FOUCAULT, Michel (Et Al.). O Homem e o Discurso (a Arqueologia de Michel Foucault)
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Michel FO U C A U LT Sergio Pau lo R O UANET
José Guilherm e M ER Q UIO R Dom inique LEC O U R T
Carlos Henrique de ESCOBAR
O HOMEM E O DISCURSO (A Arqueologia de Michel Foucault)2a edição
Tempo Brasileiro_____Rio de Janeiro -- RJ - 1996
<'< >Ml INIC.AÇAí)
Capa:P edro P a u l o Ma c h a d o
Direitos reservados àsEDIÇÕES TEMPO BRASILEIRORua Gago Coutinho, 61 -Tel.: 205-5949 -- Fax: 205-2964Caixa Postal 16099 - CEP 22221-070Rio de Janeiro -- RJ -- Brasil
ÍN D ICE G E R A L
1. Apresentação ....................................................... 9
2. EN TR EV ISTA COM M ICHEL FOUCAULT, porSergio P. Rouanet e J. G. M erqu io r................. 17
3. DO M INIQUE LECOURTA Arqueologia e o Saber .................................... 43
4. CARLOS H EN R IQ U E D E ESCOBARDiscurso Científico e Discurso Ideológico ........ 67
5. SERGIO PA U LO R O UANETA Gramática do Homicídio ................................ 91
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APRESENTAÇÃO
Com êste livro, Tempo Brasileiro apresenta uma das figuras mais originais do pensamento europeu contemporâneo. Não queremos dizer com isto que Foucault seja desconhecido no Brasil, pois foi professor da Universidade de São Paulo e um dos seus livros — Maladie Mentale et Psy- chologie — foi traduzido para o português e publicado exatamente por nossa editora. Mas não existe, até agora, um conjunto sistemático de textos que descreva a sua obra e procure situá-la nas grandes correntes do pensamento moderno. Ê êste o objetivo da presente coletânea, que pretende ao mesmo tempo familiarizar o leitor com as grandes linhas da obra de Foucault e fornecer os elementos para uma avaliação crítica.
A obra de Foucault é uma reflexão sôbre o discurso. Discursos parcelares, como o discurso da loucura e da medicina; discursos entrecruzados, múltiplos, como o discurso das epistemes; e um discurso sôbre o discurso, ou a arqueologia.
Os discursos parcelares são descrições especializadas de certas faixas do saber. Não se trata da história da psiquiatria, mas da descrição diacrônica do espaço epistemológico dentro do qual o saber da loucura evoluiu da fase da indiferenciação, característica da Renascença, para a fase da grande reclusão, do período clássico, ou para a fase asilar, no seculo X V III ; nem da história da medi-
s
cina, mas da descrição faseológica de totalidades culturais que se sucedem no tempo, e ao longo de cujo eixo a medicina elassifieatória transita para a medicina clínica e esta para a medicina anátomo-patológica. Cada etapa do saber da loucura e do saber médico se inscreve numa configuração epocal, abrangendo um conjunto de siste- maticidades discursivas e constelações extradiscursivas, que se intercomunicam livremente. 0 discurso é poroso à praxis, e a praxis é modificada pelo discurso. O saber psiquiátrico de Pinei, por exemplo, não pode ser dissociado das circunstâncias sociais e políticas do período revolucionário; e a nova forma de percepção característica da medicina clínica é homóloga do espaço social livre com que sonhava a Revolução francesa. Podemos caracterizar essa fase como a da transitividade discursiva.
Já o discurso epistêmico, sistematizado em Les Mots et Les Choses, é geralmente intransitivo. De nôvo, Foucault estuda configurações epocais, mas dessa vez de forma ao mesmo tempo mais pletórica e mais ascética: seu escopo é mais amplo, porque não se limita a estudar uma modalidade específica de saber, mas uma rêde de discursos interligados; e sua metodologia é mais severa, porque exclui, deliberadamente, as práticas extradiscursivas. Mais uma vez, estamos diante de uma faseologia ter- nária, em que a Renascença é sucedida pela época clássica e esta pela modernidade. Mas o leitor procuraria em vão, dentro de cada fase, interações entre o discurso da economia política e as novas formas de organização de trabalho introduzidas pela revolução tecnológica, ou entre o advento das ciências humanas e o advento do capitalismo. Tudo se passa no nível do discurso. Os objetos, conceitos e escolhas temáticas das diversas disciplinas são dados no espaço epistêmico formado pela interação de sistematicidades discursivas. O entrelaçamento de disciplinas como a gramática, a história natural e a teoria das riquezas constitui uma espécie de solo epistêmico no qual podem ou não aflorar determinados temas e objetos. As possibilidades ou impossibilidades epistê- micas a viabilidade ou não de temas como o evolucio- nismo ou a lei da renda da terra — são condicionadas por tendências objetivas no campo do discurso, e não por totalidades sócio-culturais nas quais as práticas discursivas alternam com as práticas extradiscursivas, ou as práticas investidas em instituições, como na história da loucura e da clínica. O tema do homem não constitui uma
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exceção. O homem começou a ser pensado como objeto para o saber no momento em que o espaço plano do período clássico, regido pela categoria da representação, passou a ser erodido pela historicidade, categoria central da episteme moderna: o homem surgiu na brecha epis- temológica que se formou com o fim da apresentação e o advento da história. Em outras palavras: o homem é um acidente na trajetória do Discurso, e poderá desaparecer quando se modificar a disposição epistemológica que o engendrou. Não é outro o sentido da fórmula da morte do homem”, pedra de escândalo da consciência antropológica vulgar. Essa fase da obra de Foucault pode ser caracterizada como a da intransitividade consciente.
Enfim, o discurso da Arqueologia. Ê uma reflexão metodológica sôbre as práticas descritivas do próprio Foucault — tanto a transitiva, como na história da loucura e da medicina, como a intransitiva, característica de Les Mots et les Choses. É o momento da codificação. Mas também o da síntese. Nesse livro, Foucault unifica num grande Organon programático a metodologia da transitividade e a metodologia da análise discursiva pura. Num certo sentido, é uma resposta aos críticos, especialmente marxistas, que o acusavam de praticar uma historiografia fantasmagórica, em que o discurso era sujeito e objeto de si mesmo. Mais profundamente, é um desenvolvimento lógico de sua obra anterior. Reaparecem, em sua tranquilizadora materialidade, as classes e as instituições, como na fase transitiva, mas “despresen- tificados” , reduzidos ao pré-discursivo, e portanto funcionando ainda no nível do discursivo. Estamos num universo ao mesmo tempo familiar — as coisas existem e desconhecido — não são as mesmas coisas de que falamos no discurso cotidiano. De qualquer forma, as coisas e as palavras estão presentes; com mais propriedade que no livro anterior, a Archéologie poderia denominar-se Les Mots et les Choses.
O discurso é, portanto, a matéria de Foucault. Discurso movendo-se livremente numa configuração total, como na história da loucura e da medicina; discurso imperialista e excludente, como em Les Mots et les Chosc-S; e discurso controlado, co-existindo com o não (pré-discursivo no interior de um corpus normativo, como na Arqueologia.
Essa presença do discurso no coração da obra <lr Foucault pode e deve ser interpretada em têrmos da pi o-
blomática interna dessa obra. Em têrmos propriamente científicos. B o que pretendem os textos incluídos nesta antologia. Mas êsse exame interno não é incompatível com um exame do discurso de Foucault a partir de seus limites exteriores. Investigando a zona limítrofe em que o discursivo em Foucault se articula com o não-discursi- vo. Seguindo, de certa forma, o método do próprio Foucault em suas primeiras reflexões sôbre a medicina e a loucura, num zigue-zague livre entre as formações discursivas e as não-discursivas.
Dêsse ponto de vista, podemos dizer que o funcionamento do discurso na obra de Foucault é em suas grandes linhas homólogo ao seu funcionamento na sociedade industrial moderna. Êsse funcionamento comporta dois aspectos, superficialmente contraditórios mas na verdade solidários: a onipotência do discurso, e a sua fragilidade.
Onipotência do discurso: é talvez a dimensão essencial da modernidade. Todos os críticos de nossa época, marxistas ou liberais, vêem na onipresença das estruturas discursivas a característica central do mundo contemporâneo. Presença audio-visual do discurso na imprensa fa lada e escrita; presença do discurso na propaganda política; presença do discurso nos textos e imagens publicitárias. Discurso em vários níveis. No nível do factual, ou supostamente factual; no nível da mentira consciente; no nível da produção mitopaica subliminar. Como o discurso dos rapsodos, o discurso dos mass media é um irresistível veiculador de mitos. Discurso ideológico,'enfim, no nível do factual: a verdade funcionando como ideologia, o discurso verídico que aliena o seu destinatário na exata medida em que é verídico. A ideologia que pode dar-se ao luxo de aparecer sob a máscara da verdade: a mentira que não precisa mais mentir. Nesse universo, o discurso funciona como um sistema abrangente. Uma espécie de pesadelo saussuriano em que a “língua”— com suas leis e suas normatividades co ator as — tivesse extravasado de seu domínio específico de validade para ocupar a totalidade do espaço social É o universo de Foucault. Nesse sentido, êsse sutil modelador de estruturas epistêmicas nada mais faz que descrever realidades cotidianas visíveis a ôlho nu. Foucault descreve o que vê quando substitui o sujeito por um somatório das posições gnoseológicas possíveis do sujeito; quando dissolve os conceitos nas regras para a formação de concei
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tos; e quando põe de lado as práticas humanas em sua descrição do mecanismo de apropriação temática de determinados discursos, enxergando nesse mecanismo um conjunto de normas inerentes ao próprio discurso. Foucault não inventa um mundo sem sujeitos: descreve, rea- listicamente, um mundo em que o sujeito já foi, ou está sendo, submergido pelo discurso. Seria ingênuo ver nessa expulsão do homem e da vida em benefício de um discurso antropofágico uma ideologia idealista, segundo os cacoetes mentais de um marxismo preguiçoso. Quando a ideologia é co-extensa com o real, descrever o real já é expor a ideologia. O desmascaramento, em Foucault, não é praticado a partir de um lugar epistemológico privilegiado, livre do contágio das estruturas discursivas dominantes, mas pela inserção visceral nessas estruturas: des- crevê-las já é começar a roê-las por dentro. Nesse sentido, a denúncia do antropologismo tradicional é um gesto político. Porque êsse antropologismo, fundado direta ou indiretamente no idealismo transcendental do sujeito, e confundido ética com ciência, humanismo com saber, é radicalmente incompetente para pensar a modernidade. Em Les Mots et les Choses} Foucault diz que só com a destruição do quadrilátero antropológico o homem poderá liberar um espaço mental em que a reflexão se torne de nôvo possível. Essa formulação é talvez extremada; mas é certo que sem uma distinção nítida entre o humanismo e a ciência do homem, que relegue ao bas-fond do espírito o antropologismo epigônico de nosso tempo, não será possível refletir validamente sôbre o mundo nem forjar os instrumentos para sua contestação.
A essa ubiquidade do discurso no mundo contemporâneo — e em Foucault — podemos opor uma inexplicável vulnerabilidade do discurso. O discurso é aquilo que domina o homem com uma normatividade despótica; mas é também aquilo que deve ser excluído ou reduzido ao silêncio. Ambivalência análoga em seu mecanismo à ambivalência afetiva que Freud identifica na relação com a autoridade paterna e Frázer na relação do primitivo com o rei: misto de reverência e antagonismo, de submissão e revolta, de amor e ódio. O discurso é ao mesmo tempo soberano e prisioneiro. Aquilo ao qual o homem cede, que o conduz em sua superfície translúcida, que age e pensa por êle, que dita os enunciados necessários e autoriza os enunciados possíveis. Mas também a exterio- ridade selvagem que precisa ser dominada por sistema
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(le interditos e domesticada por fórmulas de legitimação, a fim de conjurar sua imprevisibilidade e fixá-la numa ordem. Êsse segundo aspecto do discurso — sua vulnerabilidade — é tão característico do mundo moderno quanto o primeiro. A modernidade é atravessada de ponta a ponta por estruturas discursivas — mas não por qualquer discurso. Nesse universo aparentemente dominado pelo discurso, não é possível falar de qualquer coisa, nem atribuir a qualquer um o terrível poder de enunciar. É um mundo dominado por um duplo interdito: quanto ao objeto e quanto ao sujeito do enunciado.
A obra de Foucault reflete êsse sistema de interdições. A antinomia mais fundamental é a que opõe o discurso da loucura ao discurso da razão. Essa oposição, relativamente fluída na Renascença, surge com nitidez no período clássico e adquire contornos definitivos no século XIX. De um lado, existe o discurso da Ordem, definida em têrmos econômicos, sociais, políticos, morais; do outro, o discurso da Desordem. Desordem que no século X V II abrangia não somente a loucura como tôdas as modalidades de comportamento anti-social. A loucura era a marginalia da razão clássica. A razão se definindo no momento em que define os seus limites exteriores. Com o mesmo gesto de partilha com que separa o discurso normal e o psicopatológico, a razão clássica desenhava o seu próprio perfil, correlativa do perfil do Outro. Os monstros da Desordem são produzidos não pelo sono da Razão, como Goya imaginava, mas por sua implacável vigilância e sua produtividade metódica. É no momento em que produz sua teratologia que a razão produz sua normalidade. O reino da ordem é instaurado por um gesto ao mesmo tempo inaugural e de degrêdo.
É na descrição dêsse duplo movimento que Foucault captura a modernidade em uma de suas dimensões mais trágicas. O gesto instaurador é sempre solidário de um gesto de segregação. Em têrmos sociais mais amplos, talvez essa dicotomia sempre tenha existido. Cada discurso tem a sua patologia, que é o discurso periférico, banido pelo discurso hegemônico. Mas é na sociedade moderna, sobretudo em sua variedade tecnocrática, que o fenômeno se verifica de forma mais agônica. A razão tec- noerática só pode funcionar expulsando para os confins da Ordem os discursos que não podem ser assimilados pela racionalidade vigente. O paradoxo da dinâmica tecnocrática é que ela se define pelos discursos alternativos,
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que, no entanto, precisam ser expulsos. Êsses discursos vão sendo pouco a pouco silenciados, até que o discurso tecnoerático possa ser enunciado sozinho. Ao contrário da natureza clássica, a tecnocracia é movida pela fames vacui. Ê um discurso necrófilo, que só pode prosperar num universo exangue. Num primeiro momento, a razão tecnocrática limita-se a degredar para o limbo do discurso a sua demonologia: os discursos reivindi- catórios, que interferem com a racionalidade das decisões econômicas; os discursos civis, que interferem com a racionalidade das decisões militares; os discursos partidários, que interferem com a racionalidade do modêlo político. Com o tempo, êsses demônios vão desaparecendo: a ratio tecnocrática se implanta sozinha na polis. É o triunfo do discurso da Razão. E a mudez — quem sabe provisória — do discurso da loucura.
Ê nesse sentido — enquanto reflexo da supremacia do discurso, e índice da fragilidade de certos discursos diante da agressividade das práticas extradiscursivas investidas em discursos antagônicos — que a obra de Foucault é plenamente moderna. O leitor tirará suas próprias conclusões quanto à novidade da contribuição de Foucault para a renovação da reflexão sôbre o homem. O material contido nesta coletânea é suficiente para ajudá-lo nessa tarefa. Uma coisa, porém, é certa: essa obra é plenamente representativa de nosso tempo. O que nos leva, em última análise, a uma conclusão otimista. Se a mobilidade é a lei das epistemes, não há configurações teóricas ou práticas absolutamente petrificadas. A derrota da loucura não precisa ser definitiva. A Narren- shiff — nave dos doidos — está silenciosa, mas continua navegando. Um dia, talvez os monstros de Bosch ressur- jam. Os guizos de Yorick ressoarão novamente, para ensinamento dos reis e dos povos. E a loucura reassumirá o seu papel pedagógico de castigar o desregramen- to, transformando em animais de um bestiário irônico os que tentaram perverter a essência do homem.
Êste volume foi preparado por um dos mais competentes ensaístas do nôvo Brasil: Sérgio Paulo Rouanet. A êle, Tempo Brasileiro agradece mais esta valiosa colaboração.
tb
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Entrevista com Michel FoucaultP or Sergio Paulo Rouanet
e José Gu ilherm e Merquior
S.P .R. — Sua obra comporta, essencialmente, dois momentos: um momento empirico-des- critivo (Naissance de la Clinique, Histoire de la Folie, Les Mots et les Choses) e um momento de reflcocão metodológica ( L ’Archéologie du Savoir). Depois do trabalho de codificação e sistematização da Archéologie, pretende voltar à descrição de zonas especializadas do saber ?
