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Congresso Internacional Co-Educação de Gerações SESC São Paulo | outubro 2003 Relações entre gerações e processos educativos: transmissões e transformações Jean-Claude Forquin O objeto da presente comunicação, que eu escolhi com o cuidado de manter uma coerência com a temática de conjunto deste congresso, para o qual tive a honra de ser convidado pelos responsáveis do SESC, é desenvolver uma reflexão sobre a questão das relações entre gerações e das transmissões educativas nas sociedades contemporâneas. Educação e gerações: eis, com toda certeza, duas idéias bastante diferentes entre si, porém que interferem constantemente uma com a outra. Com efeito, de um lado, é possível dizer que a educação, sendo ela concebida quer como projeto, quer como processo, está necessariamente vinculada à realidade da sucessão e da renovação das gerações, e ainda à questão das relações que gerações diferentes podem cultivar entre si. E, de outro lado, é evidente que as transições entre gerações pressupõem ou suscitam processos específicos de transmissão, socialização, formação, ensino e aprendizagem. Portanto, uma das questões essenciais que iremos abordar aqui é a de saber de que maneira, e em que medida, nas sociedades contemporâneas, as transmissões educativas podem ser afetadas, influenciadas e transformadas pela evolução que, conforme podemos constatar, vem alterando as relações entre as gerações. As «transições entre gerações» constituem, com toda evidência, uma espécie de lei universal do mundo vivo: o fato de que as espécies vivas perduram e se reproduzem às custas de uma renovação permanente dos indivíduos, e que essa renovação é submetida ao ciclo perpétuo da vida e da morte. Uma tal lei de conservação coletiva e de corruptibilidade individual vale evidentemente também para o reino humano. Porém, uma vez que estamos dentro da ordem da cultura (ordem das instituições, das obras e dos signos) e não mais apenas na ordem da natureza, as transmissões biológicas deixam de ser suficientes e pedem para ser complementadas, auxiliadas ou substituídas por outras formas de transmissão, as quais são as transmissões educativas. Com efeito, na sua acepção mais fundamental e mais universal do termo, é mesmo o termo de educação que convém para designar a responsabilidade essencial e a tarefa primordial que pesam sobre toda geração humana de ter de se inscrever dentro de uma duração maior do que a sua própria, de ter de garantir a ligação, a passagem, a transição entre os seus predecessores cujo rastro se perde muito depressa na noite dos tempos, e seus sucessores, entre os quais apenas os mais próximos na ordem da filiação (filhos, netos) podem compartilhar com ela, como se ela fosse um fio muito tênue de luz pré-figurativa no limiar de um futuro incognoscível, um curto segmento de vida comum. Mas, o que se deve entender exatamente por «transmissões educativas»? Em que sentido, em que medida se pode assimilar os processos educativos a processos de transmissão? De que forma uma transmissão pode ter valor educativo? O que é verdadeiramente transmitido ou transmissível por meio dos processos e das práticas de educação? E ainda, sobretudo, será mesmo que pode existir, na relação educativa, e principalmente quando se pensa a

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Congresso Internacional Co-Educação de Gerações SESC São Paulo | outubro 2003

Relações entre gerações e processos educativos: transmissões e transformações

Jean-Claude Forquin

O objeto da presente comunicação, que eu escolhi com o cuidado de manter uma coerência com a temática de conjunto deste congresso, para o qual tive a honra de ser convidado pelos responsáveis do SESC, é desenvolver uma reflexão sobre a questão das relações entre gerações e das transmissões educativas nas sociedades contemporâneas. Educação e gerações: eis, com toda certeza, duas idéias bastante diferentes entre si, porém que interferem constantemente uma com a outra. Com efeito, de um lado, é possível dizer que a educação, sendo ela concebida quer como projeto, quer como processo, está necessariamente vinculada à realidade da sucessão e da renovação das gerações, e ainda à questão das relações que gerações diferentes podem cultivar entre si. E, de outro lado, é evidente que as transições entre gerações pressupõem ou suscitam processos específicos de transmissão, socialização, formação, ensino e aprendizagem.

Portanto, uma das questões essenciais que iremos abordar aqui é a de saber de que maneira, e em que medida, nas sociedades contemporâneas, as transmissões educativas podem ser afetadas, influenciadas e transformadas pela evolução que, conforme podemos constatar, vem alterando as relações entre as gerações. As «transições entre gerações» constituem, com toda evidência, uma espécie de lei universal do mundo vivo: o fato de que as espécies vivas perduram e se reproduzem às custas de uma renovação permanente dos indivíduos, e que essa renovação é submetida ao ciclo perpétuo da vida e da morte. Uma tal lei de conservação coletiva e de corruptibilidade individual vale evidentemente também para o reino humano. Porém, uma vez que estamos dentro da ordem da cultura (ordem das instituições, das obras e dos signos) e não mais apenas na ordem da natureza, as transmissões biológicas deixam de ser suficientes e pedem para ser complementadas, auxiliadas ou substituídas por outras formas de transmissão, as quais são as transmissões educativas.

Com efeito, na sua acepção mais fundamental e mais universal do termo, é mesmo o termo de educação que convém para designar a responsabilidade essencial e a tarefa primordial que pesam sobre toda geração humana de ter de se inscrever dentro de uma duração maior do que a sua própria, de ter de garantir a ligação, a passagem, a transição entre os seus predecessores cujo rastro se perde muito depressa na noite dos tempos, e seus sucessores, entre os quais apenas os mais próximos na ordem da filiação (filhos, netos) podem compartilhar com ela, como se ela fosse um fio muito tênue de luz pré-figurativa no limiar de um futuro incognoscível, um curto segmento de vida comum.

Mas, o que se deve entender exatamente por «transmissões educativas»? Em que sentido, em que medida se pode assimilar os processos educativos a processos de transmissão? De que forma uma transmissão pode ter valor educativo? O que é verdadeiramente transmitido ou transmissível por meio dos processos e das práticas de educação? E ainda, sobretudo, será mesmo que pode existir, na relação educativa, e principalmente quando se pensa a

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relação educativa em termos de gerações, de transição ou de relação entre gerações, uma transmissão pura, uma transmissão que se contenta em conservar e em reproduzir, uma transmissão que não seja também transformação?

No campo da teoria da informação, diz-se que toda transmissão transforma e deforma a mensagem. Nos campos da sociologia e da história, fala-se na memória coletiva como sendo uma reconstrução permanente, uma re-apropriação, uma re-interpretação. Contudo, a relação entre transmissão e transformação pode ser entendida também num outro sentido: o de que toda transmissão educativa transforma o que ela transmite (enquanto ela também transforma ao mesmo tempo tanto o seu emissor como o seu destinatário). No entanto, neste caso, estamos mais uma vez diante de uma verdade por demais geral e muito pouco «contemporânea».

O que é realmente contemporâneo, o que é típico da experiência que nós temos do mundo no qual vivemos hoje, é a transformação das próprias condições da transmissão, o que significa a transformação da própria maneira com a qual se estabelece, por ocasião e durante as transmissões, o equilíbrio entre continuidade e descontinuidade, entre conservação e alteração, reprodução e transformação. Esta é portanto a problemática que irei desenvolver no decorrer desta exposição, baseando-me num certo número de referências que dizem respeito a uma pluralidade de abordagens ou de disciplinas. Entretanto, é necessário fazermos uma clarificação prévia, no que diz respeito aos diversos sentidos que pode possuir hoje esse termo de «geração». I. Três acepções possíveis da noção de geração

A noção de geração (e conseqüentemente a de relação entre as gerações) possui diversas acepções possíveis, tanto na linguagem corrente quanto nas utilizações que dela são feitas no vocabulário da educação. Se deixarmos de lado o sentido ativo da palavra «geração» (ação de gerar, de engendrar um ser vivo, ou ainda processo de produção ou de desenvolvimento de alguma coisa), é possível escolher ao menos três acepções principais. No nível mais fundamental, aparece em primeiro lugar uma acepção que pode ser considerada como «genealógica», sendo que o termo de «geração» toma então o sentido de filiação, ou mais exatamente de grau de filiação (primeira, segunda, terceira geração…) a partir de um indivíduo tomado como origem. Sabe-se que esta ordem das filiações, que constitui, em inúmeras sociedades estudadas pelos etnólogos, um poderoso fator de estruturação social, pode manter apenas relações muito frouxas com a cronologia. Em função da extensão do período de procriação possível para cada indivíduo, indivíduos que se encontram no mesmo grau de filiação em relação a um ancestral comum podem ter idades muito diferentes e até mesmo nunca se encontrar numa situação de contemporaneidade cronológica.

Tomando o termo de «geração» nesta acepção «genealógica», que sentido, que consistência iremos atribuir à noção de relação entre as gerações? É certo que a questão não se coloca nos mesmos termos conforme a distância temporal, social e cultural que separa diversos «graus de filiação». Também é certo que não se deve colocar no mesmo plano a relação interativa concreta que se estabelece no quadro da família entre dois (ou três, às vezes quatro…) gerações sucessivas e a relação mais «oca», mais distante, mais abstrata, porém, também, em certos casos, saturada por disputas por identidades ou pela preocupação com a genealogia que cada um cultiva com os seus ancestrais mais ou menos distantes, sejam eles identificados ou desconhecidos.

As relações interativas concretas que chegam a estabelecer entre elas gerações diferentes no quadro de uma família, colocam evidentemente em presença pessoas de idades

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diferentes, as quais podemos designar ou identificar por meio de uma categorização relativamente codificada, embora esta possa variar de uma época para outra e de uma sociedade para outra. Ocorre que, em francês pelo menos, o termo de «geração» é utilizado com freqüência no sentido de classe ou de categoria de idade característica. Assim, fala-se de maneira corriqueira na «jovem geração», nas «gerações adultas», na «velha» ou na «antiga geração», etc, independentemente das posições respectivas que uns e outros possam ter em termos de filiação ou de linhagem.

