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Universidade de São Paulo Escola de Comunicação e Artes Departamento de Comunicações e Artes Fotografia – do Analógico para o Digital Um estudo das transformações no campo da produção de imagens fotográficas Cristiano Franco Burmester Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção do Título de Mestre em Ciências da Comunicação. Área de concentração: Comunicação. Linha de pesquisa: Comunicação e cultura. Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina C. Costa São Paulo Janeiro de 2006

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  • Universidade de So PauloEscola de Comunicao e Artes

    Departamento de Comunicaes e Artes

    Fotografia do Analgico para o DigitalUm estudo das transformaes no campo da produo

    de imagens fotogrficas

    Cristiano Franco Burmester

    Dissertao apresentada Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para a obteno do Ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao. rea de concentrao: Comunicao. Linha de pesquisa: Comunicao e cultura.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina C. Costa

    So PauloJaneiro de 2006

  • II

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

  • III

    Agradecimentos

    Eu gostaria de agradecer a colaborao dos amigos e colegas de profisso: Tony

    Genrico, Carrieri, J. Henrique Lorca, Mrcio Sallowicz e Thales Trigo, pela colaborao e gentileza em conceder as entrevistas e ceder imagens para a realizao desta pesquisa.

    Tambm quero agradecer a minha orientadora Profa. Dra. Maria. Cristina Castilho Costa pelo estmulo e pelas reflexes e revises durante o desenvolvimento do trabalho.

    Ao Prof. Dr. Boris Kossoy e ao Prof. Dr. Rubens Fernandes Jr. pelas sugestes

    bibliogrficas e comentrios relativos ao tema de pesquisa.

    Renata P. Burmester, minha esposa, pela pacincia e apoio durante a redao do projeto.

  • IV

    BURMESTER, Cristiano Franco. Fotografia do Analgico para o Digital - Um

    estudo das transformaes no campo da produo de imagens fotogrficas So

    Paulo: Universidade de So Paulo Escola de Comunicao e Artes, 2006. (Dis-

    sertao apresentada para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comuni-cao).

    Resumo: Esta pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de nos aprofundarmos nas questes que decorrentes do advento das mdias digitais, permeiam a fotografia

    atualmente. Para isso, tomamos como objeto de estudo o campo da fotografia pub-

    licitria, uma rea que trabalho e expresso com imagens que tem sofrido significa-

    tivas transformaes. Os focos da pesquisa emprica so as a dinmica de trabalho criao e produo - dos fotgrafos publicitrios, as mudanas tecnolgicas na

    fotografia e a percepo e a recepo das questes estticas inerentes imagem.

    Palavras-chave: fotografia, comunicao, publicidade, mdias digitais, tecnologia.

  • VBURMESTER, Cristiano Franco. Photography from analogical to digital A

    study of transformations in the field of production of photographic images. So

    Paulo: Universidade de So Paulo Escola de Comunicao e Artes, 2006. (Dis-

    sertation Master in Communication Sciences).

    Abstract: This research was conducted to develop a broader comprehension of the transformations occurred within the area of photography after the advent of

    the digital media. In order to do so, we have chosen as our object of study the field

    of advertising photography, an area of work and expression through images that

    has suffered significant transformations. The focuses of the empirical research are

    the dynamics of work creation and production of advertising photographers,

    the technological transformations within photography and the perception and re-

    ception of aesthetical matters regarding the photographic image.

    Keywords: photography, communication, advertising, digital media, technology.

  • VI

    Sumrio

    1. Introduo 01

    2. A Fotografia Analgica 03

    3. Questes tcnicas e de linguagem fotogrfica 18

    4. A revoluo da informtica e a fotografia 31

    5. A fotografia publicitria 46

    6. Metodologia de Pesquisa 57

    a. Corpus 57

    b. Objetivo da pesquisa e procedimentos iniciais 59

    c. Roteiro de perguntas 60

    d. Entrevistas 62

    7. Fotografia mdia em transformao 96

    8. Concluso 100

    9. Bibliografia 102

  • Introduo

    Nas ltimas dcadas do sculo XX e incio do sculo XXI, uma grande revoluo se processou no campo da comunicao, em especial no da produo de imagens. Trata-

    se do surgimento das novas tecnologias digitais de captura e manipulao de imagens. Vamos inicialmente procurar entender esse processo no campo da imagem fotogrfica.

    A linguagem fotogrfica surgiu na sociedade como um produto da Revoluo

    Tecnolgica iniciada no sculo XIX e se desenvolveu ao longo do tempo, impulsionada

    pela acelerao do ritmo de vida e da necessidade de se registrar de forma mais rpida e fiel os acontecimentos.

    Durante a maior parte de sua histria, a imagem fotogrfica foi observada atravs

    de uma postura conceitual carregada de uma forte preocupao com a objetividade e o realismo. Isto fez com que a subjetividade e a ficcionalidade da fotografia ficasse em se-

    gundo plano. Atualmente com o desenvolvimento das tecnologias de imagem digital estas posies buscam uma nova relao de equilbrio.

    O primeiro captulo deste trabalho coloca a sua ateno sobre a fotografia en-

    quanto mdia analgica. Questes tericas como a verossimilhana, a indicialidade e o

    papel do fotgrafo como responsvel pela seleo do objeto fotografado so analisados

    atravs das reflexes de pesquisadores e autores sobre o assunto.

    intuito desta dissertao aprofundar a reflexo sobre a ficcionalidade na foto-

    grafia. Este trabalho ir buscar referncias, contraposies e convergncias de posturas e

    concepes de pensadores, autores e criadores sobre o assunto, primeiramente no cam-

    po terico e posteriormente na rea tcnica por meio da anlise do desenvolvimento dos

    mtodos de pr-produo, produo e ps-produo de imagens.

    O segundo captulo desta dissertao examina questes tcnicas e de linguagem

    no campo da fotografia at o advento das mdias digitais. Esta anlise procura fornecer

    subsdios para uma compreenso mais profunda sobre as transformaes estticas e de linguagem ocorridas na fotografia aps o surgimento da tecnologia digital.

  • 2 Tambm objeto deste trabalho aplicar um olhar mais atento sobre os reflexos

    provocados pela revoluo da informtica, no quase ilimitado processo de construo da imagem digital. O terceiro captulo uma reflexo sobre o surgimento das mdias digitais,

    em particular, a tecnologia de imagem digital e seu desenvolvimento e integrao com a fotografia.

    Por fim, nosso objetivo desenvolver um olhar investigativo acerca da modifi-

    cao do formato de trabalho dos fotgrafos e da conseqente construo de fices

    fotogrficas, especialmente a partir da incorporao da tecnologia digital pela fotografia.

    Sendo assim, foi escolhido o gnero da fotografia publicitria para a realizao de uma

    pesquisa utilizando-se de entrevistas e imagens cedidas pelos fotgrafos entrevistados. O

    quarto captulo aplica um olhar sobre a fotografia publicitria, e precede o captulo que

    traz a metodologia de pesquisa e as entrevistas.

    O tema do ltimo captulo, fotografia mdia em transformao, dedica-se a con-

    cluir a reflexo que a dissertao prope, procurando elementos de anlise provenientes

    da pesquisa bibliogrfica, das entrevistas e das imagens utilizadas como referncia no

    trabalho.

  • 2. A fotografia analgica

    A civilizao ocidental, desde a Antiguidade, se deslumbrou com o potencial rea-

    lizador da razo humana, que veio a ser amplamente reconhecido a partir da modernida-

    de. Aps sculos de embates com a religio e a f, a razo adquiriu a sua maioridade

    expressa no desenvolvimento da cincia, da tcnica e do desejo do homem de dominar a

    natureza e controlar o mundo sua volta.

    O sculo XIX teve como uma de suas principais caractersticas, uma enorme ex-

    panso da pesquisa cientfica e do seu uso em invenes e inovaes tecnolgicas. No

    de se estranhar que este perodo tenha sido palco de duas revolues industriais que transformaram a natureza do trabalho, do consumo e do comportamento em sociedade.

    Os processos de urbanizao da sociedade e o desenvolvimento do capitalismo provocaram o surgimento de um grupo social intermedirio que genericamente chama-

    mos de classe mdia.

    Esses extratos mdios desenvolveram hbitos de comportamento e de consumo

    espelhados na elite da sociedade, porm o limite do seu poder aquisitivo provocou a apa-

    rio de novas formas de consumo material e simblico, de certa maneira mais acessveis

    financeiramente, entre elas a fotografia, especialmente impulsionada pelo individualismo

    e pelo anseio de consagrar a auto-imagem das pessoas.

    A nova inveno veio para ficar. Seu consumo crescente e ininterrupto

    ensejou o gradativo aperfeioamento da tcnica fotogrfica. Essencial-

    mente artesanal, a princpio, esta se viu mais e mais sofisticada medida

    que aquele consumo, que ocorria particularmente nos grandes centros europeus e nos Estados Unidos, justificou inverses significativas de

    capital em pesquisas e na produo de equipamentos e materiais fotos-sensveis. A enorme aceitao que a fotografia teve, notadamente a par-

    tir da dcada de 860, propiciou o surgimento de verdadeiros imprios industriais e comerciais.

    KOSSOY, Boris. Fotografia e Histria. 2a. edio revista. Ateli Editorial. So Paulo, 200, p. 25

  • Com o surgimento da fotografia, o homem passou a ter um conhecimento mais

    preciso e amplo de realidades que lhe eram, at aquele momento distantes, acessveis unicamente pela tradio escrita, verbal e pictrica. A fotografia possibilitou uma nova

    forma de apreenso do real, aproximando pessoas, lugares e culturas. O mundo, a partir

    da alvorada do sculo XX, se viu, aos poucos, substitudo por sua imagem fotogrfica. O

    mundo tornou-se, assim, porttil e ilustrado.2

    A produo da imagem com o auxlio de uma cmera era conhecida desde o

    perodo renascentista. O princpio de funcionamento das cmeras j era conhecido h

    muito tempo: a luz penetrando por um orifcio da parede de um quarto escuro forma na parede oposta uma imagem invertida do objeto que estiver do lado de fora do quarto. As chamadas cmaras escuras eram utilizadas por artistas, pintores, desenhistas

    e ilustradores para o registro da natureza, das pessoas e do mundo. Em ambas as situa-

    es antes e aps o advento da fotografia o homem buscou destacar do mundo visvel

    um fragmento deste, cuja imagem, tal como se formava na cmara obscura, se destinava a ser materializada sobre um dado suporte, seja na forma de um desenho, seja na forma de uma fotografia.

    De acordo com os registros da poca, a capacidade mimtica da fotografia proce-

    deria da sua natureza tcnica, ou seja, de seu procedimento mecnico, que permite a produo de uma imagem de maneira quase natural sem a interveno do homem no

    processo, como ocorria nas demais manifestaes artsticas.

    No difcil compreender que os debates ao redor da fotografia fossem to fer-

    vorosos, havia quem proclamasse a morte da pintura e quem dissesse que a pintura deve-

    ria se concentrar, a partir de ento, na produo da fico e no no registro da realidade,

    tarefa esta que ficaria por conta da fotografia.

