Fotografia, história e cultura visual: pesquisas recentes

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  • FOTOGRAFIA, HISTRIA e CULTURA VISUAL: PESQUISAS RECENTES

  • ChancelerDom Dadeus Grings

    ReitorJoaquim Clotet

    Vice-ReitorEvilzio Teixeira

    Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk Fariarico Joo HammesGilberto Keller de Andrade Helenita Rosa FrancoIr. Armando Luiz BortoliniJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy Presidente Jurandir Malerba Lauro Kopper FilhoLuciano KlcknerMarlia Costa Morosini Nuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom Stein Ruth Maria Chitt Gauer

    EDIPUCRSJernimo Carlos Santos Braga DiretorJorge Campos da Costa Editor-Chefe

  • CAROLINA ETCHEVERRYCHARLES MONTEIRO (ORG.)

    MARIA CLUDIA QUINTOPATRICIA CAMERA

    RODRIGO DE SOUZA MASSIA

    FOTOGRAFIA, HISTRIA e CULTURA VISUAL: PESQUISAS RECENTES

    Srie Mundo Contemporneo 2

    Porto Alegre, 2012

  • EDIPUCRS, 2012

    Fotografia e Criao: Patricia Camera

    Diagramao: Rodrigo Valls

    Fernanda Lisboa

    Rodrigo Valls

    F761 Fotografia, histria e cultura visual: pesquisas recentes [recurso eletrnico] / Charles Monteiro (Org.). Dados eletrnicos. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012. 132 p. - (Srie Mundo Contemporneo)

    ISBN 978-85-397-0154-4

    Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso:

    1. Fotografia - Histria. 2. Cultura Visual. 3. Fotografia - Brasil . 4. Antro-pologia Cultural. I. Monteiro, Charles. CDD 770.981

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas grficos, microflmicos, fotogrficos, reprogrficos, fonogrficos, videogrficos. Vedada a memorizao e/ou a recuperao total ou parcial, bem como a incluso de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibies aplicam-se tambm s caractersticas grficas da obra e sua editorao. A violao dos direitos autorais punvel como crime (art. 184 e pargrafos, do Cdigo Penal), com pena de priso e multa, conjuntamente com busca e apreenso e indenizaes diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

  • SUMRIO

    APRESENTAO ....................................................................................06Ana Maria Mauad

    PARTE I FOTOGRAFIA, HISTRIA E IMPRENSA

    Captulo 1 - Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950: a elaborao de um novo padro de visualidade urbana nas fotorreportagens da Revista do Globo .........................................................................................09Charles Monteiro

    Captulo 2 - A tcnica de Joo Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman na fotografia porto-alegrense dos anos 1950 ......50Rodrigo Massia

    Captulo 3 - Por trs das lentes, uma histria: a percepo de fotgrafos sobre as imagens da mdia impressa ......................................................72Maria Cludia Quinto

    PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTRIA E ARTE

    Captulo 4 - Histria da fotografia moderna brasileira: experimentaes de Geraldo de Barros e Jos Oiticica Filho (1950-1964) .....................90Carolina Etcheverry

    Captulo 5 - A dimenso histrica em Mujeres Presas: aproximaes tericas entre fotografia-expresso e ator social ...................................117Patricia Camera

  • APRESENTAO

    Ana Maria Mauad

    No de hoje que os estudos histricos ultrapassaram os limites documentais de uma escritura feita exclusivamente com documentos verbais. A iniciativa de renovao da oficina da histria, defendida pelos pais fundadores do Annales, que conclamaram seus pares a sarem de seus gabinetes e a aprenderem a ler a demarcao dos campos, ou os rituais da cavalaria medieval, foi amplificada pela revoluo documental que a histria serial dos anos 1970, implementaram com a introduo das sries, da quantificao e do dado numrico, como fundamentais para a produo do conhecimento histrico de natureza total. A histria dos eventos foi substituda pela histria das estruturas na longa durao, sendo a revoluo documental, a expresso mais evidente de uma outra revoluo, essa mais profunda, a da conscincia historiogrfica.1

    Dos anos 1970 em diante, com as publicaes-manifesto da Nova Histria Francesa, novos objetos, novos problemas e abordagens comearam a fazer parte da reflexo historiogrfica; na sequncia as manifestaes da micro-histria italiana ajudaram a compor um panorama onde racionalidade histrica e expresso subjetiva se encontravam na escrita de uma outra histria, chegando definitiva renovao da historiografia brasileira com a consolidao dos programas de ps-graduao, uma nova revoluo reorientou a delimitao das fronteiras da Histria em rumo definitivo a uma perspectiva transdisciplinar. Assim, o corolrio da revoluo documental, da ampliao dos tipos de fontes e registros considerados aptos produo do texto historiogrfico orientou o pesquisador a buscar novas possibilidades de interpretao.

    Os estudos sobre cultura visual em histria so um bom exemplo para considerarmos esse tipo de renovao. De fato, como esclarece o historiador Paulo Knauss, possvel se fazer uma histria com imagens, que abandone uma epistemologia da prova, rumo construo de uma leitura histrica que valorize o processo contnuo de produo de representaes pelas sociedades humanas.2

    A essa reflexo, um outro historiador, Ulpiano Meneses, agrega problemas e questes que nos levariam rumo a uma Histria Visual, que considera as imagens no como efeitos, ou sintomas, mas a prpria visualidade como princpio cognitivo de carter indefectivelmente histrico.3 Alis, em outro texto, uma 1 Le Goff, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopdia Einaudi, Vol.1, Lisboa: Imprensa nacional/Casa da Moeda, 1985.2 Knauss, Paulo, O desafio de fazer Histria com imagens: arte e cultura visual, ArtCultura, Uberlndia, vol.8, n.12, jan-jun. 2006, p.97-115. 3 Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, histria visual. Balano provisrio, propostas

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    apresentao como esta, Meneses j afirmava serem as imagens fotogrficas suportes de relaes sociais.4

    Neste sentido, os ensaios aqui reunidos pelas temticas da histria, fotografia e cultura visual prescrevem um itinerrio no qual so apontados caminhos para a compreenso da fotografia como expresso esttica, percepo subjetiva, produo autoral, leitura do mundo visvel, tramas de ver e registrar visualmente a histria, como processo e problema.

    H muito venho trabalhando com fotografia, em aulas, textos e pesquisa. Esse trabalho me possibilitou encontros inesquecveis com produtores e suas imagens, com sujeitos e suas lembranas, com trajetrias e seus projetos.5 Ainda assim, me surpreendo com a infindvel riqueza que a reflexo sobre a prtica e a experincia fotogrfica pode revelar. Boa leitura.

    cautelares, Revista Brasileira de Histria, vol. 23, n 45, julho de 2003.4 Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Apresentao. In: LiMa, Solange F.; CarvaLho, Vania Carneiro de. Fotografia e Cidade: da razo urbana lgica do consumo, lbuns de So Paulo (1887-1950). So Paulo: Mercado das Letras, 1997.5 MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre histria e fotografias. Niteri: Eduff, 2008.

  • PARTE I FOTOGRAFIA, HISTRIA E IMPRENSA

  • CAPTUlO 1

    IMAGENS DA CIDADE DE PORTO AlEGRE NOS ANOS 1950: A ElABORAO DE UM NOVO PADRO DE

    VISUAlIDADE URBANA NAS FOTORREPORTAGENS DA REVISTA DO GLOBO 1

    Charles Monteiro2

    A pesquisa problematiza a elaborao de uma nova visualidade da cidade brasileira na imprensa nos anos 1950, atravs de um estudo de caso sobre Porto Alegre, no contexto de mudanas na cultura visual. Trata-se de compreender a produo e a veiculao de imagens fotogrficas da cidade de Porto Alegre nos anos 1950, na Revista do Globo, no contexto de modernizao da imprensa ilustrada brasileira. Busca-se discutir os temas, as formas de fotografar a cidade e os sujeitos urbanos, bem como o processo de editorao dessas imagens fotogrficas em fotorreportagens nas pginas da revista, visando a compreender a nova visualidade urbana e as representaes de cidade elaboradas em um contexto de crescimento populacional, expanso do permetro urbano e verticalizao da rea central.

    Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos tipos de imagens perpassam a vida cotidiana, relacionando as tcnicas de produo e circulao das imagens forma como so vistos os diferentes grupos e espaos sociais, entre o visvel e o invisvel, propondo um olhar sobre o mundo, mediando a nossa compreenso da realidade e inspirando modelos de ao social.3

    1 A pesquisa foi apresentada no Minissimpsio Temtico Histria, Imagem e Cultura Visual, no XXIV Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, realizado de 15 a 20 de julho de 2007, na UNISINOS (So Leopoldo/RS/Brasil), e coordenado pelos Professores Doutores Iara Lis Franco Schiavinatto (UNICAMP) e Charles Monteiro (PUCRS), bem como no VII Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos, realizado de 21 a 23 de outubro de 2008, na PUCRS (Porto Alegre/RS/Brasil). Verses parciais foram publicadas em: MONTEIRO, Charles. Imagens sedutoras da modernidade urbana: reflexes sobre a construo de um novo padro de visualidade urbana nas revistas ilustradas na dcada de 1950. Revista Brasileira de Histria, 2007, Vol. 27, n. 53, p. 159-176; MONTEIRO, Charles. A construo da imagem dos outros sujeitos urbanos na elaborao da nova visualidade urbana de Porto Alegre nos anos 1950. Urbana, 2007, ano 2, n. 2, p. 1-21.2 Doutor em Histria Social (PUCSP/Lyon 2), Professor Adjunto de Histria do Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH) da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (Brasil/RS/Porto Alegre). Desenvolve pesquisas na rea de Histria, Fotografia e Cultura Visual; ministra Seminrio Histria, Fotografia e Cultura Visual: Imagens das cidades brasileiras sc. XIX e XX no PPGH da PUCRS; orientou cinco dissertaes sobre Histria e Fotografia; publicou vrios artigos em revistas nacionais e papers em anais de congressos nacionais e internacionais sobre o tema; coordenou organizou simpsios temticos em congressos; organizou dossis sobre Histria e Fotografia; faz parte do Grupo de Pesquisa interinstitucional do CNPQ Imagem, Cultura Visual e Histria. Endereo: PPGH/PUCRS Av. Ipiranga, 6681, Prdio 3, Sl. 303 Porto Alegre Brasil CEP. 90619-900. E-mail: [email protected] Sobre Cultura Visual, Histria e Fotografia, cf. MENESES (2003, 2005); KNAUS (2006); sobre fotografia e imprensa ilustrada, cf. MAUAD (2004, 2005); sobre fotografia e cidade, cf. LIMA e CARVALHO (1997).

    mailto:[email protected]

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    Reflexes sobre Histria, Fotografia e Cultura Visual

    Nos anos 1990, desenvolveu-se, nos Estados Unidos, um campo novo de pesquisa chamado de Estudos Visuais, ligando departamentos de artes, comunicao, antropologia, histria e sociologia. As pesquisas apresentavam uma clara perspectiva multidisciplinar e procuravam problematizar a centralidade das imagens e a importncia do olhar na sociedade ocidental contempornea. Alguns autores chegam mesmo a diagnosticar que estaramos vivendo um pictorial turn ou um visual turn, dado o papel do visual e da visualizao no contexto atual marcado pelas imagens digitais e virtuais presentes na televiso, em filmes, em games, na internet (o second life um sintoma), em celulares, em i-phones etc.

    Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana (a visualidade de uma poca), relacionando as tcnicas de produo e circulao das imagens forma como so vistos os diferentes grupos e espaos sociais (os padres de visualidade), propondo um olhar sobre o mundo (a viso), mediando a nossa compreenso da realidade e inspirando modelos de ao social (os regimes de visualidade).

    Segundo Knauss,4 existem duas grandes perspectivas de estudo da cultura visual, uma mais restrita, que procura tratar da experincia visual da sociedade ocidental na atualidade (marcada pela imagem digital e virtual), e outra mais abrangente, que permite pensar diferentes experincias visuais ao longo da histria em diversos tempos e sociedades.

    Este texto constitui-se de uma srie de notas sobre a relao entre histria, fotografia e cultura visual, sem a preteno de ser exaustivo na reviso bibliogrfica, visando dar certas orientaes e pistas para pensar o lugar da fotografia no contexto mais amplo dos estudos sobre a imagem.

    As imagens acompanham o processo de hominizao e de socializao do homem desde a pr-histria, elas perpassam a vida e a organizao social, ordenando a relao entre os homens e desses com o visvel e o invisvel. A confeco de mscaras morturias e a produo de lpides, desde a Antiguidade, apontam para a relao entre imagem e morte, bem como para a necessidade do homem de afirmar e de prolongar a vida frente a perspectiva de sua finitude. Rgis Debray5 aponta para a funo social da imagem ligada produo de um duplo do morto visando preservao de sua memria. Os usos polticos da imagem tambm esto presentes desde os tempos mais remotos, pois de seu controle dependia a legitimidade do exerccio do poder.

    4 KNAUSS (2006, p. 108-110).5 DEBRAY (1994, p. 22-30).

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    Segundo Kern,6 desde seu incio a imagem esteve relacionada representao e noo de imitao do real. A imagem emerge de uma troca simblica e de um simulacro fabricado para enfrentar a destruio provocada pela passagem do tempo, agenciar a memria, manter a coeso social e, tambm, exercer o controle poltico. Funes sociais que no abolem a dimenso artstico-criativa do ato de criao da imagem no tempo. A imagem situava-se entre a mimese, pela produo de uma cpia do real atravs da semelhana, e a representao, ao buscar tornar presente uma ausncia e conferir-lhe significados sociais precisos e controlados.

    A partir do sculo XIX, a fotografia vai tomar o seu lugar nesse mundo das imagens, ao qual vem alterar de forma radical no contexto da Revoluo Industrial ou Revoluo Tcnico-Cientfica. Por um lado, a fotografia veio responder a uma demanda crescente de imagens e de autorrepresentao da burguesia em ascenso, buscando uma forma de fabricar imagens de forma rpida e consideradas fiis aos seu referente. De outro lado, o dramtico processo de urbanizao criou a necessidade de controlar e disciplinar um contingente divesificado de sujeitos em uma sociedade de massas, criando a foto de identificao.

    Segundo Santaella,7 esse mundo das imagens pode ser divido, em termos de diferentes formas de produo, circuitos de circulao, formas de recepo e de estatuto das imagens no tempo, em trs paradigmas: pr-fotogrfico; fotogrfico e ps-fotogrfico. O paradigma pr-fotogrfico est relacionado ao conjunto das imagens produzidas de forma artesanal pela mo do homem, dependendo de sua habilidade e imaginao para plasmar o visvel. Tratam-se de imagens produzidas pela mo do artista, que guardam a sua marca e a aura de objetos nicos. Elas tm uma circulao restrita, sobretudo feitas para serem expostas em galerias e museus. O paradigma fotogrfico diz respeito s imagens produzidas por conexo dinmica e captao fsica de fragmentos do mundo visvel com a mediao de um aparato tico-mecnico: a cmera fotogrfica (a caixa-preta), de vdeo ou de TV. So imagens produzidas com o auxlio de um aparelho mecnico, visando sua reproduo em srie. Perdem a sua aura de objeto nico e passam a circular em diferentes meios sociais, sobretudo, em jornais, revistas, outdoors publicitrios etc. Finalmente, o paradigma ps-fotogrfico que se refere s imagens sintticas e infogrficas (virtuais), pr-modelizadas e matematicamente elaboradas atravs do computador. Percebe-se a importncia da fotografia nessa interpretao medida que ela o parmetro para a existncia de um pr-fotogrfico e um ps-fotogrfico.

    O paradigma fotogrfico herdeiro da cmara obscura, utilizada desde o Renascimento. O dispositivo foi sendo aperfeioado e tornou-se capaz de capturar uma imagem latente em suporte sensvel luz, desencadeando a fotografia. A mquina 6 KERN (2005, p. 7)7 SANTAELLA (2005, p. 295-307).

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    fotogrfica (o dispositivo tcnico) media o enfrentamento entre o olhar de um sujeito (o fotgrafo) e um referente (a realidade), que observado e tem sua luz (fluxo fotnico) capturada atravs de uma lente em uma superfcie sensvel. O ato fotogrfico o fruto de um corte, tanto no campo visual (espao) quanto na durao (tempo), constituindo-se em um fragmento separado e embalsamado do mundo para a posteridade. O que nos interessa reter dessa proposta a particularidade material da imagem fotogrfica frente s imagens manuais e as infogrficas. Embora a fotografia no inaugure a era da reprodutividade das imagens (precedidade por outras tcnicas como a xilografia, litografia etc.), ela inaugura a era da reprodutividade tcnica das imagens, permite que essa reproduo seja muito mais rpida, barata e em massa, bem como considerada mais fiel do que aquelas obtidas pelas tecnologias anteriores. A fotografia respondeu s demandas econmico-industriais e estticas (realismo) da sociedade europeia da segunda metade do sculo XIX, que lhe confere o estatuto de atestao, de duplo do real e de documento. Isso leva a refletir sobre a questo do realismo na fotografia e da forma como ela foi pensada pelos crticos e tericos no ocidente.

    Segundo Dubois,8 essse percurso pode ser pensado em trs tempos: 1) a fotografia do real (o discurso da mimese); 2) a fotografia como transformao do real (o discurso do cdigo e da desconstruo); 3) a fotografia como um trao do real (o discurso do ndice e da referncia).

    O primeiro corresponde euforia que se segue sua inveno e divulgao na Frana, Inglaterra e nos Estados Unidos, onde seus atributos de preciso, rapidez e suas inmeras possibilidades de utilizao foram amplamente louvadas. A fotografia foi apresentada como um auxiliar precioso para a cincia e para as artes em geral. O potencial da fotografia de repertoriar os recantos mais distantes do mundo auxiliando as expedies cientficas, bem como de reproduzir as obras de arte antigas visando ao seu estudo, conferiu-lhe o estatuto de espelho do real. O que se devia, por um lado, semelhana entre a imagem e seu referente e, por outro, valorizao da sociedade europeia dos princpios tcnico-cientficos envolvidos na operao fotogrfica, que lhe garantiriam ser uma reproduo fiel do mundo.

    O segundo momento caracterizado pela denncia da fotografia como transformao do real. Entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, apontaram-se a falsa neutralidade e a reduo do real produzida pela fotografia. Primeiramente, ela produzia um corte no fluxo do tempo, o congelamento de um instante separado da sucesso dos acontecimentos. Em segundo lugar, ela era um fragmento escolhido pelo fotgrafo atravs da seleo do tema, dos sujeitos, do entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade etc. Em terceiro lugar, a fotografia transformava o tridimensional em bidimensional, reduzindo a gama de cores e simulando a profundidade do campo de viso. Alm de tudo isso, ela 8 DUBOIS (1993, p. 23-56).

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    tambm era uma conveno do olhar herdada do Renascimento e da pintura, que seria necessrio apreender para poder ver. Ou seja, questionavam-se a exatido, o realismo e a universalidade desse tipo de imagem.

    Segundo Dubois,9 a fotografia se distingue de outros sistemas de representao como a pintura e o desenho (dos cones), bem como dos sistemas propriamente lingusticos (dos smbolos) enquanto se aparenta muito com o dos signos como a fumaa (ndice do fogo), a sombra (alcance), a poeira (depsito do tempo), a cicatriz (marca de um ferimento) e as runas (vestgios de algo que esteve ali). Para Dubois, a fotografia seria um ndice, pois guardaria um elo fsico com o seu referente. Ela seria uma marca deixada pelo rastro de luz emitido ou refletido por um corpo fsico (pessoa ou objeto) sobre uma superfcie sensvel (filme, papel etc.).

    Essa posio foi questionada, recentemente, por autores como Andr Rouill10 e Mario Costa,11 que apontam para a importncia do processo mecnico e da produo de uma memria da mquina ou dos materiais (pelcula, papel) e no de uma projeo do referente na superfcie sensvel.

    Segundo Roland Barthes, em A mensagem fotogrfica,12 a fotografia uma imagem hbrida, pois construda em parte por um aparelho tcnico, que captaria um real puro, e em parte por uma mensagem com contedo histrico, social e cultural.

    A fotografia uma conveno do olhar e uma linguagem de representao e expresso de um olhar sobre o mundo. Nesse sentido, as imagens so ambguas (por sua natureza tcnica) e passveis de mltiplas interpretaes (em relao ao meio atravs do qual elas circulam e do olhar que as contempla). Por isso, para a sua interpretao, so necessrias a compreenso e a desconstruo desse olhar fotogrfico, atravs de uma discusso terico-metodolgica, que permita formular problemas histricos e visuais, no sentido de que a dimenso propriamente visual do real possa ser integrada pesquisa histrica.

    Assim sendo, passo a inventariar alguns trabalhos que vm contribuindo para essa discusso terico-metodolgica, que visam incorporar os documentos visuais pesquisa histrica.

    Em Fotografia e Histria,13 Kossoy aponta para a necessidade de pensar a trade sujeito (fotgrafo), tcnica (equipamento) e assunto (a histria do tema abordado). Primeiramente, o historiador deveria procurar informaes sobre a atuao profissional do fotgrafo, se possua um ateli, qual era a sua clientela, se trabalhava por encomenda para uma empresa ou administrao, a classe social a que pertencia, os seus gostos e os preos cobrados. Deveriam se levar em conta 9 DUBOIS (1993, p. 61).10 ROUILL (2005, p. 288-304).11 COSTA, Mario (2006, p. 179-192).12 BARTHES (1982, p. 11-25). 13 KOSSOY (1989).