Existe uma literatura abundante hoje sobre esta questão da divisão da vida humana em função de etapas características que buscam corresponder a graus de maturação psicobiológica e/ou à definição de papéis sociais típicos, entre os quais aqueles ligados à esfera educativa. É claro, é possível afirmar também que nós somos educados, formados, ensinados por assim dizer «à distância» por todas as gerações que nos precederam, das quais a cultura atual recebe, recapitula e condensa a herança. Mas, trata-se de uma formulação quase metafórica que, em todo caso não deve nos levar a esquecer de que uma tal herança pressupõe um processo ativo de mediação e de apropriação.

Na realidade, é de uma forma muito mais direta, através das interações concretas existentes entre diversas classes de idade colocadas em situação de coexistência que a dimensão educativa das relações entre gerações costuma ser pensada com maior freqüência, principalmente através da oposição estabelecida tradicionalmente entre a condição infantil e a idade adulta. É conhecida a definição durkheimiana da educação como «ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não estão maduras para a vida social» (no artigo intitulado «Educação», extraído do Dicionário de pedagogia, publicado em 1911). Será que

esta concepção do adulto maduro conduzindo a criança imatura no caminho da socialização não corresponderia de fato a uma das mais antigas (o que não quer dizer uma das mais incontestáveis ou insuperáveis) evidências do pensamento educativo?

Diferentemente dos dois usos já mencionados (geração/filiação e geração/período da vida), o termo de «geração» tomado na sua acepção histórica e sociológica designa um conjunto de pessoas que nasceram mais ou menos na mesma época e que têm em comum uma experiência histórica idêntica e/ou uma proximidade cultural. Impõe-se portanto uma aproximação deste emprego da palavra «geração» com o uso que fazem os demógrafos do termo de «coorte» (equivalente, no Brasil, à palavra “turma”), o qual designa um conjunto de indivíduos nascidos no mesmo ano (ou, por extensão, caracterizados por um mesmo evento – por exemplo, o ano do início do curso secundário ou da obtenção de um diploma – ocorrido no mesmo momento e podendo servir de ponto de partida num estudo comparativo de tipo longitudinal). Entretanto, a palavra «geração» comporta significados ao mesmo tempo mais ricos e mais imprecisos que o de «coorte». Com efeito, uma geração não é formada apenas por pessoas de mesma idade ou nascidas numa mesma época, e sim também por pessoas que foram modeladas numa época dada, por um mesmo tipo de influência educativa, política ou cultural, ou que vivenciaram e foram impressionadas pelos mesmos eventos, desenvolvem sobre a base de uma experiência comum ou semelhante, os elementos de uma consciência de se ter vínculos em comum, o que pode ser chamado de «sentimento de geração» ou ainda de «consciência de geração».

Conforme salienta a historiadora Annie Kriegel num artigo sobre «o conceito político de geração», publicado na edição de setembro de 1979 da revista Commentaire, é preciso «remontar até os eventos decisivos (do século) das Luzes e das revoluções que se seguiram para observar as novas condições que conferiram uma eficiência social ao tema da geração». Segundo ela, três fatores explicam a emergência dessa nova representação dos destinos humanos, ou, melhor dizendo, «deste novo princípio de inteligibilidade para a classificação dos destinos individuais». O primeiro desses fatores diz respeito ao

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prolongamento da esperança de vida, à probabilidade menor de uma morte precoce, «ao aumento considerável das chances pessoais de persistir dentro do seu envelope carnal», que fazem com que nós possamos mais facilmente nos instalar e estabelecer vínculos duradouros com aqueles que são, no sentido forte do termo, nossos «contemporâneos». O segundo fator vem do fato de que, na sociedade moderna, outros atributos que alimentavam anteriormente a identidade pessoal perderam em parte sua força de organização, sobretudo em função do declínio das «condições», das «classes» ou do «status» que eram atribuídos a cada um em função de seu nascimento e que o distinguiam de maneira estável e claramente percebível no quadro do espaço social. Finalmente, o terceiro fator diz respeito à aceleração da temporalidade histórica que perturba o ciclo das reproduções das gerações e que introduz de maneira sensível no cerne dos percursos de vida individuais a existência da mudança e a consciência da mudança, fazendo pesar sobre as transições e as transmissões entre gerações a fatalidade das transformações. Assim, a história intelectual e a história política das nações européias, em particular as da Alemanha, foram muito cedo habitadas, ritmadas e dramatizadas pelo tema das gerações, um tema que, conforme explica o historiador Robert Wohl (The Generation of 1914, 1980),

se cristaliza principalmente nas diversas culturas européias, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, e mais ainda, sem dúvida, depois dela, em resposta à experiência cataclísmica vivenciada pela «geração do front», e que atingiu todas as classes sociais sem distinção. No entanto, vale também salientar, assim como faz Annie Kriegel, que o tema das gerações é muito cedo associado, e até mesmo confundido, com o tema da juventude, fazendo de conta que uma geração não é tanto feita por pessoas da mesma idade e sim por pessoas «da mesma jovem idade» (esta especificação impõe-se ainda mais no período mais recente da história, no qual a palavra tende a banalizar-se, sendo por vezes associada a tudo o que há de mais efêmero nas expressões do engajamento político, da cultura de massa ou dos modos de consumo). Uma distinção entre «gerações familiais», que correspondem a graus na filiação, e que se renovam em intervalos de cerca de 30 anos, e «gerações sociais» foi introduzida por François Mentré no seu livro Les générations sociales (As gerações sociais), editado na França em 1920. Mas é no ensaio de Karl Mannheim, Le problème des générations (O

problema das gerações) publicado na Alemanha em 1928 (mas que só veio a ser traduzido em francês em 1990), que a questão das gerações se torna objeto, na mesma época, da abordagem sociológica mais apurada. A questão central colocada por Mannheim é a da vinculação: o que quer dizer pertencer a uma mesma geração? É claro, a dimensão fundamentalmente temporal do fenômeno de geração (o fato de que, diferentemente, por exemplo, de uma classe ou de um grupo social, uma geração se distingue das outras sempre, em primeiro lugar, conforme um eixo temporal) tem algo a ver com a ordem biológica, com a ocorrência das transições e das transmissões vitais. Mas, para Mannheim, o fenômeno de vinculação a uma geração deve ser compreendido sobretudo dentro da sua dimensão histórica e sociológica. Mannheim propõe assim uma conceituação fina, desenvolvendo uma especificação progressiva em torno das noções de «situações de geração», de «conjuntos de gerações», de «unidades de geração», de «grupos concretos». Ele fala primeiro em «gerações potenciais», constituídas por indivíduos que se encontram em «situações de geração» análogas. Mas, da mesma forma que a «situação de classe», no vocabulário marxista, não resulta diretamente numa «consciência de classe» e não é suficiente para constituir a classe social como realidade histórica e política, para Mannheim, a «situação de geração» não basta para estabelecer a existência de um «conjunto de geração» real. Este pressupõe que um vínculo concreto apareça, o qual pode ser caracterizado como a participação efetiva de

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um destino comum (uma idéia que reencontramos na mesma época no pensamento de Heidegger ou de um outro teórico do fenômeno de geração, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset). Um tal vínculo entre grupos anteriormente separados e afastados uns dos outros (por exemplo, entre filhos de camponeses e a juventude urbana escolarizada) pode estabelecer-se, por exemplo, na esteira de determinados eventos históricos dramáticos que desempenham um papel catalisador, assim como foi o caso das revoluções ou das guerras que ocorreram em inúmeros países durante a história recente. Entretanto, esta noção de «conjunto de geração» sofre, por sua vez, uma especificação e uma polarização. É assim que, numa dada época, vivendo num mesmo contexto histórico e confrontados aos desafios de um mesmo destino, grupos chegam a se enfrentar e a se combater, motivados por escolhas políticas e ideológicas diferentes que constituem respostas diferentes propostas para uma mesma questão. Mannheim chama tais grupos de «unidades de geração». O que fundamenta uma «unidade de geração»? São conteúdos comuns de consciência, representações, crenças, engajamentos, mas, sobretudo, mais profundamente ainda, o que Mannheim chama de «princípios estruturantes», termo este que o tradutor francês de Karl Mannheim, Gérard Mauger, aproxima da noção de “habitus” tal como ela foi introduzida por Pierre Bourdieu. Essas considerações conduzem Mannheim a recusar a noção por demais imprecisa, sincrética, e insuficientemente diferenciada sociologicamente e ideologicamente, de «espírito do tempo» (Zeitgeist).

Finalmente, numa última especificação, Mannheim salienta que as próprias «unidades de geração» se cristalizam a partir da ação ou da intervenção do que ele chama de «grupos concretos», isto é, escolas de pensamento, minorias ativas ou comunidades militantes, dentro e por meio das quais uma «situação de geração» pode conseguir encontrar um modo de expressão e de simbolização que seja verdadeiramente motivador. Contudo, este fenômeno não ocorre nem de maneira necessária, nem de maneira regular, e depende fortemente da intensidade e da forma que a dinâmica de uma sociedade toma num dado momento. Com efeito, não é só, nem principalmente, porque as gerações não se renovam biologicamente que elas se diferenciam culturalmente e sociologicamente, já que esse fenômeno de renovação existe tanto nos períodos de grande estabilidade como nos períodos de perturbação histórica. Mas, antes, é muito mais quando e porque ocorrem rápidas mudanças históricas que a renovação biológica das gerações pode dar origem a rupturas sociológicas entre gerações, rupturas essas que tornam inevitavelmente mais difícil e mais problemática (porém, sem dúvida, tanto mais necessário) o exercício das transmissões educativas. Assim, a atualização das potencialidades que dormem dentro de cada «situação de geração» depende amplamente, na análise de Karl Mannheim, de fatores extra-biológicos, entre os quais a natureza particular da dinâmica social que prevalece num momento dado da história de uma sociedade. Para que pode servir este pequeno exercício de clarificação de definições e noções? Para pensar melhor, nos seus diferentes aspectos e nas suas diferentes implicações, sobre os principais temas de disputas do debate filosófico, sociológico, pedagógico que vem sendo travado hoje num grande número de países em torno do que se convencionou chamar de crise da educação. Com efeito, longe das belas certezas «funcionalistas» manifestadas no início do século passado pelo discurso sociológico e pedagógico durkheimiano, é em termos de crise, de conflito, de mal-entendido, de mal-estar, de fosso ou de ruptura que hoje costuma ser abordada a questão das relações entre gerações e da função educacional que os adultos devem supostamente exercer em relação à juventude. Uma vasta literatura tem

