o desejo de conhecer o progresso social do negro em

uma cultura latino-européia22. Da mesma maneira que os jornalistas do Clarim

reproduziam a imagem construída pelos brasileiros dos Estados Unidos como um país

19 DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, pp. 161-181.

20 STREITMATTER, Rodger. Voices of Revolution: The Dissident Press in America. New York: Columbia University Press, 2001, 141-158.

21Ibidem.

22 DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, p. 162.

Page 13: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

13

racialmente violento, Abbot foi induzido pelas imagens de um paraíso racial que

habitavam o imaginário de muitos norte-americanos23.

Mesmo sendo barrado em hotéis das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,

Robert Abbot deixou uma boa impressão nos artigos que escreveu sobre a sua viagem à

América do Sul. Domingues supõe que o jornalista norte-americano tenha exagerado

propositadamente para despertar a esperança nos leitores do Chicago Defender que

viviam marginalizados mesmo após a abolição. O que faz o historiador afirmar tal

argumento é o fato de Robert Abbot ter promovido uma campanha para que os negros

norte-americanos se transferissem para o Brasil, país onde encontrariam o éden racial 24.

A mensagem de Abbot foi tão profunda que mobilizou um grupo que chegou a fazer o

pedido de vistos para a entrada no Brasil. Entretanto, como não era de se esperar de um

país de boa convivência racial, eles foram negados. O jornalista denunciou em seu

jornal o consulado brasileiro, contudo os vistos continuaram a ser negados durante toda

a década de 1920.

Ao que tudo indica, não houve um contato direto entre Robert Abbot e os

editores do Clarim. José Correia Leite, em sua autobiografia, faz um comentário acerca

da relação de seu jornal com o Chicago Defender, entretanto não entra nos detalhes

sobre o modo como os editores faziam o intercâmbio de exemplares25. A primeira

referência direta ao Chicago Defender enquanto parceiro foi feita em 1928, ano em que

José Correia Leite passa a dirigir o Clarim sozinho, sem a parceria com o Jayme Aguiar.

Na edição de setembro, o cônego Olympio de Castro, em um artigo especial ao Clarim,

fala do interesse de Robert Abbot numa homenagem à mãe preta 26. Castro reproduziu

23 Para entender a construção da idéia de paraíso racial brasileiro pelos norte-americanos ver SEIGEL, Micol. “Beyond compare: comparative method after the transnational turn”. In: Radical History Review, n. 91, 2005, pp. 62-90.

24 DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, p 180.

25 CUTI (ed). …E disse o velho militante José Correia de oliveira Leite: depoimentos e artigos. São Paulo: Noovha América, 2007, pp. 77-79.

26 “28 de setembro: mãe preta”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (28/09/1928).

Page 14: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

14

um trecho de uma carta enviada pelo próprio jornalista norte-americano que pedia aos

seus colegas mais informações sobre elevação da imagem da mãe preta ao nível de

símbolo de nacional27.

É justamente neste momento em que os contatos entre Robert Abbot e os

jornalistas brasileiros aparecem de maneira concreta nas páginas do Clarim que as

notícias sobre os Estados Unidos e o continente africano se tornaram mais freqüente. Na

edição de outubro, o Clarim traz dois artigos sobre a questão colonial na África. No

primeiro deles, os jornalistas do Clarim celebram o fim da escravidão na colônia

britânica de Serra Leoa. O artigo trata de um encontro da Liga da Nações em Genebra,

em que delegados discutiram um relatório sobre a escravidão no continente africano e a

ação dos ingleses que libertaram cerca de 200 mil escravos no protetorado britânico.

Num outro artigo, o Clarim trata dum encontro de ativistas africanos em Paris que

termina em tumulto. O autor, que não se identifica, destaca o perfil de Lunion, que

descreve como um “terrível agitador africano”, mas também como um culto discípulo

de Lenin. Através da trajetória de Lunion, ele traça um panorama do protesto dos

africanos contra os projetos colonialistas no continente africano28.

Assim como no caso de artigos sobre os Estados Unidos, o continente africano,

antes do intercâmbio com o Chicago Defender, ainda era tratado como um lugar mítico,

ou o lugar de onde vieram os ascendentes da população negra brasileira. Os comentários

tratavam basicamente da África como um lugar muito distante da civilização, onde as

pessoas viviam em cabanas e isoladas. A partir do momento em que o Chicago

Defender passou a ser usado como fonte, a luta dos países africanos contra o domínio

das nações européias passaram a ser o tema mais freqüente quando a África era citada.