KOUCAULT — Sim. Pretendo agora alternar as pesquisas descritivas com as análises de tipo teórico. Podemos dizer que para mim a Archéologie não era nem completamente uma teoria, nem completamente uma metodologia. Talvez seja êste o defeito do livro; mas eu não podia deixar de escrevê-lo. Não é uma teoria na medida, por exemplo, em que eu não sistematizei as relações entre as formações discursivas e as formações sociais e econômicas, cuja importância foi estabelecida pelo marxismo de uma forma incontestável. Essas relações foram deixadas na sombra. Seria preciso elaborar tais relações, para construir uma teoria. Além disso, deixei de lado, na Archéologie, os problemas puramente metodológicos. Isto é : como trabalhar com êsses instrumentos? É possível fazer a análise dessas formações discursivas? A
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semântica tem alguma utilidade? As análises quantitativas, como as praticadas pelos historiadores, servem para alguma coisa? Podemos então perguntar o que é a Archéologie, se não é nem uma teoria nem uma metodologia. Minha resposta é que é alguma coisa como a designação de um objeto: uma tentativa de identificar o nível no qual precisava situar-me para fazer surgir êsses objetos que eu tinha manipulado durante muito tempo sem saber sequer que êles existiam, e portanto sem poder no- meá-los. Ao escrever a Histoire de la Folie ou a Naissance de la Clinique, eu julgava, no fundo, estar fazendo a história das ciências. Ciências imperfeitas, como a psicologia, ciências flutuantes, como as ciências médicas ou químicas, mas ainda assim história das ciências. Pensava que as particularidades que encontrava estavam no próprio material estudado, e não na especificidade do meu ponto de vista. Ora, em Les Mots et les Choses compreendi que independentemente da história tradicional das ciências, um outro método era possível, que era uma certa maneira de considerar não tanto o conteúdo da ciência como a sua própria existência: uma certa maneira de interrogar os fatos, que me fêz perceber que numa cultura como a do Ocidente a prática científica tem uma emergência histórica, comporta uma existência e um desenvolvimento histórico, e seguiu um certo número de linhas de transformação independentemente, até certo ponto, de seu conteúdo. Era preciso, deixando de la-
Q texto foi submetido a Foucault, que não pôde, entretanto, corrigi-lo. Foucault não tem, por- tanto> nenhuma responsabilidade por seu conteúdo,
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do o problema do conteúdo e da organização formal da ciência, pesquisar as razões pelas quais a ciência existiu ou uma determinada ciência começou, num momento dado, a existir e assumir um certo número de funções em nossa sociedade. Foi êsse ponto de vista que tentei definir na Archéologie du Savoir. Tratava-se, em suma, de definir o nível particular ao qual o analista deve colocar- -se para fazer aparecer a existência do discurso científico e seu funcionamento na sociedade.
J .G.M. Podemos então dizer que se fruta da análise de Les Mots et les Choses, mas a nível reflexivo?
KOUCAULT — Exatamente. Digamos que na Histoire de la Folie e na Naissance de la Clinique eu ainda era cego para o que fazia. Em Les Mots et les Choses, um ôlho estava aberto e o outro, fechado: donde o caráter um pouco trôpego do livro, num certo sentido teórico demais, e em outro sentido insuficientemente teórico. Enfim, na Archéologie, tentei precisar o lugar exato de onde eu falava.
S . P . R . —- Isto explica sem dúvida algumas das diferenças mais sensíveis entre o método seguido em La Naissance de la Clinique e UHistoire de la Folie, por um lado, e Les Mots et les Choses, por outro lado, e também algumas particularidades da Archéologie. Nos dois primeiros livros, o discurso é bastante permeável às práticas sociais ( extmdiscursivas) que ocupam neles um lugar muito importante; em Les Mots et les Choses, essas práticas desaparecera quase completamente, para renascer na Archéologie, sob um modo reflexivo, mas redefinidas como práticas pré-discursivas. podemos portanto isolarf de sua trajetória até agora, três vias possíveis: ou uma livre
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circulação do discurso às práticas sociais, e reciprocamente, sem nenhum a priori metodológico muito rígido; ou a colocação entre parênteses dessas práticas, para concentrar a descrição no pl^‘ no exclusivo do discurso; ou enfim a incorporação dessas práticas à análise, segundo um método rigoroso, mas udes- presentificadas” e reduzidas ao pré-dis- cursivo, e portanto funcionando ainda no nível do discurso. Seus trabalhos fu~ turos seguirão sem dúvida êsse último caminho. Mas nesse caso, como articular os dois planos — o discursivo e o ex- tradiscursivo — mesmo se êste último é apresentado como pré-discursivo?
FO UC AULT — Alegro-me com essa pergunta. Ê em torno dela, com efeito, que se cristalizam as principais críticas e objeções que foram feitas ao meu trabalho. N a Histoire de la Folie e em La Naissance de la Clinique eu estava diante de um material muito singular. Tratava-se de discursos científicos cuja organização, aparelho teórico, campo conceituai e sistematici- dade interna eram bastante fracos. Muito fracos mesmo, no caso da psicopatolo- gia, que nos séculos X V II e X V III era constituída por um certo número de noções pouco elaboradas e que mesmo no século X IX só foram elaboradas de forma indireta e sôbre o modêlo da medicina propriamente dita. Não se pode dizer que o discurso psicopatológico europeu até Freud tenha comportado um nível de cientificidade muito elevado. Em compensação, todos os contextos institucionais, sociais e econômicos dêsse discurso eram importantes. Ê evidente que a maneira de internar os loucos, de diagnosticá-los, de medicá-los, de excluí-los da sociedade ou incluí-los num local de internamento, era tributário de estruturas sociais, de condições econômicas,
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tais como o desemprego, as necessidades de mão-de-obra, etc. No fundo, era um pouco tudo isto que tinha me seduzido no tema. Os esforços feitos por certos historiadores da ciência, de inspiração marxista, para localigar a gênese social da geometria ou do cálculo das probabilidades no século XVII, tinham me impressionado muito. Era um trabalho ingrato; os materiais eram muito difíceis. É muito difícil empreender a análise das relações entre o saber e a sociedade a partir dêsse gênero de problemas. Em compensação, existe um complexo institucional considerável, e bem evidente, no caso de um discurso com pretensões científicas, como o da psicopatologia. Era tentador analisar êsse discurso, e foi o que tentei fazer. Prossegui, em seguida, as minhas pesquisas no campo da medicina em geral, achando que tinha escolhido um exemplo fácil demais no campo da psicopatologia, cujo aparelho científico era demasiado fraco. Tentei, a propósito do nascimento da anátomo e fisiopatologia, que são, afina), ciências verdadeiras, identificar o sistema institucional, e o conjunto das práticas econômicas e sociais, que tornaram possível, numa sociedade como a nossa, uma medicina que é, apesar de tudo, e quaisquer que sejam as ressalvas possíveis, uma medicina científica. Acrescentarei, sem qualquer polêmica, que nenhuma das críticas marxistas feitas a Les Mots et les Choses por seu caráter pretensa- mente anti-histórico, mencionaram sequer as tentativas que eu havia feito a propósito da psicopatologia ou da medicina. Les Mots et les Choses responde a dois problemas particulares que se apresentaram a partir da problemática suscitada pela Naissance de la Clinique. O primeiro é o seguinte: podemos observar, em práticas científicas perfeitamente
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estranhas uma à outra, e sem qualquer comunicação direta, transformações que se produzem ao mesmo tempo, segundo a mesma forma geral, no mesmo sentido. É um problema muito curioso. Em seu último livro, consagrado à história da genética, François Jacob assinalou um fenômeno dêsse gênero: o aparecimento, no meio do século XIX, de duas teorias, uma biológica e outra física, que recorrem em geral ao mesmo tipo de organização e sistematicidade. Eram as teorias de Darwin e Bolzmann. Darwin foi o primeiro a tratar os sêres vivos ao nível da população, e não mais ao nível da individualidade; o Bolzmann começou a tratar as partículas físicas não mais como individualidades, como ao nível do fenômeno população, isto é, como séries de eventualidades estatisticamente mensuráveis. Ora, entre Darwin e Bolzmann, é evidente que não havia nenhuma relação direta: os dois ignoravam a existência um do outro. Aliás essa relação, hoje evidente, e que constitui uma das grandes encruzilhadas da ciência do século XIX, não podia realmente ser percebida pelos contemporâneos. Como é possível que dois acontecimentos, remotos na ordem da consciência, tenham podido produzir-se simultaneamente e aparecer tão próximos, para nós, na ordem das configurações epistemológicas em geral? Eu já tinha encontrado precisamente êsse problema na medicina clínica. Por exemplo, é quase no mesmo momento e em condições muito parecidas que aparecem a química, com Lavoisier, e a anátomo-fisiologia, e no entanto é somente mais tarde, por volta de 1820, que as duas ciências se encontrarão. Ora, elas nasceram mais ou menos na mesma época e constituíram, cada uma em seu domínio, revoluções mais ou menos análogas. Eis aí o pri
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meiro problema — o das simultaneida- des epistemológicas. O segundo problema foi o seguinte: pareceu-me que as condições econômicas e sociais que servem de contexto ao aparecimento de uma ciência, ao seu desenvolvimento e ao seu funcionamento, não se traduzem na própria ciência sob a forma de discurso científico, como um desejo, uma necessidade ou um impulso podem se traduzir no discurso de um indivíduo ou em seu comportamento. Os conceitos científicos não exprimem as condições econômicas nos quais surgiram. É evidente, por exemplo, que a noção de tecido ou a noção de lesão orgânica nada têm a ver — se o problema se coloca em têr- mos de expressão — com a situação do desemprêgo na França em fins do século XVIII. E no entanto é igualmente evidente que foram essas condições econômicas, como o desemprêgo, que suscitaram o aparecimento de um certo tipo de hospitalização, a qual permitiu um certo número de observações, que a seu turno provocaram um certo número de hipóteses, e finalmente surgiu a idéia da lesão do tecido, fundamental na história da clínica. Por conseguinte, o vínculo entre as formações econômicas e sociais pré-discursivas e o que aparece no interior das formações discursivas é muito mais complexo que o da expressão pura e simples, em geral o único aceito pela maioria dos historiadores marxistas. Em que, por exemplo, a teoria evolucio- nista exprime êste ou aquêle interêsse da burguesia, ou esta ou aquela esperança da Europa? Mas se o vínculo existente entre as formações não-discursivas e o conteúdo das formações discursivas não é do tipo “expressivo”, que vínculo é êsse? O que se passa entre os dois níveis — entre aquilo do que se fala, sua base, se quiserem — e êsse estado ter
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minai que constitui o discurso científico? Pareceu-me que êsse vínculo deveria ser procurado ao nível da constituição, para uma ciência que nasce, os seus objetos possíveis. O que torna possível uma ciência, nas formações pré-discursivas, é a emergência de um certo número de objetos que poderão tomar-se objetos de ciência; é a maneira pela qual o sujeito do discurso científico se situa; é a modalidade de formação dos conceitos. Em suma, são tôdas essas regras, definindo os objetos possíveis, as posições do sujeito em relação aos objetos, e a maneira de formar os conceitos, que nascem das formações pré-discursivas e são determinadas por elas. Ê somente a partir dessas regras que se poderá chegar ao estado terminal do discurso, que não exprime, portanto, essas condições, ainda que estas o determinem. Em Les Mots et les■ Choses tentei olhar de mais perto êsses dois problemas. Em primeiro lugar, o das simultaneidades epistemológicas. Tomei três domínios, muito diferentes, e entre os quais não houve nunca uma comunicação direta: a gramática, a história natural e a economia política. E tive a impressão de que êsses três domínios tinham sofrido em dois momentos precisos -— no meio do século X VII e no meio do século X V III — um conjunto de transformações semelhantes. Tentei identificar essas transformações. Ainda não resolvi o problema de localizar exatamente a raiz dessas transformações. Mas estou certo de uma coisa: essas transformações existem, e a tentativa de descobrir sua origem não é qui- mérica. Citei há pouco o livro de Fran- çois Jacob, que é o livro de um biólogo, interessado apenas na história da própria biologia. Ora, tudo o que êle diz sôbre a história da biologia nos séculosXVII, X V III e XIX, coincide exatamen
te, quanto às datas e os princípios gerais, com o que eu mesmo disse. E êle não tirava isto do meu livro, pois o dêle foi escrito antes de ter oportunidade de ler o meu. Achei interessante que essa análise comparativa das transformações, que poderia passar por delirante, na medida em que procurava relacionar disciplinas tão estranhas uma à outra, tenha sido confirmada pela análise interna de uma história precisa, a da biologia. Eis o primeiro problema. Quanto ao segundo, tentei apreender as transformações da gramática, da história natural e da economia política não ao nível das teorias e teses sustentadas, mas ao nível da maneira pela qual essas ciências constituíram os seus objetos, da maneira pela qual se formaram os seus conceitos, da maneira pela qual o sujeito cognoscente se situava em relação a êsse domínio de objetos. É isto que chamo o nível arqueológico da ciência, em oposição ao nível epistemológico. Neste último, tra- ta-se de descobrir a coerência teórica de um sistema científico num momento dado. A análise arqueológica é a análise da maneira — antes mesmo da aparição das estruturas epistemológicas, e por baixo dessas estruturas — pela qual os objetos são constituídos, os sujeitos se colocam, e os objetos se formam. Les Mots et les Choses é um livro em suspenso: em suspenso na medida em que não faço aparecerem as próprias práticas pré-discursivas. É no interior das práticas científicas que eu me coloco, para tentar descrever as regras para a constituição dos objetos, a formação dos conceitos, e as posições do sujeito. Por outro lado, a comparação que faço não leva a uma explicação. Mas nada disso me preocupa. Não escrevo um livro para que seja o último; escrevo um livro para
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que outros sejam possíveis — não ne- cessàriamente escritos por mim.
J . G. M. — É sua intenção ir além dessa análise que justamente ficou em suspenso em Les Mots et les Choses, em busca da raiz, ao nível arqueológico_, das transformações que se produziram nas três disciplinas?
FO UC AULT — Nesse ponto o meu embaraço não diminuiu desde que terminei Les Mots et les Choses. Alegro-me de ver que François Jacob encontrou a mesma dificuldade a propósito das relações entre Darwin e Bolzmann, que êle também não consegue explicar. Êle me fêz a pergunta, e só pude compartilhar o seu embaraço. Ficamos os dois surpresos com o fato de que o historiador da ciência não se interessa mais por êsse fenômeno. Quando o encontram, limitam-se a escamotear à dificuldade invocando o espírito da época, que quer que um determinado problema seja abordado num momento preciso, ou então observam, de passagem, que é um fenômeno curioso, mas sem importância. É melhor uma ignorância franca; prefiro dizer que não compreendo, mas que me esforço por compreender, a dar explicações como as baseadas no espírito da época. Em suma, dêsse ponto de vista meus progressos foram nulos. Em compensação vejo melhor agora, graçns às análises que empreendi em Les Mots et les Choses, como reajustar de forma mais exata a análise das práticas discursivas e das práticas extradiscursivas. N a Histoire de la Folie, por exemplo, ainda havia um certo número de temas “expressionistas”. Deixei-me seduzir
pela idéia de que a maneira de conceber a loucura exprimia um pouco uma espécie de repulsa social imediata em relação à loucura. Empreguei freqüentemente a palavra ‘ percepção: percebe-se
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a loucura. Essa percepção era para mim o vínculo entre uma prática real, que era essa reação social, e a maneira pela qual era elaborada a teoria média e científica. Hoje em dia, não creio mais nesse tipo de continuidade. É preciso re-examinar as coisas com maior rigor. Vou tentar fazer isto num domínio de teor científico muito fraco: a crimi- nologia. Vou tentar ver, a partir da definição jurídica do crime, e da maneira pela qual o crime foi isolado e sancionado, as práticas penais reais. Vou examinar, igualmente, como se formaram certos conceitos, uns claramente morais, e outros com pretensões científicas, como a noção de degenerescência, e como êsses conceitos funcionaram e continuam a funcionar em certos aspectos de nossa prática penal.
J .G.M. — Essa volta a um domínio em que o saber é pouco sistematizado ou tem um grau muito fraco de coerência epistemológica certamente se beneficiará de uma visão mais sistemática das relações entre o nível discursivo e o extradiscursivo.
I«'0UCAULT — Sem dúvida.
S . P . R . — Acredita o Sr. que com sua obra, e a de outros filósofos que se situam na mesma corrente de idéias, a filosofia tenha, por assim dizer, mudado de discurso, substituindo aos temas tradicionais da metafísica e da epistemologia temas relacionados com as práticas científicas, principalmente no domínio das ciências humanas?
FOUCAULT — Não creio que os que se interessam, como eu, pelos problemas da ciência — na França e em outros países — tenham realmente ampliado o tema da reflexão filosófica. Acredito mesmo o contrário:
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nós restringimos êsse campo. Creio que é a Hegel que devemos a maior expansão do campo dos objetos filosóficos. Hegel falou de estátuas góticas, de templos gregos, de velhas bandeiras. . . De tudo, em suma.
J . G . M . — Se o Sr. me permite um parênteses, não estamos dizendo que a filosofia atual tenha ampliado o domínio da reflexão filosófica; tem-se a impressão} pelo contrário, de uma orientação mais sóbria, mais modesta, por parte da filosofia.
FO UC A ULT — Certo. De Hegel a Sartre, o campo dos objetos filosóficos foi proliferante. Hegel, Schopenhauer e Sartre falaram, por exemplo, da sexualidade. Agora se verifica um estreitamento do campo filosófico. Uma espécie de deslocamento. O que havia de comum entre a filosofia de Hegel e de Sartre, e entre tôdas as tentativas de pensar a totalidade do concreto, é que todo êsse pensamento se articulava em tôrno do problema: “Como é possível que tudo isso aconteça a uma consciência, a um ego, a uma liberdade, a uma existência?” Ou, inversamente: “Como é possível que o ego, a consciência, o sujeito ou a liberdade tenham emergido no mundo da história, da biologia, da sexualidade, do desejo?”
J .G.M. — Em todo caso, os dois caminhos do idealismo.