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sido dedicada há décadas à descrição e à interpretação desta situação, assim como aos remédios que são suscetíveis de lhe ser ministrados. É a respeito deste mesmo tema das transições, das transmissões, das transformações e das rupturas que irei propor agora alguns elementos de reflexão, tomando alternadamente a idéia de relações entre gerações em dois sentidos diferentes: de um lado, o sentido de interações entre gerações de idades diferentes, crianças e adultos, jovens e menos jovens, e, de outro, o sentido de relações que as gerações atuais mantêm simbolicamente com o passado. II. Crianças e adultos, jovens e mais velhos: relações entre gerações e transmissões educativas nas sociedades contemporâneas

1. Mudança social e fosso entre gerações: a idéia de cultura «pré-figurativa»

Partirei de um pequeno livro já antigo (a sua publicação original data de 1970) mas conhecido internacionalmente e que continua sendo uma referência extremamente estimulante em relação à questão que nos interessa aqui. Trata-se do livro da antropóloga americana Margaret Mead intitulado Culture and Commitment : A Study of the Generational Gap (Cultura e Vinculação: Um Estudo do Fosso entre Gerações), traduzido e publicado em francês em 1971 sob o título Le fossé des générations. É claro, diferentemente dos livros

«eruditos» de Margaret Mead, que relatam os seus estudos antropológicos originais em Oceania, trata-se aqui de um ensaio que tem por origem conferências sobre o homem e a natureza que essa pesquisadora deu em 1969 no Museu Americano de História Natural, e que propõe, dirigindo-se a um público amplo, considerações ao mesmo tempo pessoais e fortemente influenciadas pelo espírito do tempo, isto é, pela onda de contestação política e crítica cultural que, oriunda de um meio restrito de ativistas dos campus universitários, parecia no final dos anos 60 estar fadada a atingir e a transtornar a terra inteira. No entanto, deste livro um pouco «datado» e influenciado pelas circunstâncias de sua elaboração, ainda restam elementos extremamente interessantes, que podem alimentar a nossa reflexão a respeito das transições entre gerações e as transmissões educativas. A contribuição principal e a mais original do livro Fosso entre gerações, ou, pelo menos, aquilo que tem sido mais lembrado dele, é a distinção «ideal-típica» que nele se estabelece entre três tipos de culturas que seriam suscetíveis de coexistir no mundo atual, sendo representadas de maneiras desiguais conforme os países, os contextos de desenvolvimento e os modos de vida, e que a autora denomina respectivamente as culturas «pós-figurativas», «co-figurativas» e «pré-figurativas». As culturas pós-figurativas ocuparam o maior espaço na história humana. São as das sociedades primitivas e daquilo que a autora chama de «pequenos enclaves religiosos ou ideológicos», em todos os lugares onde predominam a tradição, a autoridade dos anciões, as marcas do passado. «Uma cultura pós-figurativa é uma cultura na qual a mudança é tão lenta e tão imperceptível que os avôs, segurando os seus netos recém-nascidos no colo, não são capazes de imaginar para eles um futuro diferente do que foi o seu próprio passado. Nesta cultura, o passado dos adultos é o futuro de cada nova geração», escreve Margaret Mead (pp. 27-28 da edição francesa). Pelo contrário, numa cultura co-figurativa, a influência dominante não provém dos anciões, e sim dos «pares», dos contemporâneos, daqueles que, sejam eles crianças ou adultos, pertencem a uma mesma classe ou categoria de idade. As grandes civilizações, que desenvolveram necessariamente técnicas para assimilar a inovação, têm como característica de utilizar algumas formas de educação co-figurativa entre pares, entre parceiros de jogos, de estudos e de aprendizagem. Entretanto, hoje, inúmeros sintomas levam a crer que este modelo da co-figuração está, por sua vez, também em vias de ser superado. Com efeito, o mundo atual vem passando por transformações tão consideráveis,

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rápidas e radicais que todos os mecanismos, todas as funções de transmissão parecem estar acometidos de paralisia. Inevitavelmente, a noção de que o mundo muda constantemente não passa de uma antiga banalidade. No entanto, algo mudou dentro da própria mudança: é o seu caráter ao mesmo tempo imprevisível e universal, a sua potência irresistível e a aceleração incessante de seu ritmo. A primeira prova de que a situação atual é propriamente única, sem equivalente no passado, é, segundo diz Margaret Mead, «a universalidade do fosso das gerações». Como caracterizar, como interpretar esse novo estado das coisas? «A crise que nós estamos enfrentando atualmente”, observa Margaret Mead, “foi atribuída sucessivamente à rapidez atordoante das transformações que intervêm na nossa vida cotidiana, ao desmoronamento da família, ao apodrecimento do capitalismo, ao triunfo de uma tecnologia sem alma, ao declínio das instituições e dos valores estabelecidos. Muito além desses elementos principais de acusação, podemos detectar um conflito mais essencial que opõe aqueles para os quais o presente nada mais representa a não ser a intensificação da nossa cultura co-figurativa – dentro da qual os pares substituem cada vez mais os pais como modelos de comportamento – e aqueles que afirmam que nós estamos ingressando de fato numa fase inteiramente nova da evolução cultural». (p. 107) Esta nova fase equivale à entrada na era «pré-figurativa» da cultura, uma era na qual todos os indivíduos se parecem com imigrantes totalmente estranhos a essa nova terra que eles abordam, uma terra onde as antigas ferramentas, os antigos pensamentos se tornaram obsoletos e onde é muito melhor ser um jovem sem bagagem do que um adulto atravancado pela memória de um mundo irremediavelmente perdido. Sim, uma cultura pré-figurativa caracteriza-se acima de tudo, segundo Margaret Mead, por essa reviravolta paradoxal das relações entre gerações no final da qual mais vale a disponibilidade do que a maturidade, mais vale a indeterminação do que a experiência. De maneira sem dúvida deliberadamente provocadora, Margaret Mead aprofunda este paradoxo a ponto de fazer o elogio da amnésia social e familial quando ela afirma (pp. 124-125) que «os adultos de hoje devem tratar o seu próprio passado como algo incomunicável e ensinar aos seus filhos a não se interessarem por ele, uma vez que eles não iriam entendê-lo», e ela acrescenta: «nesse sentido, é preciso reconhecer que nós não temos descendentes, e que os nossos filhos não têm pais». Contudo, embora não tenham herança nem predecessores, os jovens da sociedade pré-figurativa são paradoxalmente melhor informados, mais competentes e adaptados ao mundo que os seus primogênitos. «Hoje, não se encontra em nenhum lugar do mundo pessoas mais velhas que sabem o que as crianças sabem, por mais distantes e simples que sejam as sociedades onde vivem essas crianças”, afirma Margaret Mead. “No passado, sempre havia adultos que sabiam muito mais coisas do que qualquer criança, pelo fato de terem crescido no interior de um sistema cultural. Hoje não existe mais nenhum. Não só porque os pais deixaram de ser guias, mas também porque não existem mais guias, por mais que se procure por eles no seu próprio país ou no exterior. Nenhum adulto de hoje sabe do nosso mundo o que dele sabem as crianças nascidas no decorrer dos últimos vinte anos». (pp. 123-124) É por essa razão, conclui Margaret Mead, que num mundo onde deixaram de existir as culturas pós-figurativas, as quais eram sistemas essencialmente fechados que reproduziam indefinidamente o passado, «nós devemos agora trabalhar na criação de sistemas abertos centrados no futuro, isto é, voltados para crianças cujas capacidades nos são desconhecidas e cujas escolhas precisam permanecer “abertas” (p. 143), sistemas estes cujo desenvolvimento dependerá essencialmente «da existência de um diálogo contínuo por meio do qual os jovens, livres para agirem a partir de sua própria iniciativa, poderão conduzir os adultos no caminho do desconhecido». (p. 145) É preciso reconhecer que Margaret Mead propõe no seu ensaio sobre o fosso entre as gerações um bom número de hipóteses estimulantes, porém, sem dúvida, difíceis de

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confirmar devido à formulação «extrema» por meio da qual ela as descreve. O fato de reviravoltas paradoxais ocorrerem hoje na distribuição de certas competências entre as gerações tem sido revelado tanto por certos estudos sobre o uso e o domínio das novas tecnologias (um setor no qual, com freqüência os mais jovens têm muito mais o que ensinar aos adultos) quanto por inúmeras pesquisas sociológicas sobre os fenômenos de mobilidade social ou de mobilidade migratória (as quais evidenciam o papel da informação, de fator de adaptação social e até mesmo de instrução e de educação desempenhado junto às famílias tradicionais pelos membros de novas gerações que estão mais bem «integradas» ou adaptadas nos campos escolar, profissional e social). Mas, apesar de tudo, será mesmo que se pode falar em cultura pré-figurativa no sentido muito geral e muito radical que propõe Margaret Mead? O menos que se pode dizer, é que as relações entre gerações, principalmente no quadro familial, apresentam aspectos interativos complexos, irredutíveis a toda leitura unidimensional ou unidirecional. Existem pesquisas que implementam metodologias clínicas acuradas e que dizem respeito, entre outros, à experiência escolar das crianças e dos adolescentes de meios populares ou oriundos da imigração. Confira, por exemplo, na França, o livro de Jean-Yves Rochex, Le sens de l’expérience scolaire (O sentido da experiência escolar), publicado em 1995, ou ainda o de Bernard Charlot, Elisabeth Bautier e Jean-Yves Rochex, École et savoir dans les banlieues…et ailleurs (Escola e saber nas periferias... e em outros lugares), lançado em 1992, e baseado nos estudos da equipe ESCOL da Universidade Paris 8. Estas pesquisas revelam justamente a importância de se ter pais portadores de uma identidade e de uma memória familial fortes, a intensidade porém também a ambivalência das relações de identificação/distanciamento que se mantém com eles, e a maneira com a qual essas relações, mesmo nas famílias mais afastadas do mundo da escola, embasam e sustentam a dinâmica das motivações e as modalidades da relação com o saber e com a cultura sobre as quais se constroem os processos escolares bem-sucedidos ou fracassados. Uma outra vertente de reflexão poderia abordar o próprio diagnóstico que faz Margaret Mead no que diz respeito às causas profundas da situação de ruptura que ela descreve. Em adequação com um modelo amplamente propagado no discurso da modernidade, tudo se desenvolve como se a mudança constituísse, por si só, o fundo da explicação, o «principal motor», o fator explicativo definitivo que não precisaria por sua vez ser explicado. Deste ponto de vista, a metáfora da imigração é certamente mais impressionante do que esclarecedora. No fundo, a explicação por meio da mudança (ou, antes, pela mudança da mudança, a passagem de uma mudança de tipo tradicional, lenta e progressiva, para uma mudança de tipo moderno, brutal e irresistivelmente acelerada) remete a uma explicação pela obsolescência: as competências adquiridas pelas gerações mais antigas não servem para mais nada porque o mundo em função do qual elas foram produzidas desapareceu irremediavelmente; pior ainda, longe de permanecerem recursos para a adaptação ao presente e para a preparação do futuro, elas constituem obstáculos. Mas, será que a obsolescência rápida das competências adquiridas pelos adultos significa que os jovens deveriam ou poderiam construir as deles sem se basearem em aquisições anteriores, e, por assim dizer, criando a partir do nada? E, por outro lado, seriam as relações educacionais entre gerações redutíveis a problemas de competências? Será porque as suas competências se tornariam prematuramente obsoletas que as gerações antigas veriam a sua autoridade educativa definhar? Uma explicação mais aprofundada e mais bem embasada de um ponto de vista histórico nos é proposta por certas contribuições da filosofia política contemporânea, em particular no quadro da reflexão conduzida hoje na França por autores tais como Marcel Gauchet ou Alain Renaut, em torno das dificuldades e das contradições às quais se encontra confrontada hoje, pelo menos nas sociedades ocidentais,