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    ainda os filtros culturais e ideolgicos de classe do fotgrafo e de sua poca. Outra varivel diria respeito aos equipamentos e s tcnicas empregadas: o tipo de cmara, o tipo de negativo, as lentes, a forma de revelao, os formatos das fotografias etc. Finalmente, o assunto deve ser colocado no seu tempo e gnero especfico: retrato, vistas urbanas, carto-postal, lbum de famlia, ltimo retrato ou fotorreportagem.

    Para esse autor, o assunto tem uma lgica prpria que extrapola os quadros da imagem fotogrfica, sendo necessrio, para discutir um determinado tipo de fotografia, compreender o percurso histrico do assunto: seja o das formas de representao do poder da classe dominante, do jogo poltico ou da cidade. O autor tambm chama ateno de que a fotografia tem uma primeira realidade ligada ao momento de produo da imagem pelo fotgrafo, e uma segunda realidade ligada circulao e aos usos posteriores da imagem em contextos sob formas que no foram previstas pelo fotgrafo no momento de produo da imagem. Ou seja, a fotografia em uma fototeca ou acervo iconogrfico tem usos e significados muito diversos daqueles para os quais foi produzida pelo fotgrafo no passado, bem como a reutilizao de imagens na imprensa, em manuais ou em livros de histria agregam ou transformam os significados das imagens a partir de outro contexto de recepo.

    Essa proposta metodolgica de Kossoy , posteriormente, ampliada no livro Entre realidades e fices da trama fotogrfica,14 no qual o autor analisa os usos da fotografia em cartes-postais e lbuns de vistas como forma de construo do nacional na fotografia brasileira no sculo XIX, como no lbum Le Brsil, produzido sob os auspcios do Imprio para fazer propaganda do pas na Exposio Universal de Paris de 1889.

    O seu trabalho precursor foi e continua sendo importante sobre os pioneiros da fotografia no Brasil e as questes relacionadas utilizao, conservao, gesto e interpretao desses acervos fotogrficos do sculo XIX e XX. No entanto, a partir da traduo e publicao no Brasil, nos anos 1980, de autores como Roland Barthes, Susan Sontag, Philippe Dubois, Jean-Marie Schaeffer e Rosalind Krauss entre outros, surge novo contexto de pesquisa histrica, impulsionando investigaes a partir da renovao da matriz terica e da elaborao de novos problemas de pesquisa relativos ao campo visual: histria visual, cultura visual e regimes de visualidade.15

    Nos anos 1990, multiplicaram-se as investigaes sobre a fotografia e cidade, para refletir sobre o acelerado processo de transformao da paisagem e da sociedade urbana brasileira no sculo XX.

    14 KOSSOY (2002).15 MENESES (2003, 2005).

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    A pesquisa de Ana Maria Mauad16 representa uma nova fase dos estudos sobre cidade e fotografia, pesquisando a construo da visualidade urbana do Rio de Janeiro em revistas ilustradas na primeira metade do sculo XX. Seu trabalho, alm de tratar dos usos privados da fotografia pelo grupo familiar, abordou a fotografia de imprensa a partir das revistas Careta e O Cruzeiro, tendo sido esta ltima a mais importante e inovadora revista ilustrada brasileira entre as dcadas de 1930 e 60.

    Uma das principais contribuies desse estudo o tratamento da problemtica do espao na construo de cdigos de representao fotogrfica do comportamento da sociedade burguesa carioca entre 1900 e 1950. Mauad17 estabeleceu para sua anlise das imagens fotogrficas cinco categorias espaciais que abrangem tanto o plano do contedo quanto o da expresso: o espao fotogrfico, o espao geogrfico, o espao do objeto, o espao da figurao e o espao da vivncia.

    Mauad relacionou e cruzou os padres tcnicos envolvidos na forma de expresso das imagens com os padres de contedo para elaborar a sua interpretao dos cdigos de representao social da classe dominante carioca. Esse trabalho sugere uma srie de questes sobre a predominncia de certas imagens (urbanas, de determinadas zonas da cidade, de determinados grupos sociais, em determinados espaos urbanos, de um gnero sobre outro, de certos objetos a eles associados, as ordenaes dos grupos, as poses e os tipos de performances etc.) em detrimento de outras que ficam fora do quadro fotogrfico, bem como da forma de fotografar proporcionada por uma tcnica e de publicar essas imagens nas pginas das revistas, criando sries e narrativas que enfatizam determinados cdigos de representao social de certos grupos urbanos excluindo outros.

    O livro Fotografia e Cidade,18 de Solange Ferraz de Lima e Vnia Carneiro de Carvalho, deu uma contribuio significativa aos estudos sobre o tema ao propor uma metodologia prpria para a anlise icnica e formal das imagens de cidade, no caso de So Paulo, em lbuns de fotografias produzidos entre 1887-1919 e 1951-1954. A importncia desse estudo est no fato de construir uma metodologia voltada para a interpretao dos padres visuais de representao da cidade, remetendo anlise dos modos especficos de tratamento fotogrfico do espao urbano.

    Os descritores icnicos (relativos aos contedos e espaos das fotografias) so agrupados a partir de um vocabulrio controlado em: tipologias do espao; localizao; tipologia urbana; abrangncia espacial; acidentes naturais/vegetao; infraestrutura/processos/servios; infraestrutura/comunicaes; infraestrutura/mobilirio urbano; infraestrutura/paisagismo; estrutura/funes arquitetnicas; elementos mveis/ gnero/idade; elementos mveis/personagem/categoria;

    16 MAUAD (1990, 2004, 2005, 2006, 2008). 17 MAUAD (2004, p. 19-36). 18 LIMA e CARVALHO (1997).

  • 16 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

    elementos mveis/personagens; elementos mveis/transportes; atividade agrcola; atividade urbana; temporalidade.

    Os descritores formais (relativos tcnica, forma e aos cdigos de expresso) so agrupados a partir das categorias: enquadramento; arranjo; articulao dos planos; efeitos; e estrutura.

    O cruzamento dos percentuais de recorrncia das imagens fotogrficas enquadradas nos descritores icnicos confrontadas com a recorrncia dos descritores formais permitiu s autoras estabelecerem uma tipologia de oito padres fotogrficos predominantes nesses lbuns: retrato; circulao urbana; figurista; diversidade; coexistncia; intensidade; mudana; e paisagstico.

    As autoras puderam chegar a uma srie de concluses a partir da verificao da maior incidncia de determinados padres em cada um dos perodos, como a predominncia do padro circulao na virada do sculo XIX para o XX, relacionada racionalizao do espao urbano, e o padro retrato nos anos 1950, relacionado tipificao do trabalho e mercantilizao do espao urbano, bem como refletir a partir das imagens sobre a construo da diferenciao/indiferenciao social na metrpole capitalista. Esse trabalho permite problematizar a forma como foram construdos os padres de visualidade urbana nas imagens fotogrficas dos lbuns da cidade de So Paulo nos anos de 1887-1919 e 1951-1954.

    Mais recentemente, no texto Rumo a uma Histria Visual, Meneses prope que o estudo desse campo se realize a partir da reflexo sobre trs domnios complementares: o visual, o visvel e a viso.19 O domnio do visual compreenderia os sistemas de comunicao visual e os ambientes visuais, bem como os suportes institucionais dos sistemas visuais, as condies tcnicas, sociais e culturais de produo, circulao, consumo e ao dos recursos e produtos visuais, para poder circunscrever a iconosfera, isto , o conjunto de imagens-guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage.20

    Para o autor, o domnio do visvel e do invisvel situa-se na esfera do poder e do controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou no dar-se a ver, da visibilidade e da invisibilidade. J a viso compreende os instrumentos e tcnicas de observao, o observador e seus papis, os modelos e modalidades do olhar de uma poca.21

    A pesquisa em tela orientou-se pelas questes tericas mais amplas propostas por Meneses sobre a relao entre visual, visvel/invisvel e viso e serviu-se das propostas metodolgicas de Mauad e Lima & Carneiro para interpretar as fotografias na elaborao do novo padro de visualidade urbano nos anos de 1950, a partir do estudo de caso de Porto Alegre.

    19 MENESES (2005, p. 33-56).20 Idem, Ib. p. 36. 21 Idem, Ib. p. 38.

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    Fotografia e Cultura Visual em Porto Alegre entre 1940 e 1960

    No Brasil, a partir dos anos 1940, a fotografia passa por um processo de difuso e expanso atravs do aperfeioamento das tcnicas de edio e de reproduo de imagens fotogrficas, bem como de modernizao atravs do trabalho de experimentao nos fotocineclubes de So Paulo, Recife e Porto Alegre, entre outros. Durante a Segunda Guerra Mundial, a fotografia se tornou uma forma importante de informar e mobilizar a populao atravs de sua veiculao em jornais e revistas ilustradas. Os fotgrafos passam a se organizar em associaes e sindicatos visando ao reconhecimento e valorizao do seu trabalho.

    Cmaras mais portteis como a Rolleiflex, com negativos de 120 mm e 6 x 6 cm, e a Leica, com filmes de 35 mm, com pelculas mais sensveis, alm de objetivas e flash permitiram o avano da foto instantnea (sobretudo no fotojornalismo) e a presena mais dinmica do fotgrafo no espao pblico, para documentar e informar a modernizao dos espaos urbanos, das formas de sociabilidade e os movimentos polticos.

    A tradio de edio de lbuns fotogrficos com vistas da cidade inaugurada no sculo XIX prolonga-se no sculo XX visando fixar a memria da velha Porto Alegre frente s rpidas mudanas em curso na paisagem urbana, decorrentes do processo de modernizao e verticalizao da cidade. Em 1941, um ano aps as comemoraes dos 200 anos de colonizao de Porto Alegre, foi editada a obra comemorativa Porto Alegre: Biografia da Cidade. O livro, de grandes propores (37 x 27 cm e 664 pginas) e ricamente ilustrado, apresenta duas sries de fotografias com histrias visuais sobre o passado (1890-1910) e presente (final dos anos 1930 e 1940) da cidade. A seo A vida na velha Porto Alegre: Reminiscncias Grficas, referente ao sculo XIX, apresenta imagens de Calegari e outros fotgrafos, destacando as formas de sociabilidade das elites e camadas mdias (footing, carnaval, exposies), o trabalho (atravs de tipos populares como o aguateiro e os acendedores de lampio), as formas de transporte ao longo do tempo e certos aspectos pitorescos da velha cidade. A seo Excurso caleidoscpica atravs da cidade apresenta imagens de grande formato dos principais prdios pblicos, igrejas e praas da cidade, apontando para uma viso oficial, turstica, higienista e pitoresca da cidade. O livro tinha o duplo objetivo de legitimar a gesto do Prefeito Loureiro da Silva e projetar suas realizaes para o futuro, construindo a memria de uma cidade que se modernizava a passos rpidos.