Entretanto a fonte mais interessante no que se refere ao continente africano era o

jornal negro norte-americano The Negro World. A publicação serviu como instrumento

27 Na década de 20 e 30 O Clarim da Alvorada, junto com outras lideranças da política negra, promoveu uma campanha para consagração da Mãe Preta, esta representava as mulheres negras que pariram seus filhos escravos e amamentaram os filhos dos senhores de escravos.

28 “Tumultuosa assembléia de negros”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (21/10/1928).

Page 15: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

15

de divulgação da organização pan-africanista de Marcus Garvey e foi o mais popular

dos periódicos negros entre as décadas de 20 e 30 do século vinte29. Garvey, um ativista

negro de origem jamaicana, se tornou conhecido pelo seu discurso de retorno à África.

De acordo com ele, na impossibilidade de se conquistar a cidadania nos Estados Unidos,

os negros norte-americanos deveriam regressar à terra de seus ancestrais. A perspectiva

pan-africanista de Marcus Garvey fez o The Negro World chegar ao Brasil, à Cuba, à

África do Sul e outras localidades habitadas pelas populações negras30.

Assim, o modo como a África foi construída nas páginas do Clarim já vem, de

certa forma, filtrada pelos olhares dos jornalistas negros norte-americanos. Esta África

não era um continente retratado pelos seus próprios habitantes, coube aos brasileiros

trabalhar sobre uma África “americanizada”31. Nesse sentido, não é estranho que a

Libéria, que durante os anos entre 1820 e 1947 foi tratada como uma espécie de

“refúgio para os ex-escravos dos Estados Unidos”, tenha ganhado destaque entre os

jornais negros norte-americanos e, conseqüentemente, no Clarim.

Ao que tudo indica o jornal brasileiro não fez a mera reprodução dos discursos

políticos dos jornais norte-americanos. A idéia de retorno à África, por exemplo, era

extremamente impopular entre as lideranças políticas da cidade de São Paulo. Contudo,

tanto o empreendedorismo de Robert Abbot quanto o de Marcus Garvey eram exemplos

positivos de organização política que, segundo os jornalistas do Clarim, faltava aos

negros da nação brasileira. Os jornais afro-americanos eram uma referência importante

de solidariedade racial e, mesmo que fossem concebidos em um contexto de violência e

segregação, serviam de recurso para se refletir sobre o processo de integração dos

negros à sociedade brasileira.

29Sobre o Pan-africanismo ver APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; DECRAENE, Philipe. Pan-africanismo. São Paulo: Difel, 1962.

30Sobre a imprensa negra nos Estados Unidos, ver PRIDE, Armistead S. & WILSON II, Clint C. A history of the black press. Washington: Howard University Press, 1997.

31Para um trabalho sobre um periódico construído completamente através da seleção e condensação de artigos, ver JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. Bragança Paulista: EDUSF, 2000.

Page 16: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

16

No período entres os anos de 1924 e 1932, o Clarim utilizou as experiências

estrangeiras de organização política de populações negras como um exemplo a ser

adotado e adaptado – ou mesmo rejeitado - para a coesão da população negra brasileira,

especificamente a população negra da cidade de São Paulo. José Correia Leite em uma

entrevista cedida no ano de 1983 afirmou:

No passado nós fizemos muitos esforços para entrar em contato com o negro norte-americano, porque sabíamos que eles estavam em posição de nos ajudarem, não só com seus exemplos, mas também com aquele calor racial de que a gente tinha conhecimento32.

Por outro lado, os conflitos raciais ocasionados por políticas de segregação

foram utilizadas nas páginas do jornal como um exemplo negativo para reforçar a

importância da organização da população negra em torno de um projeto de inclusão à

sociedade brasileira. Apesar da admiração pela luta dos negros dos Estados Unidos, o

ambiente extremamente conflituoso das relações entre brancos e negros no país era

muito mal visto pelos jornalistas negros do jornal brasileiro. Nas edições de novembro e

dezembro de 1928, o Clarim traz um artigo interessante sobre a história e a estrutura

organizacional da Klu-Klux-Klan, apresentada no jornal como “uma poderosa e cruel

sociedade que atua contra os negros da América do Norte”33. Este e outros artigos sobre

linchamentos de negros nos Estados Unidos são utilizados como contra-exemplos que

servem para se fazer uma reflexão sobre os cuidados que devem ser tomados para que a

política dos negros brasileiros não se transforme em um racismo às avessas.