FO UC AULT — Não diria o idealismo. Diria os dois caminhos da problemática do sujeito. A filosofia era a maneira de pensar as relações entre o mundo, a história, a biologia, por um lado, e os sujeitos, a existência, a liberdade, por outro lado. Hus- serl, que também falava sôbre tudo, e principalmente sôbre o problema da ciência, tentava igualmente responder a essa
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problemática do sujeito. O problema, para êle, era saber como é possível enraizar efetivamente, ao nível da evidência, da intuição pura e apodítica de um sujeito, uma ciência que se desenvolve segundo um certo número de princípios formais e até certo ponto vazios. Como a geometria, por exemplo, pôde prosseguir durante séculos essa corrida da fo rmalização pura, e ser, ao mesmo tempo, uma ciência pensável em cada um de seus pontos por um indivíduo susceptível de ter dessa ciência uma intuição apodítica? Como é possível que alguém, no grande elenco das proposições geométricas, possa isolar uma dessas proposições, percebê-la como verdadeira, e construir sôbre ela uma demonstração apodítica? Sôbre que intuição repousa êsse processo? É possível haver uma intuição puramente local e regional no interior de uma geometria propriamente formal, ou é preciso uma espécie de intuição que re- -efetua em sua totalidade o projeto da geometria, para que a certeza de uma verdade geométrica possa surgir em um ponto preciso do corpo das proposições e do tempo histórico dos geômetras que se sucedem uns aos outros? Era êsse o problema de Husserl: sempre, por conseguinte, o problema do sujeito e de suas conexões. Parece-me que o que caracteriza agora, mais que os chamados filósofos, um certo número de romancistas, pensadores, etc., é o fato de que para êles o problema do sujeito não se coloca mais, ou somente se coloca de uma forma extremamente derivada. A interrogação do filósofo não é mais saber como tudo isto é pensável, nem como o mundo pode ser vivido, experimentado, atravessado pelo sujeito. O problema é agora saber quais as condições impostas a um sujeito qualquer para que êle possa se introduzir, funcionar, servir de nó na
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rede sistemática do que nos rodeia. À partir daí, a descrição e a análise não mais terão como objeto o sujeito e suas relações com a humanidade e a forma, mas o modo de existência de certos objetos, como a ciência, que funcionam, se desenvolvem, se transformam, sem qualquer referência a algo como o fundamento intuitivo num sujeito. Os sujeitos sucessivos se limitam a entrar, por portas por assim dizer laterais, no interior de um sistema, que não somente se conserva desde um certo tempo, com sua sistematicidade própria e num certo sentido independente da consciência dos homens, mas tem uma existência igualmente própria, e independente da existência dêsse ou daquele sujeito. Desde o fira do século XIX, já se sabe que a matemática tem em si própria uma estrutura que não é simplesmente a reprodução ou sedimentação dos processos psicológicos reais: dir-se-ia, no tempo de Husserl, que se trata de uma transcendência da idealidade matemática em relação ao vivido da consciência. Mas a existência mesma da matemática — ou, de forma mais geral, a existência mesma das ciências — é a existência da linguagem, do discurso. Essa existência — hoje já se começa a perceber isto — não necessita de uma série de fundadores, que teriam produzido um certo número de transformações em virtude de suas descobertas, de seu gênio, de sua maneira de conceber as coisas. Ocorrem, simplesmente, transformações, que se passam aqui e ali, simultaneamente ou sucessivamente, transformações enigmaticamente homólogas e das quais ninguém é de fato o titular. É preciso portanto desapropriar a consciência humana não somente das formas de objetividade que garantem a verdade, mas das formas de historicidade nas quais o nosso devenir está apri-
sionado. Eis a pequena defasagem que nos separa da filosofia tradicional. Eu lhes dizia há pouco que essa maneira de ver não era exclusiva dos filósofos da ciência ou dos filósofos em geral. Tomem o exemplo de Blanchot, cuja obra consistiu em meditar sôbre a existência da literatura, da linguagem literária, do discurso literário, independentemente dos sujeitos nos quais êsse discurso se acha investido. Tôda a crítica de Blanchot consiste no fundo em mostrar como cada autor se coloca no interior de sua própria obra, e isto de uma forma tão radical que a obra tem que destruí-lo. É nela que o autor tem seu refúgio e seu lugar; é nela que êle habita; é ela que constitui sua pátria, e sem ela não teria, literalmente, existência. Mas essa existência que o artista tem em sua obra é tal que ela o leva, fatalmente, a perecer.
J . G . M . — O direito à morte. . .
FOUCAULT — Sim. É tôda essa rêde de pensamento que se pode encontrar em Bataille, em Blanchot, em obras propriamente literárias, na arte. Tudo isto anuncia atualmente uma espécie de pensamento em que o grande primado do sujeito, afirmado pela cultura Ocidental desde a Renascença, se vê contestado.
S . P . R . — Gostaria de fazer uma pergunta de outra ordem. Sabe-se que a teoria política tradicional sempre estêve centralizado no homem e na consciência. Com o desaparecimento da problemática do sujeito, estaria o pensamento político condenado a tornar-se uma reflexão acadêmica, e a prática política a converter-se numa empiria destituída de fundamentos teóricos? Se, por outra parte, o Sr. admite que a ação política é necessária, sôbre
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que deve fundar-se o engajamento político, se abandonarmos a concepção mi- lenarista — escatológica, se quiserem — do marxismo, tal como o descreve Les Mots et les Choses? Deveríamos renunciar a enraizar a política numa ciência? Enfim, na Archéologie, o Sr. diz que a algumas dessas perguntas “não há outra resposta que uma resposta política. Talvez seja preciso retomá-las, e de outro modo.” Isto significa que êsses problemas são insolúveis no contexto de uma reflexão puramente teórica? Ou uma teoria política “pós-arqueológica” é possível?
FO UC AULT — É uma pergunta difícil. Tenho a impressão, aliás, que são várias perguntas que se cruzam. Minhas formulações sôbre Marx suscitaram, com efeito, um certo número de reações, e não hesito em precisar o meu pensamento sôbre êsse tema. Talvez eu tenha querido dizer coisas demais nas poucas frases em que falei do marxismo. Em todo caso, há certas coisas que eu deveria ter dito mais claramente. Em minha opinião, Marx procedeu como muitos fundadores de ciências ou tipos de discurso: utilizou um conceito existente no interior de um discurso já constituído. A partir dêsse conceito, formou regras para êsse discurso já constituído, e o deslocou, transformando-o no fundamento de uma análise e de um tipo de discurso totalmente outro. Extraiu a noção de mais-valia diretamente das análises de Ricardo, onde ela era quase uma filigrana — nesse sentido Marx é um ricardiano — e baseou nesse conceito uma análise social e histórica que lhe permitiu definir os fundamentos, ou em todo caso as formas mais gerais da história da sociedade Ocidental e das sociedades industriais do século XIX. E que lhe permitiu, também, fundar um movimento revolucionário
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que continua vivo. Não creio que sacra- lizar a formação do marxismo ao ponto de querer salvar tudo da economia ricar- diana, a pretexto de que Marx dela se serviu para formular a noção de mais- -valia, seja uma boa maneira de homenagear Marx. Creio que a economia ri- cardiana pode ser criticada a partir do próprio Marx, em todo caso ao nível da economia política tal como ela funcionou desde o início do século X IX : a êsse nível, as análises de Ricardo podem ser retomadas e revistas, e a noção de mais- -valia não é necessàriamente um dos conceitos mais intocáveis. Se nos colocamos exclusivamente ao nível da economia política e de suas transformações, essa revisão não é um delito muito grave. Darwin, por exemplo, tirou certos conceitos — chave da teoria evolucionis- ta, que em suas principais articulações foi inteiramente confirmada pela genética, de domínios científicos hoje criticados ou abandonados. E não há nisso nada de grave. Era isso o que eu queria dizer quando afirmei que Marx se achava no século X IX como um peixe na água. Não vejo porque sacralizar Marx numa espécie de intemporalidade que lhe permitisse descolar-se de sua época e fundar uma ciência da história ela própria meta-histórica. Se é preciso falar do gênio de Marx — e acho que essa palavra não deve ser empregada na história da ciência — êsse gênio consistiu precisamente em comportar-se como um peixe na água no interior do século X IX : manipulando a economia política tal como havia sido efetivamente fundada, e tal como existia a partir de vários anos, Marx chegou a propor uma análise histórica das sociedades capitalistas que pode ainda ter sua validade, e a fundar um movimento revolucionário que é ainda o mais vivo hoje em dia.
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J . G . M . — Quanto às 'possibilidades de fundar uma ação política segura, na base de uma concepção teórica que explique cientificamente a realidade, é preciso, sem dúvida, levar Marx em consideração, mas também as análises ulteriores que ultrapassaram, de certa forma, a análise marxista do conhecimento.
FO UC A ULT — Certamente. Isto me parece evidente. E agora vou parecer muito reacionário: para que chamar de científica a prática marxista? Existem hoje na França algumas pessoas que consideram como incontestáveis duas proposições, ligadas entre si por um nexo um pouco obscuro: (1 ) o marxismo é uma ciência, e (2 ) a psicanálise é uma ciência. Essas duas proposições me deixam pensativo. Principalmente porque não consigo ter da ciência uma idéia tão elevada assim. Acho — e muitos cientistas concordariam comigo — que não se deve fazer da ciência uma idéia tão elevada a ponto de rotular como ciência algo de tão importante como o marxismo, ou tão interessante como a pisicanálise. No fundo, não existe uma ciência em si. Não existe uma idéia geral ou uma ordem geral que se possa intitular ciência, e que possa autenticar qualquer forma de discurso, desde que aceda à norma assim definida. A ciência não é um ideal que atravesse tôda a história, e que seria incamado sucessivamente, primeiro pela matemática, depois pela biologia, depois pelo marxismo e pela psicanálise. Precisamos livrar-nos de tôdas essas noções. A ciência não tem normatividade nem funciona efetivamente como ciência numa época dada, segundo um certo número de esquemas, modelos, valorizações e códigos, é um conjunto de discursos e práticas discursivas muito modestas, perfeitamente enfadonhas e cotidianas,
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que se repetem incessantemente. Existe um código dêsses discursos, existem normas para essas práticas, aos quais devem obedecer êsses discursos e práticas. Não há razão para se orgulhar disso; e os cientistas — eu lhes asseguro — não têm nenhum orgulho particular em saber que o que fazem é ciência. Êles o sabem, é tudo; e isto por uma espécie de comum acôrdo, que é a comunidade do código, e a partir do qual podem dizer: “Isso está provado, e aquilo não está.” E existem, lado a lado, outros tipos de discursos e práticas, cuja importância para nossa sociedade e para nossa história independe do estatuto de ciência que possam vir a receber.
J .G.M. — Mas em Les Mots et les Choses, o Sr.atribui, de qualquer forma, a algumas dessas práticas não-científicas um estatuto particular: o de contra-ciências.
KOUCAULT — Sim, contra-ciências humanas.
J .G.M. — Poderíamos atribuir ao marxismo essa mesma função?
KOUCAULT — Sim, não estou longe de concordar com isso. Acho que o marxismo, à psicanálise e a etnologia têm uma função crítica em relação ao que se convencionou chamar de ciências humanas, e nesse sentido são contra-ciências. Mas repito: são contra-ciências humanas. Não há nada no marxismo ou na psicanálise que nos autorize a chamá-los contra-ciências, se entendemos por ciências a matemática ou a física. Não, não vejo porque devamos chamar de ciências o marxismo e a psicanálise. Isto significaria impor a essas disciplinas condições tão duras e e tão exigentes que para u seu próprio bem seria preferível não chamá-las de ciências. E eis o paradoxo: os que
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reclamam o estatuto de ciências para a psicanálise e o marxismo manifestam ruidosamente o seu desprêzo pelas ciências positivas, como a química, a anatomia patológica ou a física teórica. Só escondem um pouco o seu desprezo em relação à matemática. Ora, de fato a sua atitude mostra que têm pela ciência um respeito e uma reverência de gina- sianos. Têm a impressão que se o marxismo fôsse uma ciência — e aqui êles pensam em algo tangível, como uma demonstração matemática — poderiam ter certeza de sua validade. Eu acuso essa gente de ter da ciência uma idéia mais alta do que ela merece, e de ter um secreto desprêzo pela psicanálise e pelo marxismo. Eu os acuso de insegurança. Ê por isso que reivindicam um estatuto que não é tão importante assim para aquelas disciplinas.
S . P . R . — Sempre em relação ao marxismo, gostaria de fazer outra pergunta. Quando o Sr. fala, em Les Mots et les Choses, no “binômio empírico-transccndental”, afirma que a fenomenologia e o marxismo são meras variantes dêsse movimento de pêndulo que leva necessariamente, seja ao positivismo, seja à escatologia. Por outra parte, o pensamento de Althusser é geralmente incluído entre os estrutur ralismos, muitas vêzes ao lado de sua própria obra. Considera o Sr. o marxismo althusseriano como uma superação da configuração cujos limites são o positivismo e a escatologia, ou acredita que êsse pensamento se situa no interior daquela configuração?
FO UC AULT — Inclino-me pelo primeiro têrmo da alternativa. A êsse respeito, devo fazer uma autocrítica. Quando falei do marxismo em Les Mots et les Choses, não precisei suficientemente o que queria dizer. Nesse livro, julguei ter deixado claro que
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estava fazendo uma análise histórica de um certo período, cujos limites eram aproximadamente 1650 e 1850, com pequenos prolongamentos que não iam além do fim do século XIX, e no domínio igualmente preciso constituído pelas ciências da linguagem, da vida e do trabalho. Quando falei do marxismo nesse livro, deveria ter dito, sabendo como êsse tema é super-valorizado, que se tratava do marxismo tal como funcionou na Europa até, no máximo, o início do século XX. Deveria também ter precisado — e reconheço que falhei nesse ponto — que se tratava da espécie de marxismo que se encontra num certo número de comentadores de Marx, como Engels. E que aliás também não está ausente em Marx. Quero referir-me a uma espécie de filosofia marxista que é, a meu ver, um acompanhamento ideológico das análises históricas e sociais de Marx, assim como de sua prática revolucionária, e que não constitui o cerne do marxismo, entendido como a análise da sociedade capitalista e o esquema de uma ação revolucionária nessa sociedade, Se é êste o núcleo do marxismo, então não foi do marxismo que falei, mas de uma espécie de humanismo marxista — um acompanhamento ideológico, uma música-de- -fundo filosófica.
J.G.M. — Empregando a expressão “Humanismo marxista”, sua crítica se inscreve automaticamente num domínio teórico que exclui Althusser.
FO UCAULT — Sim. Suponho que essa crítica pode valer ainda para autores como Garaudy, mas que não se aplica a intelectuais como Althusser.
J . G. M. — Queria agora fazer uma pergunta acerca da literatura, isto é, do estatuto da literatura cm Les Mots et les Choses.
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Seja a propósito de Cervantesf seja a propósito de Holderlin ou Mallarmé, o Sr. dá a entender que a literatura desempenha muitas vêzes um papel pioneiro na emergência das epistemes. E seu belo texto sôbre Blanchot desenvolve essa mesma idéia■ Está de acôrdo com essa interpretação?
FO UCAULT — No tocante a literatura, creio que em Les Mots et les Choses não é da mesma forma e no mesmo nível que falei de Mallarmé, por exemplo, e de D. Quixote. Quando falei de Mallarmé, quis assinalar êsse fenômeno de coincidência que já me interessara a propósito do século X VII e XVIII, e segundo o qual, na mesma época, domínios perfeitamente independentes e sem comunicação direta se transformam, e se transformam da mesma maneira. Mallarmé é contemporâneo de Saussure; fiquei impressionado pelo fato de que a problemática da linguagem, independentemente de seus significados, e considerada do ponto de vista exclusivo de suas estruturas internas, tenha aparecido em Saussure no fim do século XIX, mais ou menos no mesmo momento em que Mallarmé fundava uma literatura da pura linguagem, que domina ainda a nossa época. Quanto ao Quixote, é um pouco diferente. Devo confessar, de uma forma um pouco covarde, que não conheço muito bem o D. Quixote, ou pelo menos não conheço o pa- no-de-fundo da civilização hispânica sôbre o qual se funda o Quixote. N o fundo, meus comentários sôbre D. Quixote são uma espécie de pequeno teatro em que eu queria encenar primeiro o que narraria depois: um pouco como nessas representações teatrais em que se apresenta, antes da peça principal, uma pequena peça que guarda, com a peça principal, uma relação um pouco enigmática e um pouco lúdica de analogia, de repe-
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tição, de sarcasmo ou de contestação. Quis divertir-me em mostrar no Quixo- te essa espécie de decomposição do sistema de signos que se verifica na ciência em tôrno dos anos 1620 a 1650. Não tenho nenhuma convicção de que isto represente o fundo e a verdade do Qui- xote. Mas achei que se deixasse o personagem e o próprio texto falarem por si mesmos, poderia representar num certo sentido a pequena comédia dos signos e das coisas, que eu queria narrar, e que se desenrolou nos séculos X V II eXVIII. Por conseqüência, concedo sem dificuldade que haja erros em minha interpretação do Quixote. Ou antes, não concedo coisa alguma, porque não se trata de uma interpretação: é uni teatro lúdico, é o próprio D. Quixote que conta, no palco, a história que eu mesmo contarei depois. A única coisa que me justificaria é que o tema do livro me parece importante em D. Quixote. Ora, o tema do livro é o tema de Les Mots et les Choses■ O próprio título é a tradução de Words and Things, que foi o grande slogan moral, político, científico, e até religioso, da Inglaterra no início do século XVII. Foi também o grande slogan, não religioso, mas em todo caso científico, na França, Alemanha, Itália, na mesma época. Acredito que Words and Things é um dos grandes problemas do Quixote. É por isso que fiz D. Quixote representar, em Les Mots et les Choses, a sua pequena comédia.
J .G .M. — Podemos dizer, de qualquer maneira, que sua leitura do Quixote, haja ou não interpretação, está de acôrdo com certas pesquisas da estilística contemporânea, sobretudo no que se refere ao papel do cômico e à presença do livro no interior da obra. Mas vou agora fazer uma pergunta que nada tem a ver com a estética, e que se refere aos contextos institucio-
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nais de que se falou há pouco, isto é, êsse conjunto de práticas tanto mais importantes quanto os saberes a elas ligados eram mais fracamente articulados do ponto de vista de sua sistematicidade científica. Quero perguntar-lhe se pretende ocupar-se ainda de certos fenômenos mentais que não são habitualmente considerados como saberes, na perspectiva, por exemplo, de suas pesquisas sôbre a loucura. Mais precisamente: pensa o sr. estudar, sempre em relação às epistemes, que permanecem a sua preocupação principal, o domínio da experiência religiosa? Quero dizer com isso não a ideologia religiosa no sentido estrito, mas as experiências religiosas no sentido amplo. Estou pensando, por exemplo, no gênero de análises, muito empíricas mas muito interessantes, de um autor como Bakhtine, em sua obra como R&- belais ou Dostoievski, quando diz que 0 carnaval era uma forma de experiência religiosa, uma festa religiosa que foi visivelmente reduzida e “ domesticada" na época do nascimento da episteme clássica, isto é, na época dominada pela representação.