    2 KOSSOY, Boris. Op. Cit. p. 26.

    NEWHALL, Beaumont. The History of Photography. The Modern Museum Of Art. Nova York, 1982, p.14. KOSSOY, Boris. Op. Cit. p. 6

  • 5 O poeta e crtico francs Charles Baudelaire, em 1865, assim se expressou sobre

    esse tema:

    ...a fotografia a arte que, numa superfcie plana, com linhas e tons,

    imita com perfeio e sem qualquer possibilidade de erro a forma do objeto que deve reproduzir. Sem qualquer dvida a fotografia um ins-

    trumento til arte pictural . manejada muitas vezes com gosto por gente culta e inteligente, mas, afinal, nem se cogita compar-la com a

    pintura5.

    A cmara escura teve todo seu desenvolvimento tecnolgico concludo at apro-

    ximadamente 1750 e seu uso foi intenso e largamente disseminado at o surgimento da

    fotografia, como a conhecemos hoje, o que ocorreu em meados do sculo XIX.

    O primeiro a tentar registrar uma imagem por meio da ao da luz foi o ingls Thomas Wedgwood (1771-1805). Antes mesmo de 1800, ele tentou sensibilizar papel e

    couro com nitrato de prata, colocando-os em contato com objetos planos ou transparn-

    cias pintadas e expondo-os luz.

    Porm, as dificuldades que Wedgwood encontrou para fixar as imagens sobre

    uma superfcie seriam o maior obstculo a ser vencido por todos os que se envolveram na experimentao com a fotografia. O problema era que sem uma tcnica de fixao, a

    imagem desaparecia em questo de minutos.

    O processo iniciado por Wedgwood foi concludo com sucesso pelo francs Ni-

    cphore Nipce. As primeiras imagens produzidas necessitavam de pelo menos oito ho-

    ras de exposio luz, fato que privilegiou objetos e paisagens como os principais temas

    da fotografia.

    A fotografia surgiu como resultado da interao de processos fsicos e qumicos.

    A luz que passa pela lente atinge o negativo fotogrfico e provoca uma sensibilizao dos

    sais de prata ali aplicados, registrando assim uma imagem semelhana do objeto fotogra-fado. Este processo de registro de imagens o que chamamos de fotografia analgica.

    5 BAUDELAIRE, Charles. Philosophie de lArt in DUBOIS, Philippe. O Ato Fotogrfico. Editora Papyrus. Campinas, 1993, p.29

  • 6 As trs dcadas seguintes apario da fotografia foram um perodo de afirma-

    o da tcnica e da insero da fotografia no cotidiano da sociedade. Aps as paisagens e

    a natureza morta, a principal aplicao da fotografia foram os retratos.

    Vista do Boulevard du Temple, Paris. Louis Jacques Mande Daguerre, 88. O inventor francs Daguerre aprimorou o mtodo fotogrfico criado por Nipce, apresentou a tcnica comunidade cientfica europia e iniciou a comercializao do processo de registro de imagens fotogrficas conhecido como Daguer-retipo.

    Rapidamente inmeros atelis se estabeleceram com o objetivo de comercializar os servios fotogrficos. Os retratos eram o gnero fotogrfico com a maior demanda.

    Muitos pintores e ilustradores migraram para o ramo da fotografia e tornaram-se fotgra-

    fos. Inicialmente ter um retrato fotogrfico da famlia ou de uma pessoa reproduzia a

    experincia dos retratos pintados mo. A herana do ritual e a solenidade de uma pintura

    faziam com que as pessoas buscassem na fotografia uma experincia semelhante.

    E, tanto no Brasil como na Amrica Latina, a experincia dos atelis fotogrfi-

    cos sempre reproduziu basicamente a experincia europia, particularmente quando se

    trata da imagem da burguesia ou da elite.6

    6 KOSSOY, Boris. Realidades e Fices na Trama Fotogrfica. Atelier Editorial. So Paulo, 2000, p.78

  • 7 Mas a fotografia tambm revelava o desejo de desenvolver uma linguagem pr-

    pria, caracterstica do seu meio de expresso. Este primeiro momento da linguagem fo-

    togrfica de busca de uma identidade, embora se inspirando para isso na linguagem mais

    prxima, a pintura.

    O embate entre a fotografia e a arte, especialmente durante as primeiras dcadas

    de vida da foto, provocou uma grande variedade de reaes entre artista, pblico e pen-

    sadores da poca. Fato este que de uma forma ou de outra contribuiu para o incio da formao de um pensamento sobre a relao entre a fotografia e a sociedade.

    The Photographers Wife. Nadar, 1853. O fotgrafo francs Nadar iniciou sua carreira como pintor e posteriormente migrou para a fotografia, que lhe deu notoriedade como retratista. A pose, o gesto e a iluminao do retratado fazem clara referncia tcnica da pintura e ao comportamento da elite da sociedade.

    Mas a fotografia tambm revelava o desejo de desenvolver uma linguagem prpria,

    caracterstica do seu meio de expresso. Este primeiro momento da linguagem fotogrfica

    de busca de uma identidade, embora se inspirando para isso na linguagem mais prxima,

    a pintura.

  • 8 O embate entre a fotografia e a arte, especialmente durante as primeiras dcadas

    de vida da foto, provocou uma grande variedade de reaes entre artista, pblico e pen-

    sadores da poca. Fato este que de uma forma ou de outra contribuiu para o incio da formao de um pensamento sobre a relao entre a fotografia e a sociedade.

    O poeta francs Baudelaire teceu as seguintes consideraes sobre o assunto:

    Estou convencido de que os progressos mal aplicados da fotografia

    contriburam muito, como, alis, todos os progressos puramente mate-riais, para o empobrecimento do gnio artstico francs, j to raro (...).

    Disso decorre que a indstria, ao irromper na arte, se torna sua inimiga mais mortal e que a confuso das funes impede que cada uma delas seja bem realizada (...). Quando se permite que a fotografia substitua al-

    gumas das funes da arte, corre-se o risco de que ela logo a supere ou

    corrompa por inteiro graas aliana natural que encontrar na idiotice da multido. , portanto, necessrio que ela volte ao seu verdadeiro dever, que o de servir cincias e artes, mas de maneira bem humilde, como a tipografia e a estenografia, que no criaram nem substituram

    a literatura. (...). Mas se lhe for permitido invadir o domnio do im-

    palpvel e do imaginrio, tudo o que s vlido porque o homem lhe

    acrescenta a alma, que desgraa para ns!.7

    Em suma, na ideologia esttica da poca, Baudelaire coloca a fotografia a servio

    da memria, um registro daquilo que j se foi. A concepo elitista e idealista da arte como

    uma finalidade em si mesma, no aceitava que uma obra pudesse ser ao mesmo tempo,

    artstica e documental. A fotografia desequilibrou o campo artstico e houve uma tentativa

    de reduzi-la sua funo documental.

    Estas discusses tambm produziram concepes positivas sobre a fotografia nos

    sculos XIX e XX, especialmente aquelas que proclamavam a libertao da arte pela foto-grafia.

    7 BAUDELAIRE, Charles. Op. Cit. p. 29.

  • 9 Ainda em 1939, um sculo aps a inveno da fotografia, num dilogo com o fo-

    tgrafo francs Brassa, o pintor espanhol Pablo Picasso afirmou:

    Quando voc v tudo o que possvel exprimir atravs da fotografia,

    descobre tudo o que no pode ficar por mais tempo no horizonte da

    representao pictrica. Por que o artista continuaria a tratar de su-

    jeitos que podem ser obtidos com tanta preciso pela objetiva de um aparelho de fotografia ? Seria absurdo, no ? A fotografia chegou no

    momento certo para libertar a pintura de qualquer anedota, de qualquer literatura e at do sujeito. Em todo caso, um certo aspecto do sujeito hoje depende do campo da fotografia.8

    Nessa discusso sobre a comparao entre fotografia e pintura, j se percebe a fo-

    tografia pensada como um registro fiel do mundo e da realidade. A tecnologia aplicada ao

    processo de produo de imagens o componente determinante da expressiva fidedigni-

    dade das fotografias em relao ao mundo. A percepo dessa caracterstica da fotografia

    pela sociedade faz com que seja atribuda imagem fotogrfica uma enorme credibilidade

    no registro dos fatos.

    Porm, a eleio de um aspecto determinado isto , selecionado do real, com

    seu respectivo tratamento esttico , a preocupao na organizao visual dos detalhes

    que compem o assunto, bem como a explorao dos recursos oferecidos pela tecnologi-

    a: todos so fatores que influiro decisivamente no resultado final e configuram a atuao

    do fotgrafo enquanto filtro cultural.9

    No entanto, a atitude do fotgrafo, suas idias e valores e seu estado de esprito

    podem ser percebidos atravs dos registros visuais que ele realiza para si mesmo como forma de expresso visual.

    8 DUBOIS, Philippe. Op. Cit. p. .

    9 KOSSOY, Boris. Op. Cit. p. 42.

  • 0

    O filsofo francs Roland Barthes em seus estudos sobre a fotografia j cons-

    tatava uma srie de atributos inerentes a ela que deixavam claro a sua natureza mltipla,

    complexa, e as distintas possibilidades de interpretao da realidade, como ele prprio

    escreveu:

    A foto retrato um campo cerrado de foras. Quatro imaginrios

    a se cruzam, a se afrontam, a se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotgrafo me julga e aquele de que ele se

    serve para exibir sua arte. Em outras palavras, ato curioso: no paro de

    me imitar, e por isso que, cada vez que fao (que me deixo) fotogra-

    far, sou infalivelmente tocado por uma sensao de inautenticidade, s vezes de impostura (como certos pesadelos podem proporcionar).0

    Boris Kossoy nos ajuda a compreender este conceito atravs de seus estudos que

    enfocam as condies histricas e sociais que marcam os significados da imagem foto-

    grfica. A realidade da fotografia no corresponde (necessariamente) verdade histri-

    ca, apenas ao registro expressivo da aparncia... A realidade da fotografia reside nas mlti-

    plas interpretaes, nas diferentes leituras que cada receptor faz dela num dado momento, tratamos, pois, de uma expresso peculiar que suscita inmeras interpretaes.

    Podemos entender que a relao entre aquilo que est inserido no quadro foto-

    grfico e aquilo que est fora dele que estabelece no receptor da imagem fotogrfica o

    espectro interpretativo que a fotografia suscita nas pessoas. H nessa posio um novo

    sentido. A fotografia no depende apenas do que fotografado e da intencionalidade do

    fotgrafo, mas tambm daquele que observa a fotografia.

    A imagem fotogrfica o rel que aciona nossa imaginao para dentro de um

    mundo representado (tangvel ou intangvel), fixo na sua condio documental, porm,

    moldvel de acordo com nossas imagens mentais, nossas fantasias e ambies, nossos conhecimentos e ansiedades, nossas realidades e nossas fices. A imagem fotogrfica

    ultrapassa, na mente do receptor, o fato que representa.2

    0 BARTHES, Roland. A Cmara Clara. Nova Fronteira. So Paulo, 1984, p. 27.

    KOSSOY, Boris. Realidades e Fices na Trama Fotogrfica. pp. 37-38.

