Fotografia Contemporânea, Corpo Afecção e Imagem

21
Fotografia contemporânea – corpo, afecção e imagem Antonio Fatorelli * Resumo: O debate contemporâneo acerca das novas tecnologias implicadas nos circuitos de produção, difusão e recepção de imagens reanima algumas proposições sugeridas por Henri Bergson no contexto das relações não mediadas entre sujeito e objeto. Na atual conjuntura, é pertinente indagar a respeito do modo como as mediações maquínicas – mecânicas, eletrônicas e digitais – estão alterando a atividade perceptiva de modo a deslocar os lugares tradicionalmente ocupados pelo sujeito e pelo objeto. Pretende-se dimensionar, a partir das contribuições teóricas de Henri Bergson, Gilles Deleuze, Raymond Bellour e Mark Hansen, as reconfigurações processadas no âmbito da fotografia e da imagem digital. O ponto central deste percurso crítico situa-se na experiência afetiva e no envolvimento corporal do espectador nas situações de instalações que contam com a fotografia como operadora central do trabalho. De forma complementar, a noção de percepção corpórea destaca as transformações processadas no âmbito do observador, solicitado a desempenhar funções mais ativas no contexto das instalações. Palavras-chave: Fotografia; Digital; Percepção corpórea. Abstract: Contemporary debates about new technologies involved in the circuits of production, dissemination and reception of images revive some propositions suggested by Henri Bergson in the context of non-mediated relations between subject and object. Within this framework it’s relevant to inquiry how machinical mediations – that is, mechanical, electronic and digital – are altering the perceptive activity in such a way to displace positions traditionally occupied by the subject and the object. Departing from the theoretical contributions of Henri Bergson, Gilles Deleuze, Raymond Bellour and Mark Hansen, the thesis hopes to dimension the reconfigurations processed in the ambit of digital photography and image. The key point of this critical journey is located in the affective experience and in the corporeal involvement of the spectator in situations of installations that rely on photography as their main agent. In a complementary way, the notion of corporeal perception highlights the transformations processed in the ambit of the observer, who is requested to perform more active functions in the context of the installations. Key words: Photography; Digital; Corporeal perception. * Doutor em Comunicação e Cultura e professor associado da Escola de Comunicação/UFRJ. E-mail: [email protected]

description

corpo

Transcript of Fotografia Contemporânea, Corpo Afecção e Imagem

Fotografia contempornea corpo, afeco e imagem Antonio Fatorelli Resumo: O debate contemporneo acerca das novas tecnologias implicadas nos circuitos de produo, difusoerecepodeimagensreanimaalgumasproposiessugeridasporHenriBergson nocontextodasrelaesnomediadasentresujeitoeobjeto.Naatualconjuntura, pertinenteindagararespeitodomodocomoasmediaesmaqunicasmecnicas, eletrnicas e digitais esto alterando a atividade perceptiva de modo a deslocar os lugares tradicionalmente ocupados pelo sujeito e pelo objeto. Pretende-se dimensionar, a partir das contribuies tericas de Henri Bergson, Gilles Deleuze, Raymond Bellour e Mark Hansen, as reconfiguraesprocessadasnombitodafotografiaedaimagemdigital.Opontocentral destepercursocrticositua-senaexperinciaafetivaenoenvolvimentocorporaldo espectadornassituaesdeinstalaesquecontamcomafotografiacomooperadora centraldotrabalho.Deformacomplementar,anoodepercepocorpreadestacaas transformaesprocessadasnombitodoobservador,solicitadoadesempenharfunes mais ativas no contexto das instalaes. Palavras-chave: Fotografia; Digital; Percepo corprea. Abstract: Contemporarydebatesaboutnewtechnologiesinvolvedinthecircuitsofproduction, dissemination and reception of images revive some propositions suggested by Henri Bergson in the context of non-mediated relations between subject and object. Within this framework its relevant to inquiry how machinical mediations that is, mechanical, electronic and digital arealteringtheperceptiveactivityinsuchawaytodisplacepositionstraditionally occupied by the subject and the object. Departing from the theoretical contributions of Henri Bergson, Gilles Deleuze, Raymond Bellour and Mark Hansen, the thesis hopes to dimension the reconfigurations processed in the ambit of digital photography and image. The key point of this critical journey is located in the affective experience and in the corporeal involvement of the spectator in situations of installations that rely on photography as their main agent. In acomplementaryway,thenotionofcorporealperceptionhighlightsthetransformations processed in the ambit of the observer, who is requested to perform more active functions in the context of the installations. Key words: Photography; Digital; Corporeal perception.

Doutor em Comunicao e Cultura e professor associado da Escola de Comunicao/UFRJ. E-mail: [email protected] Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 2 1. Introduo Emumadasmaisinspiradaspassagensdafilosofia,Bergsondelineouumafiguraodo universoquepermanecerepercutindo,demodoprodutivoecriativo,notrabalhodevrios pensadoreseartistascontemporneos:adeumuniversoempermanentemovimento, constitudo de imagens que agem e reagem umas sobre as outras em todas as suas partes. Relativamente s imagens anteriormente proporcionadas pela cincia, essa proposio tem a vantagemdeoferecerumaimagemmvel,constitudadeelementosheterogneos combinadosdemodoacriararranjossempreprovisrioseimprevistos.Umaconfigurao desprovida de planos hierrquicos, de espacializaes do tipo superior/inferior, frente/fundo, dentro/fora, bem diferente das imagens oferecidas pelas concepes cientficas de inspirao mecanicista e pelas representaes pictricas clssicas, essencialmente estticas, centradas na pose. Essaimageminstvel,desafiadoraparaopensamentoqueprocedeporetapasedemodo sucessivo,exibeoutraface,nomenosinquietante. Nessaprimeiraconcepodouniverso propostaporBergson,todososcorposeatotalidadedosobjetosmateriaisso