FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA E PROCESSO CRIATIVO: … · Um pensar que ultrapassa a noção de uma...
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FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA E PROCESSO CRIATIVO:
PROVOCAÇÕES A PARTIR DA SÉRIE “HABITA EM MIM”
Amanda M. P. Leite1
Universidade Federal do Tocantins (UFT)
“Ideia: elemento constitutivo da imagem”
(Flusser, 2011, p. 12)
Este ensaio apresenta fragmentos de pesquisas2 que venho realizando na
Universidade Federal do Tocantins sobre Fotografia contemporânea e processo criativo.
Mesmo que na atualidade tenhamos muitas coisas publicadas sobre estes temas, pensar
estas questões me interessa e me desafia. Para muitas pessoas trata-se de uma discussão
que perpassa os limites do que é arte e o que não é. Uma discussão bastante conhecida
nos estudos das imagens. Estudiosos como Charlotte Cotton (2013), Annateresa Fabris
(2011, 2013), Soulages (2010), Rouillè (2009), Aumont (1993) e Dubois (1993), por
exemplo, referências clássicas nos estudos de Fotografia, dedicam capítulos inteiros sobre
estes temas em suas pesquisas e publicações.
Na busca por movimentos que fazem da fotografia uma expressão artística
podemos pensar que nos processos criativos contemporâneos a fotografia aparece como
instalação estética, como intervenção em espaços públicos, o que equivale a algo muito
distante de uma captura cuja função seja documentar um evento pelo anseio de arquivar
um tempo ou de prender-se a uma narrativa cronológica de um fato. A fotografia é plural
e, ao mesmo tempo, território de passagem.
1 Fotógrafa. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do curso
de Pedagogia e do Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Site:
http://amandampleite.wixsite.com/amandaleite 2 Como pesquisadora coordeno as ações do Coletivo 50º - pesquisa e prática fotográfica. Trata-se de um grupo de
fotógrafos, professores universitários, servidores técnicos federais e acadêmicos de diversos cursos que decidiram se
reunir para pesquisar e produzir fotografias experimentais. As ações visam oportunizar a comunidade em geral a terem
vivências culturais nas mais diversas expressões e formatos. Este texto também se conecta aos resultados do projeto de
pesquisa Educação do olhar: fotografia e experiência estética, desenvolvido nos anos de 2015-2016, na UFT. Neste
projeto criei um laboratório de estudos e práticas sobre a Fotografia em articulação com o campo da Educação. O
laboratório faz parte da Atividade integrante: Fotografia e Educação que já atendeu mais de 50 acadêmicos da UFT.
A aposta educativa é que professores e acadêmicos conheçam mais sobre a produção de visualidades com ênfase na
fotografia e a partir de experimentos imagéticos, possam ampliar a questão da estética ao intercalar conceitos, teóricos,
fotografias e fotógrafos. Um modo de problematizar também a intersecção (e os conflitos) entre o campo das Artes
(Fotografia) e da Educação e de potencializar os pensamentos sobre ambas.
O pós-modernismo aproxima a fotografia da prática artística contemporânea,
mas, nem todo artista se intitula fotógrafo. Muitas vezes a fotografia é apenas “pano de
fundo” para a criação de uma imagem artística. Ao invés de enfatizar a técnica ou a
subjetividade do fotógrafo em certas capturas, os artistas preferem tomar a fotografia
como dispositivo de criação, de produção de sentidos e de significados sociais e culturais.
A fotografia enquanto produção artística se interessa muito mais por possibilidades
conceituais do que por princípios de química fotográfica. Digamos que o conteúdo pode
superar a técnica na produção de visualidades. Assim, um dos desafios da fotografia
contemporânea é deslocar o espectador da zona de conforto para uma mirada mais atenta
sobre a fotografia, que se demore nos detalhes, que se interesse pelo jogo proposto pela
imagem.