    Como nos jornais e nas revistas ilustradas, fotos destacavam as novas prticas polticas do Estado Novo com os seus desfiles cvicos, educao cvica e eventos esportivos, que visavam educao do corpo para o trabalho, preparao para a guerra e purificao da nao.

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    O fotojornalismo conheceu o seu auge nos anos 1950 com novas narrativas fotogrficas srie de imagens de tamanhos variados que contam uma histria visual ocupando cada vez mais lugar nas pginas dos jornais e revistas. A Revista do Globo, os jornais A Hora e ltima Hora esto na vanguarda desse processo no mbito local.

    No plano formal, multiplicam-se as fotos areas, a fotorreportagem, a foto de publicidade e as fotos instantneas de grandes manifestaes polticas, bem como inovaes na composio e no uso da luz. A cultura visual est marcada pela introduo da televiso no final da dcada de 1950 e pelo perodo ureo dos filmes hollywoodianos, apresentados no formato cinemascope nas grandes salas de cinemas de calada do centro da cidade e nos bairros.

    Os fotgrafos passam a ser mais valorizados nas revistas ilustradas e a terem seus nomes mencionados como autores das imagens. Em Porto Alegre, Leo Guerreiro, Pedro Flores e Sioma Breitman se destacam no fotojornalismo, na fotografia de publicidade e na produo de retratos em estdio. Leo Guerreiro autor de famosas vistas areas da cidade, que acompanham o processo de modernizao e verticalizao da rea central. Muitas dessas fotos tambm eram ampliadas, tornando-se painis e comercializadas para decorar escritrios e casas comerciais.

    O fotojornalismo vai privilegiar a mobilizao poltica envolvendo o processo de discusso sobre nacionalizao do subsolo, a estatizao de empresas de energia e transporte pblicos. Nesse perodo ocorreu a irrupo das massas na cena urbana, ora como ator ora como coadjuvante dos processos polticos.

    Em 24 de agosto de 1954, a morte de Getlio Vargas constitui-se em um momento significativo de mobilizao e utilizao da rua como espao poltico. A fotografia de imprensa perpetuou os conflitos e as depredaes no centro da cidade de Porto Alegre.

    As fotos desse perodo, produzidas pela Assessoria de Imprensa do Palcio Piratini (Acervo do Setor de Fotografia do Museu de Comunicao Social Hiplito Jos da Costa), representam os governadores em plena ao, visitando e inaugurando obras, recebendo delegaes de polticos ou lideranas dos movimentos sociais. O populismo transformou algumas fotografias em imagens de culto ao poder poltico.

    Na segunda metade dos anos 1950, a Assessoria de Imprensa e o servio fotogrfico do Palcio Piratini crescem em importncia e ocorre um salto no nmero de fotografias e na forma de documentao das aes dos governadores e secretrios de Estado. Alguns fotojornalistas trabalhavam simultaneamente para a Revista do Globo e para reparties pblicas (Secretaria de Educao e Secretaria de Agricultura), como nos casos de Pedro Flores e Lo Guerreiro.

    No incio da dcada de 1960, foram as imagens da Campanha da Legalidade que marcaram uma nova postura atravs do uso consciente e macio dos meios de

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    comunicao (jornal e rdio) na mobilizao popular. O Palcio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul foi transformado em quartel-general da resistncia e centro de difuso de notcias.

    Por um lado, acelera-se a migrao do campo para a cidade, e surgem as vilas populares. Comeam a aparecer as imagens da desigualdade social atravs da documentao da remoo de vilas populares como a Vila Dique. Por outro lado, o processo de modernizao urbana ganhava visibilidade atravs das imagens de grandes obras pblicas (Ponte do Guaba, Aeroporto Salgado Filho) e da abertura de novas avenidas, bem como da construo de escolas (como as chamadas brizoletas, em madeira). A realizao de um levantamento fotogrfico areo e terrestre aponta tanto para o processo de expanso da malha urbana em direo ao sul e ao norte da cidade quanto para o uso da imagem fotogrfica para gesto do espao urbano (aterros, expanso da malha urbana, crescimento de vilas etc.).

    A modernizao da grande imprensa nos anos 1950

    O perodo tambm foi marcado pela modernizao da grande imprensa22 nos principais centros urbanos (especialmente nas capitais), dominada por alguns grupos proprietrios de jornais e rdios, que passaram a monopolizar o setor de comunicao. Observa-se, por um lado, a expanso nesses peridicos do espao destinado publicidade e aos classificados, bem como a ampliao do nmero de leitores, que favoreceu uma srie de inovaes na editorao e na diagramao, o que permitiu a utilizao cada vez maior de fotografias. Por outro lado, esses veculos no estavam totalmente livres do jogo poltico-partidrio e da dependncia da propaganda institucional de governos estaduais e do federal.

    As revistas ilustradas formavam um segmento diferenciado visando a um pblico de maior poder aquisitivo, construindo as matrias sob um ngulo novo, da tomada de opinio e no exatamente do imediato. Elas desempenham toda uma nova pedagogia social sobre as elites vindas do campo, as camadas mdias provenientes das pequenas cidades do interior e para os prprios habitantes das capitais em processo de expanso e transformao do espao urbano. A revista O Cruzeiro, Revista do Globo e a Manchete se destacam como os veculos de comunicao impressos mais modernos, no sentido de construrem um novo tipo de reportagem e de narrativa baseada no uso da fotografia.23

    As revistas buscavam assuntos polmicos para mobilizar a ateno do pblico leitor. Eram meios hbridos que mesclavam uma variedade de temas

    22 Cf. RIBEIRO (2003), GRANDI (2005).23 MUNTEAL e GRANDI (2005, p. 90-95).

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    desde poltica internacional, poltica nacional, artes, vida social, cotidiano, esportes, variedades e publicidade buscando equilibrar informao, formao de opinio e entretenimento.24 As revistas trabalhavam com polaridades como ns e os outros,25 presente e passado, tradio e modernidade etc., seguidamente propondo uma abordagem sensacionalista dos acontecimentos. Atravs de imagens e palavras, as revistas construram representaes sociais, agregando novidade e promovendo consenso sobre determinados significados sociais. Quanto menor a competncia na decifrao dos cdigos verbais, maior a importncia das imagens fotogrficas que ocupavam a maior parte do espao das pginas.

    As fotorreportagens construram uma imagem da cidade em processo de mudana para o consumo das elites e das camadas mdias, bem como uma imagem dos novos sujeitos urbanos que chegam cidade: os outros. Uma cidade cada vez maior e difcil de abarcar pelo olhar humano, que necessitava da mediao dos meios de comunicao para promover a compreenso e a legitimao das mudanas na paisagem urbana em um tempo cada vez mais acelerado. Ao congelar fragmentos de temporalidade, a fotografia permitiu condensar e recriar a nova imagem das cidades brasileiras em processo de mutao: a destruio de espaos tradicionais e a criao de espaos modernos submetidos lgica da sociedade de consumo.

    Ou seja, a fotografia nas revistas ilustradas e, em especial, as fotorreportagens davam a ver a cidade, promovendo uma reeducao do olhar, sintetizando e ressignificando esse processo de expanso horizontal e vertical urbana. Permitiram, tambm, a difuso de toda uma nova cultura urbana, com novos parmetros de sociabilidade, de civilidade e de consumo, que passariam ser almejados e buscados pelos leitores desses peridicos, vidos em participar da modernidade urbana.

    O estatuto da imagem fotogrfica que predominava nas revistas ilustradas era o da cpia da realidade e de documento verdico, que procurava apresentar como objetiva e verdadeira a interpretao dos fatos abordados. As revistas ilustradas, atravs das fotorreportagens, visavam ensinar uma nova maneira de ver, que tanto entretinha e deleitava quanto cumpria a tarefa de informar e difundir uma nova imagem moderna da cidade e da cultura urbana entre as camadas mdias da populao brasileira.

    Segundo Costa, a fotorreportagem uma narrativa que resulta da conjugao de texto e imagem, ou seja, de duas estruturas narrativas totalmente distintas e independentes, dentro de uma armao prpria realizada pela edio.26

    De forma geral, as fotorreportagens iniciavam-se com uma fotografia de pgina inteira ou pgina dupla, uma imagem sntese do tema, que visava mobilizar

    24 COSTA (1992, p. 53-68). 25 BAITZ (2003). 26 COSTA (1992, p. 58), SOUSA (2004).

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    emocionalmente o leitor acerca da matria. Compreender a relao entre imagem e texto importante no sentido de compreender como este disciplina a leitura daquela. O ttulo e uma legenda sobreposta fotografia de grande formato completavam o apelo ateno do leitor. Seguia-se uma sequncia de cerca de 8 a 12 fotos, formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subttulo auxiliavam na urdidura da trama e na construo dessa narrativa visual, direcionando a ateno do leitor para determinados aspectos da realidade abordada nas fotos.

    A Revista do Globo foi o peridico ilustrado quinzenal mais duradouro e de maior tiragem produzido no Rio Grande do Sul, entre 1930 e 1960. Tendo sido criada em 1929, torna-se um veculo de comunicao influente na imprensa regional, com um projeto grfico e editorial arrojado para o perodo. Nos anos 1950, a Revista do Globo disputava espao com outras revistas de tiragem nacional como O Cruzeiro e Manchete. Todas elas se inspiravam de alguma forma no modelo americano fornecido pela Life, publicando fotorreportagens com tom sensacionalista, misturadas a artigos de entretenimento, resenhas de obras literrias, publicao de contos, de poesias e notas sobre a vida social das elites da capital e das principais cidades do estado. De forma geral, uma edio possua cerca de 100 pginas e estava dividida entre as sees: Reportagens, Assuntos Gerais, Literatura, Cinema e Passatempo. As Reportagens abordavam assuntos internacionais, nacionais e locais, entremeados de publicidade e crnica social, visando dar maior leveza leitura da revista.

    As fotorreportagens da Revista do Globo iniciavam-se geralmente com uma fotografia de pgina inteira ou pgina dupla, que era uma imagem sntese do tema e visava mobilizar emocionalmente a ateno do leitor sobre a matria.27 Compreender a relao entre imagem e texto importante no sentido de compreender como este disciplina a leitura daquela. O ttulo e uma legenda sobrepostos fotografia de grande formato procuravam capturar a ateno do leitor. Seguia-se uma sequncia de cerca de 6 a 12 fotos formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subttulo auxiliavam na construo dessa narrativa visual.