indistintamente considerados como imagens que se influenciam mutuamente.Essa singular proposio implica emuma ruptura comasconcepes antropocntricas predominantes na cultura ocidental, das quais decorrem os desvios tanto da impotncia quanto da prepotncia do pensamento. Nomomentoemqueformulousuatese,Bergsonestavaparticularmenteinteressadoem superarosantagonismos,semprereducionistas,presentesnascinciase,emespecial,na psicologia e na fisiologia em finais do sculo XIX. Seu intuito foi o de questionar a lgica das proposies que faziam derivar o mundo material dos dados da conscincia, posio idealista e,poroutrolado,aquelasquebuscavamdarcontadaconscinciaapartirdamatria, posiomaterialista.Inquietaoqueeleenunciounosseguintestermos:Comoimaginar uma relao entre a coisa e a imagem, entre a matria e o pensamento, uma vez que cada um desses dois termos possui, por definio, o que falta ao outro? (Bergson, 1990, p. 28). Concebendoinicialmenteumuniversomaterialcentradoondetodasasimagensageme reagemindistintamenteumassobreasoutras,Bergson(1990,p.13)prope,emum segundomomentoedemodomaiselaboradoque,dentretodasasimagensumaimagem emespecial,aimagemdeumcorposensvel,apresenta-secomoumtipodetelaoude Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 3 cran,vindoainterromperomovimento,deoutromodoindistintamentevarivel,das imagens.Chamo de matria o conjunto das imagens, e de percepo da matria essas mesmasimagensrelacionadasaopossveldeumacertaimagem determinada, meu corpo. Essa imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se todasasoutras;acadaumdeseusmovimentostudomuda,comose girssemos um caleidoscpio. Deste modo discernidas, as imagens integram, ao mesmo tempo,[...] dois sistemas diferentes, um em que cada imagem varia em funo dela mesmaenamedidabemdefinidaemquesofreaaorealdasimagens vizinhas, e outro em que todas variam em funo de uma nica, e na medida varivelemqueelasrefletemaaopossveldessaimagemprivilegiada (Bergson, 1990, p. 16).Orelevantenapassagemdaconcepoinicialdeumuniversocentradoemquetodasas imagensvariamindistintamenteparaoseguinte,emqueelaspassamavariarapartirda presenadeumcorpo,chamadodecentrodeindeterminao,asuposiodequeas imagenspreexistemconscincia,queomundomaterialprecedeapresenadeuma conscincia que viria interpret-lo. Ocorposedestacanessemomentocomoumcran,umanteparo,umtipodetelaopaca, verdadeiroprocessadorqueatuasimultaneamenteabsorvendoerefletindoimagens,de modo muito semelhante ao negativo fotogrfico uma vez exposto ao da luz. A presena dessa tela opaca, por um lado, interrompe o movimento da variao universal e, por outro, cria um novo regime da imagem fundado sob o signo da interrupo. A presena do centro deindeterminaoimplicanecessariamenteemumintervalo,inicialmenteemrelao matria, que deixa de receber e refletir o movimento em todas as suas faces e, em seguida, em relao ao tempo demandado entre a percepo da matria e a ao correspondente. So muitas as consideraes que decorrem dessa concepo filosfica, mas uma apresenta-se especialmente relevante no contexto deste artigo. Justamente a ideia de que a percepo damatria,suarepresentaomentalesubjetiva,sempresubtrativa,ouainda,queo centrodeindeterminaopercebearealidadeobjetivasempresegundooseuinteresse Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 4 circunstancial,desconsiderandomuitasdassuasqualidadesfsicasconstitutivas.Umavez descartadaapossibilidadedeumapercepoplenaepuradoobjeto,aafeco,omodo comoosujeitosepercebe,ousesente(Machado,2009,p.257),desempenhaopapel decisivodereguladordasrelaesentreapercepoeaao.SegundoBergson,essa regulaopodesermaisoumenoscomplexa,dependendodograudediferenciaodo organismovivo,demenoramplitudenosseresvivosunicelularesemaisabrangentenos organismoscomplexos.Apercepoimplica,demododiferencial,nacolaboraode imagensjfixadasnamemriae,tambm,deimagensvirtuais,quevmassociadass imagens atuais, processando-se de modo tanto mais amplo quanto mais abrangentes forem osinteressesinvestidosnaao.Aparticipaodocorpo,compreendidocomocentrode indeterminao,podeserdimensionadapelasuacapacidadedecontraircircuitosmaisou menos vastos. Diferentementedapercepo,quemedeopoderrefletordocorpo,aafecomedeseu poderabsorvente,apontaparaointeriordocorpo,paraoqueessecorpoacrescentaaos corposexteriores.Portanto,maisdoqueprolongarestmulosexternosemaes consecutivas,almdeapenasreagirdemodoprevisvelemconcordnciacomohbitoe comasdemandasimediatas,ocentrodeindeterminaopodeproduzirumaexperincia singular,criarnovoshbitos,despertarnovasdisposies.Bergsonassociouessesdois modosdeaocorporaladuasformasdememria.Porumlado,alembranadocorpo, constituda pelos sistemas sensrio-motores organizados pelo hbito, que busca no passado o registro de experincias anteriores tendo em vista o melhor desempenho da ao prtica imediata e, por outro lado, a contribuio da lembrana espontnea e pessoal, a lembrana pura, que contrai as regies do passado, seus diferentes nveis e estratos. A importncia de Bergson para a arte decorre do reconhecimento e da importncia que ele conferiuaesseintervaloentreapercepoeaaopragmtica.Diferentementeda imagem-aoquemobilizaosmecanismossensrio-motores,montadossobreoshbitos adquiridoseosautomatismosdapercepo,sempredemodoaprolongarosestmulos recebidosemaesconsecutivas,aimagem-afecomobilizaamemriapuraeo imaginrio na criao de uma nova entidade, alterada ou mesmo produzida, de modo mais ou menos autnomo. Bergson destaca essas duas direes possveis do trabalho exercido pelo corpo. Por um lado, quandoreferidoaosautomatismosperceptivoseaohbito,umavezdefrontandocomos Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 5 desafiosdeumaaoiminente,ocentrodeindeterminaoselimitaaprolongaros estmulosobjetivosrecebidosemaoprtica.Poroutravia,umavezdesencadeadosos processosafectivos,abrindoumhiatoentreapercepoeaao,ocorpoexpandeasua margemdeindeterminaodeixandoentreveroseupapelprodutivo.Estabelece-se,nesse momento,umarelaosingularcomovirtualquevaimarcaroconjuntodoselementos envolvidos nesse circuito.Acondiodeindiscernibilidadeentreoatualeovirtualdissolveasverdadesconstitudas soboregimedasoposiesdualistas,demodoacolocaremquestoasformulaes