    2 Idem, p. 6.

  • Ao estudar o processo de criao fotogrfica Boris Kossoy identifica trs fases

    complementares: pr-produo, produo e ps-produo.

    A etapa da pr-produo corresponde seleo do assunto a ser fotografado pelo

    fotgrafo a partir de uma concepo pessoal que toma forma atravs da convergncia de

    diferentes fatores: universo cultural, objetivo econmico, conjuntura social, personalida-

    de e experincia de vida.

    A produo fotogrfica a captura ou a fabricao da imagem, o instante foto-

    grfico que documenta um assunto pr-selecionado pelo fotgrafo. J a ps-produo a

    fase na qual a imagem, ao ser preparada para o processo de publicao, sofre adaptaes, cortes e ajustes visando sua insero na pgina do jornal, da revista, do cartaz, etc.

    Desde sempre as imagens foram vulnerveis s alteraes de seus significados

    em funo do ttulo que recebem, dos textos que ilustram, das legendas que as acompa-

    nham, da forma como so paginadas, dos contrapontos que estabelecem quando so dia-

    gramadas com outras fotos, etc....

    A composio de imagens e textos a partir de um documento original ir propor-

    cionar uma nova interpretao dos fatos, os quais passaro a ter uma nova realidade, ou seja, uma nova fico documental.

    Idem, p. 5

    Idem, p. 55.

  • 2

    Nesse ponto, tornam-se pertinentes as consideraes de Pierre Bourdieu acerca

    dos usos sociais da fotografia:

    Normalmente todos concordam em ver na fotografia o modelo da ve-

    racidade e da objetividade... fcil demais mostrar que essa representa-o social tem a falsa evidncia das pr-noes; de fato a fotografia fixa

    um aspecto do real que sempre o resultado de uma relao arbitrria e, por a, de uma transcrio: de todas as qualidades do objeto, so reti-das apenas as qualidades visuais que se do no momento e a partir de um nico ponto de vista; estas so transcritas em preto e branco, geral-

    mente reduzidas e projetadas no plano. Em outras palavras, a fotografia

    um sistema convencional que exprime o espao de acordo com as leis

    da perspectiva (seria necessrio dizer, de uma perspectiva) e os volumes

    e as cores por intermdio de dgrads de preto e branco. Se a fotografia considerada um registro perfeitamente realista e objetivo do mundo visvel porque lhes foram designados (desde a origem) usos sociais

    considerados realistas e objetivos.5

    Para Bourdieu est claro que a inteno perceptvel na imagem fotogrfica a da

    objetividade e da realidade, pois assim deseja a sociedade. Mas e a subjetividade do fo-

    tgrafo? Como ela estabelece a sua relao com o objeto fotografado?

    Philippe Dubois considera que no ato-fotogrfico, gesto do corte na fotografia,

    que se estabelece a interao entre a subjetividade do fotgrafo e o objeto fotografado.

    O corte temporal que o ato fotogrfico implica, no , portanto, somente reduo

    de uma temporalidade decorrida num simples ponto (o instantneo), tambm passagem

    (at superao) desse ponto rumo a uma nova inscrio na durao: tempo de parada,

    decerto, mas tambm, e por a mesmo, tempo de perpetuao (no outro mundo) do que

    s aconteceu uma vez.6

    5 BOURDIEU, Pierre. Un art moyen. Minuit. Paris, 1965, pp.108-109.

    16 DUBOIS, Philippe. Op. Cit., p. 174.

  • Imagem de soldado espanhol no instante em que foi atingido. Robert Capa, 1933. O fot-grafo foi um dos precursores do fotojornalismo europeu. Seu modo de trabalho era estar sempre inserido nos acontecimentos sociais para poder capturar suas fotos no momento do desenrolar dos eventos.

    A imagem produzida pelo fotgrafo Robert Capa durante a Guerra Civil Espan-

    hola na dcada de 1930 um bom exemplo do processo do corte temporal. Este foto-

    jornalista procurou em seu trabalho, passar incgnito ao objeto fotografado, buscando o

    mximo possvel de objetividade e imparcialidade, alm de capturar a espontaneidade do

    referente.

    Porm, fica evidente a seleo prvia do recorte a ser aplicado na imagem. Porque

    ser que Capa registrou justamente o momento em que este combatente espanhol al-vejado por um tiro inimigo? Certamente o tempo dispendiado no campo de batalha o

    habilitou a registrar um momento to expressivo e nico, mas a impossibilidade do no

    envolvimento emocional com o tema o levou a capturar uma imagem que atesta as con-

    seqncias das guerras, como por exemplo, a morte.

    O espao fotogrfico no determinado, assim como no se constri. Ao con-

    trrio, um espao que deve ser capturado (ou deixado de lado), um levantamento no

    mundo, uma subtrao que opera em bloco... Para o fotgrafo, a questo no colocar

    dentro, mas arrancar tudo de uma vez.17

    17 DUBOIS, Philippe. Op. Cit., p. 178.

  • Nesse debate entre o realismo e a representao colocamo-nos na posio de que

    a fotografia uma representao a partir do real. Entretanto, em funo da materialidade

    do registro, no qual se tem gravado na superfcie fotossensvel, o vestgio/aparncia de algo que se passou na realidade concreta, em dado espao e tempo, ns a tomamos, tam-

    bm, como um documento dos fatos, uma fonte histrica.8

    Em nossa reflexo entendemos que na fotografia o espao representado o in-

    terior da imagem, o espao do seu contedo. Espao de representao a imagem como suporte de inscrio, construda pelas bordas do quadro. J espao topolgico a mani-

    festao das articulaes que se estabelecem entre o espao referencial do sujeito que olha a imagem e a relao que ele mantm com ela mesma.

    Assim, parece que aquilo que uma fotografia no mostra to importante quanto

    o que ela revela. Existe uma relao inevitvel do que est fora com o que est dentro,

    fazendo com que a fotografia seja portadora de uma presena virtual de algo que no

    est ali, mas que se assinala como excludo.

    A relao entre fotgrafo e realidade e a influncia que exercem um sobre o outro

    geram uma certa tenso que pode ser entendida do seguinte modo: a fotografia um

    ndice do real, pois a fotografia analgica est fundamentada no processo fsico-qumico

    de registro da imagem, ou seja, a formao da imagem sobre a pelcula fotogrfica pres-

    supe a existncia de um objeto referente a uma determinada realidade.

    Durante aproximadamente 150 anos a fotografia se desenvolveu por meio do uso

    da tecnologia analgica. Porm a partir da dcada de 1970, com o advento da revoluo da

    informtica e com o surgimento da tecnologia de imagem digital, a fotografia ampliou as

    suas possibilidades de percepo, incorporando tambm as formas icnicas e simblicas.

    A tecnologia digital est baseada no processo fsico-numrico, ou seja, a luz que

    passa pela objetiva da cmera sensibiliza um sensor eletrnico (um chip) que produz uma interpretao numrica da intensidade luminosa que o atingiu, formando assim uma ima-gem que uma combinao de dados.

    8 KOSSOY, Boris. Op. Cit., p. .

  • 5

    A informtica, aliada tecnologia de imagem digital, permite que esta combina-

    o de dados seja alterada por meio do uso de softwares especficos na fase que cha-

    mamos de ps-produo. Ali a insero de outros elementos ou a alterao dos compo-

    nentes registrados inicialmente permite que a imagem amplie a sua concepo indicial, portadora de uma similaridade com a realidade, para uma concepo icnica, ou seja, a representao de alguma qualidade da imagem; ou at mesmo que adquira uma concep-

    o simblica, representando um contexto mais amplo do que aquele inserido no quadro

    fotogrfico.

    Sendo assim, o papel da tecnologia tem sido importante na compreenso da rela-o da fotografia com a realidade: a tecnologia tanto possibilita gestos mais rpidos e reg-

    istros mais espontneos favorecendo uma concepo indicial da fotografia como pos-

    sibilita formas mais eficientes de pr e ps-produo, favorecendo a concepo icnica e

    simblica do ato fotogrfico.

    Fiis ao redor do Papa Pio XII. Henri Cartier-Bresson, 1938. Bresson trabalhava em busca do que ele chamava de instante decisivo. O seu ideal era estar o mais oculto possvel ao ambiente em que fotografava para capturar aquela imagem que atravs da espontaneidade de seus fotografados revelava a essncia do contexto fotografado.

    Os gneros fotogrficos, entre eles a paisagem, o retrato, o fotojornalismo, a pu-

    blicidade e o experimental, por sua vez tambm favorecem uma ou outra corrente: h

    gneros como o fotojornalismo, em que o fotgrafo se deixa guiar pelo real, e h gneros

    como o experimental em que o carter autoral, o olhar do artista, parece ser o principal

    objeto a ser fotografado.

  • 6

    Henri Cartier-Bresson um dos exemplos mais expressivos de um fotgrafo que

    tentava se deixar surpreender pela realidade, escondendo-se do e sob o objeto fotogra-

    fado. Procurava, assim, registrar momentos decisivos de um determinado acontecimento em curso. O objetivo de Bresson era realizar o seu trabalho com quase total imparciali-dade de escolha e julgamento sobre os fatos.

    O trabalho de Henri Cartier-Bresson, Robert Capa, Walker Evans, Dorothea

    Lange e outros fotgrafos contemporneos das dcadas de 1930 e 1940, est tambm

    fortemente ligado ao avano das tcnicas de reproduo e da disseminao da imprensa pelo mundo por meio de jornais e revistas impressas. A partir daquele momento, os mei-

    os de comunicao passaram a ter cada vez mais poder de influncia sobre as pessoas e

    sobre a formao de seus conceitos acerca da realidade e dos fatos do mundo e, de uma forma ou de outra, procuraram criar credibilidade para a sua viso sobre os acontecimen-

    tos sociais, polticos e econmicos.

    O pesquisador Jacques Aumont considera que o olhar o que define a intencio-

    nalidade e a finalidade da viso. a dimenso propriamente humana da viso.19

    Tradicionalmente a fotografia sempre pareceu estar bem formatada para a trans-

    formao do olhar em imagem fsica e bidimensional. As caractersticas tcnicas dos meios de produo fotogrfica ao longo dos seus primeiros 150 anos de existncia, hoje

    chamados de analgicos ou convencionais, sempre trabalharam em consonncia com a

    capacidade de traduo de um olhar pessoal e singular em uma fotografia.

    Em seus estudos E. H. Gombrich identificou algumas das principais formas de

    investimento psicolgico do ser humano na imagem. Entre elas, o reconhecimento e a

    rememorao se destacam nesse complexo processo que a relao humana com as i-

    magens.