    Na Revista do Globo, trs fotgrafos contratados produziram o maior nmero das fotorreportagens dos anos 1950: Pedro Flores, Lo Guerreiro e Thales de Farias. Os nomes desses fotgrafos comearam a aparecer abaixo do ttulo como coautores dessas fotorreportagens. O trabalho deles era complementado por outros fotgrafos free lancers e por imagens compradas de agncias de informao e de outras revistas.

    Entre as 256 edies da Revista do Globo publicadas entre 1950 e 1960, foi possvel identificar 184 fotorreportagens que tratavam da cidade de Porto Alegre pelo levantamento realizado. Essas fotorreportagens abordavam questes relativas ao processo de modernizao do espao urbano (verticalizao, obras pblicas e 27 COSTA (1992, p. 53-68).

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    privadas), as novas formas de sociabilidade pblicas (muitas dessas ligadas aos novos padres de consumo), os novos equipamentos culturais, problemas de segurana pblica, de habitao, de transportes e, tambm, de poltica municipal. A revista valorizava o processo de modernizao e tambm abordava alguns dos problemas urbanos de Porto Alegre.

    Pode-se dividir a dcada de 1950 em duas metades. Na primeira metade, observa-se a formulao dessa nova visualidade urbana moderna, mas ainda com a presena de imagens das contradies sociais e dos problemas urbanos: a falta de habitaes, de energia, de gua tratada, de esgotos, de hospitais, bem como os vendedores ambulantes (camels), os acidentes de automveis, as filas de nibus etc. Na segunda metade dos anos 1950, a revista se engaja no projeto e discurso desenvolvimentista da administrao do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960), de realizar 50 anos em 5, e passou a privilegiar o processo de transformao e modernizao da sociedade e do espao urbano, deixando em segundo plano as crticas e as contradies que acompanhavam esse processo. Passa-se, ento, anlise de algumas das fotorreportagens sobre a elaborao da nova visualidade urbana.

    A construo de uma nova visualidade urbana moderna de Porto Alegre

    A fotorreportagem Marco Inicial,28 de 3 de fevereiro de 1951, trata da construo, pelo Instituto de Assistncia e Aposentadorias do Comercirios (IAPC), de um conjunto de 250 casas que formariam a Vila dos Comercirios na zona sul de Porto Alegre (bairro Tristeza). A fotorreportagem tem quatro pginas e oito fotografias; o formato predominante o retngulo horizontal (seis fotografias) e de tamanho mdio (quatro fotografias); sendo cinco fotos internas e apenas trs externas; cinco fotos posadas e trs instantneos; cinco fotos pontuais e trs parciais. As linhas so bem definidas e h boa iluminao tanto nas fotos externas quanto nas internas, realando o efeito de realismo das fotos.

    28 Marco Inicial, Revista do Globo, n. 527, 2/3/1951, p. 61-63, 79.

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    Fonte: Marco inicial, Revista do Globo, n. 527, 1951, p. 61 (esquerda), 62 (centro), 63 (direita.).

    A fotorreportagem se inicia com uma foto instantnea de grande formato (1/2 pgina), com a imagem enquadrando, em primeiro plano, o quintal de uma casa com terra, materiais de construo e um muro; em segundo plano, um grupo grande de pessoas em fila (a comitiva do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Walter S Jobim, e do Presidente do IAPC, Remy Archer); em terceiro plano, observa-se a rua que se estende em diagonal, um automvel, uma calada e um conjunto de casas (algumas ainda em construo). O efeito de dinamismo dado pelas pessoas em movimento (a maioria homens em idade produtiva, entre os 30 e 50 anos), a casa em construo e a linha diagonal formada pelo muro, pela rua, pelos postes e pelas casas.

    A narrativa segue com uma foto posada de tamanho pequeno, de formato quadrado, representando o ato solene de inaugurao com a presena do Prefeito, do Governador e do Bispo Metropolitano. Seguem-se, nas duas pginas seguintes (p. 61, 62), seis fotos que completam a narrativa a partir dessa fotomanchete. Trs delas apresentam os novos equipamentos de atendimento mdico, fisioterpico e odontolgico do IPAC. Fotos de interior e planos pontuais que no permitem localizar o local no espao urbano. Pela leitura do texto, descobre-se que esses equipamentos se encontram em outro local, no centro da cidade.

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    Em foto de tamanho mdio (p. 61), apresentam-se as provveis pessoas beneficiadas pela construo das casas e pelos servios mdicos: funcionrias do comrcio de Porto Alegre. Trata-se de uma foto posada do interior de uma residncia, destacam-se a elegncia da roupa das mulheres (vestidos e adornos) e a decorao da casa (com cortinas e abajur de p). Apesar de o texto referir-se classe trabalhadora, observa-se que o grupo retratado pertence s camadas mdias urbanas.

    Na pgina seguinte, mais uma fotografia com o Governador em primeiro plano e uma casa recm-construda em segundo plano, mais ao alto. Ou seja, as fotografias editadas associam a construo das casas s autoridades pblicas e apresentam os trabalhadores do comrcio que iriam usufruir de casas modernas, com todo o conforto, em um bairro novo e moderno, alm de atendimento mdico.

    A ltima imagem da fotorreportagem constri a oposio ao enquadrar em primeiro plano uma mulher que lava roupa ao ar livre ao lado de um forno a lenha de campanha representando o antigo, o rural e o tradicional e, em segundo plano, o conjunto de casas recm-construdas e em construo da nova Vila dos Comercirios, que se perdem na linha do horizonte representando o presente, o urbano e o moderno.

    Observa-se a construo da imagem de um governo que se associa aos Institutos de Previdncia para enfrentar o problema da falta de habitao, atravs da construo de 250 casas das 2.100 previstas, que atenderiam cerca de 15.000 pessoas. Essa reportagem deve ser relacionada, por um lado, a outras que abordam a construo da Vila do Instituto de Aposentadoria e Previdncia dos Industririos (IAPI) e de edifcios por empresas de engenharia e construo, entre 1950 e 1954, e, por outro, s reportagens que tratam do problema da habitao em Porto Alegre e do surgimento de vilas irregulares de casas autoconstrudas. Ou seja, ao longo da dcada, a Revista do Globo aborda problemas urbanos e tambm coloca em destaque a ao das autoridades e administraes na resoluo desses problemas.

    A dramaticidade e a amplitude do problema da habitao esto associadas s migraes decorrentes da acelerao do movimento do campo para a cidade, expanso territorial urbana sobre antigos espaos rurais e semirrurais (com a ocupao ilegal de terrenos ou loteamento de chcaras, saneamento de vrzeas e realizao de aterros ao redor da cidade) e abertura de novas avenidas de ligao entre os bairros. Da tambm a nfase das reportagens sobre o processo de verticalizao do centro da cidade, atravs da construo de edifcios de alto gabarito (de 10 andares ou mais).

    Esse o caso da fotorreportagem Porto Alegre cresce para o cu e para o rio,29 com fotos de Thales Farias. O processo de modernizao o tema central abordado, a partir de fotos de grande formato, com tomadas fechadas do centro da 29 CARNEIRO, Flvio; FARIAS, Thales. Porto Alegre cresce para o cu e para o rio. Revista do Globo, 1958, n 722, p. 38-42.

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    cidade, colocando em destaque os novos edifcios (verticalizao), as grandes obras pblicas da Avenida Beira-Rio (expanso do permetro urbano) e da Ponte sobre o Guaba (nova escala de construes e ligao entre o sul rural e o norte urbano do estado). O que enfatizado pelo ttulo e pelo subttulo da fotorreportagem: Construes civis: recorde no Brasil e duas obras grandiosas. So 10 fotos de meia pgina, com o predomnio do formato retangular vertical. As trs primeiras fotos que abrem a fotorreportagem apontam para a verticalizao, a expanso da rea urbana e a monumentalizao das construes e obras pblicas no espao urbano. Enfatiza-se a imagem de uma cidade em construo, em movimento, afirmando o significado dinmico do trabalho e da circulao pelas novas avenidas. A presena do leito de ruas ou avenidas em primeiro plano, em quatro fotografias, orienta o caminho do olhar e constri o significado de circulao urbana associado ao movimento de automveis e pessoas. Em seis das oito fotos so representadas construes inacabadas, entre elas duas fotos de prdios recm-construdos. Linhas bem definidas, contrastes de tons, a luminosidade direta e fotos tiradas no sentido ascensional enfatizam os efeitos de verticalizao e monumentalidade desses prdios de alto gabarito em construo.

    Fonte: CARNEIRO, Flvio; FARIAS, Thales. Porto Alegre cresce para o cu e para o rio. Revista do Globo, 1958, n 722, p. 38-39.

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    A legenda da terceira pgina afirmava: Porto Alegre, 1958: recorde brasileiro de construes. O texto ensaia uma explicao para essa febre de construes: o aumento vertiginoso nada tem de influncias polticas, mas to somente a ao de capitais particulares, pois, com a desvalorizao constante do cruzeiro, o negcio mais rendoso e seguro ainda continua sendo o imobilirio. O dinamismo do processo de transformao do espao urbano atribudo ao empreendedorismo de investidores privados e especulao imobiliria.

    Mas talvez o melhor exemplo desse engajamento da Revista do Globo em dar publicidade a esse projeto de modernidade urbana seja a fotorreportagem Porto Alegre via area, 1959,30 de sete pginas, com fotos de Thales Farias. Ela est composta por seis fotos, quatro delas de grande formato retangular e duas de de pgina. Ela comea com uma foto area parcial do centro da cidade ocupando duas pginas. O sentido diagonal sugerido ao olhar pela foto enfatizava o processo de verticalizao do centro e como que a passagem do passado (representado pelos prdios baixos em primeiro plano) para o presente (representado pelos edifcios de grande gabarito, em segundo plano e destacados pela luminosidade natural). Na pgina seguinte, outra foto area do centro da cidade com a legenda dentro de alguns anos, a cidade no ter mais prdios velhos sugere percurso semelhante para o olhar visando ao mesmo efeito.

    Fonte: CARNEIRO, Flvio; FARIAS, T. Porto Alegre via area, 1959. Revista do Globo, 1959, n 742, p. 10-11.

    30 CARNEIRO, Flvio; FARIAS, T. Porto Alegre via area, 1959. Revista do Globo, 1959, n 742, p. 10-16.

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    Percebe-se que estava claramente engajada no projeto poltico das elites dirigentes de modernizao social. A forma como a Revista do Globo publicava fotografias panormicas do centro da cidade, com planos fechados sobre as reas mais centrais de Porto Alegre, visava exaltar o iderio de modernidade. Enquanto os textos difundiam todo um conjunto de ideias e valores que visavam educar as camadas mdias urbanas, que eram as principais consumidoras da Revista para a concretizao da utopia da cidade moderna numa verdadeira pedagogia social, as imagens elaboravam esse processo de mudanas e desenraizamento social de uma forma positiva.