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a própria idéia da educação frente aos desenvolvimentos, e particularmente as formas mais recentes de desenvolvimento, do individualismo democrático.

2. Transições entre gerações e transmissões educativas diante do risco do individualismo democrático: as contribuições de uma «filosofia política da educação»

Sob o nome de «filosofia política da educação», desenvolve-se atualmente na França uma corrente de reflexão original, conforme revelam, entre outros, dois livros recentes (ambos editados em 2002), um deles escrito por Marie-Claude Blais, Marcel Gauchet e Dominique Ottavi, intitulado justamente Pour une philosophie politique de l’éducation (Por uma filosofia política da educação), e o outro, publicado pelo filósofo Alain Renaut sob o título La libération des enfants : Contribution philosophique à une histoire de l’enfance (A liberação

das crianças: Contribuição filosófica para uma história da infância), no qual o autor desenvolve uma reflexão, por meio da leitura de textos de autores «clássicos» tais como Locke, Hobbes e Rousseau, sobre a questão do estatuto da infância, assim como o exame dos fundamentos e das condições de exercício do poder educacional do adulto, dentro de um contexto de emergência e de desenvolvimento de um pensamento político democrático. «O espaço da educação, com as suas duas faces (familial e escolar), é antes de tudo”, escreve Alain Renaut, “o da relação do mundo dos adultos com esse tipo de ser muito peculiar que é a criança. Em função desse fato, inúmeras questões levantadas pela educação dizem respeito às transformações que se produziram na representação desse tipo de ser, à medida que as sociedades se tornaram democráticas e que elas se fundamentaram, não mais (como as sociedades antigas) nos valores da tradição e da hierarquia, e sim nos da liberdade e da igualdade» (p. 11). Essa modernização das sociedades, que tende e fazer aparecer cada vez mais as relações entre indivíduos como relações de igual para igual, representa inevitavelmente um processo muito lento, um processo que se estendeu ao longo de vários séculos e que não poderia ser considerado hoje como tendo sido completado. Fundamentalmente, para Alain Renaut, autor (em colaboração com Sylvie Mesure) de um precedente livro (editado em 1999) intitulado Alter Ego, esse processo inscreve-se numa

transformação de todas as relações que nos confrontam à “alteridade do outro”. «Além de suas diferenças (naturais, sociais, culturais), este, no mundo da igualdade, encontrou-se cada vez mais identificado com um alter ego, com um outro eu mesmo, com um

semelhante», escreve Alain Renaut (p. 11). É assim que, à medida que a modernidade se desenvolvia, a relação entre adultos e crianças tornou-se objeto do que ele chama de «um trabalho que a levou a se laicizar, despojando a autoridade do mundo dos adultos de seu caráter sacrossanto». Com isso, um paralelismo é sugerido entre a evolução das relações entre pais e filhos dentro da família e a evolução das relações entre o marido e a mulher dentro do casal. Contudo, em seguida, o autor apressa-se a determinar também os limites de uma tal comparação e a sublinhar as dificuldades e as tensões que uma tal transformação das concepções e dos valores não poderia deixar de suscitar no quadro da esfera educativa. «De um lado”, observa Alain Renaut (p. 27), “não podemos mais excluir a criança do estatuto de „semelhante‟ que é, por definição, o do indivíduo democrático como alter ego, e, conseqüentemente, nós passamos a instaurar com ela, cada vez mais, tanto na escola como na família, relações que, de fato, se desenvolvem sobre bases de igualdade (por exemplo, nos proibindo recorrer aos meios “autoritários” de dominação); mas, de um outro lado, esse regime da similitude é impraticável até o fim, nem que seja porque ele parece ser dificilmente compatível com a própria idéia de educação e com uma relação com a criança que, na qualidade de relação educativa, está fundamentada numa superioridade do educador em relação ao educado». Esta superioridade, é claro, não se deve, segundo Alain Renaut a alguma desigualdade natural ou essencial, e sim resulta da situação de

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imaturidade e de dependência na qual se encontra momentaneamente a criança. Assim, a figura da infância representa para o adulto, o pai e o educador «modernos» uma espécie de paradoxo ontológico e de dilema prático. Pode-se considerar todas as teorias da educação que têm sido desenvolvidas desde o início da era moderna (aliás, um início muito difícil de datar e de caracterizar…) como tentativas de oferecer respostas a esse paradoxo e a esse dilema. Alain Renaut salienta que Hannah Arendt, no seu célebre texto sobre a crise da educação, um texto que, vale lembrar, data dos anos 50 – confira a publicação em 1954 da coletânea de textos Between Past and Present (Entre Passado e Presente), que foi traduzida e publicada na França apenas em 1972 sob o título La Crise de la culture (A Crise e a cultura)

– e que aborda em primeiro lugar a situação da educação nos Estados Unidos, foi uma das primeiras a dar-se conta da amplidão do problema e da profundidade da crise. Neste livro, ela explicava que, na sua opinião, nos Estados Unidos, a acuidade da crise era inseparável do «caráter político» deste país que, por conta própria, «luta para achatar e apagar, o quanto for possível, a diferença entre jovens e velhos, entre talentosos e não talentosos, isto é, em última instância, entre crianças e adultos, e, em particular, entre professores e alunos. » O mesmo diagnóstico é feito por Alain Renaut quando ele explica que «a escolha dos valores da igualdade e da liberdade, no sentido de que estes têm por missão estruturar todas as relações de coexistência entre os seres humanos […] só poderia enfraquecer intrinsecamente dispositivos que, assim como os da educação, haviam funcionado, ao contrário, em conformidade com os valores da hierarquia natural e da tradição. » (p. 4). Nesse sentido, o que pode surpreender, constata Alain Renaut, «não é, por certo, que a modernidade democrática tenha desembocado numa tal crise da educação», e sim, muito mais, «que esta crise tenha demorado tanto para surgir com a acuidade que ela tem hoje, aprofundando-se com uma lentidão que é a melhor confirmação indireta de que a modernização das sociedades humanas (o seu devir moderno) tem sido por sua vez, não um evento repentino, e sim um processo que se estendeu ao longo de vários séculos e que só veio a alcançar toda a sua potência há algumas décadas» (p. 30). Contudo, a concordância que existe em torno deste ponto entre a leitura que propõem respectivamente Hannah Arendt e Alain Renaut dessa crise não deve dissimular algumas divergências muito importantes. A divergência principal diz respeito à natureza e à profundidade do diagnóstico. Hannah Arendt o diz claramente: para ela, essa explicação «política» corresponde apenas a um aspecto das coisas que é justamente o aspecto menos importante ou o menos decisivo. As verdadeiras razões da situação catastrófica na qual se encontra, segundo ela, o ensino, e principalmente o ensino secundário, nos Estados Unidos, são muito mais de ordem pedagógica. Elas se devem à influência exercida no decorrer do século 20, nos Estados Unidos, por novas teorias da educação oriundas, diz, do centro da Europa e que consistem «numa mistura estupenda de coisas sensatas e de absurdidades» em nome das quais foram transtornados de alto a baixo todos os métodos tradicionais de ensino. Entre essas concepções contrárias ao bom senso figura principalmente, segundo ela, a idéia segundo a qual a infância pode constituir um mundo autônomo, libertado da autoridade dos adultos. Ora, embora seja verdade para Hannah Arendt que a autoridade (como poder moral, e como capacidade de se fazer ouvir e ser obedecido sem ter de recorrer à violência) parece desempenhar hoje um papel cada vez mais restrito na vida pública e política, uma tal desqualificação não é possível na esfera educativa. Por razões que são vinculadas às características mais profundas da condição humana, entre as quais o fato de os indivíduos nascerem num mundo «sempre já antigo», «num mundo preexistente, construído pelos vivos e pelos mortos», do qual supõe-se que ele continuará a existir depois de sua morte e no qual eles necessitam imperativamente que outros tomem a responsabilidade de acolhê-