Esse processo de incorporação de experiências negras estrangeiras à reflexão

sobre o “lugar do negro” na sociedade brasileira foi um jogo que envolveu momentos de

alteridade e de identidade. Se, por um lado, “os negros da América do Norte” eram

considerados como portadores de um ódio ao branco e vítimas de uma política

extremamente violenta, por outro eram negros, ou irmãos de “raça”, que se

solidarizavam e criavam instituições de excelência para a ascensão da população negra.

32Cuti (ed)...E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovha América: 2007, p. 207.

33 “Klu-Klux-Klan”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (Novembro de 1928).

Page 17: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

17

Na edição de dezembro de 1930, José Correia cita os negros norte-americanos como

exemplo de perseverança:

Os americanos instruíram os negros, fizeram-lhe a educação, tornaram-se fortes, energicos, resistentes, trabalhadores prosperos. E a prova é que o negro dos Estados Unidos levanta a cabeça, tem audacia e desassombro, ao passo que o nosso negro bebe cachaça e morre... Nós com nosso sentimentalismo teríamos matado os dez milhões de negros que existem na América do Norte.34

Os brasileiros, de acordo Leite, estão longe de alcançar o nível de civilização

dos negros norte-americanos. Levando em consideração que o jornalista do Clarim é o

que mais enfatiza a necessidade de união entre os “homens da raça negra”, é possível

interpretar que existe uma série de valores necessários para participar de uma sociedade

moderna. Os negros norte-americanos, como faziam parte de uma república

desenvolvida, adquiriram tais valores. Já os negros brasileiros ainda não haviam tomado

a “consciência” de que a educação e o trabalho eram prioritários para a elevação social.

Nesse sentido a experiência negra norte-americana, apesar dos seus graves

problemas, apresentava modelos muito interessantes para serem seguidos pelos negros

brasileiros. Como a proposta apresentada no Clarim era relacionada a uma concepção de

negro moderno, o caso dos negros dos Estados Unidos servia como uma referência

importante. Os exemplos não eram somente políticos, mas também estéticos, no sentido

de oferecer uma imagem modernizada, distante daquela relacionada à escravidão.

Como resultado disso, aqueles heróis abolicionistas foram enquadrados em uma

narrativa maior, de uma identidade negra diaspórica que colocava lado a lado José do

Patrocínio e Frederick Douglass, ou Booker T. Washington e Luis Gama. Ou seja, junto

com a narrativa nacional se elaborava uma transnacional que reforçava o caráter

moderno do negro de São Paulo. A partir das páginas do Clarim se percebe que o

diálogo da população negra com a de outros países, sobretudo os Estados Unidos, surgiu

no início do século XX. 34 “Ensaios para a formação de uma grande cruzada de apostolização que a mocidade negra deve precisar – devemos formar nossa gente única, e deixarmos definitivamente as pequenas intrigas e os despeitos”. O Clarim da Alvorada. São Paulo (07/12/1930).

Page 18: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

18

A publicação do Clarim foi abreviada em 1933, após um longo conflito com a

Frente Negra Brasileira, eminente organização negra que se transformaria em um

partido político35. José Correia Leite e mais o grupo que comandava a jornal

questionavam a centralização da Frente Negra Brasileira nas mãos dos irmãos Arlindo e

Isaltino Veiga. Para revidar a contestação por parte dos jornalistas, a milícia da

organização invadiu a redação e destruiu todo o equipamento de impressão do jornal,

dando um ponto final à história de O Clarim do Alvorada de maneira violenta.

Fontes:

“Imprensa Negra” – IEB/USP

A Liberdade (1918)

O Clarim da Alvorada (1924)

O Getulino (1923)

O Kosmos (1922)

Bibliografia:

ANDREWS, George Reid. Blacks and Whites in São Paulo, 1888-1988. Madison: University of Wisconsin Press, 1991.

______. Afro-Latin America, 1800-2000. Nova York: Oxford University Press, 2004.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

ARAÚJO, José Renato de Campos. Imigração e futebol: o caso Palestra Itália. São Paulo: Editora Sumaré/FAPESP, 2000.

35Para conflitos entre lideranças do movimento negro, ver André Côrtes Oliveira, Quem é a “gente negra nacional”?: Frente Negra Brasileira e a Voz da Raça (1933-1937). Campinas, 2006. Tese (Mestrado): Departamento de História do IFCH-Unicamp. (Mimeogr.)

Page 19: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

19

AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2005.

BAGGIO, Katia. A outra América : a América Latina na visão dos intelectuais Brasileiros das primeiras décadas republicanas. 1998. Tese (Doutorado) – Departamento de História da FFLCH/USP. (Mimeogr.)

BASTIDE, Roger. Brancos e negros em São Paulo : ensaio sociológico sobre aspectos da formação e manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo: Nacional, 1959.