    Mas no h somente publicidade da modernizao ou a venda de uma imagem da cidade para consumo dos leitores de classe mdia na Revista do Globo. Ela tambm cumpria o papel de apontar os dilemas que a cidade enfrentava e deveria mobilizar a opinio pblica e a vontade das administraes, municipal e estadual, para a sua resoluo.

    As imagens dos problemas urbanos da cidade moderna: descontextualizao, despolitizao e busca da superao atravs da denncia

    A fotorreportagem Bairro sem rua nem terra nem destino31 aborda a transformao da antiga Doca dos Laranjeiros, na zona norte da cidade. Ela possui quatro pginas e 10 fotos. As laterais das pginas so ocupadas por publicidade. As fotos so todas externas, diurnas e com iluminao natural; linhas e contornos bem definidos; sendo uma de tamanho grande, duas de tamanho mdio e seis pequenas; seis de formato quadrado e quatro de formato retangular; oito instantneas e duas posadas; quatro fotos com abrangncia parcial, tendo como referncia o Guaba, e seis pontuais, nas quais no possvel reconhecer o espao urbano.

    31 Bairro sem rua nem terra nem destino, Revista do Globo, 30/9/1950, p. 54-57.

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    Fonte: Bairro sem rua nem terra nem destino, Revista do Globo, 30/9/1950, p.54-55.

    A primeira foto da reportagem de tamanho grande coloca, em primeiro plano, tbuas, laranjas e lixo espalhados pelo cho, varais de roupa secando. Em segundo plano, uma mulher adulta parece trabalhar (talvez ela seja uma lavadeira) em frente a um barraco de madeira. Na sequncia, mais quatro fotos pequenas aprofundam o tema: uma criana tirando uma rede de um barco, tendo ao lado um porco comendo; uma mulher cortando lenha com um grande machado, com um varal de roupas e uma casa em segundo plano; crianas mexendo com madeiras, tendo um barco e um telhado ao fundo; um homem com roupas esfarrapadas carregando um saco nas costas. Todas as imagens apontam para a desordem, a sujeira e a precariedade do local e das condies de vida de seus moradores (material das habitaes, roupas, convvio entre crianas e animais etc.). Apesar de visualizarmos gua em uma das imagens, os enquadramentos mais fechados no permitem localizar de forma segura esse lugar no espao urbano, promovendo a fragmentao e a segregao do lugar e de seus habitantes do conjunto da cidade. o texto e as legendas que precisam ao leitor tratar-se das margens do Guaba na zona norte da cidade. O texto tambm faz uma comparao entre a paisagem buclica da praia de areias brancas, onde no passado passeavam os namorados e alguns barcos descarregavam laranjas, e o presente, caracterizado pelos cortios, pelas casas flutuantes e pela populao miservel que mora no local. O poder pblico no teria conseguido impedir a formao de outro bairro clandestino entre tantas vilas de lama

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    na cidade. Porm, o texto tambm alerta que o bairro estava com os dias contatos diante do projeto de aterro e construo do novo cais da zona norte (Bairro Navegantes).

    Essa uma das poucas reportagens que apontam para o problema da expulso dos moradores de uma rea em decorrncia da realizao de grandes obras urbanas pelo poder pblico. Entretanto, o texto e as fotografias da reportagem promovem a estigmatizao e a segregao desses sujeitos chamados de curiosa mistura de trabalhadores, mendigos e malandros associando-os sujeira, degradao e a um estado primitivo de vida social (falta de saneamento, escola, assistncia mdica etc.). Tudo o que aqui falta reaparece no ano seguinte nos projetos habitacionais da Vila dos Comercirios e na Vila IAPI, visando dar aos trabalhadores todos os confortos e as comodidades da vida em habitaes higinicas e modernas com aluguis mdicos.

    A fotorreportagem Amarelou o sorriso da cidade,32 com texto de Joseph Zukauska e fotos de Pedro Flores e Wilson Cavalheiro, amplia o elenco dos problemas urbanos falta de gua, de luz, de transporte e de moradia atravs de uma srie de 15 fotos, a maioria de pequeno formato. As fotografias que acompanham o texto apontam para a contradio entre os altos e modernos edifcios

    do centro da cidade e as malocas nas vilas populares da periferia de Porto Alegre. Porm, o sentido das fotos, sugerido pela leitura da esquerda para a direita, parece sugerir a sua superao por obras que estavam em curso na cidade.

    Fonte: ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. Amarelou o sorriso da cidade. Revista do Globo, 1954, n 607, pp. 48-55.

    32 ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. Amarelou o sorriso da cidade. Revista do Globo, 1954, n 607, pp. 48-55.

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    As razes arroladas para essa crise seriam a modernizao no campo e a falta de amparo ao trabalhador rural, que agiriam como fatores de expulso do homem do campo. De outro lado, os motivos de atrao de migrantes para a capital seriam a busca de trabalho na indstria, melhores salrios, direitos trabalhistas, servio de sade e educao para os filhos. Nessa fotorreportagem, na pgina 50, a revista coloca lado a lado um alto edifcio em construo e a casa de madeira de uma vila beira do Guaba. O subttulo acima da pgina afirma: Uma cidade de zinco e trapos dentro da outra, e na legenda afirma-se: De 51 a 53, a populao marginal duplicou, por que no s quem casa quer casa. Os que vm do interior para trabalhar na capital, tambm dela necessitam. A metade da populao de uma vila de malocas dada como catarinense (idem, p. 50). Logo, a culpa dos problemas urbanos era atribuda aos migrantes e aos sujeitos que vm de fora da cidade, s vezes, at mesmo de fora do estado. Ou seja, a culpa era dos no cidados, dos prprios excludos e no da falta de planejamento e de polticas pblicas adequadas.

    No que se refere s representaes da cidade nas revistas ilustradas nos anos de 1950, observa-se que os recortes do espao, dos temas e das formas de construir a narrativa apontam para um processo de construo de determinados sentidos, atravs de uma nova visualidade urbana. As fotos so diurnas, com luminosidade natural, e com uma definio clara de linhas. Algumas fotografias apresentam trs planos e uma grande profundidade de campo.

    O espao geogrfico destacado o espao urbano, o centro, que passa a representar muitas vezes toda a cidade (como uma metonmia, ou seja, a parte pelo todo), excluindo do quadro fotogrfico as vilas e periferias da cidade. Por sua vez, as imagens do centro da cidade privilegiam os espaos pblicos com ngulos abertos sobre as principais ruas e avenidas, por vezes no sentido ascensional, destacando o processo de verticalizao da cidade atravs da construo de prdios de alto gabarito e, noutras, descensional (reas) atravs de fotos panormicas que davam a ver a expanso da rea central.

    O que se destaca no espao dos objetos so os prdios de alto gabarito, com mais 10 andares, os principais edifcios pblicos e privados (comerciais e residenciais) do centro da cidade e as grandes obras pblicas (federais e estaduais), que ajudavam a construir a percepo de uma nova escala monumental de crescimento, de verticalizao e os significados de produtividade urbana. Mas tambm os automveis, que ajudam a dar uma noo da escala dos edifcios e a construir significados de modernidade urbana.

    O espao de figurao monopolizado pela circulao de carros, nibus e pessoas no centro, principalmente de homens adultos em idade produtiva, que

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    coloca em destaque os significados sociais relativos ao trabalho e ao consumo de bens e servios urbanos. As pessoas so representadas em vistas parciais do centro, de longe, no permitindo sua identificao individual, em movimento, circulando, trabalhando e comprando. Apontando assim para o transeunte annimo, produtor e consumidor dos espaos, produtos e servios urbanos. Os prdios de alto gabarito so enquadrados em segundo plano, indicando que essas pessoas vivem, trabalham ou consomem produtos nesses prdios modernos. O espao de vivncia o espao urbano ordenado, planificado, racionalizado e produtivo da cidade moderna, com seus fluxos incessantes de trabalho e consumo, com uma nova temporalidade urbana caracterizada pela velocidade acelerada de circulao de pessoas e automveis no centro da cidade.

    Passa-se a refletir sobre a construo da imagem dos outros sujeitos urbanos, aqui particularmente representados pelos jovens e pelas crianas em situao de rua. Esses outros no eram considerados como cidados-construtores da cidade moderna e constituam o avesso da nova ordem no processo de elaborao de um novo padro de visualidade do espao urbano nas fotorreportagens sobre a cidade de Porto Alegre na Revista do Globo nos anos de 1950.

    As fotografias participavam do projeto de construo da visualidade urbana e do processo de incluso e legitimao da ao de certos atores e grupos sociais, bem como da excluso e estigmatizao da ao e presena de outros sujeitos e grupos sociais no espao urbano em processo de modernizao. As fotografias ajudavam a dar visibilidade, davam a ver certos grupos e prticas sociais, bem como construam hierarquias e diferenas sociais. O processo de construo de identidades ou de identificaes sociais, bem como do seu oposto, a alteridade e a excluso, aparece ora de forma camuflada ora de forma clara e plasmada em certos sujeitos e grupos sociais. Conforme Woodward, os discursos e os sistemas de representao constroem lugares a partir dos quais os indivduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.33

    A elaborao da imagem dos outros sujeitos urbanos na cidade moderna: estigmatizao, segregao e sua integrao forada na sociedade urbana moderna

    Passa-se agora a analisar uma srie de trs fotorreportagens que elaboram a representao social dos outros sujeitos urbanos na Revista do Globo nos anos 1950. O estatuto destas imagens fotogrficas lembra as fotografias de identificao do projeto de modernizao e ordenao social do final do sculo XIX, paralelo ascenso da

    33 WOODWARD (2000, p. 17).

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    burguesia, que elaboraria seus retratos em estdios na forma de romances.34A primeira delas Porto Alegre: uma cidade entregue aos ladres, de 21

    de fevereiro de 1953,35 com trs pginas e oito fotografias em P&B. A fotografia de abertura da fotorreportagem de grande formato, no sentido horizontal, e ocupa a metade da primeira pgina.

    Fonte: TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladres. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61.

    Nessa primeira imagem so representadas seis crianas descalas e sentadas sobre os paraleleppedos da rua (um trilho de bonde visvel no canto direito) em uma roda. Trs delas encontram-se de costas e usam chapus, uma delas est de perfil e outras duas de frente para a cmara, mas no podemos ver seus rostos. Trs delas so negras e uma delas tem cabelo claro.34 Sobre esse tema, ver os excelentes trabalhos de FABRIS (2004, p. 21-55); bem como o estudo sobre o mesmo processo de identificao dos criminosos e prostitutas no Mxico de DEBROISE (2005, p. 69-79); alm de dois ensaios sobre o nascimento da fotografia de documentao social em Leeds na Inglaterra no sc. XIX e no Administration Secutity Farm nos Estados Unidos dos anos 1930 em TAGG (2005, p.153-198; 199-236).35 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladres. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61, 66.

