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A Psicologia como reflexão sobre as práticas humanas: daadaptação à errância

Marcia MoraesUniversidade Federal Fluminense

Resumo

O objetivo desse artigo é apresentar algumas questões que nortearam a Psicologia no século XX. Propomosuma discussão epistemológica acerca da Psicologia e de suas práticas, discutindo os limites do conceito deadaptação à luz da noção de rede, tal como apresentada nos trabalhos de Bruno Latour.

Palavras-chave: psicologia; adaptação; redes

Abstract

Psychology between adaptation and mistake. The goal of this paper is to present ideas that led psychologyon the XX century. We submit an epistemological debate about psychology and its actions, discussing thelimits of the adaptation concept under the focus of network notion, as presented by Bruno Latour studies.

Key words: psychology; adaptation; networks

O estudo da história da psicologia nos mostra ainsistência e a recorrência de um problema: aquestão do erro – seja o erro dos sentidos no

exercício do conhecimento, na psicologia do século XIX, sejao erro das práticas humanas, na psicologia do século XX. Ainsistência desse problema leva-nos a uma interrogação: porque o problema do erro é tão fundamental para a psicologia?De que modo a psicologia lida com o problema do erro? Sãoquestões que devem ser discutidas num contextoepistemológico. A esse respeito consideramos pertinenteacompanhar a questão do erro, tendo como fio condutor doismodos de lidar com esta questão. O primeiro consiste emconsiderar o erro como o avesso do acerto, como algo a sersuperado e corrigido numa norma. Tal é o estilo que marca apsicologia orientada pelo projeto de definir-se como ciênciaexperimental, natural. Já o segundo consiste em considerar oerro como positividade, isto é, como solo de invenção depráticas sociais, como solo de invenção do homem. Essesegundo ponto de vista pode ser elaborado a partir dostrabalhos de Canguilhem a respeito das distinções entre onormal e o patológico1, bem como a partir das recentescontribuições de Bruno Latour que, se aliando a tópicospresentes na filosofia de G. Deleuze e F. Guattari, analisa aspráticas científicas, não a partir do seu método, mas sim apartir das conexões sempre heterogêneas que sustentam aprodução do fato. Trata-se de uma análise das ciências queas considera como práticas produtoras de fatos, como práticasde conexão, de aliança entre humanos e não-humanos. O

interessante no estudo dos trabalhos de Bruno Latour é olugar concedido ao erro no domínio das práticas científicas.Nesse caso, o erro é considerado como algo positivo, comosolo de invenção de normas temporárias, instáveis e locais.

Impasses no projeto da psicologia como ciênciaEm um texto em que analisa a psicologia de 1850 à 1950,

Foucault (1990) levanta questões importantes quanto ao temada cientificidade da psicologia e seu estatuto polêmico.Segundo Foucault, a psicologia do século XIX herdou doIluminismo a preocupação de encontrar no homem as mesmasleis que regem os fenômenos naturais. A psicologia então seergueu como um esforço metodológico tomado de empréstimodas ciências da natureza e se assentou sobre dois postuladosprincipais: em primeiro lugar, que a verdade do homem seesgotava em seu ser natural e, em segundo lugar, que ocaminho de todo conhecimento científico devia passar peladeterminação de relações quantitativas, pela construção dehipóteses e pela verificação experimental. Foucault salientaque até a metade do século XX a história da psicologia é ahistória paradoxal das contradições entre o projeto dereconhecer no homem as mesmas leis que regem a natureza eos postulados que norteiam a construção da psicologia comociência objetiva. Em outras palavras, com o intuito de mostrarque o homem era uma extensão da natureza, a psicologiaergueu-se a partir dos postulados de rigor, objetividade,neutralidade. No entanto, sua história foi marcada porsucessivos impasses e dificuldades na execução desse projeto