Como pesquisadora, professora e fotógrafa, sinto-me desafiada a aproximar a
fotografia da Educação entendendo que as imagens são Pedagogias Culturais, que se
apresentam como possibilidade conceitual (e metodológica) para desenvolvermos
pesquisas na área da Educação. A definição do termo Pedagogias Culturais com a qual
me identifico é a proposta de Steindberg (1997) que parte do campo dos Estudos Culturais
para pensar a Educação. Na medida em que aproximo diferentes temas da Educação posso
articular, por exemplo, educação, comunicação, arte, cultura e distintos campos teóricos.
Isto me interessa, especialmente ao pensar a formação em Pedagogia.
Trago a noção de Pedagogias Culturais não para me referir a uma pedagogia
vinculada a escolas e/ou instituições de ensino, mas um movimento que aproxima a
Educação dos Estudos Culturais do final do século XX e que coloca a Pedagogia para
pensar sentidos e significados nas relações de poder políticas e culturais que nos cercam.
Um pensar que ultrapassa a noção de uma didática pedagogizante para produzir outras
leituras nos processos educativos, especialmente no que se refere ao trabalho proposto
com imagens fotográficas. Uma pedagogia que trabalha com artefatos culturais e produz
subjetividades. Andrade e Costa (2015, p. 49) apontam que “a articulação entre pedagogia
e cultura que embasa e nomeia este conceito foi assumida para tornar este reconhecimento
mais explícito e salientar a qualidade cultural dos processos pedagógicos e das relações”.
Não posso deixar de mencionar o importante estudo de Henry Giroux (1999) que
começou a adjetivar a pedagogia em relação à cultura e que também contribuiu com a
proposta dos Estudos Culturais. Assim como o conceito de EC é aberto, o conceito de
Pedagogias Culturais também está em construção, sendo constantemente investigado,
inclusive nas pesquisas acadêmicas em Educação.
Se as imagens são meios de aprendizagem e de ensino, a Pedagogia pode tomar
as Pedagogias Culturais como possibilidades de expandir a própria formação humana,
oportunizando diálogos multidisciplinares, interdisciplinares e/ou transdisciplinares. As
fotografias são mídias alternativas capazes de conduzir diferentes discussões entre áreas
distintas. Elas podem adensar o debate conceitual como um dispositivo didático e
pedagógico para a Educação além de possibilitar pensar as relações que nos constituem e
que nos fazem criar.
Busco ver a potencialidade pedagógica que a fotografia contemporânea e o
processo criativo geram. Como Pedagogias Culturais, as imagens oportunizam que o
sujeito aprenda com a própria experiência. Girox entende que a pedagogia crítica é aquela
que se refere também a uma prática cultural. Assim, me aproximo dos Estudos Culturais
ao entender que estudantes e professores ocupam o lugar de pensadores públicos, são
figuras intelectuais que podem promover a articulação entre poder, cultura e
aprendizagem. Este desafio contemporâneo permite reescrever narrativas, símbolos e
significados sobre nós mesmos. As fotografias são artefatos culturais presentes no
cotidiano e carregam em si, percepções sobre cultura, política, poder, espaço urbano,
aprendizagem, educação. A imagem fotográfica busca novos ares, novas relações entre
estes temas.
Assim, o estudo de artefatos culturais ajuda a extrapolar o campo das pedagogias
institucionalizadas (escolares) para pensar o sujeito numa dinâmica mais híbrida, que se
deixa contaminar por diferentes concepções. O hibridismo provoca debates sobre as
pedagogias que hoje estão dispostas na formação do sujeito. Por isso, não apenas os
materiais didáticos e/ou paradidáticos são interessantes de serem analisados, mas também
o cinema, a televisão, a Internet, as redes sociais, revistas, jornais, programas de rádio,
publicidade e outros dispositivos que conectados à comunicação atravessam o sujeito
contemporâneo e compõe também suas identidades e narrativas.
Se as Pedagogias Culturais acionam em nós outros modos de perceber o processo
de ensino e aprendizagem, nas aulas que sugerem a produção de fotografias e processos
criativos, os sujeitos podem se relacionar com questões cotidianas. Uma coisa é entender
que as Pedagogias Culturais podem explorar outros modos de pensar o processo educativo
(para além das pedagogias escolares), outra coisa é compreender que as Pedagogias
Culturais também são dispositivos pedagógicos que educam o sujeito, produzem
discursos e subjetividades. (E não é isto que vemos nas fotografias o tempo todo?).