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    Elas parecem conversar ou jogar, pois esto todas olhando para o centro da roda. A fotografia em P&B, tirada de cima para baixo, ao nvel dos olhos de um adulto, com luz forte do meio dia, salienta os contornos e os volumes. Ao p da pgina, trs pequenas fotografias no estilo retrato de meio-corpo e de formato retangular vertical apresentam trs homens de terno e gravata, sentados em fotos de interior. O primeiro deles est sentado, com apenas de seu corpo aparecendo na foto; o segundo est de perfil, sentado, falando ao telefone. O terceiro est de frente, tendo ao fundo uma parede neutra.

    Em uma delas, a fotografia central, possvel identificar que o local um escritrio, pois o homem est sentado atrs de uma escrivaninha e fala ao telefone. A anlise da diagramao das fotografias na pgina da revista aponta para uma oposio/tenso entre a fotografia dos meninos descalos representados acima da pgina e as fotografias dos trs homens de terno e gravata na parte de baixo da pgina. Essa oposio construda tambm no plano formal, pois a primeira fotografia externa e enquadra um pequeno grupo na rua, enquanto as trs fotografias abaixo enquadram planos fechados do interior de um escritrio. A primeira tirada de cima para baixo apontando uma hierarquia do olhar (superioridade do fotgrafo/reprter/adulto que tira a foto) e cortada no formato retngulo horizontal salientando o cho, no qual as crianas encontram-se sentadas, j as outras trs fotografias so tomadas da mesma altura dos olhos dos homens de terno e so cortadas em um retngulo vertical (ascenso).

    Na pgina seguinte, outras quatro fotos de formato pequeno e retangular vertical completam a fotorreportagem. As legendas dessas fotos ampliam essa contradio e aprofundam a tenso social entre esses dois grupos. Sobre o primeiro grupo se projeta um olhar externo, que um ser visto pelo outro, ou seja, a objetiva do reprter fotogrfico, e no segundo h um dar-se a ver da autoridade policial que olha para a cmera do fotgrafo.

    A legenda da primeira foto afirma que sessenta por cento dos larpios que agem em Porto Alegre so menores e completa que no de estranhar, pois a qualquer momento, em qualquer parte da capital, podem-se ver grupos de garotos na malandragem, sem lar, sem escola, sem assistncia.36 As legendas das seis fotos menores de homens de terno e gravata indicam que se trata do delegado Homero Schneider, do delegado-adjunto Miranda Meira, do inspetor-chefe Osmar Barreto, dos inspetores Osvaldo Scherer e Alfredo Vitorino Vargas e do depositrio Agostinho F. Pena. Todos individualizados ao serem retratados de perto em seu ambiente de trabalho, no exerccio de suas funes e identificados pelo nome, sobrenome e respectivos cargos na polcia. A ordem policial representada pelos policiais e objetos relacionados ao seu trabalho (telefone, livros, cofre). 36 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladres. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60.

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    A anlise do texto da fotorreportagem aponta para o aprofundamento dos binmios delinquentes versus polcia e desordem versus ordem policial, o que refora esse processo de hierarquizao e estigmatizao das crianas de rua atravs do tom sensacionalista que caracterizava as revistas ilustradas do perodo. O subttulo afirma: Desaparelhada de gente e de material, a Delegacia Especial de atentados propriedade na capital gacha tem contra si um adversrio cem vezes mais numeroso: os menores delinquentes e os fugitivos.37 A Revista tambm d a palavra aos policiais, enquanto se apropria da fala de um dos jovens para construir dele uma imagem de perigoso contraventor: O pobre rapazinho confessou ainda que sua maior aspirao era ser chefe de uma quadrilha, ter automvel e metralhadora.38 A estigmatizao social desses jovens pela revista se completa ao final da fotorreportagem:

    O que de melhor se poderia esperar de uma gerao criada na maloca, analfabeta e acostumada desde criana a disputar com os porcos a prpria alimentao. Procurem-se as fichas dos recm-entrados na Casa de Correo. Noventa por cento analfabetos! o que prolifera em nossas vilas de marginais, fruto da desagregao dos costumes, da dissoluo das famlias.39

    Acerca da imagem pblica dessas crianas e jovens, a revista sentencia: A maior desgraa para eles a lei que no permite imprensa publicar fotografias ou o nome dos menores,40 o que explica o fato de as fotografias no mostrarem nem os rostos e nem os olhos dos jovens. Isso evidencia o desejo social de visibilidade do poder (da polcia), de identificao e de controle desses jovens em uma cidade em processo acelerado de crescimento e diversificao social.

    A campanha de moralizao e controle social do espao urbano fica clara quando a revista d a palavra ao inspetor Schneider: Sessenta por cento dos furtos praticados em Porto Alegre so de autoria de menores. Ache-se um estabelecimento adequado e tire-se de circulao cinquenta meninos delinquentes e a estatstica baixar.41

    Ou seja, o ideal policial seria o seu isolamento e a sua vigilncia em instituies corretivas para crianas e adolescentes. O que nos leva a outra fotorreportagem da Revista do Globo, de 10 de julho de 1954, intitulada No doce nem lar, com texto de Dionsio Toledo e fotos de Pedro Flores, exatamente sobre esse assunto.42

    37 Id., Ib., p. 60.38 Id., Ib., p. 60.39 Id., Ib., p. 61.40 Id., Ib., p. 61.41 Id., Ib., p. 61.42 TOLEDO, D.; FLORES, P. No doce nem lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-50, 56.

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    Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. No doce nem lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.

    A fotorreportagem tem trs pginas com cinco fotografias, iniciando-se com pgina dupla com duas fotos de formato grande (com mais de pgina) e continuando na terceira pgina com trs fotos de formato pequeno com menos de de pgina. Nas primeiras duas pginas, na abertura da fotorreportagem, apresentam-se fotografias de grande formato com tom sensacionalista visando causar impacto e despertar a ateno do leitor.

    A primeira foto no formato retangular vertical apresenta em primeiro plano um jovem negro de costas, enrolado em um cobertor, descalo e caminhando sobre as pedras irregulares de um ptio e ao fundo, em segundo plano, uma fileira de jovens sentados no cho (com tarjas pretas cobrindo os olhos) diante de uma casa trrea de madeira com beiral. Ao lado, a segunda foto apresenta em primeiro plano um ptio com cho de pedras, sobre o qual se projeta uma larga sombra, no qual se encontra um grupo de jovens sentados no cho lado a lado em fila (dois deles se destacam por estarem em p) em frente a uma casa de madeira e de telhado baixo com trs aberturas de onde pendem cobertores. Veem-se, ainda, ao fundo, um fragmento de cu, a parede de outra casa e a copa de uma rvore que projeta sua sombra sobre o ptio, onde quatro

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    jovens se encontram sentados contra a parede. Observa-se, por um fragmento do cobertor nas costas do jovem da primeira fotografia que aparece na segunda fotografia, que se trata do mesmo lugar e que essas se complementam enfocando os dois lados do mesmo ptio. O que permite ver a casa ao fundo e um grande grupo de jovens sentados no cho do ptio ora mais de perto ora mais de longe em seu conjunto.

    Na pgina seguinte, trs fotografias de formato pequeno complementam e detalham alguns aspectos das duas imagens anteriores. No alto da pgina, a terceira foto apresenta uma parede rstica com uma prateleira, onde se observa uma fileira de latas, abaixo dela um banco de tbuas e em cima dele um tacho de leite vazio virado. Na quarta foto, quatro jovens dormem amontoados no cho no canto de uma pea enrolados em panos. No plano do contedo, observa-se a repetio da ideia de empilhamento dos jovens sentados no cho, dormindo num canto de pea, dos panos sobre um cavalete e das latas. Os significados de rusticidade do cho de pedras, da casa de madeira, das paredes rugosas da pilha de panos e latas. A casa trrea de uma gua que lembra o espao rural e o passado colonial em oposio casa burguesa e aos prdios de apartamentos que dominam a representao da cidade em outras fotorreportagens. Os significados de abandono e a anomia so explorados atravs da apresentao dos jovens sentados contra a parede ou deitados no cho, bem como a pobreza das suas vestes e do lugar que se encontram.

    Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. No doce nem lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 50, 56.

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    A anlise formal das imagens aponta para escolhas de enquadramento e luminosidade que ampliam esses significados de pobreza, rusticidade e abandono. Nas duas primeiras fotos de grande formato, a cmera baixa (prxima ao cho) coloca em primeiro plano o piso do ptio de pedras irregulares, sobre o qual se projetam largas sombras, focando os ps descalos dos jovens. A sequncia narrativa das fotos comea no exterior e penetra no interior rstico da habitao apresentando detalhes que complementam os significados de pobreza, rusticidade e abandono.

    Estamos na esfera do visvel dos dispositivos do olhar do poder, da viso policial, que esquadrinha e d a ver o outro, que torna o visvel para reific-lo, que o transforma em objeto, em coisa. A revista d a ver o outro o jovem, negro, pobre, condenado pela justia na sua misria e na sua diferena em relao ao padro burgus de habitao e consumo da cidade moderna. Desvalorizando-o e estigmatizando-o em relao s esferas do trabalho e do ordenamento social que caracterizam as representaes da cidade moderna e das classes alinhadas com esse projeto de modernizao.

    Os ttulos, as legendas e os textos ampliam essa representao e colaboram para construir uma imagem de alteridade negativa destes jovens relacionado a certos espaos da cidade. Observe-se o subttulo da fotorreportagem: na Colnia Africana, um antro miservel, que Porto Alegre procura recuperar seus menores delinquentes.43 Nesse subttulo, associa-se a representao desses jovens com os significados de colnia, de africana, de miservel e de delinquncia, localizados em determinado espao urbano e que se ope ao conjunto da cidade de Porto Alegre.

    A fotorreportagem adquire tom de fotonovela pela forma como a narrativa conduzida em primeira pessoa, seguindo os passos do reprter que procura desvendar o problema do jovem e criana de rua em Porto Alegre. O texto comea com uma caminhada da personagem-reprter pelo centro da cidade a deparar-se com as manchetes dos jornais a noticiar o arrombamento de seis prdios. Depois, em um fluxo de conscincia, a personagem pensa na possibilidade de sua residncia ser arrombada e na sua vontade de ver os responsveis na cadeia. Na sequncia depara-se com uma criana oferecendo-se para engraxar os seus sapatos, aceita e passa a pensar no problema dos jovens delinquentes da cidade. O fato o leva a querer investigar o assunto. Ele se dirige autoridade competente do Juizado de Menores, que lhe fala do problema da escassez de verbas e se oferece para conduzi-lo a um passeio visando conhecer uma instituio que abriga jovens e crianas na Colnia Africana. Cabe salientar que essa forma de narrativa (prxima ao antigo folhetim e fotonovela) visa despertar o interesse dos leitores e coloc-los ao lado do reprter em sua pesquisa. A descrio da instituio pela personagem-reprter bastante forte e entremeada de qualificativos:43 TOLEDO, D.; FLORES, P. No doce nem lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.