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los, não é possível pretender emancipar as crianças da autoridade dos adultos como se elas pertencessem a uma minoria que precisasse ser libertada da opressão. Com efeito, no caso da educação, a autoridade é a forma que toma, por intermédio do adulto educador e em relação aos membros da nova geração, a responsabilidade do mundo. Assim, Hannah Arendt reivindica para a esfera educativa uma espécie de estatuto de exceção, isto é, a manutenção de uma relação de autoridade entre adultos e crianças dentro de um mundo que, globalmente, não é mais estruturado pela autoridade nem é mais baseado no respeito da tradição. Ora, é precisamente esta exceção que Alain Renaut recusa, vendo nela uma ilusão ou uma ingenuidade. Para ele, o movimento de modernização da sociedade só pode ser global, o que o conduz a excluir que as relações familiais ou pedagógicas possam se manter «como uma espécie de ilhota do universo antigo num mundo onde se afirmariam em todo lugar os valores da igualdade e da liberdade» (p. 31). Assim, a noção de «liberação das crianças» lhe parece uma idéia séria, ou que, pelo menos, se inscreve de maneira irresistível, o que não quer dizer que isso não ocorra de maneira problemática, dentro da evolução global da sociedade e da cultura na era do individualismo democrático. Embora seja difícil atribuir a essa evolução de longo alcance uma origem e fases claramente delimitadas, é certo que muitos observadores concordam em detectar o surgimento, no período mais recente (isto é, desde meados dos anos 60), dos sintomas de uma aceleração e de uma radicalização que poderiam significar uma ruptura de civilização de marca maior. É notório o lugar que ocupa hoje nas ciências sociais e na filosofia a problemática da «pós-modernidade». Alain Renaut salienta assim a importância do «deslocamento» que se introduz por ocasião do que ele chama de «a transição dos Modernos para os Contemporâneos» (p. 15). «A criança dos Modernos”, observa, caracteriza-se ao mesmo tempo pela sua vinculação virtual à comunidade dos iguais capazes de independência, e pela sua inaptidão a fazer desde já parte dela» (p. 14), e esta é a razão pela qual a intervenção exercida pelo adulto no sentido de formar e de sociabilizar a criança parece necessária. Assim, através de uma longa seqüência que delimita o que o autor chama de «uma primeira modernidade» e que, segundo ele, «acaba de se encerrar há algumas décadas», a cultura democrática conseguiu arrastar, paradoxalmente, para o terreno da escola uma consolidação da autoridade que o mundo adulto se dava o direito e o dever de exercer sobre a criança. Conforme sugere Marcel Gauchet no seu livro La Démocratie contre elle-même (A Democracia contra ela mesma, 2002), o revivescimento idealizador do tema da escola republicana ao qual assistimos atualmente na França poderia perfeitamente ser um exemplo da nostalgia por uma espécie de idade de ouro da «primeira modernidade» durante a qual o ideal cívico e democrático da autonomia das pessoas parecia conciliar-se de maneira tão feliz com o exercício sem complexo da autoridade social e pedagógica. Ao contrário, na «segunda modernidade», a que irrompe durante as últimas décadas do século 20, a radicalização do individualismo faz explodir todas as figuras tradicionais da autoridade e constitui para o conjunto das instituições educativas um desafio altamente desestabilizador. Um fato particularmente revelador desta evolução, segundo Alain Renaut, foi a adoção em 1989 pela ONU de uma Convenção Internacional dos Direitos da Criança que estabeleceu uma forte ruptura com dois textos anteriores, os quais haviam sido adotados respectivamente em 1924 e em 1959, reivindicando para a criança não mais apenas uma série de «direitos/obrigações» tais como o direito à proteção, à saúde ou à educação, e sim, também um amplo leque de «direitos/liberdades» calcados sobre aqueles reconhecidos para os adultos nos países democráticos. Sabemos que este texto de 1989 foi objeto de debates acirrados entre os que são chamados às vezes de «protecionistas», que insistem na dependência, na fragilidade, na vulnerabilidade da criança, e os «partidários da libertação», que reclamam a sua emancipação de todas as tutelas, sendo duas posições antinômicas

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entre as quais Alain Renaut, um filósofo político liberal porém um filósofo da educação lúcido, se recusa a optar, deixando para os seus leitores a escolha do desfecho.

3. Mudanças sociais, novas relações entre gerações e transmissões educativas

Enquanto as contribuições filosóficas às quais acabo de me referir pertenciam principalmente ao universo dos conceitos e das idéias, tratarei agora sobretudo de abordagens empíricas que dizem respeito ao campo das ciências sociais. Essas abordagens me parecem suscetíveis de proporcionar esclarecimentos interessantes sobre a evolução do contexto estrutural e cultural no qual se coloca hoje a questão das transmissões educativas entre gerações. De maneira muito seletiva, e mais «sinalética» do que analítica, farei referência a quatro espécies de fatores: o alongamento da duração da vida, o enfraquecimento das delimitações entre as idades que correspondem à extensão da juventude, as transformações ocorridas na instituição familial e o desenvolvimento da educação dos adultos e da circulação dos saberes no quadro da chamada «sociedade educativa», «sociedade cognitiva» ou «sociedade da informação».

a) A importância dos dados demográficos Uma vez que não se deve colocar a questão das transições entre gerações e das transmissões educativas de maneira intemporal, sem levar em conta o contexto histórico e de civilização no qual elas se inscrevem, o primeiro conjunto de regras e de recursos que abordaremos agora é constituído evidentemente pela demografia. Nas relações entre gerações, as quais são por certo relações «qualitativas», relações imbuídas e constituídas por elementos simbólicos, o peso do número é tão importante quanto a influência das idéias e a evolução dos valores. Assim, o chamado «equilíbrio entre gerações» é, em primeiro lugar, um fato morfológico, um fato que se mede em termos de composição da pirâmide das idades e do peso respectivo de cada classe de idade dentro da população de um país. Na França, assim como em muitos outros países, estamos descobrindo, talvez de maneira um pouco brutal e tardia, que o alongamento importante da esperança de vida, que significa, dentro de cada família, uma duração provável ou efetiva da coexistência entre gerações muito maior e, na escala da sociedade global, uma expansão maciça das categorias mais idosas, constitui uma mutação demográfica e social de marca maior, suscetível de provocar um transtorno e uma revisão do «pacto de solidariedade entre gerações» implementado sob a proteção do Estado de providência, e que comporta também conseqüências importantes no que diz respeito ao funcionamento da memória coletiva, às orientações da cultura e ao desenvolvimento das transmissões educativas.

b) A extensão da juventude e a atenuação das fronteiras entre as diversas «idades da vida»

Muitos estudos de inspiração histórica ou sociológica salientam hoje as flutuações que podem resultar, conforme as épocas e as sociedades, da definição das diversas idades da vida. Seguindo a linha de pensamento de Philippe Ariès, cujo livro L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime (A criança e a vida familial durante o Antigo Regime), publicado em

1960, permanece na França uma referência fundamental e verdadeiramente pioneira e inovadora, Olivier Galland narra, no seu estudo, Sociologie de la jeunesse (Sociologia da juventude, 1991), as principais etapas do que ele chama de «a invenção da juventude» no decorrer da época moderna, em correlação como o aumento da distância entre o mundo adulto e o mundo infantil e com o desenvolvimento da escolarização. De fato, nessa evolução, enquanto a figura da infância vista como uma idade específica que requer um «tratamento» educativo apropriado (a escola concebida pelos «educadores moralistas» do século 17 como um lugar de edificação moral e, ao mesmo tempo, de formação intelectual) se desenha mais cedo e mais nitidamente do que a figura da

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adolescência, esta, por sua vez, tende, segundo o autor, durante o período mais recente, a ser diferenciada da juventude, sendo que esta corresponde a um período de transição ou de «entrada na vida» relativamente mal delimitado porém, ao que tudo indica, cada vez mais extenso, e que ocupa um lugar de maior importância no imaginário social. Os primórdios da sociologia da juventude foram transformados, na França, pelas contribuições de Edgar Morin (L’esprit du temps – O espírito do tempo, 1962). Este foi um

dos primeiros a evidenciar a importância crescente do fato juvenil e da cultura que a ele estavam associados, uma cultura que, a partir dos anos 60, penetrou profundamente na cultura de massa e que se revelou capaz de reorientá-la, tornando-a mais «juvenil». Sabemos contudo que esta abordagem se tornaria logo objeto de críticas por parte dos «sociólogos da reprodução». É conhecida a fórmula lapidar de Pierre Bourdieu: «A juventude não passa de uma palavra» (Questions de sociologie – Questões de sociologia, 1980), o que significa que, em toda sociedade, as divisões entre as idades são arbitrárias, sendo objeto de uma «luta de classificação» que suscita manipulações permanentes. Já em 1966, num texto intitulado «A sociedade francesa e a sua juventude» (cf. Darras, Le partage des bénéfices – A partilha dos benefícios), Jean-Claude Chamboredon criticava o

fato de os teóricos da «cultura juvenil» defenderem uma certa «ilusão da novidade», a qual tenta induzir a crença do advento de uma nova geração, assim como a «ilusão culturalista», que tenta convencer do caráter extensivo e homogêneo da cultura juvenil, reunindo assim sob um mesmo vocábulo categorias profundamente separadas pela sua condição de classe e pelo seu “ethos” de classe (o que eles têm em comum). Mas, conforme constata Olivier Galland, tais críticas em nada invalidam o projeto de uma sociologia da juventude de tipo comparativo e diferencial. Assim, pesquisas que implementam uma «abordagem biográfica», utilizando indicadores «objetivos» de entrada na vida adulta tais como o final dos estudos, o acesso a um primeiro emprego, a instalação num domicílio outro que o dos pais ou ainda o casamento, fazem aparecer hoje ao mesmo tempo as defasagens que existem geralmente entre essas diversas agendas e a sua diferenciação conforme os meios sociais. Entretanto, o que sobressai globalmente das pesquisas em muitos países é a idéia de um «alongamento da juventude» (sendo este o título de um livro internacional editado em 1993 por Alessandro Cavalli e Olivier Galland, com contribuições vindas da Itália, da França, da Alemanha, da Grã-Bretanha, da Holanda, da Espanha e da República Tcheca): o ingresso no mercado de trabalho é cada vez mais tardio, a fase de «transição profissional» (uma inserção profissional em várias etapas) torna-se mais longa, a saída do domicílio familial é postergada, a experiência do casamento e das novas formas de vida de casal é adiada, e, de maneira mais geral, ocorre uma alteração da nitidez das fronteiras entre as idades. Para Olivier Galland, esses fenômenos apresentam uma coerência de conjunto. Não se trata de um simples mecanismo de adiamento; é de fato toda a forma de entrada na vida adulta que se encontra profundamente redefinida. Vários fatores parecem contribuir para essa evolução, entre os quais Olivier Galland menciona o fenômeno de inflação e de desvalorização social dos diplomas, a evolução dos comportamentos femininos e a «juvenilização» da sociedade, isto é, a valorização e a celebração da juventude erigida como referência e como modelo por todas as categorias de idade, às custas de um desinteresse pelos valores de conformidade, de estabilidade, de responsabilidade, os quais são tradicionalmente associados à idéia de maturidade. No que diz respeito a este fenômeno de «juvenilização» da sociedade e de atenuação das delimitações entre as idades, uma aproximação e um contraste podem ser estabelecidos com o diagnóstico proposto nos Estados Unidos por um autor como Neil Postman, um leitor de Philippe Ariès e de Marshall McLuhan, que, no seu livro, Il n’y a plus d’enfance (A infância não existe mais - publicado em 1982, traduzido em francês em 1983), diagnostica