Enquanto dispositivo as Pedagogias Culturais podem nos conduzir a diferentes
leituras e percepções. Não importa procurar definir o conceito de Pedagogias Culturais a
luz de determinada corrente teórica, ao contrário, interessa dizer que as Pedagogias
Culturais são potentes meios para investigar sobre como produzimos conhecimento por
meio de artefatos culturais. Encontro aí alternativas para pesquisar imagens bem como
articular diferentes pensamentos com a área da educação. As Pedagogias Culturais são
conceitos inventados, que seguem em construção e investigação. Isto por si só já nos diz
de sua potência.
Sentindo-me motivava a buscar outras ideias sobre a produção de imagens no
tempo presente, assim proponho este texto3, pensando justamente no jogo que a fotografia
instala com o espectador. Desenho três movimentos: a) pensar a fotografia
contemporânea e o processo criativo num diálogo com a teoria de Vilém Flusser; b)
articular obras dos fotógrafos contemporâneos Willian Kass, Tatsuya Tanaka,
Christopher Boffoli e Slinkachu com a produção de arte conceitual; e c) convidar você
leitor que também impulsionar o pensar pela imagem produzindo outros modos de olhar
a partir da série fotográfica “Habita em mim”, produzida para a exposição “Meus olhos
te tocam de Man Ray a Diane Arbus4”.
Diálogo com Flusser
Na epígrafe que abre o texto, Flusser (2011) aponta que a “ideia é o elemento
constitutivo da imagem”. No livro Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura
filosofia da fotografia, Flusser define o termo imagem como “superfície significativa na
qual as ideias se interacionam magicamente” (2011, p. 12). Concordo com esta
3 Parte desta reflexão deverá compor o livro organizado a partir do 20º Cole: nas dobras do (im)possível – congresso
organizado pela Associação de Leitura do Brasil (ALB) na Unicamp. O livro encontra-se no prelo. 4 A exposição acontece de 20 de maio a 15 de julho de 2017 no Centro Municipal de Cultura e Cidadania Calouste
Gulbenkian, no Rio de Janeiro e conta com a curadoria de Lúcia Avancini e Marilou Winograd.
perspectiva, especialmente ao observar os movimentos que a fotografia tem tecido desde
sua descoberta. A fotografia não para de se reinventar. Na imagem tudo pode ser criação.
O que vemos pode nos levar a experiências singulares e novas inquietações.
Quando o olho é capturado pela imagem, a mente começa a viajar sem fronteiras.
A imagem estimula a imaginação (ou seria a imaginação quem estimula a criação de
imagens?). Miramos uma fotografia e em seguida elaboramos conexões e pensamentos,
criamos narrativas. Flusser (2011, p. 15) sugere que as “imagens são superfícies que
pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço
e no tempo”. Já a imaginação “é a capacidade de codificar fenômenos [...] e decodificar
as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens”.
Hoje, para criar uma fotografia dispomos de técnicas que abrangem desde
pintura, raspagem, desenho, colagem, fotomontagem à manipulação digital. Fotografias
digitais e artesanais convivem juntas no tempo presente e impossibilitam a classificação
da fotografia contemporânea em uma terminologia específica. Isto é bastante interessante,
pois, ao contrário de classificar a fotografia em signo, ícone, símbolo ou índice, importa
perceber a fluidez da fotografia e como ela afeta nosso olhar, nosso modo de ver e de
pensar.
Não se trata de ver de diferentes pontos, mas, reunir pontos em um novo ver. A
fotografia pode nos levar ao infinito e por isso mesmo nos libertar, fazer transbordar as
bordas da imagem indo ao encontro da diferença ou, quem sabe, da metamorfose e das
variações que cada fotografia convoca. A fotografia instala um jogo no qual variação de
texturas, cenários, personagens, objetos, perspectivas pedem que percebamos os
diferenciais da/na/para/com a imagem.