FO UC AULT — No fundo, sempre me interessei muito por êsse domínio que não pertence bem ao que se chama habitualmente de ciência, e se emprego o conceito de saber é para apreender êsses fenômenos que se articulam entre o que os historiadores chamam a mentalidade de uma época e a ciência propriamente dita. Há um fenômeno dêsse gênero pelo qual me interessei, e ao qual pretendo voltar um dia: a feitiçaria. Trata-se, em suma, de entender a maneira pela qual a feitiçaria — que afinal era um saber, com suas receitas, suas técnicas, sua forma de ensino e de transmissão — foi incorporada ao saber médico. E isto não como se diz em geral, qiíando se afirma que os
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médicos, por sua racionalidade e seu liberalismo, arrancaram os feiticeiros às garras dos inquisidores. A s coisas são muito mais complexas. Foi num certo sentido em conseqüência de uma necessidade, de uma certa cumplicidade, que a Igreja, o poder real, a magistratura, os próprios médicos, fizeram emergir a feitiçaria como domínio possível da ciência, isto é, fizeram do feiticeiro um doente mental. Não era uma libertação; era outra forma de captura. Onde antes havia simplesmente exclusão, processo, etc., o fenômeno foi inscrito no interior da episteme e tornou-se um campo de objetos possíveis. Há pouco nos perguntávamos como alguma coisa pode se tornar um objeto possível para a ciência. Eis um belo exemplo. A idéia de uma ciência da feitiçaria, de um conhecimento racional, positivo, da feitiçaria, era algo de rigorosamente impossível na Idade Média. E isto não porque se desprezasse a feitiçaria, ou em conseqüência do preconceito religioso. Era todo o sistema cultural do saber que excluía que a feitiçaria se tornasse um objeto para o saber. E eis que a partir dos séculos X V I e XVII, com a anuência da Igreja e mesmo a seu pedido, o feiticeiro se torna um objeto de conhecimento possível entre os médicos: pergunta-se ao médico se o feiticeiro é ou não doente. Tudo isso é muito interessante, e no quadro do que me proponho fazer.
J .G .M. — Para terminar: qual será o assunto principal de sua aula inaugural no Col- lège de France?
FOUCAULT — Essa pergunta me embaraça um pouco.Digamos que o ensino que pretendo dar êste ano é a elaboração teórica das noções que lancei na Archéologie du Savoir. Eu lhes dizia há pouco que tinha tentado determinar um nível de análises, um
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campo de objetos possíveis, mas que ainda não pude elaborar a teoria dessas análises. Ê justamente essa teoria que pretendo iniciar agora. Quanto à aula de abertura, repito que me sinto muito embaraçado, talvez por ser infenso a qualquer instituição. Não encontrei ainda, como objeto de meu discurso, senão o paradoxo de uma aula inaugural. A expressão é com efeito surpreendente. Pede-se a alguém que comece. Começar absolutamente, é algo que podemos fa zer se nos colocamos, pelo menos miticamente, na posição do aluno. Mas a inauguração, no estrito sentido do têrmo, só ocorre sôbre um fundo de ignorância, de inocência, de ingenuidade absolutamente primeira: podemos falar de inauguração se estamos diante de alguém que ainda não sabe nada, ou que não começou ainda nem a falar, nem a pensar, nem a saber. E no entanto, essa inauguração é uma aula. Ora, uma aula implica que se tenha atrás de si todo um conjunto de saberes, de discursos já constituídos. Creio que falarei sôbre êsse paradoxo.
(1) O texto definitivo da aula inaugurai, proferida semanas depois, se afasta bastante dêsse esquema. Já apareceu em livro, sob o título 'L’Ordre du Discours" (Paris — Gallimard,
1971).
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A Arqueologia e o SaberPor Dom inique Lecourt
Muito se tem escrito sôbre Les Mots et les Choses; o último livro de Foucault, UArchéologie du Savoirf não suscitou, porém, o mesmo zêlo entre os críticos.
Essa discreção deve sem dúvida ser atribuída à estranheza de uma obra que tem tudo para dar ao leitor uma impressão de mal-estar. Alguns chegarão frustrados à última página, com a sensação íntima de terem sido vítimas de um lôgro. “Sempre a mesma coisa, apesar das inovações verbais”, diriam êsses leitores; “não valia a pena, para uma simples mudança de vocabulário, escrever todo um volume.” Reação legítima, numa primeira leitura, porque depois da perplexidade provocada pela proliferação de novas palavras, o leitor se reencontra, graças aos infatigáveis ataques, cem vêzes repetidos, contra o “sujeito” e seus equivalentes, em terreno familiar: o universo de Foucault. Outros, terminada a leitura, suspenderão o julgamento e aguardarão o re3to: “Tudo é nôvo— não reconhecemos mais nada; mas nada ainda foi feito; vejamos como vai funcionar essa bateria de conceitos novos, e então nos pronunciaremos.” Êsse segundo grupo de leitores terá igualmente razão, pois o autor nos adverte várias vêzes de que a elaboração de novas categorias põe em risco o antigo edifício, e que retificações profundas devem ser feitas: a categoria de “ experiência”, utilizada na Histoire de la Folie, é posta em xeque, por implicar na restauração sub-reptícia de um “sujeito anônimo e geral da História” (pp. 27, 74) ; a noção decisiva de “olhar médico”, em tôrno da qual se articulava La Naissance de to Clinique, é repudiada. Se nos limitamos portanto ao mais óbvio, e mesmo ao explícito, não podemos deixar de pressentir uma real novidade dos conceitos através da luxu-
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riância do estilo, não obstante a dificuldade de confirmar êsse pressentimento, pois as novas análises ainda não apareceram e as antigas são evocadas de forma apenas alusiva.
Como se verifica, essas duas reações contraditórias colocam a mesma pergunta: “por que êsse livro?” Ê dessa pergunta que precisamos partir. É certo que o próprio Foucault fornece os elementos para uma resposta. O livro seria, segundo êle, a reflexão metódica e controlada sôbre o que tinha anteriormente sido feito às cegas. De fato, as referências, como vimos, não saem do círculo das obras precedentes. Além disso, o livro contém uma multiplicidade de normas metodológicas, e capítulos inteiros se apresentam como uma tentativa de codificar certas regras que, segundo o autor, teriam sido, no passado, tàcitamente aceitas e praticadas de forma caótica.
Mas essa explicação, obstinadamente sugerida pelo autor, nos parece insuficiente: a Archéologie tem outro alcance, e a problemática que suscita é de uma novidade genuina e radical. Como indício dessa novidade, basta lembrar uma ausência importante: a da noção de episteme, pedra angular do trabalho anterior, e eixo de tôdas as interpretações “estruturalistas” de Foucault. É óbvio que tal ausência não pode ser acidental. Pretendemos, portanto, levar a sério o paradoxo de um livro que se apresenta como uma reflexão metódica sôbre livros anteriores, ao mesmo tempo que omite a espinha dorsal dêsses livros. Ê nesse paradoxo que reside todo o inte- rêsse do trabalho; dêle derivam duas perguntas: que significa essa insistência em acentuar uma continuidade que, manifestamente, não é perfeita? e que novidade se introduz, que força ao abandono da noção central de episteme f
Essas duas perguntas comportam uma resposta única: é o abandono que explica a insistência. Em outras palavras: Foucault sente a necessidade de abdicar de uma categoria essencial de sua filosofia, mas tal abandono não deve ser interpretado como uma passagem para o campo dos adversários; a categoria de episteme tinha uma grande validade polêmica contra tôdas as teorias “humanistas” e “antropologistas” do conhecimento e da história, e Foucault hesita em abrir mão dessa arma. E no entanto a noção de episteme, que descrevia as “configurações do saber” como grandes superfícies obedecen
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do a leis estruturais específicas, levava, inexoràvelmente, a pensar a história das formações ideológicas como “mutações” bruscas, “rupturas” enigmáticas, “fraturas” súbitas. Ê com êsse tipo de história — por razões que examinaremos mais tarde — que Foucault pretende agora romper. A Archéologie exprime êsse divórcio. Foucault deseja libertar-se dos aspectos “ estruturalistas” da episteme, sem por isso aceitar os pressupostos humanistas que sempre combateu. A operação é perigosa, e exigia um livro; sua complexidade explica o mal-estar dos leitores c a discreção dos críticos: não encontram mais, na Archéologie, o seu Foucault, como desbravador bem comportado de estruturas epistêmicas. Pior ainda: vêem a História renascer; não a sua história, mas uma história insólita, que recusa tanto a continuidade do sujeito quanto a ãescontinuiãade estrutural das rupturas.
A nosso ver, os críticos têm razão. Seu receio é justificado, pois o conceito de história que funciona na A rchéologie tem consonâncias comuns com outro conceito de história que têm excelentes motivos para detestar: o conceito científico de história, tal como aparece no materia- lismo histórico. O conceito de uma história que também se apresenta como um processo sem sujeito, estruturado por um sistema de leis. Conceito, por isso mesmo, radicalmente anti-antropologista, anti-humanista e anti-estru- turalista.
A Archéologie du Savoir representaria, portanto, uma reviravolta decisiva na obra de Foucault. Pretendemos mostrar que sua nova posição o conduz a realizar um certo número de análises de grande riqueza do ponto de vista do materialismo histórico; que reproduz, transpostos em sua própria linguagem, conceitos que funcionam na ciência marxista da história; e enfim que as dificuldades que encontra, assim como o fracasso relativo a que é levado, somente podem encontrar solução no campo do materialismo histórico.
D A AR Q UEO LO GIA AO SABER
Contra o Sujeito
Podemos dizer que tôda a parte “crítica” da Archéologie du Savoir se inscreve na continuidade do trabalho precedente. Se não tem mais os mesmos aliados, Foucault tem ainda os mesmos adversários. Mas as polêmi
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cas se enriquecem, se aprofundam, e fazem brotar solida- riedades conceituais que até êsse momento não se tinham manifestado. Ê assim que seus ataques contra a categoria de sujeito estão agora associados a investidas contra o continuismo em história.
Eis sua resposta aos seus críticos humanistas neo- -hegelianos a propósito de Les Mots et les Choses: “O que se deplora tanto, não é o desaparecimento da história, e sim o desaparecimento dessa forma de história referida secreta mas inequivocamente à atividade sintética do sujeito”. Lugar de eleição, e álibi perfeito do an- tropologismo: não há melhor maneira de combater a história que desfraldar a bandeira da história.
Exemplo: a Archéologie contém uma polêmica implacável contra uma disciplina atualmente em voga: a “história das idéias”. Foucault mostra que essa disciplina repousa sôbre um postulado antropolcgista que a obriga a ser ostensiva ou disfarçadamente eontinuista. A “história das idéias”, segundo êle, desempenha dois papéis: por uma parte, “ contra a história do marginal e do colateral. Não a história das ciências, mas a dos conhecimentos imperfeitos,.mal fundados, que não conseguiram nunca, no curso de uma vida obstinada, atingir a forma da cientificidade.” Seguem-se os exemplos: alquimia, fre- nologia, teorias atomísticas. . . Em suma, é a disciplina das linguagens flutuantes, das obras informes, dos temas soltos.” Por outro lado, entretanto, a história das idéias pretende atravessar as disciplinas existentes, processá-las e reinterpretá-las. Descreve a difusão de um saber científico da ciência para a filosofia, e para a própria literatura. Nesse sentido, seus postulados são: “a gênese, a continuidade, a totalização.” (p. 181). Gênese: tôdas as “regiões” do saber são referidas, como sua origem, à unidade de um sujeito individual ou coletivo. Continuidade: a unidade da origem tem como correlato necessário a homogeneidade do desenvolvimento. Totalização: a unidade da origem tem como correlato necessário a homogeneidade das partes. Tudo é coerente, mas não pode, segundo Foucault, produzir uma história verdadeira.
Nova frente de ataque: qualquer teoria do reflexo, na medida em que enxerga no “discurso” a superfície de projeção simbólica de acontecimentos ou processos situados no exterior, na medida em que procura “descobrir um
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encadeamento causai descritível ponto por ponto, permitindo correlacionar uma descoberta e um acontecimento, ou um conceito e uma estrutura social”, na medida, em suma, em que repousa sôbre um fundamento “ empirista” nu “sensualista”, qualquer teoria do reflexo, assim definida, pressupõe como “ponto fixo” a categoria do sujeito, e é suspeita, desde o início, de antropologismo (p. 215). Mais surpreendente ainda: a categoria de autor, que no entanto parece bastante concreta e evidente, é rejeitada. O autor é simplesmente a qualificação literária, científica ou filosófica de um “sujeito” definido como “criador.” O “ livro” , portanto, é uma unidade construída ingênua c arbitràriamente, que nos é imposta, de forma imediata e irreflexiva, pelas ilusões da geometria, pelas regras da impressão e por uma tradição literária suspeita. O “livro” deve, pois, ser considerado não como a projeção literal e mais ou menos racionalizada de um sujeito portador e instaurador de sentido, mas como um “nó numa rêde” , (p. 34). Sua existência real — não sua aparência imediata —- depende do “sistema de interações” que nêle se cristalizam. “E êsse jôgo de interações não é homólogo, mas varia conforme se trate de uma obra de matemática, de um comentário de textos, de uma narrativa histórica, ou do episódio de um ciclo romanesco”.
Contra o Objeto
Atenção: aqui aparece, ao sabor de um exemplo, o mais nôvo na Archéologie du Savoir: a poiêmica antiga, voltada contra o sujeito, assume uma nova forma, voltando-se contra a categoria correlativa do objeto.
Ê assim que tomam corpo as retificações críticas — várias vêzes retomadas — contra certos temas da epis- temologia de Bachelard. Tudo se concentra em tôrno das noções de “ruptura”, “obstáculo”, “ato epistemoló- gico” . Foucault descobre a solidariedade entre a categoria filosófica de “objeto” e o ponto de vista descritivo da "ruptura” em história: é porque se compara uma ideologia a uma ciência do ponto de vista de seus objetos que se observa entre elas uma ruptura (ou corte), mas êsse ponto de vista é estreitamente descritivo, e não explica nada. Pior: como era de prever, a categoria de objeto traz consigo o seu correlato: o sujeito. A epistemologia bachelardiana é um bom exemplo dêsse processo: a noção de ruptura epistemológica exige que aquilo com o
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qual se rompe seja pensado como um “obstáculo” epistemológico. Mas de que forma Bachelard propõe pensar os obstáculos? Como a intervenção de imagens na prática científica. Foucault pode portanto afirmar que o par ob- jeto-ruptura não é senão a figura invertida, mas idêntica no fundo, do binômio sujeito-continuidade; a epistemo- logia de Bachelard é, portanto, uma antropologia camuflada. A “psicanálise do conhecimento objetivo” marca os limites dessa epistemologia, seu ponto de inconsequên- cia; o ponto em que outros princípios são necessários para explicar o que ela descreve: sem dúvida, e nisto reside o grande mérito de Bachelard, uma ciência só pode se formar em ruptura com “um tecido de erros tenazes” , que a precede e obstaculiza, mas referir-se à “libido” do cientista para explicar a formação dêsse tecido, significa aderir ainda à noção do sujeito, e mesmo, no limite, admitir que a cientificidade pode ser estabelecida por decisão voluntária do (ou dos) cientistas. Para Foucault, é preciso partir do que foi descrito por Bachelard, abandonar o ponto de vista do objeto, e colocar sôbre novas bases o problema da ruptura. Impõe-se, mais exatamente, examinar êsse tecido que Bachelard não conseguiu “pensar”, e em particular essas “falsas ciências” que precedem a ciência, essas “positividades” que as ciências, uma vez constituídas, permitem caracterizar como “ideológicas”. Sôbre êsse ponto, como veremos, a contribuição da Archéologie é muito importante.
A IN ST ÂN C IA DO SABER
A Materialidade Institucional
Sabemos agora a que exigências respondem as categorias fundamentais da Archéologie: trata-se de pensar as leis que regem a história diferencial das ciências e das não-ciências sem referência nem a um “sujeito” nem a um “objeto” , ultrapassando a falsa alternativa “conti- nuidade-descontinuidade.”
A primeira noção que corresponde a tais exigências é a de “acontecimento discursivo”. Escreve Foucault: “Uma vez suspensas tôdas as formas imediatas de continuidade, todo um domínio se vê liberado. Um domínio imenso, mas definível: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância apropriada a
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cada um dêles. Antes de encontrarmos, com tôda a certeza, uma ciência, romances, ou discursos políticos, o material que deve ser tratado, em sua neutralidade primitiva, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral.” (p. 38). Aqui as perguntas começam a se multiplicar: o que é êsse “espaço do discurso” ? Seria o objeto da lingüística? Não, porque o “campo dos acontecimentos discursivos é o conjunto sempre finito e atualmente limitado unicamente das seqüências lingüísticas que foram formuladas.” Seria simplesmente o “pensamento” que é desigando por essas palavras esotéricas? Não, porque não se trata de referir o que foi dito a uma intenção, a um discurso silencioso que o ordenaria do interior; a pergunta que se coloca é somente essa: “qual é essa existência singular que vem à luz do dia no que se diz e em nada mais?” Continuemos a seguir Foucault a fim de descobrir a especificidade dessa categoria por êle construída, e à qual nos permitiremos mais tarde dar um outro nome. N a realidade, é pelas vantagens que atribui a êsse conceito que Foucault especifica o estatuto do que chama de “ acontecimento discursivo”. Esta noção permitirá determinar “as relações dos enunciados entre si — sem qualquer referência à consciência de um ou vários autores; relações entre enunciados ou grupos de enunciados, e acontecimentos de outra ordem (técnica, econômica, social, política.)”