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e daí decorre o caráter paradoxal e contraditório que atravessaa história da psicologia. A precisão matemática e o rigorexperimental encontravam limites de aplicação no caso dosaber psicológico. No século XIX, a psicologia se constituiucom o objetivo de investigar as condições subjetivasresponsáveis pelos equívocos no exercício do conhecimento.Para isso, a psicologia se fez uma física dos sentidos externos,apesar de se manter sempre no limite entre uma ciênciaobjetiva acerca do sujeito cognoscente e uma metafísica dascondições do conhecimento. Dito de outro modo, no séculoXIX, a psicologia se definia mais como um campo de tensãoentre a física e a filosofia do que como uma ciência experimentaldo sujeito cognoscente. Os debates entre Wundt e seuscríticos, como Ebbinghaus, são a esse respeito exemplares.Enquanto o primeiro era acusado de confundir psicologiacom metafísica, o segundo afirmava a viabilidade de umaciência experimental dos processos mnêmicos, desde que estesfossem definidos por meio do conceito de associação. Aocomentar esse estatuto tenso, paradoxal e contraditório dapsicologia, Foucault destaca que

... o projeto de rigorosa exatidão que conduziu a psicologiapasso a passo a abandonar seus postulados tornou-se vazio desentido quando esses postulados desapareceram: a idéia de umaprecisão objetiva e quase matemática no domínio das ciênciashumanas não é mais saber se o homem ele mesmo é da ordemda natureza. É então a uma renovação total que a psicologia éconstrangida no curso de sua história; descobrindo um novoestatuto do homem, ela se impôs como ciência, um novoestilo. (Foucault, 1990, p. 160)

A questão que importa ser ressaltada, conforme salientaFoucault na citação acima, não é retomar o tema da inserçãoou não do homem no domínio das ciências naturais, mas simde tomar como fio condutor para a invenção de um novoestilo de ciência os paradoxos enfrentados pela psicologiaem seu projeto de se estabelecer como ciência experimentaldo sujeito cognoscente. Isso significa dizer que os embates eos problemas enfrentados pela psicologia para fazer do sujeitodo conhecimento uma extensão da ordem natural são antes acondição para a invenção de um certo estilo de ciência, quenão se confunde com o modelo das ciências naturais no séculoXIX. Trata-se, conforme salienta Foucault, de uma dupla tarefaincompreendida pelos psicólogos em todo o seu alcance eque eles têm tentado por vezes fazer da exigência de novosprojetos uma expansão dos princípios do método: aspsicologias da conduta são a esse respeito emblemáticas umavez que tentaram analisar a conduta, embora utilizassem paraisso os métodos da ciência da natureza; outros nãocompreenderam que a renovação dos métodos implicava olevantamento de novos temas de análise: foi o que aconteceucom as psicologias descritivas que permaneceram vinculadasa velhos conceitos. Nesse sentido, Foucault registra que umarenovação radical da psicologia como ciência do homem éuma tarefa incompleta a cumprir e que está na ordem do dia.

A psicologia e as práticas humanas ou a questãoda adaptação

Foucault (1990) afirma que nos últimos 100 anos apsicologia estabeleceu relações novas com a prática:educação, medicina mental, organização dos grupos. Essaprática tem se apresentado como o solo de fundação racionale científico da psicologia. Além disso, a psicologia se propõequestões oriundas dessas práticas: o problema do êxito oudo fracasso escolar, problema da adaptação do homem àssuas condições de trabalho, as relações entre o doente e asociedade. É interessante notar que, por esse laço constantecom a prática, pela reciprocidade de suas trocas, a psicologiano século XX se tornou semelhante a todas as ciências danatureza. Mas é preciso fazer uma ressalva, conforme adverteFoucault (1990). Enquanto as ciências naturais respondemapenas pelos problemas colocados pelas dificuldades daprática, seus fracassos temporários, as limitações provisóriasde sua experiência, a psicologia, ao contrário, nasce no pontoem que a prática do homem encontra sua própria contradição;no ponto em que essa prática falha, erra. A psicologia dodesenvolvimento nasceu como uma reflexão sobre asdificuldades do desenvolvimento; a psicologia da conduta,como uma análise dos desajustes, aquela da memória, daconsciência, do sentimento, do pensamento apareceu de iníciocomo uma psicologia do esquecimento, do inconsciente, dasperturbações afetivas e dos problemas do pensamento. Porisso, Foucault (1990) conclui que “a psicologiacontemporânea é uma análise do anormal, do patológico, doconflitual, uma reflexão das contradições do homem com elemesmo”. E, ele prossegue, “se ela se transformou numapsicologia do normal, do adaptativo, do ordenado, é de umamaneira secundária, como por um esforço para dominar essascontradições” (Foucault, 1990, pp.160-161).