    O reconhecimento est mais prximo da memria e do uso do intelecto para o

    desenvolvimento das propriedades do sistema visual. Reconhecer alguma coisa em uma imagem identificar, pelo menos em parte, o que nela visto como alguma coisa que se

    v ou se pode ver no real, ou seja, reconhecer no constatar uma similitude ponto a

    ponto, achar invariantes da viso, j estruturados, para alguns, como espcies de gran-

    des formas.20

    19 AUMONT, Jacques. A Imagem. Papyrus Editora. Campinas, 1990, p. 59.

    20 Idem, p. 8.

  • 17

    O processo de rememorao est ligado ao uso do sistema sensorial para a apre-

    enso do visvel e, dessa forma, est prximo do conhecimento, pois atravs da decodi-

    ficao das imagens do real que se constri o saber. Sendo assim, Gombrich traz para o

    particular ou o individual, a compreenso das relaes entre o imaginrio e a imagem.

    Quanto mais nos aprofundamos no universo da imagem fotogrfica, podemos

    perceber que a fotografia analgica, em todo o seu histrico anterior ao surgimento da

    fotografia digital, estabeleceu com o seu espectador uma relao em que de um lado es-

    tava a analogia e de outro a crena do observador.

    Jean-Pierre Oudart desenvolveu este tema mais extensamente e apresentou as se-

    guintes consideraes:

    H no espectador um efeito de realidade produzido por um conjunto de ndices de analogia em uma imagem representativa, trata-se no fun-

    do de uma variante, recentrada no espectador, da idia de que existe um

    catlogo de regras representativas que permitem evocar, ao imit-la, a

    percepo natural. O efeito de realidade ser mais ou menos completo, mais ou menos garantido, conforme a imagem respeite convenes de natureza plenamente histrica codificadas.2

    Porm, uma segunda etapa se desenrola no espectador da imagem que Oudart denomina de efeito do real. Face um efeito de realidade suficientemente forte, o espec-

    tador induz um julgamento de existncia sobre as figuras da representao e atribui-lhes

    um referente no real, ou seja, o espectador acredita, no que o que v o real propria-

    mente, mas, que o que v existiu, ou pde existir, no real.22

    Em razo disso que, apesar do embate terico e das questes colocadas pela

    tecnologia digital, a fotografia continua gozando de credibilidade junto ao pblico ob-

    servador e produtor de imagens.

    Porm, como veremos mais adiante, a fotografia digital vem ganhando espao na

    sociedade a uma enorme velocidade, a ponto de alguns segmentos da sociedade j no mais produzirem fotos no formato analgico ou convencional.

    Dedicarei, mais adiante, um captulo para a reflexo sobre o impacto da revolu-

    o informtica na relao da fotografia com a sociedade.

    21 OUDART, Jean-Pierre. Op. Cit., p. 111.

    22 Idem.

  • 8

    3. Questes tcnicas e de linguagem fotogrfica

    A apresentao da fotografia para a comunidade cientfica europia causou uma

    enorme repercusso, especialmente entre as pessoas que puderam sentir o potencial dos usos da imagem fotogrfica.

    O poltico francs Arago, ao ver uma representao que, a todos espantava pela

    sua fidelidade na representao do j-visto, pe-se a sonhar com espantosos imprevistos,

    novas possibilidades positivas de exerccio de um ver cuja atualizao na experincia, ao

    mesmo tempo nas suas modalidades e nos seus resultados, era ainda difcil seno radi-

    calmente impossvel de prever com segurana.2

    A evoluo tecnolgica da fotografia acontece de forma ininterrupta at os dias

    de hoje. A cada inovao, uma nova aplicao do uso da fotografia se colocava disponvel

    queles que ousem experimentar novos olhares.

    O que nos parece com bastante acuidade se tivermos em conta o modo pelo qual a fotografia veio a transformar-se, ela mesma, num novo meio

    de observao permitindo o acesso vistas que lhe eram ento absolu-tamente especficas, a descobertas que lhe foram inteiramente prprias,

    abandonando, portanto, o estatuto de um mero meio de registro dos fatos que no eram observados por seu intermdio. (...) A fotografia

    torna-se uma nova porta da percepo.2

    Aqui vamos ao encontro do pensamento de Pierre Bourdieu sobre o uso da foto-

    grafia como o meio de comunicao dotado da capacidade verossmil e do retrato da

    realidade de forma objetiva.

    A fotografia foi ento tida como o meio de eleio para a obteno de

    representaes respeitadoras da verdade do visvel, considerada como extraordinariamente adaptada para libertar uma representao que

    ento se pretendia verdadeira na arte e na cincia de duas insuficin-

    cias que comearam a imputar-se pintura e ao desenho, insuficincias

    cuja gravidade a fotografia permitia agora revelar: por um lado, uma ex-

    cessiva humanidade da mo, capaz a cada golpe e a cada momento, de

    2 FRADE, Pedro Miguel. Figuras do Espanto. Edies ASA. Porto, 1992, p. 42.

    24 Idem, p. 59.

  • 19

    comprometer qualquer exerccio virtuoso do olhar; por outro, o carter

    grosseiro e demasiadamente espesso dos seus materiais, que impedia a representao pictural de dar a ver com sutileza as pequenssimas mincias do detalhe.25

    Enquanto fruto de uma inveno tecnolgica, a fotografia rapidamente se inseriu

    no contexto industrial. O seu carter mecnico e instrumental em poucos anos a fez sair

    das pequenas oficinas para adentrar o campo das indstrias e da produo em larga esca-

    la. A insero da fotografia em um contexto comercial criou uma dinmica de reno-

    vao contnua de todo o aparato fotogrfico ao longo do tempo e de sua histria. Con-

    comitantemente ao movimento dinmico da linguagem fotogrfica, o aprimoramento

    tecnolgico se sucedeu em igual ou maior velocidade, criando novas possibilidades de

    expresso ou renovando as suas capacidades operacionais em reao aos anseios de fo-

    tgrafos profissionais e amadores.

    J em 1870, com a introduo das dry plates, chapas secas, a fotografia comeou

    a se uniformizar. O tamanho dos negativos, a velocidade das emulses, a textura do papel,

    tudo se tornou uma deciso de ordem industrial e no mais do fotgrafo.26

    O incio da padronizao dos processos de produo fotogrfica permitiu que a

    fotografia tivesse o seu uso disseminado por todos os continentes. Estdios fotogrficos

    que se encarregavam da produo de uma enorme quantidade de retratos, paisagens e eventos se estabeleceram em todos os cantos e foram responsveis pela apreenso do mundo ao redor dos homens.

    Porm, no tardou em aparecer entre fotgrafos e entusiastas o desejo para que

    a fotografia explorasse uma linguagem mais livre do puro registro da realidade e que de

    certa forma se aproximasse da arte em sua busca pelo Belo e pela emoo.

    25 FRADE, Pedro Miguel. Op. Cit., p. 00.

    26 GRUNDBERG, Andy. Crisis of the Real. Aperture Foundation. Nova Iorque, 1999, p. 52.

  • 20

    Combinao de fotografia e esboo utilizado para pr-visualizao e produo da imagem fotogrfica. Henry Peach Robinson, Carroling, 1887. Esse fotgrafo ingls oriundo das artes plsticas procurou incansavelmente desenvolver uma linguagem fotogrfica semelhana da pintura.

    Henry Peach Robinson, pintor ingls que se tornou fotgrafo em 1852, produziu

    uma enorme quantidade de imagens fotogrficas que eram inicialmente rascunhadas em

    forma de desenho para posteriormente serem realizadas fotograficamente.

    Na maioria das vezes, a imagem final era uma composio de vrios negativos

    diferentes que eram manipulados no laboratrio para que o resultado final se aproximas-

    se do conceito pr-visualizado da imagem.27

    27 NEWHALL, Beaumont. The History of Photography. The Museum of Modern Art. Nova Iorque, 1982, p. 77.

  • 2

    Da mesma maneira que fotgrafos utilizaram-se da pintura como inspirao pa-

    ra a realizao de seu trabalho, muitos pintores passaram a ter na fotografia um grande

    aliado. (...) Eugne Delacroix, realizou regularmente fotos de seus modelos para o desen-

    volvimento de trabalhos em etapas posteriores.28

    Paralelamente produo fotogrfica inspirada pela ou na pintura, muitos fot-

    grafos buscavam um conceito de expresso visual na fotografia que explorasse exclusi-

    vamente as possibilidades oferecidas pelo meio fotografia.

    Alguns fotgrafos, como Eugene Atget, Alfred Stieglitz e Paul Strand, ainda utili-

    zando-se de cmeras de grande formato, ou view cameras, desenvolveram seus trabalhos

    com o objetivo de encontrar no registro do cotidiano, dos fatos econmicos e da socie-dade como um todo, uma esttica unicamente fotogrfica. Neste perodo, final do sculo

    XIX e incio do sculo XX, j tinham posse de objetivas com elementos pticos mais

    sofisticados que possibilitavam a produo de imagens mais ntidas e tambm possuam

    diafragma com grande abertura o que facilitava o trabalho com luminosidade escassa ou com tempos de exposio mais curtos. J era possvel realizar fotos quase

    instantneas.29

    O incio do sculo XX trouxe o cubismo e o dadasmo como algumas das princi-

    pais correntes de manifestao artstica do modernismo. Decorridos j quase 00 anos desde sua inveno, a fotografia absorveu novos conceitos que resultaram na ampliao

    da experimentao com a linguagem fotogrfica. Esta relao de influencia mtua com

    a pintura j acontecia h muito tempo. Poucos anos aps o seu surgimento no mundo, a

    fotografia estimulou a pintura a renovar a sua linguagem, fato que ocorreu com o desen-

    volvimento da pintura impressionista.

    28 NEWHALL, Beaumont. The History of Photography. The Museum of Modern Art. Nova Iorque, 1982, p. 82.

    29 Idem, p.83.

  • 22

    Inverno na 5a. Avenida, Nova York. Alfred Stieglitz, 1893. O fotgrafo norte-americano pde produzir uma de suas mais clebres fotografias em decorrncia das emulses fotogrfi-cas j serem sensveis o suficiente para registrar imagens em fraes de segundo.

    Lszl Moholy-Nagy, fotgrafo e designer hngaro, estabelecido em Nova Ior-

    que, desenvolveu seu trabalho a partir de 1920 buscando ultrapassar a qualidade objetiva

    da imagem fotogrfica. Suas fotomontagens ou fotogramas so claros exemplos de ima-

    gens construdas. Por meio de tcnicas de laboratrio, recortes, partes de fotografias e

    elementos grficos so combinados na produo da imagem final.0

    30 GRUNDBERG, Andy. Op. Cit., p. 42.

  • 2

    Fotomontagem Cimes. Lszl Moholy-Nagy, Nova York, 1927. Esse fotgrafo e design-er hngaro estabelecido nos Estados Unidos realizou inmeros trabalhos utilizando tcnicas fotogrficas para construir imagens. Os conceitos modernistas de transformao da imagem, para ele, se aplicavam muito bem publicidade e ao design.