Como se vê, o essencial aqui é a noção de relação. Foucault entende por relação um conjunto de nexos de “coexistência, sucessão, funcionamento mútuo, determinação recíproca, transformação independente ou correlati- va”. (Cf. especialmente a p. 53). Mas Foucault sente que a determinação de tais relações ainda é insuficiente para designar a instância dos “acontecimentos discursivos” : se, por uma tal combinatória, é possível, num certo sentido, explicar o “discursivo”, ficamos sem compreender o acontecimento discursivo: permanecemos no nível da episteme. Numa palavra: tal análise não pode explicar a existência “material” e “histórica” do acontecimento discursivo. Uma questão decisiva está implícita em tôdas essas páginas, que poderiam parecer longas e redundantes: a necessidade, reconhecida por Foucault, de definir o “regime de materialidade” do que denomina 0 discurso, a necessidade correlativa de elaborar uma nova categoria — materialista — de “discurso”, e enfim de pensar a história dêsse “discurso” em sua materialidade.
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E essa a tríplice tarefa que se propõe a Archéologie; e é nessa tentativa que reside, como veremos, o seu insucesso relativo.
A prova: referindo-se aos “objetos” da psicopatologia, Foucault coloca perguntas do tipo: “Podemos saber segundo que sistema não-dedutivo aqueles objetos lograram justapor-se e suceder-se para formar o campo — la- cunar ou pletório conforme o caso — da psicopatologia? Qual foi seu regime de existência enquanto objetos do discurso?” (p. 56). Ou ainda, com maior nitidez: a tentativa de caracterizar a unidade elementar do acontecimento discursivo — o acontecimento-unidade, por assim dizer — leva Foucault a propor a noção de “enunciado”. Ora, qual a condição do enunciado? “Para que uma seqüência de elementos lingüísticos possa ser considerada e analisada como um enunciado, deve ser dotada de uma existência material”, (p. 131). A materialidade não é apenas uma condição entre outras, mas é constitutiva: “não é simplesmente princípio de variação, modificação dos critérios de reconhecimento, ou determinação de sub- -conjuntos lingüísticos. Ê constitutiva do próprio enunciado: é preciso que o enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar e uma data.” (p. 133). Sem antecipar demais, podemos dizer que a procura do “regime de materialidade” do enunciado se orientará mais para a substância e o suporte que para o lugar e a data: “ o re gime de materialidade ao qual obedecem necessária mente os enunciados é da ordem da instituição mais que da localização espaço-temporal.” (p. 136) O que Foucault descobre é que a localização espaço-temporal pode ser deduzida das “relações”, ou “nexos” , entre enunciados ou grupos de enunciados, depois que se reconhecer a êsses nexos uma existência material, e quando se compreender que tais nexos não existem fora de certos suportes materiais em que se incarnam, se produzem e se reproduzem. Podemos, a esta altura, resumir a situação: torna- -se necessário pensar a história dos acontecimentos discursivos como estruturada por relações materiais que se incarnam em instituições.
0 Discurso como Prática
Compreendemos agora porque Foucault é levado a definir o “discurso” de uma forma tão singular: “o discurso é outra coisa que o lugar em que vêm se depor e
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superpor, como numa simples superfície de inscrição, objetos instaurados de antemão.” (p. 58). Com efeito, se o que foi dito do “regime material do enunciado” é exato, o discurso não é definível independentemente das relações que o constiuem; é assim que se falará de “relações discursivas” , ou “regularidades discursivas”, de preferência a “discurso”. É que o discurso, em última análise, é uma prática. A categoria de “prática discursiva”, proposta por Foucault, é o indício dessa inovação teórica, no fundo materialista, que consiste em não aceitar nenhum “discurso” fora do sistema de relações materiais que o estruturam e constituem. Essa nova categoria estabelece uma linha divisória entre a Archéologie du Savoir e Les Mots et les Choses. Mas é preciso evitar mal-entendidos: por “prática” não se entende a atividade de um sujeito, e sim a existência objetiva e material de certas regras às quais o sujeito tem que obedecer quando participa do “discurso”. Os efeitos dessa disciplina do sujeito são analisados no exame das “posições do sujeito” : voltaremos ao assunto. No momento, é a seguinte a definição positiva do discurso segundo a Archéologie-. as relações discursivas não são internas ao discurso, não são os nexos que existem entre conceitos ou palavras, frases ou proposições; mas não são externas tampouco, não são “circunstâncias” exteriores susceptíveis de coagir o discurso; ao contrário, ‘tais relações “determinam o feixe de relações que o discurso deve manter para ter condições de tratar de tais ou lais objetos, e processá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los, etc. E Foucault conclui: “essas relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias nas quais êle ocorre, mas o próprio discurso enquanto prática.” (p. 63). Daí a noção de regra ou regularidade discursiva para designar as normas dessa prática. Daí a definição, já mencionada, dos “objetos” dessa prática como “efeitos” das regras, ou “feixe de relações” : é preciso, com efeito, definir os objetos sem referência ao fundo das coisas, e referi-los ao conjunto das regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem as suas condições de aparecimento histórico”, (p. 65).
A Instância do Saber
Foi assim que se construiu a noção de “saber”, objeto próprio da arqueologia. O que é saber? É precisamente “aquilo de que se pode falar numa prática discur
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siva, que se vê assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que adquirirão ou não estatuto científico.” (p. 238). “Um saber é também o campo de coordenação e subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam.” (ibid.) Eis como, ao contrário da epistemologia, a arqueologia percorre “ o eixo prática discursiva-saber- -ciência”. (p. 239). A noção de ruptura epistemológica é assim revista em seu estatuto. O próprio da epistemologia, segundo Foucault, é ignorar a instância do “saber” , a instância dessas relações ordenadas, cuja existência material constitui a base sôbre a qual se instaura o conhecimento científico. O que se trata de mostrar é como “uma ciência se inscreve e funciona no elemento do saber.” Haveria um “espaço” no qual, por um jôgo interno como as relações que o constituem, uma ciência determinada formaria o seu objeto: “A ciência, sem se identificar com o saber, mas sem o obliterar ou excluir, se localiza nêle, estrutura alguns dos seus objetos, sistematiza algumas de suas enunciações, formaliza alguns dos seus conceitos e estratégias” , (pp. 241-242).
Voltaremos oportunamente a êsse “jôgo” imaginado por Foucault, sobretudo no contexto de um exemplo preciso, que é a relação entre Marx e Ricardo. Basta, por enquanto, ter mostrado os princípios da análise e seus efeitos sôbre as “disciplinas” existentes.
O Ponto de Fuga da Arqueologia
Retomemos o percurso de Foucault em seu princípio: êsse percurso parece marcar com muita propriedade os limites da epistemologia, e demonstra a necessidade de elaborar uma teoria do que denomina as “relações discursivas” ; uma teoria das leis de tôda “formação discursiva”. Ora, é aqui que se delineiam os limites da própria “arqueologia”. Se nossa interpretação é correta, a tarefa da arqueologia é constituir a teoria da instância “discursiva”, na medida em que tal instância é estruturada por relações incarnadas em instituições e regulamentações historicamente determinadas. Essa tarefa é efetuada por Foucault sob a forma da descrição; “não chegou ainda o tempo da teoria” como êle próprio diz, no capítulo intitulado “Descrição dos Enunciados”. Ora, em nossa opinião, êsse tempo já chegou, mas a teoria não virá de Foucault, a menos que reconheça os princípios necessá
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rios para a formulação de tal teoria. Êsses princípios são os da ciência da história. Pois o que existe de mais positivo na Archéologie é a tentativa de instaurar, sob o nome de “formação discursiva”, uma teoria materialista e histórica das relações ideológicas e da formação dos objetos ideológicos. Mas em última análise, em que se baseia êsse esboço de teoria? Em uma distinção tàcítamen- te aceita, sempre presente mas nunca teorizada, entre “práticas discursivas” e “práticas não-discursivas” . Tôdas as suas análises conduzem a essa distinção; mas é uma distinção feita às cegas, enquanto que o que se impõe é pensá-la explicitamente sob a forma de uma teoria. Construída essa teoria, Foucault se encontraria num terreno distinto, como aliás êle próprio prevê.
Essa distinção está sempre presente: produzida a categoria de “prática discursiva”, Foucault tem que reconhecer que essa prática não é autônoma; que a transformação e a renovação das relações que a constituem não resulta do jôgo de uma simples combinatória, e que sua compreensão exige a referência a práticas de outra natureza. Desde o início, como vimos, Foucault se propõe determinar as relações entre enunciados; mas pretende, igualmente, estudar as relações “ entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de outra ordem (técnica, econômica, social, política.” (p. 41). Além disso, para seguir a ordem do livro, uma estranha distinção aparece na definição do discurso como prática. A s relações “discursivas” são ditas secundárias, por oposição a outras relações ditas primárias, que, “independentemente de qualquer discurso ou objeto de discurso, podem ser descritas entre as instituições, técnicas, formas sociais, etc.” (p. 68). E mais adiante: “A determinação das escolhas teóricas efetivamente efetuadas depende também de outra instância. Essa instância se caracteriza antes de mais nada pela função que deve exercer o discurso estudado num campo de práticas não discursivas.” (p. 90).
Poderíamos citar outros exemplos que provam que Michel Foucault tem necessidade dessa distinção, mas a pratica sob a forma da justaposição. É ela, em particular, que funciona a propósito da análise das relações entre Ricardo e Marx. Ê nesse ponto que o “sistema de referências recíprocas” de Foucault revela a sua inconse- quência. Mudemos de terreno.
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SABER E IDEOLOGIA
O terceiro parágrafo do capítulo “Ciência e Saber” se intitula “saber e ideologia”. O confronto dos dois títulos indica do que se trata: do exame crítico das teses propostas por Althusser, em livros já antigos, sôbre as relações entre ciência e ideologia. Essas teses, que tiveram, em seu tempo, sem qualquer dúvida, um valor teórico e um alcance político revolucionário, utilizam, para seus próprios fins, uma noção de “corte” ou “ruptura” essencialmente bachelardiana. Já vimos que Foucault propõe na Archéologie um sistema de categorias para repensar — e retificar — esta concepção do corte ou da ruptura, que segundo êle tem pouco valor descritivo e está associada a conotações antropologistas. Compreendemos assim porque a distinção ciência-ideologia tem que ser modificada; é o que procura fazer quando analisa as relações entre a ciência e o “saber”. O que o leva a pensar a diferença entre o que chama “saber” e o que Althusser chamava a “ideologia”. Ê precisamente com essa última análise que termina a Archéologie. Foucault utiliza três argumentos, correlativos das determinações do nôvo conceito de “saber” :
(a ) se o saber é constituído por um conjunto de práticas — discursivas e não-discursivas — a definição de ideologia utilizada por Althusser é excessivamente estreita. “As contradições”, escreve Foucault, “as lacunas, os defeitos teóricos, podem denunciar o funcionamento ideológico de uma ciência (ou discurso com pretensões científicas); podem permitir determinar em que ponto do edifício êsse funcionamento começa a se manifestar. Mas a análise dêsse funcionamento deve ser feita ao nível da positividade e das relações entre as regras de formação e as estruturas da cientificidade.” Em suma, é tôda uma concepção da ideologia como não-ciência pura e simples que é visada. Para Foucault, essa concepção da ideologia é infiel aos seus próprios objetivos: num certo sentido, é ela própria ideológica. Limita-se a notar de uma forma mecanicista e em última análise antidialética os efeitos da inserção da ciência no saber. Ora, é preciso deslocar a análise, e não se contentar, com os olhos fixos na ciência, em fazer da ideologia o simples reverso da ciência, sua insuficiência ou desfalecimento, como algumas análises unilaterais de Althusser deram a entender. Ê preciso, para apreender a chamada “ruptura”, analisar a rêde de
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relações que constituem o saber, e sôbre as quais emerge a ciência.
(b ) Se o saber é investido em certas práticas — discursivas e não-discursivas — o aparecimento de uma ciência não elimina, num passe de mágica, essas práticas. Ao contrário, elas subsistem, e coexistem — mais ou menos pacificamente — com a ciência. Consequentemente: “a ideologia não é exclusiva da cientificidade. ( . . . ) Ao •se corrigir, retificar seus erros, e aperfeiçoar suas formalizações, um discurso não se emancipa necessàriamente da ideologia. O papel da ideologia não diminui à medida que aumenta o rigor e se dissipa o êrro.” Em outros têr- mos, se o que se visa com a palavra “ideologia é o “saber”, cumpre reconhecer que sua realidade, a materialidade de sua existência numa formação social dada é tal que não pode se dissipar como uma ilusão, da noite para o dia; ao contrário, o saber continua a funcionar e literalmente a assediar a ciência ao longo de todo o processo dc sua constituição.
(c ) A história de uma ciência não pode portanto ser concebida senão em sua ligação com a história do “saber”, isto é, a história das práticas — discursivas e não- -discursivas — em que êsse saber consiste; trata-se de pensar as transformações dessas práticas: cada transformação modificará a forma de inserção da cientificidade no saber, e estabelecerá um nôvo tipo de relação ciência- -saber. “É por isso que a questão do nexo entre a ideologia e a ciência não é a questão das situações ou práticas que a ciência reflete de forma mais ou menos consciente; nem a questão de sua utilização eventual ou do mau uso que se pode fazer da ciência; é a questão de sua existência como prática discursiva e de seu funcionamento entre outras práticas.”
Surge agora à luz do dia êsse “sistema de referências recíprocas” implícito, mas determinante, mascarado pela auto-referência constante, e aqui paradoxal, do autor à sua obra. Tínhamos, assim, razão de suspeitar que o procedimento pelo qual Foucault apresentava como constitutivo do seu trabalho um sistema de referências recíprocas cujos elementos êle próprio invalida constituía uma peça que Foucault pregava a êle mesmo e ao leitor. Com efeito, o que se evidencia no fim dessas análises (exatamente no fim, como se observou) é que o sistema
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da “arqueologia” foi inteiramente construído para compensar a inadequação da antinomia ciência-ideologia para explicar essas “falsas ciências” ou “positividades” que são o objeto próprio de Foucault. A Archéologie du Savoir nasce de um impasse. Para resolver êsse impasse, dois caminhos — e somente dois — se ofereciam a Foucault: tentar solucionar a dificuldade por seus próprios meios, ou recorrer ao materialismo histórico, à ciência da história, e verificar se a oposição ciência-ideologia se reduzia à que tinha sido enunciada por Althusser, provisoriamente, e por necessidade. Mais precisamente: verificar se os conceitos fundamentais do materialismo histórico não permitiam formular uma teoria da ideologia susceptível de resolver a dificuldade encontrada. Michel Foucault escolheu — corajosamente, diriam alguns — o primeiro caminho. Tentaremos, para terminar, propor uma razão, não-psicologista, para essa escolha. No momento, precisamos ver suas conseqüências. Para jogar com as cartas na mesa, e antecipar um pouco os nossos resultados, podemos dizer de saída que a natureza da ideologia é tal que não é possível imaginar, em relação a uma ciência constituída e viva, um discurso continuamente paralelo. Chega um momento em que a contradição reaparece, em que o “deslocamento” se faz sentir pelos seus efeitos, em que a escolha, a princípio escamoteada, se impõe novamente, com maior urgência. É o que vamos mostrar.
O discurso paralelo: tendo reconhecido uma dificuldade real, cujos têrmos e cuja solução pertencem, de direito e de fato, ao materialismo histórico, Foucault propõe um certo número de conceitos homólogos, ainda que deslocados. A simple3 formulação dêsses conceitos, para quem sabe entendê-los, encerra as condições de sua retificação.
Tudo depende, como se viu, do uso do conceito de “prática.” É nesse ponto que a distância entre o materialismo histórico e a “arqueologia” é mínima; o exame mostrará, sem paradoxo, que é nêle também que a distância é máxima. Com efeito, é a categoria da prática — tão estranha às obras precedentes de Foucault — que define o campo da “arqueologia” : nem língua, nem pensamento, como vimos, mas o chamado “pré-conceitual” (p. 82). O nível pré-conceitual, assim liberado, escreve êle, não está ligado nem a um horizonte de idealidade nem a uma gênese empírica das abstrações. De fato, o
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que se busca não são as estruturas ideais do conceito, mas o “ lugar de emergência dos conceitos” ; não se pretende, tampouco, explicar estruturas ideais pela série das operações empíricas que as teriam engendrado; o que se descreve é um conjunto de regras anônimas historicamente determinadas que se impõem a qualquer sujeito que fala, regras não universalmente válidas, mas que têm sempre um domínio de validade bem especificado. A determinação principal da categoria arqueológica da “prática” é a “regra”, a “regularidade”. É a regularidade que estrutura a prática discursiva, é a regra que ordena tôda formação discursiva; (p. 63). A função da “regra” pode ser facilmente explicitada: através dela, Foucault procura pensar ao mesmo tempo — em sua unidade — as relações que estruturam a prática discursiva, seu efeito coercitivo sôbre os “sujeitos” que falam, e o que chama, enigmaticamente, de embreagem de um tipo de prática sôbre outro.