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    Dirigimo-nos para l, entramos em seu recinto, e... que horror! Duas celas, duas jaulas. Cinquenta menores, uns sobre os outros, o que nos faz pensar nas promiscuidades que devem se suceder entre eles. Um cheiro insuportvel das instalaes sanitrias junto s celas sem porta. No h uma cama sequer, sacos servem de cobertores. Uma massa humana agrupada atrs das grades a pedir cigarros. Ento a nosso pedido, so todos eles retirados das grades, colocados em uma fileira, se deixam fotografar com uma passividade de bestas.44

    Descobre-se, ento, que a fotografia foi armada, e os jovens posaram para ela segundo a lgica da fotografia policial de identificao do criminoso, do outro, do excludo. A avaliao da revista tanto esttica quanto moral sobre o lugar e as pessoas que l se encontram. L na Colnia Africana, tudo se ope moral, esttica e aos padres sociais civilizados que o reprter e os leitores defendem na cidade. Mais adiante, o reprter-personagem completa o processo de estigmatizao desse outro: Todos esses garotos que podiam ser de utilidade social em verdade no passam de autnticas bestas humanas.45

    Apesar de certo humanismo que leva o reprter a associar aqueles jovens ao engraxate que encontrou no centro e da vontade de que seja nosso prprio filho, que o levemos para casa...,46 a reportagem defende um conjunto de medidas de carter preventivo das autoridades que permitissem identificar, avaliar, encaminhar e tratar esses jovens visando a sua recuperao e reintegrao no convvio social. Para tanto, poder-se-ia utilizar o regime semiaberto, sob vigilncia discreta, mas constante. O que remete prxima fotorreportagem sobre uma nova instituio para o recolhimento e reeducao de jovens infratores.

    A fotorreportagem O lar para o pequeno marginal,47 de 24 de agosto de 1957, com texto de Antnio Goulart e fotografias de Lo Guerreiro, composta de seis pginas e sete fotos P&B: duas fotos grandes com formato de retngulo horizontal, trs fotos de tamanho mdio (uma no formato retngulo vertical e outras duas no formato retngulo horizontal) e duas fotos pequenas no formato quadrado.

    44 Id., Ib., p. 50.45 Id., Ib., p. 50.46 Id., Ib., p. 50.47 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36-41.

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    Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36,37.

    Ela comea em pgina dupla com uma fotografia retangular na vertical um pouco menor do que meia pgina. Nela se podem observar dois rapazes no fundo de um longo corredor. Em primeiro plano, destaca-se o piso de ladrilhos de duas cores em L; em segundo plano, um jovem de costas caminha em direo ao fundo do corredor e caminha em frente a trs portas abertas de onde se projeta uma luz sobre a parede contrria cheia de portas de armrios fechadas; um pouco frente e esquerda, outro rapaz procura algo dentro de um armrio com a porta aberta. No teto de cor clara, como as paredes laterais, observam-se duas luminrias. No se observam objetos no cho ou nas paredes.

    No plano formal, a foto tirada em ngulo de 90 graus com o cho, que ocupa o primeiro plano e com os jovens ao fundo em segundo plano, destaca a profundidade e a amplido do corredor; a sequncia de portas de armrios e de portas abertas d ritmo, ordenao e equilbrio imagem. A fotografia constri significados de ordem, limpeza e amplitude do espao. O que reafirmado pela legenda Ao lado do dormitrio, num longo e claro corredor, cada um deles possui o seu armrio para

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    roupa.48 A segunda foto uma vista parcial que, em primeiro plano, apresenta uma grande rvore e, em segundo plano, em toda a sua extenso um longo edifcio de dois andares, em terceiro plano, o cu ocupa boa parte do espao da fotografia.

    No plano formal, observa-se que o fotgrafo construiu uma foto tirada a distncia para enquadrar a rvore alta que se sobrepe e projeta a sua sombra sobre o longo prdio de dois andares com uma generosa poro de cu ao fundo. A rvore alta parece proteger o edifcio novo ao projetar sua sombra sobre ele. A tomada a distncia enfatiza o tamanho do prdio e sua integrao com a natureza (rvore e cu) construindo significados de salubridade e amplido. O que tambm destacado na legenda e no incio do texto da fotorreportagem: Num amplo descampado, atrs de uma colina, ergue-se o moderno edifcio do Novo Lar de Menores.49 O adjetivo moderno coloca-o em sintonia com os objetivos reiterados da revista de ser porta-voz do homem e da mulher moderna. No terceiro pargrafo descreve-se o Novo Lar:

    A casa apresenta-se com simplicidade, dentro de um estilo funcional e linhas modernas. Tem capacidade para 50 ou mais pessoas. Tudo muito amplo, aberto, no oferecendo aos meninos o mnimo aspecto de priso. Bem perto se alarga um campo de esportes, mais abaixo uma horta.50

    As fotografias e o texto complementam-se na apresentao das instalaes e das atividades que se desenvolvem na instituio. Nesse sentido as fotos tm o papel de testemunhar e certificar a veracidade e a exatido da descrio, como se observa na sequncia de cinco fotos que complementam a fotorreportagem, testemunhando e detalhando atividades de trabalho e de lazer dos meninos na instituio. Na segunda pgina, a terceira foto enquadra em primeiro plano um menino de costas no gol observando trs outros garotos disputando a bola a alguns metros frente, no segundo plano. Num terceiro plano, apresenta-se a amplido de um campo aberto e morros ao fundo, muito alm dos limites do campo de futebol onde os meninos jogam bola. Na foto abaixo dessa, apresentam-se em primeiro plano dois meninos carregando enxadas, em segundo plano, mais frente dois homens tambm carregando ferramentas (o primeiro deles de roupa preta, que aparenta ser um padre de batina) e, mais alm, observam-se o prdio da instituio e a amplido do cu. No plano icnico de contedo, as duas fotos apresentam a unio de lazer e trabalho, ambas as atividades desenvolvidas ao ar livre e em contato com a natureza (campo, rvores, cu). Por isso, muito saudveis e apropriadas a esses jovens. O que complementado pelo subttulo ao lado Apreciam esporte e trabalho.51

    48 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36.49 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 37.50 Id., Ib., p. 37.51 Id., Ib., p. 38.

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    No formal da expresso, estas vistas parciais da instituio com grande profundidade de campo e enquadramento do cu (representa entre e das fotografias respectivamente) apontam para a vida em contato com a natureza, liberdade, salubridade, num ambiente com harmonia e paz ideal para o desenvolvimento dos jovens.

    Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 38-39.

    Outras trs imagens complementam esses significados nas duas pginas seguintes que concluem a reportagem.52 Nestas pginas, as fotos, o subttulo e as legendas concorrem com as publicidades que ocupam a metade externa dessas pginas. A quinta fotografia apresenta um grupo de jovens/meninos ao redor de uma mesa em um ambiente amplo. Em primeiro plano, um menino est se levantando na ponta da mesa e outro est de p no lado esquerdo, um homem de p parece ser um padre usando batina preta, outros trs meninos esto sentados e outros dois mais ao fundo parecem estar de p atrs da mesa. Em um segundo plano, ao fundo da sala ampla h armrios na parede e uma porta aberta para outro aposento. A legenda 52 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.

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    esclarece: No refeitrio este grupo, sem nenhuma cerimnia, mistura no caf da tarde conversa e risadas gostosas. A foto um instantneo, a anlise icnica sugere o binmio formado pela amplido da sala e a unidade do grupo ao redor da mesa para a refeio. A descontrao do grupo vigiada e controlada pelo padre ao fundo, que representa a autoridade e a ordem na instituio. O grupo que est bem centralizado e em foco ncleo significante da imagem. O contraste entre a luminosidade clara da sala e os tons mais escuros das roupas dos meninos do grupo ao redor da mesa complementa esse significado de unidade do grupo.

    Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.

    Ao lado dessa fotografia, outra apresenta dois meninos em um dormitrio arrumando as suas camas. As roupas de cama parecem bem brancas, e uma luminosidade forte entra atravs das duas janelas abertas sobre as camas. um instantneo ou foto posada? No se pode saber ao certo, mas tudo indica a pose. Novamente, a anlise do contedo aponta para a construo de significados de responsabilidade, disciplina, ordem, higiene e bem-estar dos meninos na instituio.

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    Embaixo, na mesma pgina, uma fotografia mdia em formato retangular horizontal representa dois jovens e um menino operando mquinas sobre bancadas de ferro e madeira num ambiente que parece ser uma oficina. Em primeiro plano direita, observa-se um jovem de frente para a cmera (porm seu rosto foi borrado, provavelmente no negativo antes da ampliao, para preservar a sua identidade) operando uma ferramenta eltrica com a mo esquerda e pousando a mo direita sobre outra em cima da bancada. Em segundo plano, outro jovem de costas opera uma mquina sobre uma bancada. A legenda esclarece tratar-se de uma oficina de marcenaria onde se fabricam mveis.

    No plano do contedo, essa imagem encerra a fotorreportagem com os significados do trabalho, da operosidade, da produtividade com complemento e ponto culminante do trabalho de reabilitao e ressocializao dos pequenos marginais (sic). A narrativa visual ordenada nos leva a um passeio pela instituio: comeamos a distncia contemplando o terreno, a modernidade e o tamanho do prdio, bem como sua localizao favorvel em meio natureza; depois passamos ao campo de futebol; e ainda a volta do trabalho da horta; no interior observamos o refeitrio, os quartos e a oficina. Tudo muito limpo, espaoso, ordenado e iluminado para a reabilitao dos meninos e jovens sobre o olhar atento e vigilante do padre e seu assistente. H um processo de acumulao e de reforo dos significados das imagens anteriores de forma bastante pedaggica para o leitor da revista, visando apresentar-lhes os benefcios da recluso, do trabalho, da disciplina e do trabalho para a reabilitao e reinsero social desses jovens e meninos.

    Essas reportagens encerram todo um percurso e uma discusso sobre o lugar da criana e do jovem de rua na cidade moderna. Na primeira reportagem o leitor informado da sua periculosidade e dos inmeros roubos por eles cometidos, fazendo-os figurar como ameaa nmero um propriedade. Na segunda reportagem, a revista focaliza os jovens vivendo quase como animais em um antro na periferia da cidade: a Colnia Africana. Finalmente, a ltima reportagem apresenta a soluo do problema com o distanciamento desses jovens e meninos da cidade grande para as reas saudveis em contato com a natureza de Viamo no Novo Lar do Menor. Nesse ambiente saudvel, limpo, arejado e disciplinado, isolado dos maus da cidade, eles aprendero a trabalhar na horta, na oficina e recebero cama, comida, roupas e