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tanto a ocorrência de um desaparecimento da infância como de uma infantilização da condição adulta pelo efeito uniformizador da cultura televisiva americana. Entretanto, esta reflexão, alimentada por uma preocupação com a erosão dos tabus e com o fato de que as crianças tenham, por meio da mídia, acesso livre e maciço a tudo o que constituía antes os «segredos» do mundo adulto, inscreve-se tipicamente (diferentemente daquela de Olivier Galland) numa visão cultural pessimista.

c) Um «novo espírito de família» ou um «mal-estar na filiação»? A evolução da instituição familial está evidentemente no cerne de toda reflexão sobre as conseqüências educativas das transições entre gerações, porque no próprio fundamento, no coração do fenômeno de gerações como fenômeno social e cultural, existe o fato genealógico, a relação de «filiação», como fato antropológico. Ter pais não é apenas ter primogênitos, mais velhos, mais experientes. É ter genitores, agentes pelos quais nos foi transmitida a vida. A distinção genealógica entre as gerações, da mesma forma que a distinção entre os sexos, não é apenas um fato social, e sim também uma lei antropológica. Os papéis respectivos de pai e de filho não são nem opcionais, nem contratuais, nem intercambiáveis. Mas isso não quer dizer que as modalidades da interação entre gerações no quadro da família, ou que os modos de socialização e de transmissão sejam invariáveis. A questão das transmissões educativas e culturais familiais (saberes e competências, representações, crenças, ideologias, valores) constitui nas ciências sociais contemporâneas um campo muito rico, que está sofrendo uma evolução rápida. Contudo, me limitarei a abordar essa questão de maneira esquemática, salientando a existência de uma polarização entre dois tipos de perspectiva, a qual parece estar suscitando debates atualmente na França. No seu livro intitulado Sociologie de la famille contemporaine (Sociologia da família contemporânea - 1993, reeditado em 1998), François de Singly constata a existência de um duplo movimento que caracteriza a vida privada nas sociedades contemporâneas impregnadas pelo desenvolvimento do individualismo: de um lado, uma redução dos laços de dependência tradicionais entre as gerações e entre os sexos em proveito de uma melhor qualidade das relações entre pessoas, e, de outro lado, uma intervenção crescente do Estado e da sociedade na esfera privada por meio da mediação, entre outras, da escolarização e das políticas familiais e sociais. O autor distingue dois períodos na história da família contemporânea. Durante o primeiro período, que vai aproximadamente do século 19 aos anos 60, três elementos formam, segundo ele, um modelo de referência pouco contestado: o amor no casamento, a divisão estrita do trabalho entre o homem e a mulher, a atenção dada à criança, à sua saúde, à sua educação. Durante o segundo período, que ele qualifica de «pós-moderno», a instituição do matrimônio fica muito enfraquecida, o que não quer dizer que a família desaparece, e sim que ela sobrevive principalmente (mesmo que ela esta em certos casos modificada ou «recomposta») como quadro ou como suporte para a conquista da autonomia e da felicidade individuais. Para o autor, a família contemporânea transformou-se ao se encarregar da construção da identidade individualizada, a qual é uma característica da modernidade – confira o seu livro, Le Soi, le couple, la famille (O Eu, o casal, a família),

editado em 1996. Autora, entre outros livros, de uma Sociologia das gerações (1989), Claudine Attias-Donfut

(diretora de pesquisas na CNAV, sigla em francês para Banco Nacional de Previdência dos Idosos) apresenta, por sua vez, num livro escrito em parceria com Nicole Lapierre e Martine Segalen, intitulado Le Nouvel esprit de famille (O Novo espírito de família - publicado em

2002), os resultados de uma pesquisa sobre os laços familiais tal como eles são vivenciados no dia-a-dia entre todas as gerações na França contemporânea, num estudo que apresenta evidentes convergências com as pesquisas de François de Singly. O material dessa

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pesquisa é constituído por uma centena de entrevistas aprofundadas junto a adultos que pertencem a três gerações diferentes oriundas de cerca de trinta linhagens familiais. Esta pesquisa qualitativa, que ocasionou um primeiro aproveitamento voltado mais especificamente para o lugar e o papel dos avôs, baseia-se por sua vez numa pesquisa quantitativa que tivera principalmente por objeto de evidenciar os fenômenos de solidariedade, a importância dos intercâmbios e dos apoios entre gerações familiais. Desta pesquisa, o que podemos lembrar de essencial que possa esclarecer a nossa reflexão atual sobre as transições e as transmissões entre gerações? Principalmente uma certa idéia da «mudança dentro da continuidade», da conquista da autonomia pela manutenção das solidariedades, e sobretudo o papel de cimento entre gerações que parecem desempenhar cada vez mais, dentro das famílias, os laços afetivos, enquanto tendem a se enfraquecer os laços tradicionais de dependência econômica e de controle moral. «A história de todas as nossas linhagens”, escrevem as autoras, “ilustra a assunção da independência dentro da manutenção da continuidade. Isso pode parecer paradoxal e até mesmo contraditório. Será possível ser si mesmo, tornar-se si mesmo, conservando laços ao mesmo tempo? Para tornar-se si mesmo, não seria necessário soltar as amarras da família, rejeitar as normas que prendem? Parece que não. Este é o mistério das nossas sociedades contemporâneas, que fabricam laços familiais e deixam ao mesmo tempo cada um perseguir objetivos individuais. As normas educativas mudaram, o desaparecimento da autoridade em proveito de uma relação mais igualitária entre as gerações incentiva-os a permanecer em contato; assim estamos vendo se afirmar a cada nova geração um crescimento da autonomia que, contudo, não resulta num definhamento do sentimento familial. A linhagem continua a fazer sentido, mesmo se este sentido não é mais conferido pelo patrimônio ou pela profissão.» (p. 29) Vistas pelas autoras como «configurações sentimentais, ao mesmo tempo movediças e duradouras» (p. 270), as linhagens evoluem ao sabor dos momentos e dos eventos familiais, adaptando-se às circunstâncias. Nesse sentido, as autoras dão o exemplo da coabitação prolongada com crianças adultas, num contexto de tolerância reforçada em relação aos modelos e aos modos de vida da juventude. Um outro exemple é o dos avôs relativamente jovens e dinâmicos, disponíveis para os netos com os quais eles têm condições de tecer relações de longa duração, ao mesmo tempo lúdicas e profundas. Em todos esses casos, é mesmo a idéia de uma relação entre gerações mais maleável, mais rica, mais personalizada que prevalece, bem distante de toda imagem de conflito ou de ruptura radical. Da mesma forma, no seu livro intitulado La Démocratie familiale (A Democracia familial -

1990), o sociólogo Michel Fize, ao estudar a evolução das relações entre pais e adolescentes no decorrer das últimas décadas, constata que a perda de fôlego do modelo autoritário e o aparecimento, a partir dos anos 60, de gerações de jovens globalmente mais instruídos que os seus pais – situação esta que pode muito bem ser aproximada da noção de «cultura pré-figurativa» proposta por Margaret Mead –, não se traduzem por um fenômeno de ruptura e sim, de preferência, pela renegociação permanente de uma espécie de «pacto» que permite desarmar os conflitos. Nos estudos mais recentes sobre a evolução da instituição familial, a atenção se dirige mais particularmente para o declínio do casamento e a questão das relações entre gerações e das transmissões educativas dentro do que a socióloga Irène Théry chama de «famílias recompostas», isto é, as «novas famílias» reconstituídas em função de separações e de divórcios (um fenômeno que atinge atualmente na França mais de um casamento entre três). Afastando-se daqueles que vêem essencialmente neste aumento da precariedade do laço conjugal e na diversificação das configurações familiais uma etapa dentro de um processo tipicamente moderno de emancipação dos indivíduos, Irène Théry investiga - confira o livro Le Démariage (O Descasamento - 1996) - as conseqüências antropológicas

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profundas da diferenciação que se introduz assim entre os dois tipos de laços que fundamentam tradicionalmente a instituição familial, o laço de aliança e o laço de filiação. Nos casos de afastamento, e até mesmo, eventualmente, de sumiço total dos pais da cena familial «recomposta», ela observa que a criança pode se ver confrontada a um problema maior de identidade genealógica, que é o de precisar encontrar um lugar, o seu lugar na nova configuração, um lugar que a instituição da filiação deixou de lhe designar de maneira clara e incondicional, e que ele precisa construir e conquistar no dia-a-dia, pagando o preço de uma supervalorização da dimensão afetiva e relacional. No seu livro, Les liens de famille (Os laços de família - 1997), o sociólogo Thierry Blöss, por

sua vez, analisa mais precisamente a evolução das relações educativas consecutiva a essas mudanças dentro das estruturas familiais e salienta que a recomposição familial coloca de maneira explícita a questão de saber a quem incumbe na realidade o exercício da responsabilidade educativa, questão essa que ocasiona, conforme os casos e os meios sociais, uma grande diversidade de respostas. Com isso, uma tensão transparece em filigrane entre os que vêem nas novas configurações familiais o resultado de uma dinâmica de emancipação do indivíduo e os que se preocupam com o futuro de um sujeito que perdeu a sua filiação.