O primeiro ponto já foi analisado; acrescentaremos apenas que a “regularidade” não se opõe à “irregularidade” : se a regularidade é a determinação essencial da prática, a oposição regular-irregular não é pertinente. Não se pode dizer, por exemplo, que numa formação discursiva uma “invenção” ou “descoberta” escape à regularidade: “uma descoberta não é menos regular, do ponto de vista enunciativo, que o texto que a repete e difunde; a regularidade não é menos operante, menos eficaz ou ativa numa banalidade que numa formulação insólita.” (p. 189). A irregularidade é uma simples aparência, explorada por êsses historiadores do genial, que, como bons adoradores do “ sujeito” (ou pelo menos de alguns sujeitos brilhantes) são fundamentalmente continuistas. Essa aparência se produz quando uma modificação se opera num ponto determinado da formação discursiva, e portanto na e sob a regularidade existente num momento histórico dado. Segundo o ponto em que ocorre, essa mutação será mais ou menos sensível, terá mais ou menos efeitos (outros diriam: será mais ou menos “genial” ). Surge assim uma nova determinação da formação discursiva: é estruturada hieràrquicamente. Existem, com efeito, “enunciados retores”, que delimitam o campo dos objetos possíveis e traçam a linha divisória entre o “visível” e o “invisível”, entre o “pensável” e o “impensável”, ou melhor (em têrmos “arqueológicos” ) : entre o enunciável e o não-enunciável; que designam o que é in
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cluído numa formação discursiva pelo que ela exclui. A aparência de irregularidade é portanto um simples efeito da modificação do “reitorato”. Seria necessário aqui comentar por extenso a análise contida nas páginas 192- 193, baseada no exemplo da História Natural.
Segundo ponto: essa regularidade hierárquica se impõe a qualquer “ sujeito”. Eis o que escreve Foucault a propósito da medicina clínica: “As posições do sujeito se definem em relação aos diversos objetos ou grupos de objetos: é sujeito questionante segundo uma certa grade de interrogações, explicitas ou não, e sujeito que escuta, segundo um certo programa de informação; é sujeito que olha, segundo uma tábua de traços característicos, e sujeito que anota, segundo um tipo descritivo. . . (p. 71). E mais adiante: “as diversas situações que pode ocupar o sujeito do discurso médico foram redefinidas no início do século XIX, com a organização de um campo percep- tivo distinto, (ib id .)”
O terceiro ponto é fundamental: é nêle que se acumulam tôdas as contradições do projeto “arqueológico” ; é aqui que a categoria prática, segundo Foucault, revela a sua inadequação: pois só permite pensar a unidade do que ela designa através de uma justaposição. Mostraremos que isto ocorre devido à ausência de um princípio de determinação. Ora, se o que dissemos é exato, essa ausência é o efeito do caminho escolhido por Foucault; e assinala o ponto em que a necessidade do outro caminho se impõe, em que a retificação pode começar.
Foucault se vê forçado a pensar c que constitui à regularidade da regra, o que ordena a sua estrutura hierárquica, o que produz as suas mutações, o que lhe confere o caráter imperativo para todo sujeito. Ora, em cada um dêsses pontos, esbarra na mesma dificuldade. Ê importante que essa dificuldade seja a mesma: isto significa que Foucault concebe a necessidade de referir o conjunto dêsse processo complexo a um mesmo princípio. Mas êsse mesmo princípio, se está presente em tôda parte, não é pensado nunca. E isto porque excede os limites da categoria da prática tal como funciona na Archéologie. Já descobrimos êsse princípio: é a articulação das práticas discursivas sôbre práticas não-discursivas.
Pode-se objetar: tudo isso para chegar ao mesmo ponto enigmático contra o qual colidia o capítulo prece- rente. Certamente, e é natural, porque, passado êsse ponto, estamos fora de Foucault; mas atenção: conse
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guimos progredir em nosso percurso aparentemente circular, pois já determinamos os meios para escapar ao círculo “arqueológico”. Ao pensar como tal o ponto de fuga, encontramos o caminho para dêle sair. Com efeito, podemos dizer agora para que serve a distinção prática discursiva/prática não-discursiva: é uma tentativa para repensar a distinção ciência/ideologia. Melhor: uma tentativa para pensar em sua unidade diferencial duas histórias: a das ciências e a da (ou das) ideologia(s). Não mais enfatizar unilateralmente a autonomia da história das ciências, mas acentuar ao mesmo tempo a relatividade dessa autonomia. Ora, percorrendo êsse caminho, Foucault deve reconhecer (e é êsse o seu mais alto mérito) que a ideologia (pensada sob a categoria do “saber” como sistema de relações estruturado hieràrqui- camente, e investido em práticas) não é, por sua vez, autônoma. Sua autonomia é portanto ainda relativa. Mas Foucault está consciente do perigo que o ameaça: pensar o “saber” como efeito puro e simples — ou reflexo— de uma estrutura social. Em suma, para escapar ao idealismo transcendental, cair num mecanicismo empiris- ta que nada mais é que uma forma invertida do primeiro. Donde seu extremo embaraço, e a fluidez metafórica das categorias que propõe.
Ê preciso ver nesse desenvolvimento o que êle de fato é: o “reconhecimento” de uma falha teórica no edifício arqueológico. Primeiro reconhecimento: o papel das instituições na “embreagem”. Retomando algumas análises da Naissance de la Clinique, Foucault escreve duas páginas notáveis sôbre êsse assunto (pp. 6S-69) : limito- -me a citar alguns trechos, sublinhando certas palavras que ilustram a análise que proponho:
“Primeira pergunta: quem fala? Quem, dentre todos os indivíduos falantes, tem o direito de usar êsse tipo de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dessa linguagem a sua singularidade, e seu prestígio, e de quem, por sua vez, a linguagem recebe senão a sua garantia, pelo menos a sua presunção de verdade? Qual o estatuto dos indivíduos que têm — e somente êles — o direito regularmentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? O estatuto do médico comporta critérios de competência e de saber; instituições, sistemas, normas pedagógicas; condições legais que dão direito — fixando os seus limites — à prática e ao exercício do saber. “E
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mais adiante: “a existência da palavra médica não é dis- sociável do personagem estatutàriamente definido que tem o direito de articulá-la, reivindicando para ela o poder de conjurar o sofrimento e a morte. Mas sabe-se também que êsse estatuto na civilização ocidental foi profundamente modificado no fim do século X V III e início do século XIX, quando a saúde das populações tornou-se uma das normas exigidas pelas sociedades industriais.”
“Sabe-se tam bém ...” Confessemos que Foucault não nos fornece os meios para passar dêsse conhecimento de oitiva a um conhecimento racional do processo de modificação. Sempre o mesmo enigma: o da “embrea- gem”. Mas êsse texto é excepcional, pois permite precisar, em tôda a sua riqueza, o funcionamento da categoria de “regra” em Foucault. Categoria solidária das noções de estatuto, normas e poder. Mais exatamente: o estatuto é definido por uma instância não-discursiva: é através de uma parte do aparelho do estado que nós podemos enunciar; o estado incarna, realiza um certo número de normas definidas em função de imperativos econômicos. Êsse estatuto, literalmente, dá corpo à profissão, e êsse corpo investe o discurso que nêle se articula — e portanto os indivíduos que o enunciam — de um poder. Êsse poder, cuja única existência está na prática discursiva dos médicos, tem evidentemente uma relação, não precisada por Foucault, com o poder do estado. Deixemos essa análise de lado; encontraremos em outros lugares o mesmo problema.
O embaraço é idêntico em outros trechos. Assim (p. 61) descrevendo a formação de um objeto do saber como um “ feixe complexo de relações”, procede a um amálgama indiscriminado: “essas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização; essas relações não estão presentes no objeto”.
Poderíamos citar outras passagens igualmente rap- sódicas (principalmente à página 98).
Ê tempo de chamar as coisas pelo seu nome, e ver por que, tendo tomado um caminho errôneo, Foucault tinha necessariamente que chegar a um impasse. Coletando os elementos colhidos durante o percurso, podemos propor a análise seguinte: partindo da crítica da antiga noção althusseriana de ideologia — estreita demais —
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Foucault elabora a sua própria categoria de “saber”, fundando-a num conceito mal construído de “prática”. Mal construído, porque tem que cindi-lo para que possa preencher a sua função, e Foucault não pode explicar essa cisão. Mas como sua crítica é essencialmente correta, consegue reproduzir, deslocando-as, as determinações do conceito científico de ideologia, tal como êle funciona no materialismo histórico. Mas como se privou, de início, dêsse conceito, quando surge a dificuldade essencial do “vínculo” entre ideologia e relações de produção, permanece sem voz, condenado a designar de maneira “misti- ficada” o lugar de um problema.
Explicitemos.
1. O conceito de ideologia que funciona no materialismo histórico — em Marx e seus sucessores — não é efetivamente o puro reverso da ciência. Foucault tem absolutamente razão; a questão que êle suscita sôbre o “regime de materialidade” da ideologia é uma questão real (m aterialista), de uma urgente necessidade teórica para o materialismo dialético. Sabe-se que a ideologia tem uma consistência, uma existência material — sobretudo institucional — e uma função real dentro de uma formação social. Ninguém ignora que no esquema, ainda descritivo, proposto por Marx para a estrutura de uma formação social, a ideologia (ou as ideologias) figura na “superestrutura”. A superestrutura, determinada, “em última instância”, pela infra-estrutura econômica, teria um efeito de retorno sôbre a infra-estrutura. Dessa forma, a ideologia não pode desaparecer pelo simples fato do aparecimento da ciência. Compreendemos assim porque Michel Foucault tem razão quando pretende trabalhar “em outro nível” que o da epistemologia da “ruptura” :
“A ruptura não é para a arqueologia o objetivo de suas análises, o limite que ela assinala de longe sem poder determiná-lo nem lhe dar sua especificidade: a rv/p- tura é o nome dado às transfomações que incidem sôbre o regime geral de uma ou várias formações discursivas” , (p. 231). Determinar a ideologia como “instância” de toda formação social é com efeito pensar a ideologia não mais em têrmos estritamente bachelardianos, como “um tecido tenaz de erros”, urdido no segredo da imaginação, como o “magma informe” dêsses “monstros teóricos” que precedem a ciência — e às vêzes lhe sobrevivem, com
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uma existência patológica — mas é pensá-la em sua constituição e funcionamento enquanto instância material historicamente determinada, num todo social complexo também determinado historicamente. O valor exemplar da Archéologie reside na tentativa de repensar nesses têrmos a ideologia.
2. Não obstante, essa tentativa culmina num fra casso: as análises “esbarram” contra a distinção cega entre práticas discursivas e práticas não-discursivas. Se o que dissemos é exato, nada disso é surpreendente. Pois com essa única distinção, Foucault queria resolver três problemas distintos. Três problemas que não podem ser formulados senão nos conceitos do materialismo histórico. Três problemas que lançam Foucault no embaraço, por não poder sequer colocá-los.
Problema n° 1: refere-se à relação entre uma “formação ideológica” e o que Foucault chama “as relações sociais”, as “flutuações econômicas” , etc. Em suma, o que designamos várias vêzes como o problema da “ em- breagem”. Em outros têrmos: numa formação social dada, que tipo de relações a ideologia mantém com a infra-estrutura econômica? Pergunta ingênua, dir-se-á, à qual um marxista responderá fàcilmente com o esquema clássico da infra-estrutura e da super estrutura. Mas essa resposta, por ser fácil e, no fundamental, exata, não é sem dúvida suficiente. É que ela é ainda descritiva; embora tenha a vantagem inestimável de “mostrar” a ordem de determinação materialista, embora tenha um valor polêmico incontestável contra tôdas as concepções idealistas da história para as quais são as idéias que conduzem o mundo, e embora, por essas razões decisivas, deva ser firmemente defendida como uma definitiva aquisição teórica do marxismo, que permite traçar uma linha de demarcação entre os dois “campos” da filosofia, entre os nossos adversários e nós, essa resposta puramente descritiva não proporciona os instrumentos para pensar o mecanismo que liga a ideologia enquanto sistema de relações' hierarquizadas que produzem um efeito de dominação sôbre os “sujeitos”, e o modo de produção (no sentido estrito), isto é, o sistema constituído pelas relações de produção e pelas fôrças produtivas.1 É justamente êsse mecanismo que Foucault tenta pensar teoricamente;
(1) Cf. sôbre êsse tema o artigo de Althusser em La Pensée, n* 151, junho, 1970.
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com a noção de “embreagem”, designa o lugar de um problema teórico urgente: passar da teoria descritiva à teoria, simplesmente, das relações entre a ideologia e a infra-estrutura. Sabemos que somente o materialismo histórico pode resolver êsse problema. Sem poder solucioná-lo aqui, podemos pelo menos precisar os têrmos do problema: se é certo, como indica o esquema clássico, que a infra-estrutura é determinante, temos que perguntar : no mecanismo que regula as relações entre êsses dois sistemas que são as fôrças produtivas e as relações de produção, o que produz a necessidade de um sistema de sujeição ideológica? Será preciso um dia responder a essa pergunta: o mérito de Foucault está em ter “reencontrado” essa questão, ainda que de uma forma desfocada, e em mostrar-nos a urgência de uma solução.
Problema n- 2: refere-se ao estatuto dessas “falsas ciências” que são o objeto próprio do trabalho anterior de Foucault. Insiste: a Gramática Geral, a História N a tural, etc., podem certamente, em retrospecto, aos olhos da ciência constituída, ser ditas “ideológicas” ; sem dúvida seria possível inclusive mostrar que existe entre essas disciplinas “ideológicas” e o sistema das relações ideológicas existentes numa sociedade dada, num momento dado de sua história, uma estreita vinculação. Tôda a Archéologie tende a prová-lo. Não obstante, a Gramática Geral ou a História Natural não têm o mesmo estatuto que a ideologia religiosa, moral e política que funciona na formação social considerada. índice dessa diferença: essas disciplinas se atribuem — quer o queiramos ou não — o título de “ciências.” Em suma, Foucault quer evitar uma redução, que chamaríamos de “ ideolo- gista”, e no fundo tem caráter mecanicista. Propõe, de fato, uma distinção entre duas “formas” de ideologia; distinção que seria, não formal, (umas seriam sistematizadas, e outras, não) mas fundada numa “diferença de nível.” Essa distinção pode ser formulada nos conceitos do materialismo histórico como uma distinção entre “ideologias práticas” e “ideologias teóricas.” Althusser dá a seguinte definição das ideologias práticas: “ entendemos por ideologias práticas formações complexas de montagens de noções-representações-imagens, de uma parte, e de montagens de comportamentos-condutas-ati- tudes-gestos, de outra parte. Êsse conjunto funciona como uma série de normas práticas que governam a atitude e a posição concreta dos homens em relação aos ob-
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jetos reais e aos problemas reais de sua existência social e individual, e em relação à sua história.” Como pensar a “articulação” dessas ideologias práticas com as “ideologias teóricas” ? O que é uma “ideologia teórica” ? São essas as questões — formuladas em têrmos materialistas— que Foucault se coloca. Ê aqui que a noção canônica de arquivo assume todo o seu relêvo. Seria preciso, para mostrá-lo, examinar linha a linha o capítulo intitulado “O a priori histórico e o arquivo” (pp. 166-173). Justificando o emprêgo da primeira locução, diz Foucault: “ Justapostas, essas duas palavras são um pouco chocantes; quero designar com isso um a priori que seria, não uma condição de validade para julgamentos, para uma condição de realidade para enunciados”. Donde se segue que o arquivo — tomado num sentido radicalmente nôvo — é “em primeiro lugar, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege a aparição dos enunciados como acontecimentos singulares.” E mais genericamente: “é o sistema geral da formação e transformação dos enunciados”.
Mas já vimos que êsse sistema geral não é autônomo; a lei de seu funcionamento é sujeita a outro tipo de “regularidade”, a das práticas não-discursivas. Diremos que a formação dos objetos das ideologias teóricas sofre a influência das ideologias práticas. Mais precisamente: as ideologias práticas conferem suas formas e seus limites às ideologias teóricas. Trabalhando ao nível do arquivo, Foucault nos convida a pensar o mecanismo que regulamenta êsses efeitos; coloca-nos o problema: segundo que processo específico as ideologias práticas intervém na constituição e funcionamento das ideologias teóricas? Ou ainda: como as ideologias práticas se “representam” nas ideologias teóricas? Mais uma vez, Foucault suscita um problema real — e urgente. A resposta de Foucault na Archéologie é um esbôço a re-trabalhar sôbre o terreno sólido do materialismo histórico.
Problema n" 3: refere-se ao tipo de relação que existe entre uma ideologia teórica e uma ciência. Aqui a contribuição de Foucault é importante: mostra-nos que o problema não pode ser resolvido em têrmos de objetos. Comparar os objetos de uma ideologia teórica aos de uma ciência é condenar-se à descrição de uma ruptura que não explica nada. Provando a necessidade de “passar” pela categoria do “saber” — tal como a elaborou — Foucault coloca o problema com exatidão. Êsse proble
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ma não é o das relações de uma ciência determinada à ideologia teórica que parece lhe “corresponder”, mas o de uma ciência ao sistema constituído pelas ideologias teóricas e pelas ideologias práticas. Ora, se, como vimos, as ideologias práticas se “representam” nas ideologias teóricas, impondo-lhes suas formas e limites, é preciso admitir que uma ciência só pode aparecer graças a um jôgo nesse processo de limitação; eis porque Foucault propõe substituir ao têrmo de ruptura o têrmo em nossa opinião mais feliz de irrupção. Essa irrupção se faz no saber, isto é, no espaço material em que funciona o sistema das ideologias práticas e teóricas. É dessa forma, segundo Foucault, que se deve pensar a inserção de uma ciência em uma formação social; é dessa forma que se evita ao mesmo tempo o idealismo, para o qual a ciência cai do céu, e o mecanicismo-economicista, para o qual a ciência é um simples reflexo da produção.