    O modernismo na fotografia, em termos gerais, traduziu-se pela pes-

    quisa de autonomia formal e, conseqentemente, pela negao da

    importncia decisiva do referente. No entanto, as caractersticas in-trnsecas da imagem fotogrfica no permitiram um engajamento ir-

    restrito no abstracionismo como fez o movimento moderno. Mas foi justamente devido s suas peculiaridades que a fotografia permitiu uma

    ponte com o real como jamais a pintura poderia vivenciar. (...) fazer

    as coisas se aproximarem de ns, ou antes das massas, uma tendn-

    cia to apaixonada do homem contemporneo quanto a superao do

    carter nico das coisas, em cada situao atravs da sua reproduo

    A atuao modernista estetizou o ambiente social na medida em que alterou a percepo do mundo, propondo o redimensionamento do cotidiano por meio da arte.

    COSTA, Helouise e SILVA, Renato Rodrigues da. A Fotografia Moderna no Brasil. Cosac&Naify, So Paulo, 2004, p. 30.

  • 2

    No Brasil, o pulsar do esprito modernista j se fazia sentir desde as primeiras dcadas de 1900, inicialmente por meio da pintura e da literatura, e atingiu a produo

    fotogrfica a partir da dcada de 1950. Inspirados nos conceitos e ideais modernistas,

    alguns fotgrafos como Geraldo de Barros, Thomas Farkas, Germn Lorca, Eduardo

    Salvatore, Gertrudes Altschul, entre outros nomes importantes, realizaram uma extensa

    produo fotogrfica. Influenciados pelo olhar estrangeiro, porm trabalhando com ele-

    mentos brasileiros, suas imagens so um reflexo do Brasil modernista.

    Porm, foi em 1924, com a introduo no mercado europeu da primeira cmera

    de formato 35mm, a Leica, que a fotografia iria ganhar em termos tecnolgicos a liber-

    dade to defendida e perseguida pelo pensamento modernista. A Leica era de dimenses muito menores do que os outros modelos de cmera. Era porttil, possibilitava a rpida troca de objetivas e podia ser acondicionada em uma bolsa pequena para ser carregada nos ombros do fotgrafo.

    Os fotojornalistas foram os primeiros a incorporar o novo formato de equipa-mento ao seu processo de trabalho. A agilidade adquirida e a possibilidade de se passar in-

    cgnito aos acontecimentos foi um grande estmulo disseminao ampla e abrangente

    do formato 5mm. O aprimoramento do negativo 5mm, que passou a poder trabalhar com a captura de imagens em fraes de segundo, tambm ofereceu ganhos expressivos

    entre profissionais e amadores, pois a partir de ento era possvel realizar fotos ntidas sem

    o uso de trips, mesmo em situaes de baixa luz.

  • 25

    A menina do sapato. Geraldo de Barros, 1949. As fotomontagens e os fotogramas foram a forma pela qual a fotografia se apropriou dos conceitos modernistas. A liberdade criativa aliada a inevitvel presena de um referente possibilitou a criao de imagens fotogrficas inovadoras face aquilo que se conhecia como fotografia.

    Simultaneamente aos avanos do equipamento fotogrfico as tcnicas de repro-

    duo grfica utilizadas pela mdia impressa tambm evoluram na qualidade da repro-

    duo de imagens e na velocidade de impresso de jornais, revistas, folhetos e posters, fornecendo fotografia documental e ao fotojornalismo um forte estmulo no aprimora-

    mento de sua linguagem, bem como em sua projeo perante a sociedade.

    Os meios de comunicao passaram a utilizar fotografias para ilustrar seus textos.

    A primeira metade do sculo XX viu a popularizao dos veculos de mdia impressa que se tornaram os principais meios para o abastecimento da sociedade com informaes e imagens.

  • 26

    Fotorreportagem sobre uma visita do ditador italiano Benito Mussolini Alemanha pub-licada em peridico alemo, 1937. As fotorreportagens exploravam ao mximo o uso das fotografias para contar uma histria.

    Independentemente de seu uso, uma fotografia sempre um documento. Na ima-

    gem fotogrfica h sempre informaes a serem absorvidas sobre determinado campo

    de estudo.2 Embora a fotografia documental tenha se desenvolvido como gnero a partir das inovaes tcnicas aqui mencionadas anteriormente, alguns fotgrafos j realizavam

    documentrios fotogrficos antes do surgimento do formato de 35mm. Entre eles, o fo-

    tgrafo norte-americano Lewis Hine, que produziu o conjunto de sua obra sob a tica

    documentria com o explcito intuito de denunciar as injustias sociais produzidas pela

    desigualdade econmica.

    2 KOSSOY, Boris. Fotografia e Histria. Op. Cit., p. 5.

  • 27

    Carolina Cotton Mill. Lewis Hine, 1908. Trabalhando com cmeras pesadas e desajeitadas, esse fotgrafo norte-americano produziu documentrios fotogrficos sobre algumas das questes sociais mais preocupantes da sua poca, em especial a explorao do trabalho in-fantil e feminino.

    Documental tem sido definido no senso estilstico do trabalho fotogrfico. Seus

    fundamentos foram profundamente absorvidos pelo fotojornalismo e posteriormente pelo estilo factual do jornalismo televisivo. Alguns nomes substitutos j foram sugeridos para a fotografia documental, tais como: histrica, factual, realista, porm nenhum deles

    traz to implicitamente em seu sentido, o desejo de criar uma interpretao subjetiva do mundo em que se vive.

    Embora a cor esteja presente na fotografia desde o sculo XIX por meio de pro-

    cessos manuais de colorizao de cpias fotogrficas, somente a partir de 1947, com a

    introduo no mercado pela Kodak da linha de negativos coloridos Ektacolor que a fotografia colorida comea a ganhar presena e expresso no campo fotogrfico.

    NEWHALL, Beaumont. OP. Cit. p. 26.

    34 Idem, p. 277

  • 28

    Waterfront. Edward Weston, 1946. Kodachrome transparncia. A imagem em cores parte dos primeiros trabalhos fotogrficos exploratrios em cor desenvolvido por esse renomado fotgrafo norte-americano.

    Simultaneamente a essa transformao da fotografia no seu campo profissional e

    comercial, alguns fotgrafos, entre eles, Edward Weston, buscam explorar as cores como

    uma nova concepo esttica para a fotografia e no somente para o registro do mundo

    como observado pelas pessoas.

    Conforme o prprio Weston comentou sobre sua pesquisa acerca da fotografia

    em cores, muitas fotografias e pinturas tambm so somente tons de preto e branco.

    O preconceito que muitos fotgrafos possuem contra a fotografia colorida vem do fato

    de no pensarem a cor como uma forma.5

    35 Idem, p. 279

  • 29

    Bem aceita primeiramente no mercado fotogrfico amador, a foto colorida no

    tardou a ser incorporada pela publicidade e posteriormente pelas revistas ilustradas como a Life e a Look. No Brasil, os semanrios O Cruzeiro e Viso foram dois expoentes

    dessa fase de expanso da imagem colorida. Os jornais e veculos dirios demoraram mais

    tempo para introduzir imagens coloridas em suas pginas devido s dificuldades da re-

    produo em cores na impresso em alta velocidade.

    A disseminao do uso do filme fotogrfico colorido libertou a fotografia em

    preto e branco para buscar novas formas de expresso visual. Nas dcadas de 1960 e 1970

    a fotografia em preto e branco passou por uma intensa fase de experimentao tcnica e

    de uso da linguagem.

    Analisar, recortar os materiais em seus ltimos constituintes, como as letras das palavras e as palavras da linguagem, para lhes associar nova-mente na lngua original e nica do autor. Dissociar a cor e a forma, dis-sociar os volumes e os contornos; decompor as superfcies em linhas

    e em pontos descontnuos, para projet-los alhures no espao, analisar

    o movimento, a velocidade, o tempo. A abstrao nasce desta vontade de manipular os elementos primeiros, fundamentais, geomtricos para alguns ou mais precisamente orgnicos para outros, sem ligaes de representao com a realidade visvel, para reuni-los numa outra reali-

    dade, esta pictural, to real quanto a primeira,(...) romper de uma outra

    maneira com a representao. Ela fornece aos artistas um novo sopro, ao mesmo tempo em que modifica sua sensibilidade e lhes d meios

    plsticos originais para exprimi-la.6

    6 COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte da fotografia realidade virtual. UFRGS Editora. Porto Alegre, 200, p. 56

  • 0

    Symbolic Mutation. Jerry Uelsmann, 1961. Fotomontagem. Esse fotgrafo norte-americano desenvolveu um trabalho experimental aprimorando a sua capacidade de uso da tcnica labo-ratorial para construir imagens conceituais que se apropriam de conceitos da pintura surreal e futurista.

    A linguagem fotogrfica busca na inovao tecnolgica do aparato fotogrfico

    possibilidades de renovao e simultaneamente estimula o avano tecnolgico. Essa rela-

    o mutuamente dependente entre tecnologia e linguagem tem sido a fora motriz da dinmica relacional entre a fotografia e a sociedade. A cada novo desejo de representao

    expresso pela sociedade a tecnologia fotogrfica avana para suprir essa demanda consci-

    ente e muitas outras ainda somente presentes no inconsciente coletivo.

    A fotografia viveu mudanas provocadas por inovaes tecnolgicas que ao se

    tornarem disponveis foraram a tecnologia anterior a procurar novos caminhos para seu uso, expresso e identidade. Os meios de comunicao, especialmente por estarem vin-

    culados ao desenvolvimento tecnolgico, aprimoraram a sua linguagem por meio desse

    contnuo embate entre a tcnica e a capacidade de expresso.

  • 4. A revoluo da informtica e a fotografia

    A sociedade integrada por sistemas de telecomunicaes como a que vivemos atualmente se configurou como uma sociedade que est em constante busca de superar

    obstculos de tempo, espao, distncia, quantidade e qualidade da informao.

    As primeiras pesquisas nessa rea datam de 1790, especialmente quando tiveram

    incio as experincias com as transmisses telegrficas. Inicialmente desenvolveram-se

    redes de transmisso de sons, depois de imagens e finalmente redes de som e imagem que

    viriam a ser o que hoje conhecemos por redes de difuso sonora e audiovisual.

    Cento e cinqenta anos de pesquisa propiciaram que, em 1949, fosse

    bem sucedida a primeira transmisso a cabo com sinais captados por antenas coletivas, e que, em 1975, as primeiras imagens sonoras e em

    movimento pudessem ser transmitidas atravs de sinais por satlite, captados por antenas parablicas... Mas foi na dcada de 1980 que se

    consumou outro casamento entre as telecomunicaes e a informti-

    ca -, instaurando uma nova concepo de comunicao: a traduo de

    toda e qualquer linguagem sonora e visual produzida por qualquer ve-culo ou tcnica, para a linguagem numrica atravs de cdigo binrio.

    Instalava-se a era da comunicao digital.37

    Uma das vertentes mais expressivas desse processo de profunda transformao

    da sociedade veio a se tornar conhecida como internet, uma imensa rede de conexo e

    comunicao entre os pases do mundo que conecta instituies, pessoas e governos si-

    multaneamente.