difundidaspeladoxaepelaopiniocorrente.Trata-se,sobretudo,dedesviar-sedos automatismosperceptivosepsquicosdemodoa,umavezconsideradoocorpoesuas instncias afetivas, conceber as condies de acesso a circuitos mais complexos. Ao indagar-sesobrearelaoentreapercepoeamemria,apsconcluirquecriamosou reconstrumos a todo momento (Bergson, 1990, p. 82), Bergson sublinha que a percepo atenta, tambm chamada de percepo reflexiva, funciona como um circuito, onde todos os elementos,inclusiveoprprioobjetopercebido,mantm-seemestadodetensomtua como num circuito eltrico (Bergson, 1990, p. 83), para logo a seguir complementar que o progresso da ateno tem por efeito criar de novo, no apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais ele pode se associar (Bergson, 1990, p. 84).O debate contemporneo acerca das novas tecnologias implicadas nos circuitos de produo, difuso e recepo de imagens reanima as proposies enunciadas por Bergson no contexto dasrelaesnomediadasentresujeitoeobjeto.Algumasindagaesapresentam-se pertinentesnessanovaconjuntura:asmediaesmaqunicasalteramsubstancialmentea aquisio perceptiva a ponto de promoverem a reconfigurao dos lugares tradicionalmente ocupados pelo sujeito e pelo objeto? Essas novas imagens de matriz mecnica, eletrnica ou digital apresentam-se como mediadoras das relaes entre o sujeito que percebe e o mundo material objetivo ou, de outro modo e implicando novasrelaes, elas mesmas se impem comoumobjetomaterialautnomo?Automaticamenteconstitudas,asimagensatuais estariampromovendoadestituiodosujeitopercipientedasuaposiodecentralidade, dessemodoanunciandoummundomaqunicoautogerido?Nostermosdassuas formulaes, essas indagaes projetam a utopia, simultaneamente idealizada e temida, de umaradicaldessubjetivaodomundo,umcenrioemqueasimagensexistiriame reagiriam em funo delas mesmas e, por outro lado, um mundo desmaterializado, em que prevaleceriam,naausnciadeobjetosmateriaistangveis,osprocessossubjetivosde Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 6 aquisio perceptiva e cognitiva. Situaes limites que legitimariam as teses de inspiraes mecanicistas e dogmticas contra as quais Bergson se insurgira.NotrabalhodeatualizaodeBergson,inscritonaproposiodeumneobergsonismo (Hansen,2004,p.75),contemporneostransformaesfisiolgicas,psicossociais, epistemolgicas, institucionais e tecnolgicas implementadas ao longo do sculo XX, devem serconsideradasalgumasrelaes:oinditoefundamentalpapeldesempenhadopelos dispositivostecnolgicosdecriao,inscrio,reproduoedifusodaimagem;aprpria noodeimagemdigital,essasconfiguraes,cadavezmenostangveis,disseminadasde modosemprecedentenouniversomaterial;e,igualmentedecisiva,adisseminaode novasmodalidadesdeatuaoporpartedosujeito,defrontadocomumaimagemquese apresentaelamesmaprocessual,fragmentadaeinstvel.Transformaesquealteram substancialmenteaimagemdemundoeasrelaespressupostasentresujeitoeobjeto, correntes no sculo XIX. Aquestodecisivacolocadanessemomentodetransiorefere-senaturezadas transformaesemcurso,aotrabalhodeidentificaodoqueestmudando,e qualificao das transformaes processadas no interior das imagens e entre os sistemas de mdias. Revoluo, mudana de paradigma, ou reconfiguraes do lugar e da importncia do sujeitoedaimagem?Estaramosconfrontadosaumamudanasubstancial,dianteda emergnciadenovosparadigmas,deumnovoconceitodeimagemedeumarelao significativamentealteradaentresujeitoeimagemou,sedeoutromodo,trata-sedeum processodemutaoquecolocaemperspectivaalgumasinstnciasdasrelaes pressupostasentreosujeitoeamatria,semalterarsignificativamenteanaturezadas relaes historicamente institudas.Aseguir,comocontribuioparcialaoenfrentamentodessasquestesdefundo, dimensionaremosasrepercussesassociadasaduasformulaestericasparticularmente relevantesacercadasimagensfotogrficas.Soelas,aquestodareprodutibilidade, diretamenteassociadanaturezamecnicadoregistro,eaquestodosdiferentes dispositivoshistoricamenteassociadosimagemesttica.Acreditamosqueaidentificao dessesdoistraosdistintivosassociadosaessaprimeiraformaimagticaautomticapode contribuirparaoenfrentamentodealgumasdasquestesqueenvolvemodestinodas imagens na contemporaneidade.Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 7 2. Reprodutibilidade e desterritorializao Oadventodafotografiasignificouaemergnciadeumaformavisualdecaractersticas substancialmentedistintasdasexibidaspelastecnologiasimagticasprecedentes.Ao automatismodainscrio,quemodificoudeformadecisivaarelaoexistenteentrea imagemeacenaretratada,acrescentaram-se,logoaseguir,osefeitosdecorrentesda reprodutibilidade do suporte fotossensvel. A inscrio automtica das aparncias significou a valorizaodoefmero,docasualedocontingentesobreapose,fundandoumaesttica quesetornariaparadigmticadaproduovisualdosculoXX,enquantoa reprodutibilidade, referida ao seu modo singular de operar os signos, de torn-los mveis e intercambiveis, consignou o seu lugar de destaque na economia simblica do modernismo. A fotografia e esse aspecto determinante no contexto desta apresentao representa eventosecenase,tambm,reproduzoutrosmeios,comoapinturaeaesculturaque,a partirdessemomento,passamaseinstituir,demodoreativooupropositivo,emvistada suavirtualrplicafotogrfica.Essadinmicareprodutivaquetransformaeventosecenas em imagens singulariza a forma fotogrfica no contexto da histria dos meios visuais. Alm de associada a um conjunto de convenes e linguagens, a fotografia ocupa o lugar de uma metalinguagem, uma mdia capaz de processar e de ressignificar outras mdias. Do ponto de vistahistrico,areprodutibilidadefotomecnicafundouumalgicadeinteraoentreas imagenseumamodalidadedecontgioentreasformasvisuaisdepapeldeterminantena cultura visual moderna e contempornea. Amodernidadedafotografiaencontra-seassociadaaessaoperaoinauguralaqualela submete as formas materiais e os sistemas de imagens, convertendo-os em signos mveis e intercambiveis,operaoessencialmentereducionista,queconsistenaconversodos objetos,eventoseartefatos,naturaiseculturais,aoformatofotogrfico.Taloperaode converso confere fotografia o papel de um equivalente geral, de um elemento central na economiademercadorias,comparvellgicadepuradiferenciaoedearticulaoem unidadesdiscretasvigentesnosistemamonetrio,aformaexemplardosistemadetrocas nassociedadesindustriaismodernas.