No início do século XX a questão do desajuste docomportamento humano tornou-se pregnante no campo dapsicologia. Para adaptar o indivíduo às novas condições devida que emergiam nos EUA por essa época era de fundamentalimportância que fossem conhecidas as leis reguladoras docomportamento humano. Conhecendo tais leis, seria possívelintervir sobre a prática humana de modo a promover indivíduosajustados ao seu meio social. Com uma ferramenta desse porteseria possível ajustar o comportamento de um trabalhador demodo a obter dele o máximo de rendimento possível com omínimo de custo para uma empresa. Do mesmo modo, seriapossível ajustar o comportamento de uma criança à situaçãoescolar e, em última instância, adaptar o comportamento doindivíduo à sociedade.

A emergência da psicologia do comportamento foimarcada por estas exigências técnicas e econômicas. Foi umasociedade capitalista e industrializada que se perguntou nãoacerca do conhecimento humano – questão por demaisespeculativa – mas sim, acerca da prática humana. Ofundamento filosófico de uma indagação deste tipo é o

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instrumentalismo que supõe que “a natureza do homem é deser ferramenta, sua vocação é ser colocado no seu lugar, nasua tarefa” (Canguilhem, 1972, p. 120).

O paradigma científico dessa psicologia remete à biologiade Darwin e ao conceito de adaptação como eixo da relaçãoentre o organismo e o meio. Nesta perspectiva, pode-se afirmarque o meio apresenta problemas que o organismo respondeadaptando-se ou morrendo. O critério para avaliar umcomportamento ajustado é dado pela sobrevivência. Assim,o organismo biológico modifica-se progressivamente segundoas exigências de seu meio.

O conceito de adaptação da biologia foi tomado pelapsicologia como chave para explicar a prática humana. Empsicologia a adaptação refere-se não tanto a uma relação entreo organismo e o meio biológicos, mas, principalmente, a umarelação entre indivíduo e meio social. Com este esqueletoconceitual a psicologia pretendia dar conta das questõesempíricas que a industrializada sociedade estadunidense lheapresentava. Constituiu-se então uma psicologia docomportamento humano como uma ciência que descrevia asleis do comportamento e que, por esta via, servia como uminstrumento para promover a adaptação do indivíduo ao meiosocial. Conhecendo as leis de produção de um comportamentoseria possível alterá-lo. Deste modo, a psicologia definiu-secomo uma técnica e não mais como pura especulaçãofilosófica. Uma psicologia made in USA e que, como tal, secaracterizou por seu utilitarismo. Colocar o homem certo nolugar certo, eis a tarefa do psicólogo.

Neste ponto nos deparamos com um problema essencial.Se na biologia o parâmetro para definir a adaptação é asobrevivência, o mesmo não ocorre na psicologia. Aqui, areferência para um comportamento ser classificado comoajustado não pode ser natural, biológica, uma vez que estáem cena um indivíduo num meio social e não um organismobiológico num meio natural. Como então definir umcomportamento adaptado num meio social? Qual será o critérioa ser utilizado para determinar o que é, ou não, adaptado? Ocritério neste caso só pode ser arbitrário. Isto significa dizerque, em relação ao meio social, o parâmetro do comportamentoajustado é dado por quem detém o poder e o controle sobre aprática humana. Desta maneira, o psicólogo passa a ser elepróprio um instrumento a serviço daquele que lhe fornece otermômetro para avaliar o grau de desajuste do comportamentohumano. Em outras palavras, o psicólogo passa a ser

um prático profissional cuja “ciência” é totalmente inspiradana pesquisa das “leis” da adaptação a um meio sócio-técnico –e não a um meio natural – o que confere sempre a estasoperações de “medida” uma significação de apreciação e umalcance de perícia. (Canguilhem, 1972, p.121)

Nessas considerações sobre a questão da adaptação napsicologia, interessa-nos delimitar o estatuto polêmico e paradoxaldesse tema. Dito de outro modo, o que nos parece interessanteno tema da adaptação é que ele aponta para o caráter sempreparadoxal das práticas humanas. Delimitar o estudo da adaptaçãoem torno da pesquisa das leis gerais que regulam esse processonão nos parece ser o ponto mais importante. Para nós, o mais

importante é que a adaptação do homem ao meio social é marcadapela contradição, pelos desajustes, pelas errâncias.