    37 COSTA, Cristina. Fico, Comunicao e Mdias. Editora SENAC. So Paulo, 2002, p. 75.

  • 2

    Fotografia transmitida via cabo submarino do continente europeu para os Estados Unidos em 1929. Os primeiros exemplos da aplicao da tecnologia na transmisso de imagens ocor-reram muito antes da revoluo da informtica. Porm, foi somente a partir de 1970 que esse processo se viabilizou tecnologicamente.

    Embora a internet seja a parte mais visvel desse processo, preciso entender que uma transformao profunda se realiza na sociedade, mudando radicalmente os proces-sos produtivos, as relaes entre as partes neles envolvidas e a comunicao. Emerge na dcada de 1970 uma sociedade automatizada, integrada e globalizada, cujas relaes se es-

    tabelecem sob a forma de redes descentralizadas, multidirecionais e integradas por plos

    que constituem posies individuais.8

    nesse contexto social que mais uma inovao tecnolgica se desenrola na soci-

    edade global. O surgimento das imagens digitais decorrente do processo de desenvol-

    vimento das cincias da informao. As primeiras imagens apareceram no campo da as-tronomia e paulatinamente foram se expandindo para outras reas, como a medicina, at

    chegarem ao uso do pblico em geral.

    38 Idem, p. 78.

  • Porm, somente a partir da dcada de 1990 que a tecnologia da imagem digital

    ganha um impulso de penetrao na sociedade de consumo como uma nova maneira de registrar o cotidiano e comea a provocar uma nova onda de debates sobre os usos das imagens fotogrficas analgicas, e sobre os usos da recm-chegada imagem fotogrfica

    digital.

    Imagem digital capturada com equipamentos especiais a bordo de sondas espaciais. Circa 1970. As primeiras imagens capturadas e produzidas com equipamento digital vieram do campo da astronomia e da tecnologia aeroespacial.

    Inicialmente procuraremos compreender como a comunicao em tempo real desenvolvida num ambiente que passamos a chamar de ciberespao e como a integrao de um nmero cada vez maior de pessoas a esse ambiente configura um novo processo

    cultural denominado cibercultura. Alm disto, avanaremos sobre as reflexes acerca da

    imagem e as novas tecnologias de produo e recepo de imagens digitais.

    O ciberespao teve o incio de sua configurao atual quando foi implementado

    um programa de conexo em rede de terminais de computadores localizados em distin-

    tos pontos geogrficos do planeta. O ecossistema do ciberespao nada mais do que a

    possibilidade de comunicao instantnea entre computadores que no necessariamente pertencem a uma mesma comunidade ou ambiente institucional e social. nesse ambi-

    ente virtual que circulam informaes, dados, imagens e as mais variadas mensagens entre pessoas que talvez nunca puderam trocar fisicamente seus olhares.

  • Imagem digital produzida atravs da insero de dados numricos em softwares de ima-gem. Circa 1975. A medicina e muitas outras reas de pesquisa perceberam rapidamente o

    potencial da imagem digital para as mais variadas aplicaes.

    Aos poucos, o crescimento dos novos meios de comunicao ao redor do mundo comea a transformar o planeta numa grande aldeia global. A configurao da cibercul-

    tura parece remeter a um processo social tribal, em que diferentes grupos estaro associ-

    ados s tecnologias digitais, opondo-se ao individualismo da cultura do impresso em seu

    formato totalitrio e tecnocrtico.

    Embora estimulante, o pensamento sobre as singularidades da cibercultura tam-

    bm possui expoentes crticos, como o caso de Jean Baudrillard que considera que o

    ciberespao s permite simulao de interao e no verdadeiras interaes. Para ele, as

    novas tecnologias de comunicao aumentam o potencial isolacionista do ser humano, pois quanto mais informao trocada menos comunicao realizada.

    O filsofo francs Jean Baudrillard e seus colegas levam a anlise crtica adiante

    at o ponto da percepo de que a aparente facilidade de comunicao estabelecida atra-

    vs do ciberespao no nada mais do que mera troca de dados, pois isto, que de fato transportado. Neste processo as sensaes no so enviadas via transferncia numrica.

  • 5

    Segundo essa viso, a sociedade da comunicao cria uma cultura tecnolgica

    onde as inovaes potencializam, ao mesmo tempo, a troca de informaes e a debilita-

    o da comunicao. A comunicao morre por excesso de comunicao.39

    possvel perceber que a cibercultura se constitui a partir da convergncia entre o social e o tecnolgico e de certa forma a incluso de uma prtica social dentro de qual-

    quer dinmica de relao acarreta o surgimento de um carter de indeterminismo para o processo como um todo.

    O relacionamento desenvolvido entre o social e o tecnolgico parece estar carre-

    gado de tenso na cibercultura, mas numa tenso produtiva em que ambos os lados so dependentes entre si para o avano desse processo.

    Sem dvida, as novas tecnologias das comunicaes j asseguraram um espao na sociedade global. Seja por fora do poder econmico ou pelo prprio desenrolar do

    processo social, a prxis comunicativa est se transformando em algo novo.

    Comunicar-se atravs de meios digitais aceitar que a comunicao as-

    suma novos parmetros que um novo segmento de pblico que se

    alcana: mais jovem, de alta escolaridade e no qual j no predominam as mulheres. saber que, apesar dessa segmentao que implica certa regularidade de caractersticas, trata-se de usurios que fazem escolhas

    e criam hbitos muito individualizados, e que os meios eletrnicos cada vez mais fornecem ferramentas para que o gosto e a curiosidade pes-soais sejam satisfeitos, seja pela grande oferta de produtos, seja pela sofisticao tecnolgica dos equipamentos.0

    Os meios de comunicao digital rompem com as caractersticas bsicas da co-

    municao de massa. Eles permitem uma individualizao do processo de seleo de temas, canais e grade de programao das redes de difuso, transferindo para o receptor uma parte importante do processo comunicativo.

    39 LEMOS, Andr. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contempornea. Ed. Sulina. Porto Alegre, 2002, p. 8.

    0 COSTA, Cristina. Op. Cit., p. 8.

  • 6

    As novas tecnologias da comunicao tm provocado um grande impacto social e cultural pela forma revolucionria com que passaram a transmitir imagens ao redor do globo e pela possibilidade de manipulao do contedo das imagens atravs do uso de processos de digitalizao que interpretam as imagens capturadas atravs de um processo numrico, transformando-as em modelos manipulveis por meio do uso de computador

    e sofisticados sistemas softwares de trabalho.

    A imagem numrica no mais o registro de um trao deixado por um objeto

    preexistente pertencendo ao mundo real (trao ptico, no caso da fotografia, cinema ou

    do vdeo, ou trao fsico resultante do encontro do pincel e da tela na pintura); ela o

    resultado de um processo em que a luz substituda pelo clculo, a matria e a energia, pelo tratamento da informao.

    O suporte de registro da imagem digital totalmente diferente da pelcula foto-

    grfica. Nesse momento fica evidente a distino entre aquilo que convencionamos

    chamar fotografia e essa nova forma de registro de imagens que denominamos imagem

    digital. Porm, outros fatores tcnicos e tecnolgicos tambm iro colaborar para o esta-

    belecimento de semelhanas e diferenas entre fotografia qumica e fotografia digital.

    Nesse sentido, a imagem de sntese no possui mais nenhuma aderncia ao real: ela se libera. Ela no mais como a foto, o cinema, a televiso, nem mesmo a pintura, projetada sobre uma tela ou um quadro; ela

    lanada para fora do real, com fora suficiente para se extirpar de sua

    atrao e do campo de representao. Com ela se instaura uma nova or-dem visual em ruptura com as tcnicas tradicionais da imagem, mas em continuidade com a lgica escrita alfabtica que liberava o pensamento

    da materialidade sonora da lngua.2

    O crescente uso de imagens digitalizadas, sua rpida divulgao e transmisso atravs do ciberespao e a percepo da possibilidade de sua manipulao fator de in-

    tensos debates no s nos meios especializados, mas tambm entre pessoas que paulati-

    namente comeam a tomar contato com as novas tecnologias de comunicao.

    Para levar adiante essa reflexo sobre comunicao, vou colocar um olhar mais

    profundo sobre algumas questes relativas ao conceito de imagem e sobre como a psique humana se relaciona inconsciente e conscientemente com elas.

    COUCHOT, Edmond. Op. Cit., p. 6. 2 Idem.

  • 37

    A imaginao ou conhecimento da imagem vem do entendimento; o entendi-

    mento, aplicado impresso material produzida no crebro, que nos d uma conscincia da imagem.

    Antes de tudo, preciso compreender as diferenas entre o conceito de imagem no senso comum e o conceito filosfico de imagem. Jean-Paul Sartre entende que a ima-

    gem diferente de uma idia ou conjunto de idias, pois para ela a imagem o pensa-

    mento do homem (tenso entre imaginao e razo) enquanto modo finito, e, no entanto,

    idia e fragmento do mundo infinito, que o conjunto de idias.

    possvel perceber que a imagem tambm pensamento, porm diferente de uma simples racionalizao de um objeto, pois ela est carregada de significao. De certa

    maneira a imagem uma representao do real.

    Podemos dividir o mundo das imagens em dois domnios. O primeiro o das representaes visuais, como desenhos, pinturas, fotografias e imagens televisivas. O se-

    gundo o domnio das imagens na nossa mente. Ambos os domnios da imagem no

    existem separados, pois esto inextricavelmente ligados j na sua gnese. No h imagens

    como representaes visuais que no tenham surgido de imagens da mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que no h imagens mentais que no tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais.5

    A modernidade assistiu a inveno de diferentes formas de representao visual como a fotografia, o cinema e a televiso. Todas essas formas de imagem so materializa-

    das por meio de uma lgica figurativa chamada morfognese por projeo, o que implica

    sempre a presena de um objeto real preexistente imagem. Cria uma relao biunvoca

    entre o real e sua imagem. A imagem se d, ento, como representao do real. 6

    O desenvolvimento das tecnologias digitais traz em seu modus operandi uma lgica figurativa diferente daquela utilizada pelos meios de representao existentes at

    ento. A lgica figurativa numrica no parte da preexistncia de um objeto real, mas sim

    de sua modelizao, ou seja, ela reconstri o real, fragmento por fragmento sem manter

    uma relao direta ou fsica com ele.

    SARTRE, Jean-Paul. A Imaginao. Difuso Europia do livro. So Paulo, 1964, p. 11. Idem, p. . 5 SANTAELLA, Lcia e NOTH, Winfried. Imagem Cognio, Semitica, Mdia. Ed. Iluminuras. So Paulo, 200, p. 5. 46 PARENTE, Andr (org.). Imagem Mquina. A Era das tecnologias do virtual. Editora 34. Rio de Janeiro, 1993, p. 39.

  • 8

    O que se torna claro a respeito das imagens que elas podem se referir tanto realidade factual quanto ao irreal, portanto, a questo sobre se transmitem uma verdade ou uma mentira sempre esteve em aberto.