É tempo de mostrar por um exemplo como pode funcionar êsse tipo de análise. Tomemos o problema das relações entre Marx e Ricardo. Foucault escreve êsse texto importante: “Conceitos como os de mais-valia ou da baixa tendencial da taxa de lucros, encontrados em Marx, podem ser descritos a partir do sistema de positividade que já existe em Ricardo; ora, êsses conceitos (que são novos, mas cujas regras de formação não o são) aparecem em Marx como tributários de uma prática discursiva completamente diferente: formados segundo leis específicas, ocupam nessa prática uma outra posição, não figuram nos mesmos encadeamentos. Essa positividade nova não é uma transformação das análises de Ricardo; não é uma nova economia política; é um discurso cuja instauração teve lugar pela derivação de certos conceitos econômicos mas que por sua vez define as condições dentro das quais se exerce o discurso dos economistas, e portanto pode valer como teoria e crítica da economia política.” (p. 230).
O melhor comentário que se possa fazer dessa análise consiste em confrontá-la com uma passagem do Pos- fácio da segunda edição alemã do Capital (E S pp. 24-25) : “ . .. enquanto disciplina burguesa, isto é, na medida em que vê na ordem capitalista não uma fase transitória do progresso histórico, mas a forma definitiva e absoluta da produção social, a economia política só pode ser uma ciência se a luta de classes permanecer latente ou se manifestar apenas por fenômenos isolados. Tomemos a In
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glaterra. O período em que a luta de classes ainda não está desenvolvida é também o período clássico da economia política. Seu último grande representante, Ricardo, é o primeiro economista que transforma o antagonismo dos interêsses de classe, a oposição entre salário e lucro, lucro e renda, no ponto de partida de suas pesquisas. R icardo formula ingenuamente êsse antagonismo, com efeito inseparável da própria existência das classes que compõem a sociedade burguesa, como a lei natural, imutável, da natureza humana. Êsse é um limite que a ciência burguesa não poderá ultrapassar.” Aqui aparece o interêsse excepcional do texto de Foucault: compreendemos como os objetos de Ricardo e Marx pertencem à mesma “formação discursiva” , como essa ideologia teórica que é a economia política clássica é determinada em sua constituição por um sistema de limites produzidos pela fôrça coatora das ideologias práticas; compreendemos também a insuficiência do ponto de vista epistemológico da ruptura (ou corte). Mas compreendemos também o que falta à Archéologie: um ponto de vista de classe. Ê porque Marx se situa na perspectiva do proletariado que inaugura uma “nova prática discursiva” . Em outros têrmos: as ideologias práticas são atravessadas por contradições de classes; o mesmo ocorre com seus efeitos nas ideologias teóricas. Somente uma modificação no sistema de contradições assim constituído permite passar da ideologia à ciência. Essas reflexões, que nos foram sugeridas pela Archéologie_, ainda que rudimentares, ultrapassam o quadro do trabalho de Foucault. E o ultrapassam necessariamente: e sua ausência explica o deslocamento de todos os conceitos foucaultianos. Por isso, a Archéologie permanece ela própria uma ideologia teórica. Ora, segundo o que dissemos, é preciso situar-se numa posição de classe para poder compreendê-lo. Vemos agora o sentido da escolha de Foucault entre o materialismo histórico e suas próprias construções: essa escolha teórica, em última análise, é política. Vimos quais os efeitos dessa escolha: ela fixa à Archéologie limites que não poderão ser ultrapassados. Ao contrário, se o “arqueólogo” mudar de terreno, descobrirá muitas outras riquezas. Ülti- mo detalhe: terá deixado, então, de ser “ arqueólogo”.
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Discurso Científico e Discurso IdeológicoPor Carlos Henrique de Escobar
Nosso enfoque de Michel Foucault é crítico. Suas posições não coincidem com as nossas posições visto que temos por adquirido, na reflexão dos discursos, as questões mesmas da história, da diferença entre os discursos ideológicos e os discursos científicos, senão também, sobretudo, as articulações que estas questões passam, a ter numa ciência dos discursos ideológicos.
Ora, se nos dedicamos aqui a criticar suas posições— sem muita sistematização — isto não quer significar que desconheçamos sua importância e a marcada originalidade de todos os seus trabalhos. Dito isso previnimos igualmente o leitor de que êste artigo se constitui de um texto extraído do segundo capítulo de um livro (a ser editado) que se dirige a pensar o estatuto dos discursos ideológicos na história.
Caso os trabalhos de Foucault ( Doença mental e psicologia, História da loucura na idade clássica, 0 Nascimento da clínica, As palavras e as coisas e a Arqueologia do saber) sejam o esforço de pensar os discursos “espontâneos” em têrmos radicalmente novos, será necessário que, mais tarde ou mais cedo, êles se definam por respeito à história, aos discursos ideológicos, ao corte epistemológico, e por aí se decidam a pensar uma teoria da ciência e uma teoria da história da ciência.
Pois em que medida, as delimitações e descrições dos discursos, tanto quanto a crítica em detalhes da “história das idéias “ {Arqueologia do saber) podem significar qualquer coisa teoricamente válida sem estas definições? Definições estas que afinal enraizariam as “posições” de Foucault e impediriam que seus livros ganhas
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sem sempre o estatuto de aproximações na ausência de qualquer coisa, ademais, fundamental para a clareza e a cientificidade de uma reflexão sôbre os “discursos”.
Se Foucault tem o mérito de nos conceder através de suas análises (da clínica, da loucura, das epistemes, etc) uma história cujo objeto é complexo e fecundo (1 ), por outro lado esta história termina por comprometer-se com um acabamento formal bastante suspeito. Isto é, a história foucaultiana — por insólita que pareça — oscila entre os extremos idealistas do tudo e do nada; dos discursos complexificados e da rigidez das epistemes. E se, por um outro lado, por exemplo, êle restitui ao discurso da “loucura”, criticamente, um interesse particular, êle não consegue efetivamente conceder-lhe um estatuto. O que, ademais, somente seria possível numa ciência dos discursos ideológicos, onde os discursos então se mostrariam em suas “propriedades” na história.
Esta oscilação idealista do acabamento formal absoluto e da pluralidade dos materiais disponíveis, por onde se organiza uma “história”, é uma atitude comum dos estruturalistas. E ela o é na medida mesma em que se constitui no mecanismo empirista das filosofias da história. Objetivamente ela se inspira na leitura equívoca que os estruturalistas fizeram de Saussure, ou, mais precisamente, ela é uma leitura equívoca daquela questão que em Saussure diria respeito a uma crítica às posições em lingüística que procuravam pensar esta ciência nos “fatos heteróclitos da linguagem” sem ascenderem, por uma abstração, à “langue”, etc. Pelo menos foi o que se pensou estar escrito no Cours de linguistique générale. Ora, Saussure (in "Introduction ”, “Objet de la linguistique” , ibid.) não está fazendo uma leitura empírica dos fundamentos possíveis de uma lingüística, mas procuran do pensar a sua epistemologia, que em sendo científica se ocupa em distinguir seu objeto (objeto de conhecimento) das lingüísticas ideológicas que trabalham com os fatos da língua. É porque então esta “langue” saus- surianà não é uma abstração idealista dos “fatos heteróclitos de linguagem” (como são, ademais, as arquiteturas “históricas” das análises foucaultianas), mas sim uma teoria, um discurso científico.
(1) "A descrição da episteme apresenta diversos aspectos essenciais: ela abre um campo inesgotável e não pode jamais ser fechado". pág. 250, in L ’Archéologie du Savoir. Gallimard, 1969.68
Esta estratégia (ou “método” ) de procurar pensar ( “descrever” ) os fatos heteróclitos trocando-os por formas ( “modelos” ) subscreve os equívocos dessa “leitura” infeliz de uma lingüística que na verdade é bem outra coisa. Estratégia esta cujo fundamento continua sendo o da distinção entre o visível e o invisível, o aparente e o subjacente, o que aparece e é múltiplo e as epistemes, etc.
Pois bem, nosso objetivo com estas considerações críticas a Foucault pretende ilustrar a necessidade tanto de uma ciência dos discursos ideológicos quanto (e po- risso mesmo) de uma teoria da ciência que em seu estatuto epistemológico é incompatível com as soluções até então apresentadas por Foucault. Por exemplo, procuremos pensar inicialmente estas “ausências” (ausência destas questões) nas posições mesmas que Foucault adota por respeito à “loucura”. De que vale sustentar que a “loucura” é falada numa linguagem que não lhe pertence se as linguagens mesmas (os discursos) não possuem ainda um estatuto conhecido? Estamos de acôrdo que uma linguagem “normal” falou arbitrariamente da “ loucura”, mas não sabemos como nem por que esta linguagem pode falar de uma outra e em que têrmos (na estrutura e na história dos discursos) se dá esta subordinação. E isto porque estas linguagens são consideradas e analisadas em nível especulativo, isto é, fora de uma ciência (dos discursos) capaz de pensar o estatuto dos discursos ideológicos e científicos e de sua articulação com a história.
Michel Serres (2 ) no entanto se delicia com estas reflexões de Foucault, e nos diz mesmo que êste autor abre caminho para a total inteligibilidade da linguagem da loucura na medida em que se decide (na História da loucura na idade clássica) a deixar “a loucura falar” . Diz Serres: “ . . . é necessário ademais dar a palavra àquele que jamais foi escutado, mesmo se a coerência do seu verbo é louca”, ou “ . . . durante três séculos de misérias se falou de um mudo; e eis que êle reedbra sua linguagem abolida, eis que êle se põe a falar dêle mesmo c sôbre êle mesmo” (3 ). Esta “imensa contribuição” atribuída às teses de Foucault nos parece exagerada, já
12 ) Herm es ou la communicationJ cap. “D’Erehwona 1'antre du Cyclope”, Minuit| 1968.Cí) Pág. 169.
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que o essencial continua faltando, isto é, em que medida abandonou-se uma problemática especulativa por uma problemática científica para se tratar destas questões?
Encaremos um aspecto, apenas um, dêsse corpo de considerações de Serres; aquêle que aproxima Foucault (deixar “ a loucura falar” ) de Freud. Esta aproximação nos parece basicamente equívoca, e ela o é porque Freud pensa e produz a “grande regra” (o discurso livre) pensando nos discursos psicopatológicos e não propriamente nos discursos da “loucura”. Freud deixou de tal maneira os elementos de uma ciência dos discursos ideológicos a mão, de todos aquêles que o quiserem ler na pureza dos seus enunciados, que é impossível se referir a êle sem pensar o estatuto diferencial dos discursos “normal”, da “ loucura” e dos discursos, enfim, psicopatológicos. Daí porque o “discurso livre” de Freud tem um lugar preciso em sua ciência, e se refere a um tipo de discurso, com a condição de precisarmos suas funções terapêuticas e teóricas, que não se confunde com os discursos ideológicos polares propriamente. Ora, nós não confundimos o discurso da “loucura” (4 ) com os discursos “perturbados” , sejam êstes últimos discursos psicopatológicos do ângulo (conflitante) dos discursos “normais” ou do ângulo (conflitante) dos discursos da “ loucura” . Se fôsse o caso de pensar uma relação qualquer dos discursos da “loucura” com a ciência (contudo nós sabemos que não é a ciência que corta epistemològicamente com a “ loucura” ) (5 ) seria o caso então de se pensar numa psicanálise do ângulo da “loucura”, capaz de falar dos desvios discursivos dêste tipo de discurso.
Como aproximar o “deixar falar” do discurso livre da técnica analítica de Freud — quando debruçado sôbre as questões concernentes aos discursos psicopatológicos— com o “deixar falar a loucura” de Foucault, se êste último não se ocupa de um discurso psicopatológico mas de um discurso em si mesmo específico e histórico? O "deixar falar a loucura” é uma questão no interior da
(4) Não podemos nos deter aqui em exaustivas exposições destas nossas posições. Trabalho que realizamos em nosso livro.(5) Ver Introdução do nosso trabalho: "Ciência dos discursos ideológicos”. A relação de corte do discurso da arte — na direção daquilo que chamamos a segunda vertente — é com o discurso da loucura. Paralelamente então com o corte epistemológico que distingue os discursos científicos dos discursos ideológicos “razoáveis".70
subordinação histórico-estrutural do discurso da “loucura” ao discurso “normal” e se destaca do universo assistido (fa lar e ouvir) dos discursos “perturbados” tanto do ângulo dos discursos “normais” quanto dos discursos da “loucura”.
Não escondemos o fato de estarmos aqui tocando aspectos, e até mesmo teses, em grande parte desconhecidas do público, e que certamente mereceriam explicação detida já que elas suportam todas as nossas críticas. Seja como fôr procuraremos não ir neste artigo além de um questionamento de Foucault em tôrno das questões mais gerais, que desde o comêço lembramos, tais como a ausência de uma ciência dos discursos ideológicos, impossibilidade de refletir a ciência da história, indiferença à distinção dos discursos ideológicos frente aos discursos científicos, etc.
Esta unidade de questões serve tanto mais a uma avaliação da obra de Foucault na medida em que elas estão presentes desde o comêço, isto é, na medida em que o empreendimento teórico de Foucault permanece do comêço ao fim o mesmo empreendimento original.
Por exemplo, da afirmação do Maladie Mentale et Psychologie: “Gostaríamos de mostrar que a raiz da patologia mental não deve ser procurada em uma “metapa- tologia” qualquer, mas numa certa relação, historicamente situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro” (5 ), ou: “As dimensões psicológicas da loucura ( . . . ) devem situar-se no interior desta relação geral que o homem ocidental estabeleceu há praticamente dois séculos consigo mesmo” (6 ), ou: “O reconhecimento que permite dizer: êste é um louco, não é um ato simples nem imediato. Êle repousa, na verdade, em um certo número de operações prévias e sobretudo nesta delimitação do espaço social segundo as linhas da valorização e da exclusão”. Ou então no Naissance de la clinique: “Aqui, como em outras partes, trata-se de um estudo estrutural que procura decifrar na espessura do histórico as condições da história mesma” ; e logo em seguida: “O que con- la nos pensamentos dos homens não é tanto o que êles pensaram, senão o não-pensado, que desde o comêço do jôgo os sistematiza, fazendo-os para o resto do tempo
(5) Ibid. in "Introduction". d!) Ibid. in “Conclusion”.
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indefinidamente accessíveis à linguagem e abertos à tarefa de pensá-los de nôvo” (7 ). Quanto ao Les Mots et les Choses e as questões em tôrno das epistemes só nos cabe reafirmar que elas culminam o projeto filosófico de Foucault, êste mesmo projeto que L ’Archéologie du Savoir irá procurar discutir e de certa forma retomar ao defendê-lo das questões levantadas pela equipe do Cahiers pour VAnalyse (8 ). Ora, êste último livro nos diz: “Por aí se determina um empreendimento do qual a História da loucura, o Nascimento da Clínica, As palavras e as Coisas fixaram imperfeitamente o desenho. Empreendimento pelo qual se esforça por apreender a medida das mudanças que se operam em geral no domínio da história.” (9 ).
Êste mesmo projeto não foi senão sempre o das “descontinuidades verticais” que G. Canguilhem (10) denunciaria como uma espécie de filosofia da história. Ora, todo êste seu último livro é um levantamento sôbre a noção mesmo de história, condição para Foucault se referir criticamente à “história das idéias”, e por aí refletir a problemática das “descontinuidades verticais”. Estas epistemes duram a eficacidade dos discursos, tal como na análise da “loucura” e conforme um princípio lingüístico de determinação da estrutura nos espaços discursivos oposicionais (as estruturas binárias: os discursos da “razão” e os discursos da “ loucura” ) e por aí nós os vemos desfrutar uma certa segurança formal.
É em razão pois de tudo isso que Foucault no lugar de encarar as “propriedades” discursivas diferenciais (o corte entre os discursos ideológicos e os discursos científicos) se basta em trabalhar o espaço unificador subjacente — e indiferenciado — nas suas relações superficiais. E isto quer mostrar que as distinções, de fato, na história, entre loucos ( “internamento” ) e não-loucos é surpreendida apenas na estrutura formal sem que os discursos desçam as suas raízes à complexidade dos discursos ideológicos e suas articulações com as formações sociais. O discurso da “loucura”, por exemplo, preserva como que— através das discriminações históricas sublinhadas por Foucault — uma pureza ideal. E isto quando nós sabe-
(7) Ibid. in "Preface".(8) Cahiers pour VAnalyse, n« 9: Généalogie des sciences, 1968.(9) Ibid. “Introduction”, pág. 25.(10) Critique, n' 242, pág. 612-3.
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mos (mesmo depois de ter diferenciado o discurso da “loucura” dos discursos psicopatológicos) que os discursos ditos “normais” e os discursos da “ loucura” (11) são discursos impuros, seja porque são produzidos como discursos ideológicos, seja porque o discurso da “loucura” encontra-se sempre — histórica e estruturalmente — subordinado pelo discurso “normal”. Esta subordinação que nos obrigaria a trabalhar “em campo” para se dar conta do tipo de presença (e de subordinação) que con- junturalmente um discurso exerce sôbre o outro só poderia na verdade se mostrar numa ciência dos discursos ideológicos capaz de pensar a articulação com a história e a especificidade estrutural de cada um.
Se Bachelard, por exemplo, referiu-se a uma “psicanálise do conhecimento objetivo” foi no sentido de envolver criticamente os discursos em suas implicações histó- rico-ideológicas: isto é, o conhecimento arcaico como uma projeção “ cultural”, etc. O que significa dizer, ademais, que Bachelard, pensador da ciência, sentiu-se obrigado a pensar a totalidade dos discursos. Outra, no entanto, é a direção das geometrizações de Foucault ou de suas reduções epistêmicas. A “arqueologia” se produz como filosofia da história e seu movimento analítico está repleto de uma filosofia apocalítica (a finitude do homem e a representação) que acaba por engolir a pertinência mesma dos levantamentos histórico-discursivos de Foucault. Seja como fôr, seria certamente desgastante procurar delimitar aqui aquêles lugares onde, na obra de Foucault, a história, as distinções discursivas, a ciência e a ideologia, etc, são como que recusadas em nome de uma aspiração filosófico-lingüística, ademais dirigida a apreender uma estrutura invisível e a fixar as características da “parole” em suas determinações.