Uma fotografia intrigante pode escapar dos moldes da fotografia convencional
para propor outros arranjos. Não há obrigação de se prender a determinada técnica. A
fluidez da fotografia permite experimentar diferentes processos de composição. Como
em um jogo de quebra-cabeça, percebemos o percurso de cada artista no próprio trajeto,
ou seja, para criar uma fotografia que desassossegue o olhar do espectador, cada fotógrafo
revela um pouco de sua busca pessoal, suas pesquisas, suas influências, as associações
que estabelece com temas cotidianos, etc. Para além da representação, a fotografia pode
ser assumida como uma linguagem que incita habilidades inventivas, relações subjetivas
e formulações poéticas.
Com a banalização da produção de fotografias na contemporaneidade talvez o
desafio seja superar a mesmice de apertar o botão da câmera para criar narrativas que
movam o olhar, que despertem o interesse do leitor. A fotografia continua sendo um
processo aberto que nos permite descobrir novas formas de narrar o cotidiano. A
fotografia apresenta diferentes conceitos dentro de narrativas que podem ser inventadas,
assim, não se limita apenas à documentação de um fato ou a aparências das coisas, mas
sugere que a percebamos como composição estética, poética, artística, que move os
nossos sentidos entre o dito e o não dito.
Flusser (2011, p.16) aponta que podemos vaguear pela superfície de uma
imagem e lançar sobre ela um tipo de “olhar scanning5”, que “segue a estrutura da
imagem, mas também seus impulsos”. Deste modo, ao cruzar a imagem, a
intencionalidade do fotógrafo e as leituras que fazemos enquanto espectador expõe o
quanto tentamos estabelecer conexões diante de cada captura. Ao vaguear nosso olhar
pela fotografia buscamos elaborar relações entre os elementos que compõe a imagem. O
tempo de duração do olhar é então chamado por Flusser de tempo da magia, “no tempo
da magia, um elemento explica outro, e este explica o primeiro”.
A fotografia é tecida de presença, ausência, rumores, fragmentos de tempo, de
espaço, acontecimentos, paradoxos, incompletudes... A fotografia é atrativa por mostrar
certo encantamento no modo como narra à vida. Narrativas visuais podem impulsionar o
pensar. Por isso cada vez mais tenho me interessado em estudar as conexões entre
fotografia e ficção, especialmente pelo potencial educativo que a imagem tem.
A imaginação é o nosso passaporte para criar fotografias inesquecíveis, “as
possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis. Tudo que é fotografável pode
ser fotografado” (FLUSSER, 2011, p. 47). As fotografias podem explorar memórias,
situações cotidianas, sensações, temas ficcionais... A questão é: como lançar para fora de
nós o universo de imagens que nos habita? Uma possibilidade pode estar no processo de
criação. Uma coisa é imaginar outra coisa é projetar a imagem para fora, em forma de
5 Scanning: movimento de varredura que decifra uma situação (FLUSSER, 2011, p. 13).
fotografia. Podemos manusear o aparelho6 fotográfico como uma espécie de brinquedo,
objeto que nos convida a jogar. Neste jogo, como transpor cenas, conceitos ou ideias? O
que queremos informar?
O processo criativo exige bastante pesquisa, desde a busca de materiais que serão
usados na captura, estudo de luz, cenário, direção de objetos e personagens,
enquadramento, escolha da lente, tamanho da imagem, tipo de revelação que se pretende
até as referências conceituais e fotográficas que irão influenciar diretamente a
configuração sobre como a imagem será produzida. Muitas etapas antecedem o click
fotográfico assim como outros movimentos já estão previstos na pós-produção.
A fotografia criativa é feita de idas e vindas em torno da imagem. Um processo
longo e minucioso que não se restringe apenas aos aspectos de tomada de decisão do
fotógrafo (escolha de equipamento e técnica), mas se amplia à elaboração de uma ideia7,
um projeto, um método. Flusser (2011, p. 46) nos lembra de que “toda intenção estética,
política ou epistemológica deve, necessariamente, passar pelo crivo da conceituação,
antes de resultar em imagem”. Talvez por isso a fotografia possibilite ver e pensar por
outras vias, numa espécie de contágio com o trabalho estético visual. Cada um a seu modo
percebe a coisa em si, “fotografias são imagens de conceitos, são conceitos
transcodificados em cenas” (p. 47).