d) Mutações cognitivas e relações entre gerações numa «sociedade educativa»

Entre as mudanças sociais suscetíveis de influenciar hoje em profundidade as relações entre gerações e as transmissões educativas, parece-me que uma atenção muito especial deve ser dirigida a tudo o que diz respeito à esfera cognitiva. «Sociedade educativa», «sociedade cognitiva», «sociedade de aprendizagem» (tradução literal do inglês « learning society»), «sociedade do saber», «sociedade de informação»: esses termos em nada se

equivalem conceitualmente falando, mas chegam a ser utilizados alternadamente hoje no discurso da educação para designar o estado de desenvolvimento cultural de uma sociedade na qual a produção de conhecimentos e a difusão da informação constituem a chave principal do desenvolvimento e um dos principais traços característicos da vida social. Vários aspectos da evolução do saber nas sociedades contemporâneas parecem-me suscetíveis de ter repercussões sobre as relações entre gerações. Em primeiro lugar, é o que alguns chamam de explosão do saber ou dos saberes, e o seu crescimento exponencial – a cada 15 anos, duplica o volume do saber científico, segundo estimativas de Derek de Solla Price que cita Daniel Bell no seu livro, Vers la société post-industrielle (A caminho da

sociedade pós-industrial) -, a sua proliferação, a sua ramificação crescente que torna cada vez mais improvável a idéia de uma cultura enciclopédica individual, e cada vez mais necessária a idéia de uma «inteligência distribuída», mas é também a sua renovação cada vez mais rápida, a obsolescência acelerada das teorias e das técnicas, o aparecimento constante de novos campos, de novas disciplinas que enfraquecem todos os avanços conseguidos pelas antigas gerações, e que requerem ao mesmo tempo a reciclagem permanente de todos os tipos de especialidade e o apelo a novas competências e a novos talentos que vêm sendo trazidos pelas gerações mais jovens. A essa necessidade de renovação constante dos conhecimentos e das competências, que justifica, no cerne da noção de «sociedade educativa», ao mesmo tempo a idéia de uma educação permanente, isto é, de uma educação que se prolonga durante toda a duração da vida, e a idéia de uma educação entre todas as idades, que reúne todas as gerações numa relação de cooperação e de reciprocidade, acrescenta-se, para os homens de hoje, a experiência da superabundância de informações e de comunicações possibilitada pela combinação da revolução dos meios de comunicações e da revolução eletrônica, revolução essa que coloca uma variedade potencialmente ilimitada de recursos e de suportes à

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disposição dos indivíduos interessados em se informar, em se instruir, em se formar, e que, simultaneamente acaba com as distâncias geográficas, culturais e entre gerações, e faz do mundo inteiro uma espécie de imensa rede cujo devir é imprevisível. Inevitavelmente, uma certa idéia da cooperação ou da reciprocidade educativas entre gerações ganha sentido dentro de um tal contexto de expansão, de proliferação e de renovação rápida dos saberes quando ela está associada a uma reivindicação de «democracia cognitiva». Resta contudo apresentar melhor a questão das condições de realização e, sem dúvida, também dos limites de uma tal «utopia». Será que podemos acreditar nas promessas da «sociedade educativa»? Surgida nos anos 60 e 70, na mesma época que a temática da educação permanente – confira, por exemplo, o relatório Apprendre à être (Aprender a ser), publicado em 1972, resultado dos estudos de uma comissão internacional para o desenvolvimento da educação, criada no quadro da Unesco e presidida pelo então ministro francês Edgar Faure) -, a idéia de uma «sociedade educativa» ou de uma «cidade educativa» inscrevia-se dentro de uma visão otimista e progressista da evolução social e cultural, a qual conduziu a prever o advento de uma espécie de “Nova Atenas”, para retomar os termos usados pelo americano Robert Hutchins (The Learning Society, 1968), onde a tecnologia teria substituído os escravos e onde o

acesso de todos aos recursos de informação, de educação e de cultura criaria as condições concretas da democracia. A evolução do mundo no decorrer do período mais recente pode incitar a adotar um ponto de vista mais complexo e mais crítico. Numa sociedade que o sociólogo britânico Anthony Giddens caracteriza como uma «sociedade reflexiva» - confira o seu livro, The Consequences of Modernity (As Conseqüências da Modernidade, 1990), traduzido em

francês em 1994 -, todas as conseqüências, todas as crenças, todas as práticas estão em confronto perpétuo com a irrupção de uma informação que pulula, e ainda encontram-se desestabilizadas pela renovação dos saberes. Isso quer dizer que é preciso aprender constantemente coisas novas para escapar do risco de obsolescência e de desqualificação. No entanto, este é um risco que não tem fim, que se alimenta do esforço que nós fazemos para reduzi-lo. A «sociedade educativa» pode muito bem ser de fato «uma sociedade do risco», conforma a expressão do sociólogo alemão Ulrich Beck (La société du risque, traduzido em francês,

2001), na qual as relações entre gerações, certamente mais igualitárias do que nas sociedades tradicionais, poderiam se desenvolver antes num contexto de competição acirrada e nem tanto num contexto de reciprocidade convival. Da mesma forma, no momento em que parece estar ganhando força, em muitos países e nas organizações internacionais, uma concepção da educação e da cultura caracterizadas pela produção de competências úteis, de flexibilidade e de competitividade num mercado cada vez mais globalizado, é certo que não dá para assimilar hoje a «sociedade educativa» a um imenso centro de recursos igualmente acessíveis para todos, e dentro do qual os usuários, carregados pelas ondas da opulência das formas de comunicação, podem definir de forma totalmente autônoma suas perspectivas de formação e seus projetos de atividade. Contudo, tais interrogações em nada invalidam a idéia de um novo equilíbrio das relações entre gerações, induzido pelas mutações profundas que, nas sociedades contemporâneas, afetam os processos de produção, de difusão e de utilização dos saberes. III. As transmissões educativas consideradas dentro da perspectiva de longa duração das gerações

Nas reflexões que precedem, abordei a questão das relações entre gerações e de suas conseqüências para a educação, tomando este termo de «relações» no seu sentido forte, o sentido de interações entre grupos de idades diferentes (jovens e «anciões», crianças e

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adultos) coabitando momentaneamente uns com os outros, no quadro de um mesmo espaço-tempo social. Mas, nessa imensa sedimentação de instituições, obras e signos que a cultura humana constitui, as relações entre as gerações inscrevem-se evidentemente dentro de um quadro de referência mais amplo, e com uma duração mais longa e mais profunda do que as relações da pura coexistência vital. É o que o filósofo francês Alain Finkielkraut chama de «preocupação genealógica», o sentimento que nós temos de sermos os depositários de uma herança tão antiga quanto vulnerável, a preocupação que nos atormenta em relação ao que o mundo se tornará depois de nós. Tudo isso contribui também para forjar os elementos de uma consciência de geração e para inscrever as relações concretas entre gerações num horizonte de sentidos que as supera e as justifica ao mesmo tempo. É sobre essa ampliação ou esse deslocamento da problemática que eu gostaria de dedicar os elementos de reflexão muito sucintos que irão constituir a (muito breve) última parte desta exposição. Em que medida somos nós os «herdeiros» das gerações passadas? Em que sentido podemos falar em herança e com que força essa herança pesa sobre os nossos destinos individuais? Além disso, qual é o sentido, qual é a pertinência da clivagem que tem sido estabelecida entre sociedades tradicionais essencialmente conservadoras e conformistas e sociedades modernas caracterizadas pela emancipação das jovens gerações, pelo individualismo, a paixão igualitária e o gosto pela mudança? Por fim, na esfera educativa, que conseqüências tais questões podem ter, tanto sobre os modos de justificação e de exercício da autoridade como sobre a definição dos programas de estudos?

1. A herança das gerações e a questão do «testamento» No seu livro recém-publicado, intitulado Les uns avec les autres: quand l’individualisme crée du lien (Uns e outros juntos: quando o individualismo cria laços -2003), François de Singly

desenvolve uma reflexão sobre o que ele chama «a crise da transmissão», referindo-se entre outros ao comentário que propõe Hannah Arendt (no seu prefácio ao livro La Crise de la culture) do aforismo do poeta René Char: «A nossa herança não é precedida por nenhum

testamento». «É o testamento”, explica Hannah Arendt, “que diz ao herdeiro o que será legitimamente seu, que atribui um passado ao futuro. Sem testamento, ou, para elucidar a metáfora, sem tradição – para escolher e nomear, para transmitir e conservar, para indicar onde os tesouros se encontram e qual é o seu valor –, parece que nenhuma continuidade no tempo foi atribuída e que não existe portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, e sim apenas o devir eterno do mundo e, dentro dele, o ciclo biológico dos seres vivos. Assim, o tesouro não foi perdido por causa das circunstâncias históricas ou do azar, e sim porque nenhuma tradição havia previsto a sua vinda ou a sua realidade, porque nenhum testamento o havia legado para o futuro. » (p. 14 de La Crise de la culture)

É sabida a importância que Hannah Arendt atribui a esta idéia de tradição na sua reflexão sobre a crise da educação. «A crise da autoridade na educação”, escreve, “tem vínculos estreitos com a crise da tradição, isto é, com a crise de nossa atitude em relação a tudo o que diz respeito ao passado. Para o educador, este aspecto da crise é particularmente difícil de suportar, uma vez que cabe a ele fazer a ligação entre o antigo e o novo: a sua profissão exige dele um imenso respeito pelo passado. […] No mundo moderno, o problema da educação deve-se ao fato de que, por causa de sua própria natureza, ela não pode desprezar a autoridade, nem a tradição, e de que ela deve contudo exercer-se dentro de um mundo que não está estruturado pela autoridade nem contido pela tradição. » (La Crise de la culture, pp. 249-250) Daí a dificuldade, explica a autora, de se contentar hoje com «esse

mínimo de conservação» sem o qual a educação é simplesmente impossível – vale notar que essa conservação não deve ser compreendida num sentido político, e sim no sentido de