(Cf.Crary,1992;Krauss,1999;Gunning,2004; Doanne, 2002).Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 8 Todaumanovafenomenologiaseestabeleceapartirdessedeslocamentodossignos relativamenteasuaexistnciasingular,emqueestimplicadoumnovoconjuntode relaes entre o observador e as imagens, relaes distncia e temporalmente deslocadas. Essesdeslocamentos,queincorporamnovasvirtualidadesaessessignosvisuais,novos modosdeseredeinferirrelaesespaciaisetemporais,foramexemplarmente diagnosticadosporBenjaminemsuaanlisedodeclniodaaura,comoumatransioque resultounadissoluodasrelaesespacialmentereguladasquetradicionalmente conferiram uma existncia singular imagem. Abstrada do aqui e do agora, a imagem fotogrfica passa a incorporar outras virtualidades a cadacircuitodeatualizao,deixandoentrevernovasrelaesespaciais,temporaise subjetivas,tornando-seelamesmaondice,agoraemaberto,dessasinumerveis passagens.Essacondioindicaqueasuapresenaeosseussignificadospassama dependerdascircunstnciasformais,culturaiseinstitucionaisquecircunscrevemoseu surgimento e apreenso a cada atualizao.Comparativamente s imagens artesanais, as imagens tecnolgicas e, entre elas, a imagem fotogrfica, identificada como inaugural e prototpica desta cadeia, incorporam, do ponto de vista histrico, significativas mutaes exemplares da nova condio da imagem no contexto ps-industrial. Infinitamente reproduzvel, a imagem fotogrfica desembaraa-se do valor de culto,tradicionalmenteassociadonoodeoriginal,aomesmotempoqueseapresenta, cada vez mais, como o lugar mesmo no qual se processa a experincia.Afotografiaocupahistoricamenteolugarintermedirioentreasimagensartesanais, confeccionadas em conformidade ao gesto reconhecidamente subjetivo e autoral do artista, easimagensdigitais,geradasapartirdeclculosalgortmicosnaausncia,pelomenos relativa,dequalquerreferentefsico.Asuapotnciadecorreprecisamentedessacondio ambgua,deencontrar-seameiocaminhoentreosprocedimentoscriativosartesanais associadosssociedadespr-modernasesatuaistecnologiasdigitais.Agregadode naturezaedeartifcio,dehumanoedemaqunico,afotografiasefurtastentativasde classificaocategricasfundadasnapressuposioontolgica.Heterogneapornatureza, irremediavelmentemltipla,aimagemfotogrficaintegraasriedoshbridosmodernos, esses objetos que pertencem a natureza, ao coletivo e ao discurso, como preconizados por Latour (1994, p. 64).Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 9 Umavezapreendidacomomerodocumento,confinadacondiodeduplicaomecnica deumaaparnciadomundo,aimagemfotogrficaapresentaasuafaceenigmtica, deixando entrever que, por trs das formas imediatamente visveis e apreensveis, todo um outroterritriosedeixadivisar,lugardoirrepresentvel,doinconscienteoudotempona suaformapura.Umavezapropriadapelovisdaformaficcional,tomadacomopura fabulao, ela insiste em exibir o trao mesmo do mundo, a marca indelvel de uma matria palpveleoresultadodaaodosfeixesdeluzrebatidossobreumapelculasensvel. Desdequecentradasnaseparaoinflexvelentresujeitoeobjeto,tantoasformulaes tericasquantoacompreensohabitualdafotografiadeixamescaparinevitavelmenteos seusmodossingularesdeexistncia,simultaneamentepassivoeativo,mostrativoe pensativo, subjetivo e objetivo. Quandoconfrontadacomosprocedimentosediscursosconsignadospinturaprtica artesanalporexcelncia,historicamenteassociadasexpressessubjetivas,afotografia tende a manifestar preferencialmente os seus atributos maqunicos, imparciais e impessoais. Uma vez comparada imagem digital, a essa outra episteme que a sucedeu historicamente, afotografiaexibeasuamarcadeimagemanalgica,aindadependentedeprocedimentos artesanais, de filmes e de papis sensveis, de projees ticas e de variveis qumicas, uma imagem-objeto,dotadadepesoededimensesvariveis,mas,sobretudo,dependente tantodeumsujeitosituadonotempoenoespao,queprocedeapartirdeumpontode vistasemprecircunstancial,quantodaaofsicadaluzsobreumasuperfciematerial. Indagadaquantoasuanaturezaontolgica,foradaaseinstituircomosingularidadeno contextodeumaarqueologiadasformasvisuais,afotografiatendeaseapresentarde formaparcial,emcontrapontosdefiniesconfrontadas,aomododeserdasartes plsticas ou da imagem digital. Emumaentrevistaconcedida12anosapsapublicaodojclssicoOatofotogrficoe outrosensaios,PhilippeDuboissugereumredirecionamentodasformulaesque orientaramotrabalhotericoatosanos1980,muitasdelascentradasnaspremissas estruturalistas. Aps lembrar que o seu propsito, neste livro, foi o de tentar compreender o quesingularizavaaimagemfotogrficarelativamentesoutrasformasvisuais,comoa pintura, o cinema e o vdeo, Dubois (1992, p. 3) acrescenta: Hoje,decorridosmaisde10anos,apaisagemmudou.Recentemente,a teoriatemsidocadavezmaissubstitudapelaestticaepelahistria,eo Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 10 especficodalinguagemsubstitudoporumdiscursosobreonoespecfico, isto , sobre o transversal, sobre o que passa de uma categoria para outra. A atenonorecaimaissobreascategoriasisoladasmas,pelocontrrio, naquilo que comum a vrias categorias. Ento, no existe mais o interesse pelafotografiacomomodoautnomo.Percebe-se,aocontrrio,quea fotografianopodeserpensadaporelamesma,queprecisopens-laem relaopintura,snovastecnologiasdainformtica,dasimagens magnticas. No mais uma questo de especificidade, mas uma questo de integrao das artes, integrao das imagens (Dubois, 1992, p. 3). No incio da dcada de 1990, quando Dubois prope a subordinao da teoria histria e esttica e o redirecionamento do escopo da pesquisa, j no se demonstrava possvel pensar eindagarasimagensapartirdosseusatributosespecficos.Nessemomentoemqueas prticasps-modernasmiscigenadasjhaviammarcadoocenriodasartesvisuaiseas tecnologiasinformticasanunciavamoutroregimedeproduoedecirculaodossignos, tornava-senomnimoanacrnicomobilizarasobrasdosgrandesexpoentesdaescola purista ou as imagensproduzidas com inteno documental soessas as fotografias que invariavelmenteservemdeapoiosanlisesquecelebramasuaautonomiacomo manifestaesquelegitimariamadefesadaespecificidadedomeio.Certamente,nose tratadedesconsiderarasdiferenas,desubsumirapartirdanoodeimagemtodasas