A fotografia revela a autoria do fotógrafo, sua escolha metodológica, evoca
também a leitura do espectador que se envolve com a narrativa visual e acrescenta a ela
as suas referências. Enquanto a fotografia rodar o mundo será sempre um convite aberto
a outras leituras, comunicará algo, irá propor relações. Sua porosidade e sua característica
inacabada permite que a fotografia crie um processo circular e se reinvente a cada nova
mirada.
Escolher uma fotografia final, por exemplo, aquela que irá ganhar o mundo,
circular por exposições, ser publicada em um livro ou ser postada em uma rede social não
é uma tarefa simples. Nem sempre a imagem que consideramos final é a mais interessante.
Além disso, sabemos que a fotografia nunca será final, pois poderá ser decomposta e
6 “Em suma: aparelhos são caixas pretas que simulam o pensamento humano, graças a teorias cientificas, as quais
como o pensamento humano, permutam símbolos contidos em sua “memoria”, em seu programa. Caixas pretas que
brincam de pensar” (FLUSSER, 2011, p. 42). 7 “Ideia: elemento constitutivo da imagem” (FLUSSER, 2011, p. 12).
transformada quantas vezes desejarmos. A nossa aprendizagem aparece no percurso, no
caos do processo criativo. O resultado nem sempre revela o que aprendemos ao longo da
pesquisa, na composição da imagem, na tentativa comunicar algo. A fotografia abre
passagens para a partilha de ideias. Ao entrar em contato com o espectador a imagem
ganha outros sentidos e significados, amplia-se. Por sugerir relações dinâmicas reinventa-
se o tempo todo.
Gosto de aproximar a fotografia da Educação por compreender que podemos
impulsionar outros pensamentos ao ato de ensinar. A fotografia, especialmente o percurso
de um processo criativo, propõe rupturas à Educação, vemos outras formas de estimular
o olhar e a aprendizagem. De forma mais horizontal, participativa, criativa e processual
qualquer tema pode se expandir dentro e fora das salas de aula.
Cada vez mais estudantes e professores fotografam tudo. Atividades escolares,
festas comemorativas, apresentações de trabalho. Não podemos nos esquecer de que
quem fotografa também pode ser um analfabeto fotográfico. Flusser (2011, p. 75) alerta
que “o analfabetismo fotográfico está levando ao analfabetismo textual”. Por isso,
preocupa-me que proporcionemos aos sujeitos que se encontram em processo de
formação o acesso à alfabetização (crítica) do olhar, ou seja, que qualquer pessoa
abandone o modo de olhar robótico, que nada vê nas enxurradas de imagens a que somos
rotineiramente submetidos, para pensar sobre o que as imagens nos mostram e o que elas
nos pedem a ver.
Talvez seja esse também o desejo de Flusser ao propor a filosofia da fotografia
como ponto de partida para a conscientização do olhar. Lembremo-nos de que as
“imagens são superfícies sobre as quais circula o olhar” (FLUSSER, 2011, p. 96). Assim,
“a tarefa da filosofia da fotografia é apontar o caminho da liberdade. Filosofia urgente
por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível” (FLUSSER, 2011, p. 101). E se a
vida toca a ficção e a ficção toca diferentes cotidianos, provocar o encontro da fotografia
com a Educação é algo atraente. Enquanto o olhar vagar por uma fotografia, a mente
divagará por leituras e pensamentos. Estaremos mais perto de romper com antigos
paradigmas dos processos de ensino para encontrarmos outras possibilidades.
Fotografias que inspiram...
Na sequência apresento quatro fotógrafos que são referência em fotografia
contemporânea, processo criativo e arte conceitual. Os trabalhos se conectam pelo modo
de retratar a vida cotidiana em cenas bem humoradas,
a partir do uso de miniaturas de figuras humanas e
objetos que geralmente temos em casa. Embora a
composição das fotografias aparente um jogo de
montagem ou uma brincadeira com objetos e
situações habituais, não basta ser criativo, por trás das
capturas há muita dedicação e pesquisa.