    Ao analisarmos a imagem fotogrfica analgica, percebemos que as circunstn-

    cias fsicas de produo da fotografia foram a reproduo ponto por ponto da natureza,

    concedendo assim um signo indicial imagem fotogrfica. Talvez, este seja um dos mo-

    tivos pelos quais muito se debate sobre imagem digital e seu uso indiscriminado pelos meios de comunicao em contrapartida ao uso da imagem analgica.

    Atualmente, a pergunta mais regularmente feita , j que a imagem digital traba-

    lha a partir de mtodos to distintos da fotografia analgica, seria ela ainda uma fotogra-

    fia? Ser que no deveria ser estudada como outro tipo de imagem? Em contrapartida,

    tambm devemos questionar se somente quando a imagem analgica que ela faz refe-

    rncia ao mundo real.

    Embora, o registro da imagem no filme fotogrfico seja diferente da feita pelo

    chip ou do processador numrico inserido no interior dos aparelhos fotogrficos, a to-

    mada fotogrfica ou a forma pela qual se olha atravs do aparelho se mantm a mesma

    em ambas tecnologias.

    Pierre Francastel estudou profundamente a relao do homem com a imagem, se-

    ja ela uma pintura, um desenho ou uma fotografia. Para ele o espao imaginrio baseia-se

    numa concepo abstrata do espao que a do adulto ocidental normal. Em compen-

    sao, existem outras relaes com o espao, antes mesmo do encontro com as imagens,

    relaes baseadas numa concepo menos abstrata, menos rigidamente estruturada pela geometria perspectivista, e a respeito das quais Francastel utiliza a palavra topologia.47

    Topologia o estudo das relaes espaciais, porm Francastel desenvolve sua reflexo utilizando conceitos da psicologia, especialmente aqueles sobre a apreenso do

    espao pelas crianas. Antes de desenvolverem um olhar global e apto perspectiva, as crianas conhecem o espao pelas relaes de proximidade: ao lado de, em cima de, dis-

    tante, prximo, etc. Para Francastel as pessoas nunca perdem por completo a memria

    dessas relaes iniciais que so obscurecidas por um sentido espacial mais abrangente e global.

    47 AUMONT, Jacques. Op. Cit., p.137.

  • 39

    Em nossas relaes com as imagens, essas primeiras experincias de apreenso do

    espao vinculadas extenso corporal tm a oportunidade de serem externalizadas. Na

    fotografia analgica, tcnicas de criao como o descentramento do objeto, estimulam

    esse formato de relao. J nas imagens digitais possvel inserir diferentes elementos no plano da imagem que estimulam o mesmo processo, porm de maneira mais acentuada.

    Serra Pelada, Brasil. Sebastio Salgado, 1986. O trabalho documental desse fotgrafo brasileiro radicado na Europa pode ser analisado a partir de Kant. Suas imagens registraram momentos intensos da realidade social mundial e ao mesmo tempo possuem uma beleza plstica de tonalidades, luzes, e sombras inerentes ao mais refinado conceito esttico.

    A natureza da imagem digital adquire status hbrido, visto que a imagem fotogrfica

    somente aceita composies de elementos e formas em seu processo de ps-produo,

    sendo que a tomada fotogrfica se mantm a mesma. Alguns autores avaliam o teor de hi-

    bridez das imagens fotogrficas, especialmente as experimentais e as publicitrias, devido

    ao fato de a razo estar passando por um perodo de fragilidade.

    Jean-Marie Schaeffer acredita que a imagem fotogrfica aps o surgimento das

    tecnologias digitais est conceitualmente precria. Para aprimorar sua reflexo ele busca

    subsdios nos conceitos de belo e sublime desenvolvidos por Kant, um objeto belo no

    momento em que experimentamos uma concordncia feliz entre a imaginao e o enten-

  • 0

    dimento. (...) Em outras palavras, um objeto belo se apresentar por fora, formas idnti-

    cas s que nosso esprito projetaria em uma atividade livre e autnoma. (...) A coincidncia

    deve ser experimentada concretamente na contingncia emprica, por exemplo, a da vida

    perceptiva.8

    Sem dvida, a reflexo anterior nos faz perceber a concepo defendida acerca da

    imagem fotogrfica, ou seja, somente sob os preceitos da imagem analgica que podem-

    os fruir do prazer esttico sobre a imagem fotogrfica. Afinal, para Schaeffer a fotografia

    a imagem que pede para ser vista como imagem fotogrfica: no um cone autotlico,

    mas uma imagem referente ao universo perceptivo, sem que por isso ela reproduza uma percepo. 49

    Ao contrrio do que acontece nas mdias digitais. Podemos dizer, portanto, que

    h nas mdias analgicas, alm de afetividade e naturalismo, um processo de humaniza-

    o tecnolgica, uma tentativa de encobrir os recursos e as dificuldades tcnicas, dando a

    impresso de que a comunicao se d nos moldes das relaes face a face, envolvendo os mesmos sentimentos e as mesmas regras de comportamento.50

    J no campo das imagens digitais,

    Bricolage parece ser a palavra mais adequada para explicar a manei-

    ra como os mais diversos recursos da tecnologia digital se ajustam s manifestaes artsticas e ficcionais que vm se desenvolvendo desde

    que a comunicao eletrnica se firmou como base dos processos co-

    municacionais. O termo implica a possibilidade de cada autor integrar de forma pessoal e hbrida os mais diferentes recursos das chamadas novas tecnologias (...) Bricolage remete diversidade formal, adap-

    tao provisria e experimentao que norteiam as propostas artsti-

    cas realizadas em meios digitais, e que vo desde a produo de um site na internet ou de um CD com hipertextos at complexos sistemas de

    telepresena.5

    Parece que o surgimento de uma nova tecnologia, a fotografia digital, sempre

    causou um certo temor pela desapario ou pela completa substituio da tecnologia que a antecede. Porm a histria tem mostrado que este no o caso. Se assim fosse no es-

    48 SCHAEFFER, Jean-Marie. A Imagem precria. Papyrus Editora. Campinas, 1996, p. 163.

    49 Idem, p. 196.

    50 COSTA, Cristina. Op. Cit., p. 68.

    51 Idem, p. 93.

  • taramos ainda ensinando as crianas a se expressar atravs de desenhos e pinturas. No

    caso particular da fotografia, o seu primeiro grande golpe aconteceu j no sculo XIX,

    com o surgimento da imagem em movimento e do cinema.52

    Por mais que a imagem fotogrfica atualmente seja compreendida como uma

    imagem hbrida, reflexo de um processo social complexo que consegue adquirir visibili-

    dade por meio das mais diferentes produes imagticas, ela ainda produzida sobre elementos do real e sob a mesma forma de tomada fotogrfica com a qual a fotografia foi

    historicamente realizada.

    O modo dialgico colocanos numa situao muito diferente em relao

    s antigas imagens. A imagem interativa calculada em tempo real s

    existe na medida em que intervimos sobre ela, ou, mais precisamente

    sobre o mundo no qual ela nos prope uma simulao. Em compen-sao, esse mundo simulado transmite informaes de todas as ordens afetando nossa percepo de diversos modos, dando-nos a impresso

    alguns diro: iluso de estar em contato real com ele.5

    Sem dvida, estaremos habitando um mundo cada vez mais repleto de simula-

    es, mas difcil imaginar um estilo de vida em que o contato com a realidade esteja ausente da vida das pessoas.

    Se a simulao tende globalmente a liberar do real a imagem e o pensamento fi-

    gurativo no seu conjunto, ela recria, graas aos jogos das interfaces, pontos de referncia do real, ligaes tnues, mas que lhe impedem de colocar-se deriva sem nenhum con-

    trole.5

    Talvez em um futuro no muito distante a imagem analgica sobreviva somente

    em alguns nichos sociais e comerciais especficos. Porm, enquanto a tecnologia digital

    no for aplicada a todos os meios de comunicao existentes, a fotografia convencional ir

    fazer-se presente e se faro ouvir os conceitos de realidade e verdade to ardorosamente

    defendidos por aqueles que compreendem a imagem fotogrfica exclusivamente como

    um veculo que expressa traos de uma realidade, justamente a corrente de pensa-mento

    hegemnica no perodo pr-surgimento da fotografia digital.

    52 AMELUNXEN, Hubertus von; IGLHAUT, Stefan; RTZER, Florian. Photography after Photography. G+B Arts. Munique, 1996, p.

    20.

    53 COUCHOT, Edmond. Op. Cit., p. 172.

    5 Idem.

  • 2

    O armazenamento de informaes sensoriais da realidade no formato numrico permite uma recombinao dos elementos armazenados dando origem a algo novo e diferente da imagem previamente registrada. Aquilo que as pessoas registraram como uma informao semelhana do real pode, a partir de agora, ser recombinado e trans-

    formado em uma outra matriz sem que a operao seja percebida por aquelas pessoas que estavam diante de uma determinada imagem pela primeira vez. Sem dvida a possibilidade de manipulao do contedo das imagens de forma imperceptvel ao receptor levanta a questo sobre o embate entre o mundo real e o fic-

    cional.

    Como j vimos anteriormente, o processo de desenvolvimento da cibercultura coloca as pessoas num ambiente no qual as relaes so desenvolvidas distncia, de forma no presencial. Por isso, preciso compreender como se dar a recepo das ima-gens digitais pelas pessoas, j que as prprias imagens podero conter em si elementos de

    realidade e outros de fico.

    Manipulao digital de contedo da imagem, Paul Higdon. Nova York, Estados Unidos, 1996. Fotomontagem com a inteno de estimular a reflexo sobre a ficcionalidade na foto-grafia. Para os indivduos leigos em histria, a presena de personagens de televiso poderia muito bem no ser percebida no contexto da fotografia de uma reunio de chefes de estado durante a II Guerra Mundial.

    O avano tecnolgico dos meios de comunicao parece ter dado forma ao an-

    seio humano de materializar os seus desejos mais profundos de expresso de identidade

    e de representao cultural. No seria, talvez, a produo de imagens digitalmente mani-

  • puladas a factualizao daquilo que j se notava anteriormente nas imagens analgicas?

    muito difcil expressar uma resposta conclusiva acerca desse assunto, mas pos-

    svel tecer algumas consideraes que apontem caminhos de investigao sobre o tema.

    A primeira ponderao que devemos fazer que o atofotogrfico, ou seja, a to-

    mada da fotografia se d em processo similar tanto na produo fotogrfica analgica

    quanto na digital. Suas diferenas esto no processo posterior ao registro da imagem.Aps a captura da imagem, no processo analgico se desenrola a revelao da pelcula

    para que a imagem seja revelada e posteriormente aplicada aos seus diferentes tipos de uso. No processo digital a equao numrica que representa a imagem capturada trans-ferida para um processador numrico ou computador que permite que se d o destino desejado para aquela imagem.

    Imagem publicitria criada com o auxlio de manipulao digital. Ho-ward Schatz, 2002. O fotgrafo norte-americano pr-visualiza a sua imagem final, j levando em considerao as possibilidades de manipulao na fase de ps-produo permitidas pela tecnologia digital.