__________. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

BEDERMAN, Gail. Manliness & Civilization: a cultural history of gender and race in the United States, 1880-1917. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.

BEIRED, J. L. B.. Sob o signo da Nova Ordem: intelectuais autoritários no Brasil e na Argentina. São Paulo: Loyola, 1999.

BRITTO, Iêda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900- 1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo: FFLCH, 1986.

BUTLER, Kim D. Freedoms given, freedoms won: Afro-Brazilian in post- abolition, São Paulo and Salvador. New Brunswick: Rutgers University Press, 1998.

CAPELATO, Maria Helena & PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino. Imprensa e ideologia: o jornal “O Estado de São Paulo”. São Paulo: Alfa Omega, 1980.

___________. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

CARDOSO, Fernando Henrique. Cor e mobilidade social em Florianópolis : aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do brasil. São Paulo: Nacional, 1960

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J. Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Page 20: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

20

CUTI (ed). …E disse o velho militante José Correia de oliveira Leite: depoimentos e artigos. São Paulo: Noovha América, 2007.

DAVIDSON, Basil. Africa in history. Nova York: Touchstone, 1995.

DAVILA, Jerry. Diploma de brancura. São Paulo: Unesp, 2006.

DEAN, Warren. A industrialização em São Paulo: 1880 – 1945. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

DECRAENE, Philipe. Pan-africanismo. São Paulo: Difel, 1962.

DOMINGUES, Petrônio. “A visita de um afro-americano ao paraíso racial”. In: Revista de História. São Paulo, n. 156, 2007, pp. 161-181.

FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). São Paulo: Difel, 1983.

FAUSTO, Boris; TRUZZI, Oswaldo; GRÜN, Roberto; SAKURAI, Célia. Imigração e política em São Paulo. São Paulo: Editora Sumaré/Editora da UFSCar, 1995.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo: FFLCH, 1964.

FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH, 1986.

FONER, Eric. Reconstructon: America’s unfinished revolution (1863-1877). New York: Harper & Row, 1988.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raça e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34, 2001.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Grupo Summus - Selo Negro Editora, 2005.

Page 21: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

21

IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil Meriodional. São Paulo: Editora Hucitec, 1985

JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. Bragança Paulista: EDUSF, 2000.

MELLO, Marina Pereira de Almeida. Não somos africanos...somos brasileiros... : povo

negro, imigrantismo e identidade paulistana nos discursos da imprensa negra e da imprensa dos imigrantes (1900-1924) - dissensões e interações. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado) – Departamento de Antropologia da FFLCH/USP. (Mimeogr.)

SEIGEL, Micol. “Beyond compare: comparative method after the transnational turn”. In: Radical History Review, n. 91, 2005, pp. 62-90.

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo: conferências e discursos abolicionistas. São Paulo: Progresso, 1929.

OLIVEIRA, André Côrtes. Quem é a “gente negra nacional”?: Frente Negra Brasileira e a Voz da Raça (1933-1937). São Paulo, 2006. Tese (Mestrado) Departamento de História da IFCH/UNICAMP. (Mimeogr.)

PINTO, Maria Inez Borges. 1998. Cultura de massas e papéis femininos na construção de ícones da modernidade : na paulicéia dos anos 20. In: Revista de História São Paulo. São Paulo, FFLCH/USP. p. 63 – 73.

PINTO, Regina Pahim. Movimento negro em São Paulo : luta e identidade. São Paulo, 1993. Tese (Doutorado) – Departamento de Antropologia da FFLCH-USP. (Mimeogr.)

PRADO, Maria Lígia Coelho. A democracia ilustrada: o Partido Democrático de São Paulo, 1926-1934. São Paulo: Editora Ática, 1986.

PRIDE, Armistead S. & WILSON II, Clint C. A history of the black press. Washington: Howard University Press, 1997.

RHODES, Jane. Mary Ann Shadd Cary: the black press and protest in the nineteenth century. Indianápolis: Indiana University Press, 1998.

Page 22: formulações identitárias nas páginas de O Clarim da Alvorada

Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008

ISBN - 978-85-61621-01-8

22

RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano. São Paulo: Annablume, 1998.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas : polemicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: USP/Iluminuras, 1995.

SINGH, Nikhil Pal. Black is a country: race and unfinished struggle for democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2004

STREITMATTER, Rodger. Voices of Revolution: The Dissident Press in America. New York: Columbia University Press, 2001.

VINCENT, Theodore G. (ed). Voices of black nation: political journalism in the Harlem Renaissance. New Jersey: African World Press, 1973.