Começo pelo trabalho de Willian Kass8. Suas narrativas usam comida para criar
cenas fantásticas com cargas dramáticas. Na série “Minimize Food”, encontramos
jogadores de futebol em um campo feito de bolachas, garotas se bronzeando em cima da
metade de uma laranja, um funeral que acontece em cima de uma melancia e um pescador
que espera pelo peixe num mar de água de coco. No estilo Still Life (natureza morta), um
tipo de fotografia bastante adotada no mercado publicitário, Kass demonstra ter controle
absoluto sobre os objetos e a luz além de muita
habilidade e precisão na composição das cenas. Tudo
para dar um tom humorado e criativo às fotografias.
Kass revela ainda a influência que recebe do cinema
para compor algumas de suas obras, como é o caso
da garota de vermelho inspirada no filme A Lista de
Schindler de Steven Spielberg (1993) e Beleza
Americana de Sam Mendes (1999).
Outro fotógrafo que segue a mesma linha de pesquisa e de trabalho é o japonês
Tatsuya Tanaka. Nas fotografias de Tanaka os acontecimentos da vida ganham destaque
e fazem com que o espectador mergulhe nos detalhes de um micro universo. Suas capturas
são de uma delicadeza surpreendente. As imagens movem nossos sentidos e nos
convidam a ver as narrativas de outros ângulos. É natural que depois de olhar suas
fotografias o espectador também deseje criar, se lançar em um processo de composição
8Fotógrafo brasileiro que desde 2013 produz trabalhos para o mercado de publicidade inspirado no campo das artes
visuais. Veja mais em: https://wkass.500px.com/minimize_food_
de imagens. E, por que não? Canudinho, escova de dente, retalhos, fita cassete, pão com
gergelim... A inspiração pode surgir de qualquer lugar e a qualquer momento, basta estar
aberto e atento ao novo.
Christopher Boffoli9 é outro fotógrafo que ganhou visibilidade com a série “Big
Appetites”. Adepto do estilo Fine Art, concilia o prazer estético à perspectiva de lucrar
financeiramente com a venda de suas fotos e produtos no mercado internacional, um
movimento bastante comum entre os fotógrafos contemporâneos. Suas composições são
concebidas em cenários bastante apetitosos. As minúsculas personagens aparecem em
cenas comuns que tocam os temas: viagem, trabalho, esporte, religião e curiosidade. Em
meio a tortas, frutas, verduras, jujubas, massas, bebidas, casquinha de sorvete e ovos,
Boffoli nos provoca a pensar. Algumas composições se aproximam de fotografias já
consagradas como é o caso dos operários em cima do macarrão. Uma fotografia que nos
remete a uma das imagens mais icônicas do século XX, a fotografia histórica de Charles
C. Ebbets, feita em 20 de setembro de 1932, intitulada: Lunch atop a skyscraper (Almoço
no topo de um arranha-céu).
O quarto artista é Slinkachu, um fotógrafo do Reino Unido. Descobri o seu
trabalho há pouco tempo, ele também usa miniaturas
para produzir fotografias, mas, ao contrário dos
fotógrafos citados anteriormente sua proposta é
fotografar realizando micro instalações em
ambientes naturais e centros urbanos. O que
Slinkachu faz é uma espécie de zoom. Primeiro tira
uma fotografia panorâmica do local em que a instalação é montada, depois amplia a
imagem quadro a quadro até que a cena e suas personagens atinja as proporções desejadas.
Os frames lembram o estilo fotonarrativa e permitem que o artista edite vídeos e os
disponibilize em galerias de arte e sites. Trata-se de um projeto de instalação de arte na
rua e ao mesmo tempo um projeto de fotografia. O convite é para que os habitantes de
grandes centros urbanos adquiram consciência e sintam empatia pelas minúsculas figuras
humanas em situações habituais.