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uma preservação, de uma proteção da qual devem beneficiar ao mesmo tempo o mundo com sua vulnerabilidade e a criança no que ela traz de novo e de imprevisível. Ora, surpreende constatar que François de Singly retoma ao pé da letra esta imagem da herança e do testamento, porém com o intuito de invertê-la, de subvertê-la dentro de uma perspectiva de apologia da modernidade. Para ele, a ausência ou a supressão progressiva do testamento deixam justamente aos herdeiros que somos, nós, membros das sociedades modernas individualistas, a chance de poder «fazer a triagem» dentro de tudo o que nós é legado pelas gerações anteriores, de poder decidir o que nos convém, isto é, em suma, de poder redigir nós mesmos o testamento. A Alain Finkielkraut, que, num livro intitulado L’ingratitude (A ingratidão - publicado em 1999) se desola diante da ignorância ou da

indiferença que a nossa civilização, segundo ele, vem mostrando em relação a tudo o que as gerações do passado nos transmitiram como herança – esse «dom dos mortos» do qual fala, por sua vez, Danièle Sallenave (Le Don des morts, 1991) a respeito da literatura -,

François de Singly responde que «é preciso romper com esta visão maniqueísta de uma escolha entre a visão de que “tudo seria determinado pela herança” e a ausência de todo passado, entre o hino em homenagem aos mortos e a amnésia. Tais propostas ignoram a especificidade da memória que não tem sentido a não ser como passado atualizado, um passado tendo um sentido para o presente. » (p. 30). Para François de Singly, que, em relação a este ponto, se encontra em convergência com os estudos de outros sociólogos tais como Claudine Attias-Donfut, a maioria dos indivíduos não vive hoje num vazio que seria criado pela recusa ou pelo desaparecimento de toda herança. Simplesmente, eles sabem ponderar o valor das coisas (em francês, «faire la part des choses»), atribuir a elas o seu devido valor, tomar uma distância, instaurar com as gerações anteriores relações mais livres, mais leves e, de certa forma, mais felizes. De fato, esse debate não é novo. Assim, ao inglês Edmund Burke que, já em 1790, nas suas Réflexions sur la Révolution de France (Reflexões sobre a Revolução da França), se

indignava com uma revolução que, em nome dos direitos humanos, e por meio da supressão dos costumes e das tradições, voltava a romper essa ligação duradoura entre as gerações, «essa associação entre os vivos e os mortos» que fundamenta a continuidade e a solidez de um Estado, o americano Thomas Payne, um ator e defensor fervoroso da Revolução francesa, respondeu, no seu ensaio Les Droits de l’homme (Os Direitos do

homem - publicado em 1791): «Eu defendo os direitos dos vivos e tento impedir que eles sejam alienados, alterados ou diminuídos pela autoridade usurpada dos mortos.» O debate prossegue durante todo o século 19, opondo os defensores do pensamento romântico, que sublinha a irredutível vinculação do homem a uma história, a uma tradição, a uma nação, uma língua, uma cultura, aos herdeiros do pensamento liberal e universalista das Luzes. Uma reflexão a este respeito pode ser encontrada na obra do filósofo Alain, o qual defende, na esteira de Auguste Comte, a idéia de que «é o vínculo do passado com o presente que faz uma sociedade», não o vínculo de fato, que é um vínculo ainda «animal», e sim o vínculo de culto e de cultura, aquele que faz reviver o que houve de mais importante entre os mortos, o vínculo de «comemoração». É logicamente a uma concepção tão densa, inquieta e quase religiosa da relação com o passado que François de Singly opõe a sua visão aberta, maleável e, praticamente facultativa da herança. Um paradoxo interessante revela-se contudo no seu texto: é o reconhecimento ou a reivindicação, assim como vimos anteriormente com Hannah Arendt, de uma espécie de exceção pedagógica. «Durante a sua infância”, observa François de Singly, “o jovem recebe uma educação, uma nacionalidade, uma visão do mundo, eventualmente uma religião, que escapam, pelos menos em parte, ao seu livre-arbítrio inicialmente fraco demais.» (p. 57) Portanto, a relação pedagógica entre a criança e seus

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educadores não pode ser de mesma natureza que a relação «entre indivíduos individualizados que dispõem do seu próprio poder de decisão.» (ibid.) Resta saber, entretanto, conforme constata Alain Renaut a respeito de Hannah Arendt, como essa «exceção do vínculo pedagógico» pode ser legitimada junto a alunos. Se não houver mais, na escala da sociedade global e dentro do mundo adulto, um dever de memória, um sentimento de dívida patrimonial, nenhuma obrigação de execução testamentária, como será possível continuar a impor aos alunos programas de estudos, isto é, escolhas prescritivas de coisas que devem supostamente ser ensinadas e aprendidas? E como, sobretudo, entre os componentes do currículo, será possível justificar o ensino de disciplinas de dominante hermenêutica e patrimonial, tais como a literatura, a filosofia ou a história? Será que a «crise didática» que aflige hoje essas disciplinas que eram chamadas, outrora, «humanistas» e que se baseiam em grande parte no conhecimento (e no reconhecimento) de um corpus de autores e de obras «canônicas», não tem algo a ver com essa questão da perda de autoridade da tradição, com o culto do jovem e do novo, com a impaciência da eficiência, com a obsessão do útil, do fácil ou do fútil que certos observadores ou profetas pessimistas como Alain Finkielkraut na França, ou, nos Estados Unidos, Neil Postman ou Alan Bloom (cf. L’Ame désarmée, A Alma desarmada - 1987, tradução de The Closing of American Mind) acusam hoje de estar invadindo e de corromper

toda a cultura?

2. Seria a crise da cultura escolar um sintoma de ruptura entre gerações? Um debate acirrado porém, na minha opinião, bastante artificial, parece hoje na França dividir o mundo da educação em dois campos pretensamente antagônicos, os quais seriam o campo dos partidários do saber e o campo dos partidários da pedagogia. Um dos objetos sérios deste debate pouco sério é a questão da chamada crise da cultura escolar. Por cultura escolar, entendo o conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, submetidos a um «condicionamento didático» e organizados na forma de programas de estudos institucionalizados, são objeto de uma transmissão deliberada no quadro dos estabelecimentos de ensino. Uma crise cultural é sempre uma crise de credibilidade, uma crise de legitimidade. Ensinar e aprender são ações que pressupõem esforços, custos de toda natureza. Ora, para fazer com que estes sejam aceitos no longo prazo, uma concepção puramente «instrumental» ou «comunicativa» ou, inversamente, uma concepção puramente «dogmática» ou «repressiva» do ensino não seriam suficientes: é preciso que aquilo que é ensinado ou aprendido valha a pena.

Pode-se considerar essa experiência ou essa exigência de um valor próprio da coisa ensinada como constitutivas do desejo próprio do docente e como fundamento de sua autoridade na qualidade de autoridade pedagógica. Um debate desenvolve-se hoje em torno da crise da autoridade no quadro das instituições educativas. Será na qualidade de adulto, na qualidade de representante do mundo dos adultos, que o docente está enfrentando hoje, frente aos seus alunos, um recrudescimento dos «problemas de autoridade»? É verdade que o enfraquecimento das hierarquias, a redução das distâncias, a igualação, ao menos simbólica, das condições e dos estatutos na era do individualismo democrático contribuem fortemente para essa erosão da autoridade pedagógica. Mas, o docente frente aos seus alunos não é «um adulto igual aos outros», ele não é apenas o representante do mundo dos adultos, e sim, muito mais diretamente e muito mais especificamente, por estar investido de uma função de ensino, isto é, de transmissão de competências e de formação intelectual, o representante do mundo do saber e da cultura. A crise da autoridade docente, é portanto antes uma crise de autoridade da coisa ensinada, uma crise de credibilidade ou de aceitabilidade: tal coisa não tem mais interesse, não «acreditamos» mais nela. Em função disso, na nova formulação dos programas e das diretrizes pedagógicas, observa-se hoje com freqüência uma tendência a evitar a questão

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dos conteúdos, ou, melhor dizendo, a aplicá-la mais uma vez dentro do formalismo oco do «aprender a aprender» que supostamente deveria satisfazer a todo mundo, ou ainda dentro do tecnicismo impreciso de uma abordagem em termos de taxonomia das competências. O fato de essa crise atingir sobretudo as disciplinas literárias e «patrimoniais» (letras, línguas antigas, história, filosofia), as disciplinas nas quais a questão do valor das coisas ensinadas não poderia ser reduzida a uma questão de «validade» - assim como se fala da «validade» de um resultado científico ou de um procedimento técnico, uma validade sempre provisória e sujeita à obsolescência, fala-se da «validade» de um símbolo, de uma obra de arte ou de uma obra de pensamento – tem algo a ver com a distinção que propus anteriormente entre a relação interativa concreta (e que comporta inevitavelmente uma dimensão de reciprocidade) que pode se estabelecer por ocasião do encontro entre os representantes de duas gerações diferentes e a relação mais distante, mais abstrata e irremediavelmente dissimétrica que se estabelece entre as gerações presentes e as do passado, uma vez que é essa dimensão da memória longa que os programas escolares parecem ter cada vez mais dificuldades a assumir. Mas seria uma falta de justeza, e talvez, até mesmo um defeito de justiça, considerar esta questão da dimensão temporal longa da cultura e da educação de maneira apenas retrospectiva, como uma piedade que não seria equilibrada e que seria, ao mesmo tempo, imbuída de uma antecipação e de uma esperança. A fórmula de Auguste Comte (citada por Alain nos seus Propos sur l’éducation – Comentários sobre a educação) segundo a qual «o peso crescente dos mortos não pára de regular cada vez melhor a nossa instável existência» só diz a metade das coisas. O que regula, orienta e finaliza as nossas existências, talvez seja muito mais essa promessa de uma continuidade do mundo que nos é trazida, a nós adultos, coletivamente, por todas as crianças, e que nos trazem, a nós pais, individualmente, os nossos próprios filhos, e que é a contrapartida dessa responsabilidade tão pesada quanto instigante que nos conduz a acolhê-los, a instruí-los, e, conforme diz tão bem a palavra, a «criá-los», deixando-lhes contudo as suas chances de inventar algo novo.

Traduzido do francês por Jean-Yves de Neufville Referências bibliográficas

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