ocorrncias visuais, mas perceber, como sugeriu Dubois, que as singularidades se instituem, tambm,em relao acontextos histricos particulares, como resultados de estratgias ou deagenciamentosquemuitasvezesfazemaimagemeomeiofuncionaremaliaonde parecia improvvel. Trata-se,portanto,noapenasdereconhecerumsupostorealismofotogrfico, intrinsecamenteassociadosuaestruturatcnica,masdeigualmentecontextualiz-loem relaoaosmovimentosfotogrficoshistoricamentedatadosdepercebercomoas propriedadesautomatistaseindiciaisforammobilizadaspelaproduofotogrfica surrealista, ou considerar as relaes de solidariedade entre a instantaneidade do registro e aestticaconsagradapeloconceitodemomentodecisivoou,contemporaneamente, contemplar os diversos modos e as mltiplas estratgias pelas quais a fotografia se hibridiza comaliteratura,agravura,asartesplsticas,ocinemaeovdeo.Importa,portanto, considerarnooquepermaneceessencialmentefotogrficonessasprodues,questo essencial,denaturezaontolgica,masdeaferirasinflexesdiferenciaisexibidaspela imagem em diferentes contextos institucionais, tcnicos e mentais.Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 11 3. Variaes Sustentamosqueasfotogrficasinstantneascomportam,elasmesmas,noseuformato convencional,mltiplastemporalidades;queasfotografiasserealizamnadependnciado tempoimplicadonasdiferentesopestcnicas,temticaseeletivasadotadaspelo fotgrafo, na complexa atividade perceptiva deste, que implica a sua intencionalidade, o seu modo de ver e a sua memria. Longe de coincidirem com a noo ideal de uma pontualidade singulareinterditapassagemdotempo,aconcorrnciadessesvetoressinalizauma condiotemporalcomplexa,multidirecional,processadanocursodeumaduraoque comporta mudanas qualitativas. A variabilidade da fotografia guarda, portanto, dois nveis: aqueleproporcionadopelareprodutibilidadeinerenteaomeioe,deoutromodo,oda complexidade implicada na prpria imagem.umaoperaofundamentalsobreotempo,dedesdobramentoedemultiplicaode vetores,efetuadademodosistemticopelasproduesfotogrficasps-modernase estruturalmente presentes na morfognese da imagem de sntese, que estabelece um curto-circuitonocernedasuposioontolgicaqueavalizaaspremissasassociadasaoidealde representaoimparcialedireta,singularenica,supostamenteproporcionadaspelo dispositivo de base. Associada a vrias temporalidades, a imagem instantnea exibe o status mltiploereprodutivodafotografia,aomesmotempoqueestabeleceumarelao problemtica e complexa com o tempo presente e com o referente imediato. Em vista dessa variabilidadetemporal,aexperinciapromovidapelaimagempassaademandarum observador potencialmente mais ativo e culturalmente situado, capaz de decodificar os seus signos e de apreender criticamente o contexto social, institucional e cultural envolvente. Ahistriarecentedosmeiosvisuaiseaudiovisuaisadeumatramadeassimilaes,de contgios e de refutaes recprocas entre as diferentes formas de expresso, em flagrante desacordo com as pretenses modernistas de purismo e de autonomia. Como observa Bruno Latour(1994,p.46)(precisarepetir?)acercadarelaoentreoshumanoseanatureza, tudo acontece no meio, tudo ocorre por mediao, por traduo e por redes, mas este lugar noexiste,noocorre.oimpensado,oimpensveldosmodernos(Latour,1994:46). Essas tramas mais ou menos complexas sinalizam, no caso particular das relaes entre as diferentes formas de produo visual, a existncia de negociaes e de emprstimos entre, porexemplo,afotografiaeasartesplsticas,ocinemaealiteratura,afotografiaeo Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 12 cinema. Distribudos em rede, os meios singularizam-se em funo das diferenas advindas da confrontao com os outros meios, por vezes de modo ainda mais marcante do que em referncia as suas caractersticas tcnicas e processuais singulares. Ostatusparadigmticodafotografiacomomeioprocessadordasoutrasformasvisuais confirmaasuaradicalmodernidadeaomesmotempoqueanunciaasinconsistnciase mesmo o esgotamento das premissas hegemnicas do projeto moderno. As questes crticas suscitadaspelafotografiaps-moderna,apartirdofinaldosanos1970,emespecialas indagaes sobre o papel do autor e sobre a originalidade da obra, presentes nas sries de CindySherman,deSherrieLevine,deBarbaraKruger,entreoutros,confirmam,demodo retrospectivo, as inconsistncias implcitas na demanda modernista de autossuficincia e de autonomiadosmeios.Umavezalteradasascondieshistricas,sociaisediscursivasque conferiramfotografia,apartirdemeadosdosculoXIX,ostatusdeumaprtica paradigmtica dos processos de comunicao em geral, tornavam-se evidentes as distncias entreaproduofotogrficacriativa,manifestamenteplural,eascategoriasformais, sempre restritivas, sancionadas pela esttica modernista hegemnica. Osprocedimentoshbridosdafotografiaps-moderna,suasestratgiasdeserialidade,de repetio,decenarizao,deapropriaoede pastiche,anunciaramessasinconsistncias, fazendovacilarassuposiescentraisdomitomodernistadepurismodosmeios, exatamente ali, no corao daquela que foi a sua metfora mais emblemtica. notvel que opotencialcrticodessemovimentotenhasevoltado,demodoincisivo,spropriedades reprodutivasdafotografia,aoseustatusdeimagemmltipla,potencialmentecapazde mimetizar e de mercantilizar objetos e imagens de diferentes origens. Areciclagemdeimagenspreexistentesnombitodamdiademassaoudosarquivos pblicos, a produo serial de imagens a partir de clichs do cinema, a referncia explcita a outros modelos e convenes da histria da arte ou a reproduo literal de obras clssicas, foramprocedimentosquecolocaramemsuspeitaassuposiesacercadolugardoautor como produtor e sobre o ineditismo da obra. Ao deslocar o foco das propriedades formais da imagem, priorizadas pela fotografia direta e pura, para o do seu modo de funcionamento no circuitocultural,afotografiaps-modernarefezoselosdascadeiasdoshbridos, evidenciandoanaturezacompostaemltipladaimagem.Aodeslocarosvaloresestticos associadosaoaquieaoagoradarepresentao,asfotografiasproduzidassobessesigno exibiram as multiplicidades de tempos, de espaose de referncias atualizadas na imagem Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 13 