9 Fotografo americano autodidata que trabalha com fotografia publicitária, comercial, editorial e arte conceitual. Seus
trabalhos estão expostos em galerias de arte nos Estados Unidos, Canadá, Europa e Ásia. Hoje vive e trabalha em
Seattle. Veja mais em: http://www.bigappetites.net/
As obras das séries fotográficas mencionadas anteriormente não recebem títulos,
já no trabalho de Slinkachu o título é outro artifício que joga e compõe propositalmente
à imagem. Além de miniaturas e objetos comuns, o artista trabalha com grafite para dar
mais personalidade às suas criações. Assim como Boffoli, Slinkachu também fez uma
fotografia inspirada em Lunch atop a skyscraper, intitulada miniature workers que mostra
seis trabalhadores sentados em uma haste de ferro
presa a um poste. Os trabalhadores parecem
disfrutar do horário do almoço entre comida, bebida
e conversa.
Os fotógrafos apresentados contam com
diferentes técnicas para produzir suas capturas. São
processos que misturam métodos e dão à fotografia um ar inovador, experimental. A
fotografia contemporânea reforça que cada vez mais reinventamos paradigmas estéticos
e linguagens visuais. Expandimos a força da imagem para além da noção da fotografia
convencional, registro do real10. Ao liberar a nossa visão criamos sentidos, significados.
As fotografias pedem que vivamos uma experiência estética, artística, conceitual.
Fazemos novos arranjos numa espécie de movimento que não se finda. Por serem potentes
e plurais as fotografias nos forçam a pensar sobre nosso próprio protagonismo diante
delas. Como as miramos? Estamos nos contaminando com elas? O que surge destes
encontros?
10 A fotografia expandida surge na contramão da fotografia convencional. É um modo de entender a fotografia para
além de seu aspecto documental. O fotógrafo produz fotografias de modo experimental, mistura técnicas e métodos na
composição de imagens. A diferença está na forma adotada pelo fotógrafo para produzir fotografias criativas. Não se
trata de um procedimento mecânico, “apertar o botão”, na fotografia expandida à imagem pode ser transformada mesmo
depois de sua revelação.
Série Fotográfica “Habita em mim11” - Amanda Leite (Maio de 2017)
A série fotográfica “Habita em mim” é feita de contradições, de sentimentos e
desejos que intimamente nos constituem e nos fazem existir. São fotografias inspiradas
no trabalho experimental do fotógrafo norte-americano, Man Ray12. Imagens surreais,
que provocam o espectador a pensar sobre os seus medos, seus sonhos, suas angústias...
A série cria um universo paralelo, abre fissuras para a incerteza, o estranhamento, a
hesitação, o absurdo. Há uma insistente proteção dada por uma sombrinha, como um
nimbo pessoal, mas, sabemos que o caos desorganiza, nos invade. Veja você e depois, se
quiser, diga-me o que viu e pensou13.
Referências Bibliográficas
11 Veja a série completa em: http://amandampleite.wixsite.com/amandaleite 12 O trabalho de Man Ray, fotógrafo norte-americo, é instigante e sempre me inspira a criar e a compor fotografias
digitais. Trata-se de um dos principais referentes que misturava técnicas como pintura, colagens, filmes e fotografias
experimentais. A influência do surrealismo é o que mais me interessa em sua produção. Suas fotografias nos provocam
observar cenas e objetos cotidianos de outros modos, deslocando-nos para o lugar da incerteza, do estranhamento, da
hesitação e até mesmo do absurdo. O que mais gosto na obra de Man Ray é o estilo experimental e surreal de produzir
narrativas visuais. 13 Para partilhar comigo as impressões que a série gerou basta enviar as suas observações por e-mail. Ficarei muito feliz
em respondê-las. E-mail: [email protected]
ANDRADE. Paula D. de. COSTA. Marisa V. Usos e possibilidades do conceito de
pedagogias culturais nas pesquisas em estudos culturais em educação. Revista
Textura, v. 17 n.34, mai./ago.2015.
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, Papirus, 1993.
DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1993.
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FABRIS, Annateresa; O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das
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ROUILLÈ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Tradução
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Referências Fotográficas
Amanda Leite – http://amandampleite.wixsite.com/amandaleite
Chirtopher Boffoli - http://www.bigappetites.net
Slinkachu - http://www.slinkachu.com
Tatsuya Tanaka - http://miniature-calendar.com
Willian Kass - https://wkass.500px.com