Dos desajustes às errânciasNesse ponto é importante retomarmos a questão que

levantamos mais acima: por que o problema do erro – ou dodesvio, do desajuste – é tão fundamental para a psicologia?Conforme vimos, a psicologia, como aliada a uma “ortopedia”das práticas humanas, faz do desajustamento o reverso docomportamento ajustado e, como tal, portanto, um fato a sercorrigido, contornado ou justificado por uma lei geral. Noentanto, o problema do erro indica uma outra direção: noenfoque deleuziano, o erro não é um fato que deve ser corrigidoe superado. Ele é um acontecimento de direito. Isso significatomar o erro num sentido radical de errância, deriva, devirconstitutivo do pensamento. Não se trata de tomar o errocomo o par oposto do verdadeiro, mas de considerá-lo comoerrância, como um modo peculiar de distribuição do ser.

Deleuze (1988) indica que, do ponto de vista do ser, hádois tipos de distribuição e hierarquia: uma sedentária, naqual os seres são medidos “segundo seus limites e segundoseu grau de proximidade ou distanciamento em relação a umprincípio”(p. 77). Segundo Deleuze (1988), “esse tipo dedistribuição procede por determinações fixas e proporcionais,assimiláveis a ‘propriedades’ ou territórios limitados narepresentação”(p. 76). Nesse caso, o erro é medido por suadistância em relação ao verdadeiro.

Além da distribuição sedentária, há uma outra que Deleuze(1988) chama de nomádica, “por ser sem cerca nem medida”(p. 77). Nesse caso, as coisas e os seres são considerados doponto de vista de sua potência e, vale notar, não se trata degraus de potência tomados como referências absolutas, massim de “saber se um ser salta eventualmente, isto é, ultrapassaseus limites, indo até o extremo daquilo que pode, seja qualfor o grau” (p.78). Ultrapassar os limites não tem aqui o sentidode um término; o limite deixa de designar “o que mantém acoisa sob uma lei” para indicar um ponto de partida, “aquilo apartir do que a coisa se desenvolve e desenvolve toda suapotência” (p.78). As distribuições nômades introduzemperturbações, desvios, errâncias nas distribuições sedentáriase, nesse caso, erro é sinônimo de errância.

Tratar das distribuições nômades e sedentárias não implicaa afirmação de um dualismo, isto é, não há uma oposiçãorecíproca entre os dois tipos de distribuição; ao contrário,ocorre que os seres se distribuem numa escala de variáveldesmesura. As distribuições nomádicas fazem derivar asdistribuições de tipo sedentário, é o caso de uma derivaontológica. Assim, parece-nos possível dizer que, se por umlado, o erro é tomado como um fato a ser corrigido, por outrolado, do ponto de vista de uma ontologia da diferença, ele ésempre afetado por uma errância, por um nomos ou por umadistribuição nomádica. A questão ainda em aberto éjustamente saber se a insistência do tema do erro no campoda psicologia, bem como os seus impasses para se proporcomo justificativa para esse erro, não decorre de umainsistência desse campo de distribuições nômades, campoproblemático. Dito de outro modo, parece-nos que a

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possibilidade de erro pode referir-se tanto a um equívoco dosujeito ou à falha de uma prática quanto a essa desmesura doser ou, o que dá no mesmo, aos devires de um vividoontológico sub-representativo. A questão pertinente para apsicologia nos dias atuais é saber em que medida os seusimpasses frente aos problemas do erro, dos desajustes, dasfalhas na cognição e nos diversos domínios da prática são ascondições de formulação de um novo estilo de ciência, umestilo de ciência que comporte em seu bojo a deriva, a errâncianão como algo a ser corrigido e superado, mas como umapositividade, solo de fundação de um processo dediferenciação imanente.

Um estilo de ciência para a psicologia?Na atualidade alguns autores operam um deslocamento

no que diz respeito às discussões epistemológicas acercadas ciências e de suas práticas. Entre esses autores, podemoscitar Bruno Latour, que em sua obra apresenta os limites dasdefinições racionalistas da ciência. Na perspectiva desse autor,a ciência se define como uma prática de mobilização de aliadosheterogêneos, aliados humanos e não-humanos. Nesse ponto,perguntamos se a teoria ator-rede, proposta por Latour (1994),Callon (1986) e outros autores, pode servir de aliada para odebate em torno da cientificidade da psicologia e dainsistência do tema do erro em seu campo de estudos.