instantnea,deixandoentreverquenessetemposuspensodofragmentocoexistemvrias temporalidades sobrepostas: um antes e um depois, um passado e um futuro. Esse lugar de mltiplasconvergnciasocupadopelaimagemolugardovirtual,deinscriodevrios eusedesriesdivergentes,bemdistantedasmetforasdajanelaedoespelhoque polarizaram a fotografia clssica, associadas ideia de representao de um mundo exterior objetivoouexpressodavisointeriordoartista.Lugaresdeatravessamentosede passagens,essasobras,dediferentesmaneiras,masdemodorecorrente,fissuraramo espelho e multiplicaram os seus rebatimentos.Aoperaopelaqualaimagemanalgicainstantneadeixaentreversuatemporalidade compostajestavapresentenasprimeirastentativasdefixaodaimagem,nafotografia pictorialistadosculoXIX,naiconografiapanormica,nacronofotografiadeJulesEtienne-MareyeEdwardMuybridge,nasexperimentaesdasvanguardasfuturista,concretistae surrealista, nos ready-mades de Marcel Duchamp, nas estratgias de serializao utilizadas porAndyWarholeemdiversostrabalhosconceituaisrealizadosaolongodadcadade 1960.Aquestodotempo,dastemporalidadesmltiplas,tambmaquesto-chave introduzidapelaimagemdigital,asaber,adainevitabilidadedeumaintervenops-produoquevemsesomaraotempodoregistro,demodoapressuporaomenosduas aesconsecutivas,temporaleespacialmentedissociadas.Porsuavez,asinstalaes multimdiaeoscadavezmaiscomplexosdispositivoscontemporneosdeprojeo comportamumatemporalidadeestratificada,resultantedasobreposiodediferentes convenesvisuaise,frequentemente,destaoutratemporalidade,denaturezasubjetiva, proporcionada pela integrao dinmica do observador com a obra. Talcondiodehibridismoentreosmeiosou,naacepodeBellour(Bellour,1997),de passagem entre as imagens, resultou, nas ltimas duas dcadas, em um corpo significativo detrabalhossituadonasinterseesentreaimagemestticafotogrficaeasimagens movimento videogrficas e cinematogrficas. Diversos fotgrafos e artistas, entre eles Alain Fleischer, Uta Barth, Sharon Lockhart e Thierry Kuntzel, criaram trabalhos com imagens em srieemobilizaramdispositivososmaisdiversoscomointuitodeconferirmovimentos imagens fixas, ao passo que inmeros realizadores como BillViola, Douglas Gordon, Janice TanakaeEricRondepierrepromoveramaacelerao,oretardoouocongelamentoda imagemmvel,vindoareencenar,masentodemodoproblemtico,acondiode imobilidade da imagem fotogrfica e do fotograma. Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 14 Ofascnioeaimportnciadafotografianocenriodasartesvisuaisedacultura contemporneadecorremdessaambiguidadefundamental,dessemodosingulardas imagenstecnolgicasamalgamaremconceitoepercepo,ideiaepresena,registroe fabulao,arteecincia.Constatamosqueopensamentocrticodosanos1970/1980 Barthes,Dubois,KrausseScheffer,entreoutros,voltadoanlisedaproduo fotogrfica,foiincapazdeenfrentarosdesafiosdesencadeadospelosmovimentos compostos,comoapoparteaarteconceitual.Podemosdimensionar,desdeaatualidade, queessaincapacidadedacrticaemassimilarasformashbridaseosprocessosde miscigenao entre as formas visuais, fundou-se sob o signo de uma operao reducionista deidentificaodassingularidadesdomeio,desdeaperspectivaontolgica,e frequentemente centrada nas propriedades tcnicas do dispositivo fotogrfico. Percurso que implicou,enfim,narecusadamultiplicidadeedavariabilidadedafotografia,afavordo singular e do idntico. Demodoemblemtico,apopartassriesfotogrficas,osfilmeseastransfernciasde suportedeAndyWarhol,domesmomodoqueasassemblagesdeRauchenberg, indicavam um estado da imagem que s viria a intensificar-se com as imagens eletrnicas e digitais. Um lugar de passagens, de atravessamentos, de sobreposies entre os meios e no interiordaprpriaimagem,umestadoemqueprevalecemasmultiplicidadeseos deslocamentos,especialmenteresistentestentativasdeidentificaodeumcentroou atribuio de relaes hierrquicas. Por sua vez, a produo do cinema estrutural, do cinema matriaedocinemaexpandidoestava,nessemesmoperodoeosfilmesrealizadospor Warhol so exemplares dessa direo , tencionando os princpios estticos, arquitetnicos e tcnicos consagrados pelos dispositivos modelo da fotografia e do cinema. Ovdeovirialogoaseguir,nocursodasdcadasde1970e1980,paraintensificarainda maisessesestadoshbridosdaimagem,apresentando-secomoumpotenteagenciador, comoum metameio,suficientementeflexvelparaassociar,almdasimagensestticasda arteedafotografia,asimagensmovimentodocinemaedaTV.Ovdeocomolugarde passagensedeconflunciasqueviriaaserradicalizado,principalmenteapartirdosanos 1990,pelaimagemdigital,aindamaissuscetvelsoperaesdequantificaoede modulao dos seus elementos constitutivos. Ainstalao,essedispositivodaartecomplexoeabertoadiferentesarranjoseformas, exibe esses estados mltiplos da imagem, intimamente associados s variaes temporais e Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 15 espaciaisprocessadasnombitodaexperinciacontempornea.Prevalece,nesses ambientes,algicaassociativadasobreposiodediferentesformasimagticas,dispostas de modo a deflagrar um jogo de confrontao entre as convenes visuais e as expectativas historicamentereferidasfotografia,aocinema,aovdeoousartesplsticas.Nessas cenografias as questes relativas s singularidades e identidade dosmeiosencontram-se deslocadas,substitudaspelassobreposieseatravessamentos,pelosmodosmltiplose sempre renovados de agenciamento das imagens e dos sistemas de mdias. Avariabilidadedainstalao,dessesarranjosespecialmentemodulveis,apresentaessa condiodaimagemconfigurar-sedediferentesmodosadependerdasrelaes estabelecidasnoconjuntodaobra,aomesmotempoqueexpesuairredutibilidadeao determinismo mecnico de base. Nointeriordessasdisposiesmodulares,muitasvezesaimagemfotogrficaproduz movimentos, tremores, frmitos, deslocamentos internos e tenses temporais irredutveis s noeshabitualmenteassociadasaoinstantneo.Porsuavez,aimagemmovimentodo vdeoedocinemacomportaparadas,suspensese,porvezes,congelamentos.Esses estados transitrios encerram, nas suas variaes, as tenses historicamente presentes nas imagensentreumaforanarrativa,quesedesdobranotempo,eumaforainterna,que aponta para a sua singularidade enquanto ocorrncia pontual.Osdeslocamentosprovocadospelosinterstciosepelosintervalosentreasimagens proporcionam o surgimento de novos modos de encadeamento, de paradas, de suspenses ou de aceleraes, alterando significativamente as margens de indeterminao do sujeito e expandindoodomnioafectivo.Essetrabalhoentreasimagens,entreaimagemfixaea imagemmovimento,realiza-sesobosignodoestranhamento,desestabilizandoas convicestradicionalmenteassociadasaosmeios,sempredemodoaacrescentaruma interrogaoeumasuspeitaporpartedoobservador.Defrontadocomestesterritrios imprecisos, como nomeou Dubois (2003), na impossibilidade de dar conta dessa experincia estticaunicamenteapartirdassuasconvicespressupostasedosseushbitos perceptivos,oobservadorsolicitadoarealizarumtrabalhointernodeassimilao,to incerto e imprevisvel quanto as imagens com que se defronta. Deste modo, uma disposio fsicaepsquicaporpartedoobservador,elemesmoconfrontadocomospressupostosda variabilidade, da instabilidade e da multiplicidade das imagens tecnolgicas. Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 16 Duascondiesapresentam-sesignificativamentealteradasnocontextoatualapontode provocaremumareconfiguraodasrelaesentreimagemesujeito.Porumlado,as imagens eletrnicas e digitais, e particularmente essas ltimas, encontram-se cada vez mais dissociadasdeumamolduraestvel,tantonasuamorfogneseimagemcelulideem confrontao com a imagem sinal e a imagem informao , quanto em relao moldura de natureza processual, a imagem digital pode atualizar-se em qualquer superfcie, mesmo na ausncia de um suporte material estvel, como o papel fotogrfico ou a tela de projeo. Poroutrolado,oobservadordasexposiesmultimdiasencontra-senacondiode coprodutordaobra,assumindoumpapelmaisprodutivo,explicitamenteidentificadonas situaes interativas, mas igualmente presente nas condies, descritas acima, de flutuao e de indeterminao das imagens e dos seus suportes materiais. Inmerosartistasquerealizamseustrabalhosapartirdaheterogeneidadesemiticados atuais sistemas imagticos investem na base multimdia da viso e na capacidade afectiva e criativa do corpo. So essas capacidades sinestsicas do corpo, referidas a esse novo status do observador e da imagem, que singularizam a experincia esttica contempornea.RetomandoasproposiesdeBergsonsobrearelaoentreconscinciaematria, inferimosqueasrecentesinovaestecnolgicasconferemumaimportnciacentralao corpo na experincia esttica. Que antes de apresentarem-se autnomas ou constitudas de modoautomtico,asimagenseletrnicasedigitais,etambmasimagensfotogrficas convencionaisumavezconformadasaoregimedavariabilidade,solicitamacolaborao produtivaecriativadocorpo,aumentandoamargemdeparticipaosubjetiva.Nose trata, certamente, da anulao de um dos termos implicados na relao, nem tampouco do retornocondioinicialdevariaouniversaldamatria,masdoincrementoedamaior incidnciadosprocessossubjetivosdeaquisio,proporcionadospelaexpansodohiato entrepercepoeao.Comosenascondiesdeinstabilidadeedequaseimaterialidade dessasimagens,ocorpoeosprocessospropioceptivosfossemconvocadosasuplementar essedficitdesubstancialidade,elemesmoincitadoacontribuirdemodoprodutivonos processosdeaquisioperceptivaecognitiva.Otrnsitodasimagenseentreasimagens promovido pela vocao reprodutiva da fotografia estabelece novas dinmicas entre a obra e a sua percepo, da ordem da distancia e da variabilidade sem, entretanto, provocarem uma mudanadeparadigmanarelaohistricaentreosujeitoeaimagemou,ainda,na dissoluo do regime da representao. Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 17 Presenciamos,nessemomentodereconfiguraodasprticasartsticasedasmdias,o surgimentodeumconjuntosignificativodetrabalhosquepassamadependerde arquiteturascomplexas,deprojeesemvriastelasededispositivososmaisdiversos. Nossasuposioadequeessasinstalaes,pelomodocomoestoorganizadasepelas experincias estticas que proporcionam, expressam as potncias do hbrido contemporneo eseapresentamcomoexpressesculturaissingulares,especialmentereferidass modalidades atuais de experincia. 4. Corpo, afeco e imagem AinstalaodeCssioVasconcellosUmavista,iexibidanoSESCSoPauloporocasioda quartaediodoprojetoArteCidade,rene67fragmentosdeumagrandepanormica, exibidos em uma rea equivalente a 2,70 X 8,0 m. Individualmente ampliados em diferentes formatos, esses fragmentos encontram-se distribudos na sala de exibio ao longo de cinco planos sucessivos, escalonados a partir de um ponto de vista privilegiado. Cssio Vasconcellos, Uma vista (2002). Esses67painisfotogrficossuspensosemnveisassemelham-se,primeiravista,aum gigantescoquebra-cabea.Aosedepararcomessasinusitadasimagensdesconexas,o Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 18 observadorexperimentaasensaodeumdecifradordeenigmas,semsabercomose posicionareoquefazerparavivenciarotrabalho.Osfragmentosdeimagensexibidos encontram-se cuidadosamente dispostos e parecem meticulosamente organizados, mas no oferecemnenhumapistadecomopoderiamserobservados.Quandopercebidas individualmente,essasimagensparciaislembramvistasepaisagenshabitualmente frequentesdacidadedeSoPaulosem,noentanto,deixarementreverqualquertipode nexoentresi.Partesdeummuro,umaesquina,automveis,transeuntesearranha-cus so apresentados na forma de flashes entrecortados de registros imaginrios da metrpole. Nofosseporessasbrevesreminiscncias,emmeiototaldesorientaoperceptiva,o observador poderia considerar estar diante de escombros remanescentes de uma destruio urbana.Envolvido por uma ansiedade inicial, o observador coloca-se em movimento, deslocando-se noespaoexistenteentreasfotografias,buscandoentrever,nocursodessaderiva, algum trao recorrente ou alguma linha narrativa que d sentido aessas imagens aparentemente desconexas. No interior da sala de exibio, diante dessas disposies espaciais semelhantes sconfiguradaspelasprimeirascmerasescuras,oobservadorincitadoarefazero percursohistrico,noaspectotcnicoeprocessual,queresultounasconvenese codificaes prefiguradas pelo sistema de projees da perspectiva uniocular.Esse sistema de projeo, criado para representar objetos e cenas tridimensionais no espao bidimensional, organiza-se em funo de um ponto privilegiado, chamado ponto de fuga ou pontodevista.Essainstalao,elamesmaintituladaUmavista,posicionaovisitante inicialmenteemconfrontocomadisposiocaticadosdadosespaciaisantesdeserem submetidosaodosistemadeprojeodaperspectiva,incitando-oaexperienciaras regras e as convenes implicadas nesse cdigo visual. Considerando que a tica geomtrica implicadanessedispositivocorrespondeaummodomuitoparticularderacionalizaodo espao,equeessaarquiteturatemporfimproporcionarailusodeprofundidadeaum observador posicionado no vrtice da pirmide visual, possvel conjecturar que esse estado deansiedadeeessacondiodederiva,inicialmenteexperimentadaspelovisitante, encontra-sediretamenteassociadacondiopr-constitutivadosujeito,anteriorasua inseronessetipodedispositivo,diretamenterelacionadoemergnciadanoode sujeito na modernidade. Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 19 Cssio Vasconcellos. Uma vista (2002). Adesorientaovivenciadapeloobservadordaexposiomotivadapelaausnciade refernciasestveis,amesmacondiodecentramentomanifestanaprimeiraimagemdo universo sugerida por Bergson quando, na ausncia de uma conscincia, os seres vivos e o conjuntodouniversomaterialocupavamasmesmasposiesrelacionaisnoespao.A seguir,acentralidadefinalmenteocupadapeloobservadornessediagramacorresponde, para alm da condio tica e das implicaes subjetivas imediatas decorrentes desse ponto de vista, ao lugar de centralidade conferido ao seu corpo, essa imagem especial que dispe asdemaisimagensmateriaisemvistadasuapresena.Umavistareencena,demodo figurado, a condio esttica e essencialmente visual do sujeito constitudo pela perspectiva para,nomomentoposterior,apresentar-secomoumdispositivocapazdeprefigurar relaes instveis e dinmicas entre a conscincia e o mundo material. Movimentando-seentreasimagens,rodeandoessespainissuspensosdedimenses variveis,oobservadorintentaposicionaroseucorpoeatualizartodooseurepertrio cultural,demodoaapreender,perceptivaecognitivamente,aobra.Transitandoentreas imagens,oobservador,aoafastar-senadireodoeixodapirmide,organizaasdemais imagens a partir dessa sua tomada de posio no espao. Esse lugar privilegiado pressupe, almdascoordenadasgeogrficasimediatamenteidentificadas,opercursosubjetivo empreendido por cada visitante, a colaborao da sua lembrana, o seu conhecimento sobre asimagenstcnicase,primordialmente,assuasintenes,tendnciaseexpectativas mobilizadas nessa experincia sensorial. Antonio Fatorelli Contemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 20 Os deslocamentos fsicos provocados por essa instalao convocam as instncias criativas do corpo que passa, ele mesmo, a instituir-se como lugar de sentido. De modo paradigmtico, ejassinalandoonovostatusdoobservadoredaimagemnaatualidade,essaobra empreendeapassagemdeumapercepovisual,centradanasproposiesticas,para uma percepo associada base multimdia da viso e participao afectiva e criativa do corpo. Referncias bibliogrficasBELLOUR, Raymond. Temps dun mouvement: aventures et mesaventures de linstant photographic. Paris: Centre Nacional de la Photographie, 1987. ______. Entre-imagens. Campinas: Editora Papirus, 1997. BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: ______. Obras escolhidas. So Paulo: Brasiliense, 1986a. vol.1 ______. A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica. In: ______. Obras escolhidas. So Paulo: Brasiliense, 1986b. vol. 1. BERGSON, Henri. Matria e memria. So Paulo: Martins Fontes, 1990. COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte da fotografia realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. CRARY, Jonathan. Techniques of the observer: On vision and modernity in the nineteenth century. Massachusetts: MIT Press, 1992. DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985. ______. A imagem-tempo. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1990. ______. Conversaes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DOANNE, Mary Ann. The emergence of cinematic time: Modernity, contingency, the archive. Cambridge: Harvard University Press, 2002. DUBOIS, Philippe. Entrevista concedida Antonio Fatorelli. Campinas, 1992. ______. O ato fotogrfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1996. ______. Movimentos improvveis o efeito cinema na arte contempornea. Catlogo da exposio. Rio de Janeiro; Centro Cultural Banco do Brasil, 2003. ______. Cinema, vdeo, Godard. So Paulo: Cossac Naify, 2004. DUGUET, Anne-Marie. Jeffey Shaw: From expanded cinema to virtual reality. In: DUGUET, Anne-Marie; KLOTZ, Heinrich; WEIBEL, Peter (Org.). Jeffey Shaw A users manual. Karlsruhe: ZKM, 1997. Fotografia contempornea corpo, afeco e imagemContemporanea, vol. 8, n 1. Jul.2010 21 FLUSSER, Vilm. Filosofia da caixa preta Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002. GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primrdios do cinema. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (Org.). O cinema e a inveno da vida moderna. So Paulo: Cosac & Naify, 2004. HANSEN, Mark. New philosophy for new media. Cambridge: MIT Press, 2004. KRAUSS, Rosalind. Explosante-fixe. Paris: Hazan, 1985. ______. A voyage on the North Sea: Art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames & Hudson, 1999. ______. O fotogrfico. Gustavo Gili: Barcelona, 2002 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. LEVIN, Thomas. Rethoric of the temporal index: surveillant narration and the cinema of real-time. In:LEVIN, Thomas; FROHNE, Ursula; WEIBER Peter (Org.). CTRL [SPACE] Rethorics of surveillance from Bentham to Big Brother. Cambridge: MIT Press, 2002. ______. O terremoto de representao: composio digital e a esttica tensa de imagem heterocrnica. In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda (Org.). Limiares da imagem: tecnologia e esttica na cultura contempornea. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. LVY, Pierre. As tecnologias da inteligncia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: MIT Press, 2000. OLIVEIRA, Luiz Alberto. Imagens do tempo. In: DOCTORS, Mrcio (Org.). Tempos dos tempos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. VIRILIO, Paul. A mquina de viso. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994. ______. A arte do motor. So Paulo: Estao Liberdade, 1996 Notas

i Cf. .