  • Portanto, o que existe fisicamente como imagem aps o seu registro completa-

    mente diferente nas tecnologias analgica e digital.55

    A imagem digital no faz com que aparea um novo gnero fotogrfico. Na reali-

    dade, o seu processo de ps-produo se insere em qualquer gnero fotogrfico e amplia

    as possibilidades de trabalho com a imagem fotogrfica. At ento, aps a sua produo,

    a imagem analgica era editada, recortada, retocada ou at colorizada a partir de proces-

    sos manuais ou mecnicos. Agora o processo digital pode ser aplicado sobre a fotografia,

    desde que esta seja transformada em uma imagem digital atravs do escaneamento da imagem.

    A digitalizao das imagens atende a demanda dos veculos de informao que necessitam de imagens dos fatos e acontecimentos no mundo em tempo praticamente simultneo ao seu desenrolar, ou seja, a rapidez e a facilidade de transmisso das imagens so um fator de determinao do seu formato de uso.56

    A imagem publicitria, por meio de sua linguagem codificada, ganha diversidade

    de ferramentas e agilidade em seu processo criativo com a incluso de ferramentas digi-

    tais na realizao de seu processo produtivo.

    Sem dvida, essa nova dinmica torna a imagem fotogrfica algo novo daquilo

    que foi possvel ser observado ao longo dos seus 50 anos de vida. Sua nova identidade ainda est em formao e por isso torna-se difcil tecer alguma considerao conclusiva

    acerca desse fato.

    Dada a atual fascinao pela fotografia veiculada na grande mdia como

    signo cultural e a generalizada insatisfao com as tradies da fotogra-fia artstica herdadas desde a cinqenta anos atrs, de se suspeitar

    se a celebrao do 150 o aniversrio da fotografia no deveria ser um

    aviso de despertar. Pois, se a fotografia sobreviver ao sculo XXI, ela

    ser algo mais fabricado, manipulado e egocntrico do que a fotografia

    que ns viemos a conhecer. Ela ser, em breve, menos como o mundo

    e mais como a arte.57

    55 AMELUNXEN, Hubertus; IGLHAUT, Stefan; RTZER, Florian. Op. Cit., p. 20.

    56 Idem, p. 60. 57 GRUNDBERG, Andy. Op. Cit., p. 221.

  • 5

    Porm, como j foi mencionado, a imagem digital desloca um componente de im-portncia e relevncia nas relaes entre imagens e observador. cada vez mais claro que a imagem feita pelo espectador e que a multiplicidade das formas que a fotografia vm

    adquirindo nos ltimos anos decorrncia do desejo de comunicao no mbito singular do sujeito.

    Tenho a percepo de que o embate a ser analisado atualmente no campo da ima-

    gem fotogrfica a sua relao na psique humana entre o universal e o singular por meio

    de um aprofundamento sobre o campo da linguagem, dos smbolos e das representaes como elementos constitutivos da dinmica social.

    Talvez a postura mais adequada diante desse processo seja a que Cristina Costa explicita em seu livro Fico, Mdias e Comunicao:

    Vivemos certamente o desconforto de saber que tudo aquilo que nos habituamos se encontra em plena metamorfose e que muito rapidam-ente no poderemos mais usar nossas antigas referncias entre elas

    a capacidade de discernir entre fico e realidade. Mas por tudo o que

    aqui desenvolvemos, parece mais razovel pensar que tendemos a su-perar o assombro das novas virtualidades e a perder rapidamente nossa ingenuidade inteirando-nos daquilo que real e daquilo que encanta,

    porque, no sendo real, permite-nos experimentar o prazer irrecusvel

    de reinvent-lo.58

    58 COSTA, Cristina. Op. Cit., p. 02.

  • 6

    5. A fotografia publicitria

    As consideraes que fizemos at este ponto do trabalho dizem respeito ao pro-

    cesso fotogrfico transformado pelo advento das mdias digitais, abrangendo todos os

    seus gneros o fotojornalismo, a foto publicitria, a fotografia artstica e at a fotografia

    amadora.

    Neste captulo vamos estudar mais detidamente as modificaes que ocorreram

    com a fotografia publicitria, em parte porque suas caractersticas, como veremos, pare-

    cem ser mais suscetveis ao desenvolvimento tecnolgico e tambm porque ela me mais

    prxima, em virtude de minha ocupao profissional se ater a este campo de trabalho.

    Entendemos por gnero um conjunto de caractersticas envolvendo o tratamento de um tema, objetivos e funes do processo fotogrfico, premissas discursivas e estticas

    que se repetem de forma a constituir um modelo com certa credibilidade que resiste in-clusive sua adaptao por diferentes mdias.

    Na fotografia temos, assim, alm dos gneros herdados das artes plsticas (retra-

    to, paisagem e natureza-morta), os gneros prprios do processo fotogrfico: o fotojor-

    nalismo, a fotografia experimental e a fotografia publicitria. Como j foi dito, o foto-jor-

    nalismo se atm prioritariamente ao registro e a divulgao dos acontecimentos sociais, polticos e ambientais que permeiam a sociedade como um todo. A fotografia experimen-

    tal aquela que se destina explorao dos gneros metafricos do ato fotogrfico, pri-

    orizando a explorao prtica da linguagem fotogrfica, destinando-se avaliao, recon-

    hecimento e legitimao dos profissionais do campo em que atuam. Por fim, a fotografia

    publicitria se ocupa da criao e produo de imagens que divulguem e promovam os mais diversos bens e servios oferecidos por pessoas e empresas sociedade como um bem de consumo.

    Essa classificao obedece intencionalidade do ato fotogrfico e no a um juzo

    de valor excludente, sendo possvel considerar uma foto publicitria como artstica quan-

    do atingir nveis de excepcionalidade.

  • 47

    No contexto histrico da fotografia, o gnero publicitrio surgiu como uma real

    opo de trabalho na publicidade aps a Primeira Guerra Mundial. No incio da dcada

    de 1920, menos de 15% dos anncios publicitrios empregavam fotografias, ao redor de

    1930, 80% j eram fotos.59

    Inicialmente os executivos e diretores de arte das agncias de publicidade da -

    poca se interessaram pelas propriedades realistas e verdadeiras da imagem fotogr-

    fica. A capacidade que a fotografia possui de, muitas vezes, obscurecer a sua construo

    subjetiva atravs da precisa reproduo dos mnimos detalhes, apresentando assim, um apelo emocional mediado por uma viso objetiva, abriu as portas no meio publicitrio para um uso mais constante e intenso da fotografia.

    Pouco tempo depois, um estilo de fotografia publicitria mais manipulativa emer-

    giu, projetando fantasias e ideais de forma bvia, mas ainda assim, com grande fora per-

    suasiva e apelo consumista. A fotografia, como uma ferramenta da propaganda, tornou

    gradualmente a beleza mais acessvel aos olhos do pblico, aproximou ideais de consumo

    e nesse processo ajudou a promover e vender bens e servios.

    O perodo aps a Primeira Guerra Mundial tambm foi um momento histrico

    de grande mpeto modernista, especialmente nos Estados Unidos, onde foram erguidos enormes prdios comerciais, a indstria passou a implementar novos e mais eficientes

    mtodos de produo e a arte mostrou-se renovada. Alm disso, para a publicidade, no-

    vas tcnicas de pesquisa e ferramentas de marketing apareceram e tornaram o meio pu-

    blicitrio mais profissionalizado. Entre essas ferramentas a fotografia foi uma que mais

    se destacou. E muito, porque suas caractersticas analgicas expressavam muito bem o

    contexto social e econmico da poca.

    O estilo inicial direto e quase documentrio da fotografia publicitria estava cen-

    trado em produzir uma narrativa que, aliada aos ttulos e textos dos anncios, garantisse

    um apelo consumista claramente decodificvel para o consumidor, mas que tambm en-

    altecesse certa sensibilidade esttica e um cuidado com a beleza da imagem fotogrfica

    apresentada.

    59 JOHNSTON, Patricia. Real Fantasies, Edward Steichens Advertising Photography. University of Cali-fornia Press. Berkeley, 2000,

    p. .

  • 8

    Reproduo de um anncio para o fabricante norte-americano de loes cremosas Jergens Lotion publicado na revista Vogue. Fotografia de Edward Steichen e direo de arte de Gor-don Aymar da J. Walter Thompson, novembro de 1925. A tcnica fotogrfica usada no manipulativa e aliada ao texto procura ressaltar para a mulher que possvel ter mos bonitas e macias, mesmo com o duro trabalho do lar.

    O fotgrafo norte-americano Edward Steichen foi um dos principais profission-

    ais da fotografia publicitria entre as dcadas de 1920 e 1940. Seu trabalho percorreu o

    estilo objetivo inicial da imagem publicitria, bem como estilos mais manipulativos que surgiram posteriormente.

    O estilo objetivo da foto publicitria era nitidamente explcito em sua construo

    narrativa. Inicialmente, como j foi mencionado, o ideal de consumo era enaltecido pelas prprias caractersticas da imagem fotogrfica, tais como: nitidez, realismo, preciso e

    afetividade.

  • 49

    A narrativa empregada nos anncios como os utilizados pela empresa Jergens Lo-tion auxiliava o uso de uma estratgia de propaganda fundamentada na expresso racional

    dos benefcios e atributos do produto. Nesse caso a fotografia objetiva e direta parecia ser

    a escolha correta para tal formato de propaganda. possvel que os diretores de arte da

    poca ainda no tivessem assimilado o complexo conceitual da imagem fotogrfica, pois

    utilizavam um meio de comunicao novo, a fotografia, aliada a uma tcnica de promoo

    antiga. 60

    Com o passar dos anos a fotografia publicitria foi incorporando em sua lingua-

    gem visual uma manipulao sutil e referncias derivadas das principais correntes filos-

    ficas e artsticas do perodo modernista.

    A colorizao de fotografias em preto e branco (P&B) foi uma das tcnicas utili-

    zadas para se atingir um maior apelo visual, assim como o hbito de exagerar a nitidez do

    foco, valorizar detalhes e criar uma aura de sofisticao nas imagens apresentadas> Todas

    elas iam ao encontro dos conceitos modernistas de renovao das formas e da sensibili-dade esttica.

    Embora o processo de reproduo grfica por tons mdios j existisse h algum

    tempo, a fotografia P&B (tons de cinza) preponderou nos anncios publicitrios at o

    final da dcada de 1940, provavelmente devido ao alto custo da impresso colorida e do

    elaborado trabalho de colorizao manual das fotografias em P&B. No obstante, o de-

    sejo pela visualizao da imagem em cores existia desde o sculo XIX, quando fotgra-fos

    coloriam manualmente os retratos de seus clientes.

    60 JOHNSTON, Patricia. Op. Cit., p. 60.

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    Reproduo de um anncio para o fabricante norte-americano de loes cremosas Jergens Lotion, publicado no Ladies Home Journal. Fotografia de Edward Steichen e direo de arte de Gordon Aymar no ano de 1925 da J.Walter Thompson em fevereiro de 1925.

    Embora sutil, o teor de manipulao aplicado aos trabalhos fotogrficos, j deno-

    tava um uso