Sobre as redesNa teoria ator-rede, a noção de rede refere-se a fluxos,

circulações, alianças, movimentos em vez de remeter a umaentidade fixa. Uma rede não se reduz a um ator sozinho. Ela éformada por séries heterogêneas de elementos, humanos enão-humanos conectados. Por um lado, a rede de atoresdeve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia,uma categoria que exclui qualquer componente não-humano.Por outro lado, a rede também não pode ser confundida comum tipo de vínculo que liga de modo previsível elementosestáveis e perfeitamente definidos, porque as entidades daquais ela é composta, sejam elas naturais, sejam sociais, podema qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuasrelações, trazendo novos elementos para a rede. Assim, umarede de atores é simultaneamente um ator, cuja atividadeconsiste em fazer alianças com novos elementos, e uma redecapaz de redefinir e transformar seus componentes.

A noção de rede de atores diz respeito a um plano deconexões heterogêneas a partir do qual emergem tanto asciências quanto as crenças, as religiões, etc. Podemos dizerque ela se caracteriza por estabelecer um campo de tensõesheterogêneas no qual a síntese não é um resultado necessário.Latour (1994) afirma a rede como uma ontologia de geometriavariável, isto é, como um plano ontológico marcado pormúltiplas entradas. Nesse sentido, a análise das ciências éapresentada sem partir de pólos privilegiados, como o sujeitoe o objeto, o acerto e o erro. O princípio de simetria generalizadaproposto por Latour é uma conseqüência dessa ontologia demúltiplas entradas e conexões. Trata-se de analisarsimetricamente não apenas o erro e o acerto, mas antes, todoe qualquer efeito das negociações em rede, dentre eles, a

natureza e a sociedade. Levando mais longe as análises sociaisda ciência e de suas práticas, Latour (1994) propõe o princípiode simetria generalizado, fazendo-o valer tanto para a naturezaquanto para a sociedade. Para estabelecer uma simetriageneralizada, é preciso uma guinada a mais nos estudos sobreas ciências, de modo que a sociedade assim como a naturezasejam simetricamente estudadas. Natureza e sociedade sãoefeitos negociados em rede, nem uma nem outra podemfuncionar como fundamentos preestabelecidos para osestudos sobre ciências. O princípio de simetria não tem comofinalidade apenas estabelecer uma condição de igualdade entrenatureza e sociedade. Ele tem por finalidade “gravar asdiferenças, ou seja, no fim das contas, as assimetrias, e o[objetivo] de compreender os meios práticos que permitemaos coletivos dominarem outros coletivos” (Latour, 1994,p.105).

As redes não são, portanto, amorfas. Ao contrário, elassão altamente diferenciadas. Eliminar a oposição binária entresujeito e objeto não implica a afirmação de um solohomogêneo e indiferenciado. Está em foco a afirmação deuma diferença ontológica. A rede é, nesse sentido, umaafirmação dessa diferença. Ela consolida a potência doempírico como solo de invenção da razão, da verdade, dasociedade, da natureza.

Uma ciência definida como rede de atores não secaracteriza por sua racionalidade, sua objetividade ou pelaveracidade dos fatos por ela engendrados. Todas essasnoções são redimensionadas pela noção de rede e devem serentendidas como efeitos, resultados alcançados a partir dastensões próprias à rede de atores. Definir a ciência como redede atores significa defini-la por sua não-modernidade, porsuas hibridações, enquanto considerar as ciências a partir denoções tais como objetividade, neutralidade, etc., implicaconsiderá-las à luz do ideal de purificação, princípiocaracterístico do pensamento crítico ou moderno. Podemosdizer que, analisando as ciências simetricamente, isto é, semprivilegiar os acertos, nem nenhum outro a priori, Latour colocaem cena os múltiplos atores que definem a prática científica:os cientistas, os dispositivos técnicos, o dinheiro, as revistasde divulgação científica... São atores que, de um modo ou deoutro, estão presentes nas práticas científicas. Nesse sentido,as ciências são analisadas não do ponto de vista dos seusresultados, mas do ponto de vista do processo de construçãode um fato. Isso significa colocar o acento na investigação daciência enquanto prática, na análise do trabalho dos cientistasna bancada dos laboratórios. A análise do processo deconstrução do conhecimento coloca em cena a rede como osolo no qual o conhecimento é produzido.

A noção de rede tal como é apresentada por Bruno Latoursitua a ciência numa charneira entre a filosofia da diferençade Deleuze & Guattari (1992) e a psicologia. Considerada comoum conjunto de conexões performativas entre elementosheterogêneos, a ciência se apresenta como migração de umadistribuição nômade. Em outras palavras, o enfoque propostopor Bruno Latour nos permite pensar um estilo de práticacientífica que comporte em seu âmbito uma errância, uma derivatípica de uma distribuição nômade. Ao comentar as relações

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entre filosofia e ciência, Deleuze & Guattari afirmam que “erigirum conceito [filosófico] não é a mesma coisa que traçar umafunção [científica], embora haja movimento dos dois lados,embora haja transformações e criações num caso como nooutro: os dois tipos de multiplicidade se entrecruzam”(Deleuze & Guattari, 1992, p. 205). A teoria ator-rede afirmadapor Latour, Law, Callon, entre outros, confere visibilidade aoentrecruzamento entre os dois tipos de multiplicidade,filosófica e científica. Por esse motivo, pensamos que a noçãode rede é de crucial importância para a invenção de um novoestilo de ciência para a psicologia, um estilo que considera oerro, no sentido de uma distribuição nomádica. Uma ciênciadefinida, portanto, como um engajamento prático-teóricoestabelecido por meio de conexões de interesse e que, poreste motivo, não pode ser encerrada em nenhum a priorisituado para além dos riscos de sua prática.

Redes e psicologiaA noção de rede permite reativar o campo problemático

constitutivo da psicologia: seus impasses para se constituircomo uma ciência que, pela proposição de leis gerais, funcionecomo justificativa para o problema do erro, seja na cognição,seja no domínio da prática. Reativar esse campo problemáticosignifica arrastar as questões relativas ao erro na direçãodaquilo que se apresenta como o seu solo de fundação: asdistribuições nômades, distribuições de errância. Quais osefeitos desse movimento? Aqui vale parafrasear Orlandi (1996)que, ao comentar as diferenciações introduzidas peloproblemático no pensamento, utiliza uma analogia das relaçõesentre o vento e as nuvens e diz: “os ventos estão para asnuvens-com-suas-figuras assim como o problemático está

para o pensamento-com-suas-disciplinas” (p.28).Parafraseando o autor, podemos dizer que os ventos estãopara as nuvens-com-suas-figuras assim como a rede está paraa ciência-com-suas-ortodoxias. A ontologia em rede arrastaas formas estáveis da ciência, tais como rigor, objetividade,verdade, na direção de um processo imanente dediferenciação. Considerar a psicologia como uma ciência emrede, uma ciência em ação, significa pensar um novo estilo deciência para a psicologia e, conseqüentemente, significa deixarderivar as suas formas estabelecidas: as discussões em tornode sua cientificidade, as controvérsias em relação aos seusmétodos e objetos, as questões relativas à sua unidade oudispersão, as polêmicas quanto à sua autonomia frente aosdemais saberes. Uma deriva que certamente também abarcaos seus campos de estudo: a cognição ou qualquer domínioda prática.

Referências

Callon, M. (1986). Society in the making: the study of technology as a tool forsociological analysis. In W. Bijker, T. P. Hughes, & T. Pinch (Orgs.),The social construction of technological systems. New directions in thesociology and history of technology (pp. 83-103). Cambridge,Massachusetts: The MIT Press.

Canguilhem, G. (1972). O que é a Psicologia? Revista Tempo Brasileiro, 30/31, 104-123.

Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal.Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed.

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Recebido em 01.out.01Revisado em 15.jan.03

Aceito em 15.set.03

Notas

Marcia Moraes, Mestre em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora emPsicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é Professora Adjunta no Departamento dePsicologia da Universidade Federal Fluminense.Endereço para correspondência: Rua Desembargador Cesínio Paiva, 15 – São Francisco; Niterói, RJ; CEP24.360-530. Tel.: (21) 2610-0827. Celular: (21) 9631-9409. E-mail: [email protected]

1. A análise do problema do erro proposta por Canguilhem no seu livro O normal e o patológico é bastanteinteressante para esse debate. Em outro artigo analisamos as conseqüências do trabalho de Canguilhem para aepistemologia da psicologia (ver Moraes, 2000).

2. Esse trabalho é reformulação de artigo anterior (ver Orlandi, 1994).

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