Seja como fôr, e por uma comodidade nossa, em meio às numerosas questões que os trabalhos de Foucault des-
(11) As aspas utilizadas aqui têm a mesma pertinência que aquelas aplicadas à denominação de "primitivo" em etnologia— pelo menos em princípio. Isto é, um discurso é "normal" ou “louco" na medida em que pudermos, mais tarde ou mais cedo, produzir uma ciência dos discursos ideológicos^ e por aí explicá-los. As acepções "normal" e a de "loucura" são certamente arbitrárias, mas enquanto não fôr possível pensar a totalidade das questões que cercam as "propriedades” dêstes discursos e suas diferenças com os discursos do “corte" todo trabalho aqui será relativamente “filosófico".
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pertam, escolheremos a sua recusa do corte epistemológico (bachelardiano-marxista) e a forma pela qual esta recusa se acha presente em sua obra. Foucault recusa esta distinção, isto é, a distinção entre ideologia e ciência nos têrmos em que a problemática do corte epistemológico se coloca, e para se certificar disso basta citar alguns dos seus textos. Por exemplo, em Maladie mentale et psychologie (12) êle diz, a respeito da psicanálise: “a partir dos meados do século X IX o limiar de sensibilidade à loucura baixou consideràvelmente na nossa sociedade; a existência da psicanálise é o testemunho dêste rebaixamento na medida em que ela é tanto o efeito quanto a causa do fato” — é claro que aqui, para Foucault, o estatuto científico da psicanálise está subsumido entre outros discursos, todos ideológicos, que testemunham uma maior ou menor sensibilidade à loucura na “história”. No Naissance de la Clinique (13) Foucault, em seu laborioso levantamento “ do desenvolvimento da observação médica e de seus métodos durante apenas meio século” não se preocupa em pensar uma clínica — se assim podemos dizer — não apenas no interior dos discursos ideológicos mas também e sobretudo por respeito aos discursos científicos. “O que era fundamentalmente invisível se oferece de repente à clareza do olhar, num movimento em aparência tão simples, tão imediato que parece ser a recompensa natural de uma experiência melhor realizada. Tem-se a impressão de que, pela primeira vez desde milênios, os médicos, livres por fim de teorias e de quimeras, consentiram cm abordar por si mesmo e na pureza de um olhar, não prevenido, o objeto de sua experiência. Mas é mister voltar à análise: são as formas da visibilidade que mudaram; o nôvo espírito médico ( . . . ) não é outra coisa que uma reorganização sintática da enfermidade na qual os limites do visível e do invisível seguem um nôvo traço” (14). Esta delimitação de um espaço discursivo único nos produtos mais gerais (ideológicos e não) de um dado momento homogeniza os discursos diferenciais e mistifica sua articulação com as outras instâncias da história.
Mas êste projeto se mantém e Les Mots et les Choses o realiza amplamente sem destoar em nada de sua tese
(12) Ibid. capítulo, "A loucuraj estrutura global".(13) Ibid. capítulo, "Conclusão”.(14) Ibid.
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fundamental. Por exemplo: “O campo epistemológico que as ciências humanas percorrem não foi prescrito de antemão: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que seja ela, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões encontrou ja mais, nos séculos X V II e XVIII, alguma coisa como o homem; porque o homem não existia (nem tão pouco a vida, a linguagem e o trabalho) ; e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum raciona- lismo premente, de algum problema científico não resolvido, de algum interêsse prático, se decidiu fazer passar o homem (bem ou mal, e com mais ou menos êxito) para o campo dos objetos científicos. . . As ciências humanas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que há a saber” (15). Ora, Foucault se omite de explicar a produção mesma dos discursos (já não digo dos discursos das ciências humanas enquanto discursos pseudo-científicos, como mostra Thomas Herbert (16), êle os tomará como discursos paralelos cuja diferença são variações de algumas regras finitas e cuja distinção em última instância deve ser interrogada fora dêles, isto é, numa episteme. A s epistemes formam um todo, uma “alma cultural” spengleriana que Foucault opera na forma de regras (tal como se fôsse um objeto lingüístico), mas que se desprendem múltiplas — descontínuas e múltiplas se revelam em seus diferentes discursos, isto é ,nos diferentes discursos que constituem “um acontecimento da ordem do saber” (17). E é o próprio Foucault quem diz que êste acontecimento “produziu-se, por uma vez, numa redistribuição geral da episteme” (18).
Não fôsse êste fundo obrigatório (filosófico) que reabsorve as análises críticas de Foucault, nós poderíamos, em certa medida, admitir que as proposições mesmas, aqui ou ali, presentes em sua obra, o conduziriam ao questionamento dos fundamentos que denunciamos como ausentes em sua obra. Isto é, os problemas todos que envolvem a produção de uma ciência dos discursos
(15) Ibid. Capítulo X.(16) "Reflexions sur la situation tlieorique des sciences sociales.. in Cahiers pour L ’Analyse n* 1 e 2.(17) e (18) Les M ots et les Choses. Cap. X.
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ideológicos. Por exemplo, suas críticas dirigidas às ciências humanas, ainda que distantes da precisão e da fundamentação das críticas de Thomas Herbert (19), se mostram de maneira geral corretas. ( “O que explica a dificuldade das “ciências humanas”, a sua perigosa familiaridade com a filosofia, o seu apoio mal definido em outros domínios do saber, e o seu caráter sempre secundário e derivado, mas também a sua pretensão ao universal, não é, como muitas vêzes se diz, a extrema densidade do objeto delas; não é o estatuto metafísico ou a indestrutível transcendência do homem de que as ciências humanas falam, mas antes a complexidade da configuração epistemológica em que elas se encontram colocadas.. .” ) (20). Para Foucault as ciências humanas se centram no “homem” como novidade no coração de uma episteme e pelas dificuldades de uma troca com as três dimensões epistemológicas aí circunscritas (as ciências matemáticas e físicas em sua .dedutividade, as ciências da linguagem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas, e enfim a terceira dimensão como a reflexão filosófica “que se desenvolve como o pensamento do Mesmo” (21), e isto na medida mesma em que se servem das outras ciências para se formalizarem relativamente. Mas esta troca das ciências humanas com as outras “ciências” é compreendida ao nível do jôgo intrínseco às possibilidades finitas de uma episteme, isto é, fora das “propriedades” do seu discurso e no campo das ideologias em geral.
Não que nos pareça errado situar as ciências humanas no rol dos discursos ideológicos, mas porque para Foucault tanto elas quanto quaisquer outras ciências se situam em última instância neste motor ideológico único que move com seu sangue a totalidade dos discursos de uma “época”. Mas Foucault não permanece aí, êle vai além e procura circunscrever o “comportamento do homem” (como êle diz) nos têrmos desta episteme, isto é, nos modelos que a ciência dos homens encontra na biologia, na economia e no estudo da linguagem. São suas estas palavras quando êle se refere à economia: “No plano da projeção da economia, o homem aparece como tendo necessidades, portanto interêsses, visando obter lucros, opondo-se a outros homens; numa palavra, surge
(19) Ibid.(20) Ibid.(21) Ibid.76
uma irredutível situação de conflito". Ainda que o que Foucault esteja querendo dizer não seja senão que “no plano da projeção da biologia o homem aparece como um ser dotado de funções” e no da linguagem o homem veja as suas condutas como significações da mesma forma que na projeção da economia o homem se tem como necessidades, isto é, em conflito; suas apreciações aqui testemunham a ausência da questão fundamental das relações destas projeções discursivas e a história. Ou ainda, como pensar a articulação destas determinações projetivas no discurso das ciências humanas e as relações sociais de produção, isto é, a história? O estreitamento artificial do enfoque (tipicamente estruturalista) e seu maneja- mento lingüístico acaba por oscilar o trabalho da análise entre a multiplicidade selvagem do material empírico e a formalização estética de sua solução teórica. Com isto ficam de fora todos os problemas e as questões se revelam verdadeiramente ausentes. Já não digo — e com isto volto a me repetir — as distinções entre os discursos ideológicos e científicos, mas a articulação destes discursos com a história. Prova disto é que Marx e Freud (e Saus- sure, subentendidamente) são vistos como atualizações puras e simples dêstes modelos nas ciências humanas, sem que Foucault se esforce, nem mesmo um pouco, para dar conta do absurdo de sua simplificação. Ora, nem Marx, nem Saussure, nem Freud, têm suas “ ciências” atribuídas no outro ideológico, nenhum dêstes cientistas do corte epistemológico trabalhou um discurso Gecundário e ilustrador dêstes modelos de que se servem as ciências humanas para se expressarem. O objeto de conhecimento da ciência da história, da psicanálise e da lingüística saussuriana — no estatuto teórico de um objeto distinto de todo e qualquer objeto real — não pretendem esgotar- -se em têrmos de “norma”, de “regra” e de “sistema”, mas se apropriarem de uma dada realidade na forma de conhecimentos. Isto é, mais do que efeitos de um dado motor epistêmico constituem discursos específicos que trocam operacionalmente com a história e que a ela pertencem.
Mas Foucault não pensa assim e sua posição pode ser auferida, sem lugar a dúvidas, dêste seu outro texto: “As “ciências do homem” fazem parte da episteme moderna como a química ou a medicina ou qualquer outra ciência ou, ainda, como a gramática e a história natural faziam parte da episteme clássica. Mas dizer que elas
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fazem parte do campo epistemológico significa apenas que nêle enraizam a sua positividade, que nêle encontram a sua condição de existência, que não são portanto apenas ilusões, quimeras pseudo-científicas, motivadas ao nível das opiniões, dos interêsses, das crenças, que elas não são o que outros denominam pelo nome bizarro de “ideologias”. Todavia, isto não significa que elas sejam ciências.” (22)
Um discurso é um discurso porque desce raízes às epistemes estanques e porisso mesmo parece ser para Foucault algo mais que “ideologia” e algo menos que “ciência”. Ora, o que são afinal êstes discursos senão algo tão misterioso quanto estas palavras de Les Mots et les Choses a respeito das condições dos discursos, isto é, das epistemes como “disposições que desapareceriam tal como apareceram” e “por algum acontecimento que podemos, quando muito, pressentir a possibilidade. . .” Os discursos , enfim, se identificam nas regras finitas das epistemes, e ficam abandonadas ao vazio as distinções entre os discursos ideológicos e científicos, na mesma medida em que por um outro lado Foucault se desgasta em distinções relativas incapazes por si mesmas de fundarem uma teoria dos discursos diferenciais.
E é êle quem. diz literalmente que qualquer ciência interrogada “arqueològicamente” revela sempre “a configuração epistemológica” que a tornou possível, daí que mesmo procuran-do distinguir a ciência como “outras configurações do saber” , as subordina a êste solo tirânico e geométrico. A história, por exemplo, e seu estatuto teórico na ciência da história, fica relegada às disposições misteriosas de uma episteme que nos impõe a convicção nova “de que atividades tão particularmente humanas como o trabalho ou a linguagem possuíam, em si mesmas, uma historicidade que não podia encontrar-se na grande narrativa comum às coisas e aos homens”. Esquece a problemática da produtividade conceituai, sua sistemática própria, sua articulação e sua autonomia com a história — reduz-se esta história, produzida pela ciência da história, a uma sucessão de epistemes fechadas em si mesmas, nos têrmos de “história geral” (23). Acredi- ta-se que a distinção de uma história ademais indistinta da natureza e do homem de uma história que se tra-
(22) Ibid.(23 ) L ’Archéologie du Savoir.
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balha nas distintas histórias de suas instâncias é puro reflexo (mesmo se “lingüístico” ) de uma episteme irrompida do nada. A ciência da história e a psicanálise são para Foucault as tais “ciências humanas” que êle sublinha em seu estatuto não plenamente científico, ou não- -científico mesmo, em vista de trazerem em seu bôjo esta carga complexa e ilimitada que é o “homem”.
Mas se por um lado êle é radicalmente indiferente à ciência da história — posição que a partir de Archéologie ãu Savoir começa a se corrigir em parte — já por respeito à psicanálise Foucault é cheio de mesuras: “A psicanálise e a etnologia ocupam no nosso saber um lugar privilegiado”. Mas que lugar privilegiado? E as esperanças se desvanecem, diz o autor: “Não decerto porque teriam, melhor do que qualquer outra ciência humana, assente sua positividade e realizado, enfim, o velho projeto de serem verdadeiramente científicas”, mas sim porque no conhecimento do homem “formam por certo um perpétuo princípio de inquietude. . .” Mas isto só pode ser pensado e compreendido, diz Foucault, se analisarmos a posição e a função que preenchem “no espaço geral da episteme”.
Não nos cabe aqui criticar a fundo (24) aquilo que Foucault pensa ser a psicanálise, mas tão-sòmente mostrar a subordinação à episteme que êle também impõe a esta ciência. Sua análise em têrmos da “representação” e da “finitude do homem”, como conteúdo e objeto da psicanálise, ou da psicanálise como uma ciência do homem que, à diferença de suas vizinhas, dirige-se na mesma direção ( “mas com o olhar voltado em sentido cont rá r io ...” ), constitui para nós outras tantas especulações que nada acrescentam ou tiram desta ciência. Da mesma forma se tomarmos esta pergunta de Foucault — ainda no corpo de suas especulações sôbre a psicanálise — , isto é, de que “não é por acaso o “desejo” o que permanece sempre impensado no âmago do pensamento?” (25), e se considerarmos também sua resposta explicitamente afirmativa, isto é, de que é êle mesmo (o desejo) que permanece impensado, damos-nos conta então de que, por um outro lado, Foucault procura sepultar na psicanálise aquilo que ela tem de não-especulativo e portanto de científico.
(24) As questões que neste artigo ficam por aberto se encontram analisadas no livro de onde foram extraídas estas páginas.(25) Les M ots et les C h o s e s capítulo X.
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Freud comenta o “desejo” como aquilo que “ é o mais agradável” , na medida em que o encara como um dos pólos do conflito defensivo, e êste têrmo passa então a ter um lugar preciso na economia de suas explicações dos aparelhos psíquicos. Por um outro lado — conforme a nossa leitura de Freud — o “desejo” traz em seu bôjo a questão do engajamento da criança (fôrça de trabalho) no trabalho psíquico como processos de trabalho específicos que Freud analisa.
Ora, o abandono dêstes conceitos, precisos e sistematizados, do pensamento freudiano, pelas acepções filosóficas, muito gerais, do “impensado”, da “finitude do homem”, etc, significa, uma dissolução do discurso psica- nalítico com a qual não estamos em nada de acôrdo. E nos parece o mesmo êrro situar a psicanálise (a etnologia) e a lingüística nos limites dêsse “homem” descoberto e dêsse “homem” que “se começa a matar”. ( “Mas, já que a lingüística não fala do homem, tal como a psicanálise ou a etnologia, não é isso uma maneira de o conduzir ao seu fim?” (26). Estas ciências ficam então sujeitadas a êste postulado em-si de uma episteme nova: o homem descoberto, etc. E dêsse comprometimento das ciências (da história, da psicanálise e da lingüística) com uma “arqueologia” se desprende também um enfoque equívoco da estrutura própria de cada uma delas em par* ticular — as regras que os discursos paralelamente combinam de forma diferente e que são, a meu ver, insuficientes para produzirem o estatuto teórico dêstes discursos.
Para Foucault, por exemplo, como ademais para os estruturalistas (27), a lingüística ganha a importância de instrumento cientifizador de tôda e qualquer outra ciência humana. Foucault chega a chamá-la de uma espécie de matemática de nossos tempos, o que eqüivale a transportar para a lingüística um grande número de preconceitos que cercam o estatuto e o uso que se faz da matemática. Isto é, que o uso da matemática produz a “ cien-
(26) Ibid.(27) Foucault pretende não ser um "estruturalista”, mas esta recusa se encontra sob diversas formas em cada um dos estrutura- listas.80
tificidade” de outras prováveis ciências (28), ou que ã matemática seja uma ciência de reserva das outras ciências, e com isto se procura ignorar sua estrutura de produção e de reprodução de um objeto de conhecimento. Quanto à lingüística, esta posição só tem a garantir o estatuto ideológico de uma ciência “neutra”, sem comprometimentos históricos — o que ademais rejeitamos em nossa leitura da lingüística do corte em F. de Saus- sure.
Mas até mesmo esta questão em Foucault é ambígua, pois de um lado a lingüística (e a temática do signifi- cante) dirige todo o seu trabalho, mas de outro lado a lingüística, como tal, aparece para Foucault como indício do desaparecimento do “homem”. E tudo isso, a sua vez, casa mal com o estatuto de uma lingüística em si destacada dos conteúdos históricos. A lingüística subjacente no estruturalismo foucaultiano, a lingüística como sinal de uma crise epistêmica e a lingüística como matemática moderna se entrecruzam em seus sentidos e acepções diferenciais.
Seja como fôr, o que perdura é sua filosofia da história, suas unidades epistêmicas estanques como objeto subjacente de uma “arqueologia do saber”. No seu penúltimo livro (29) Foucault acaba por subordinar, uma outra vez, a análise dos discursos em geral e do discurso científico em particular a uma história arqueológica: “A êste nível a cientificidade não serve de norma: o que se esforça por colocar a nu, nesta história arqueológica, são as práticas discursivas na medida em que elas dão lugar a um saber, e em que êste saber ganha o estatuto e o papel de ciência” (30). E logo depois: “A análise das formações discursivas, das positividades e do saber em suas relações com as figuras epistemológicas e as ciências é o que se denominou, para a distinguir das outras formas possíveis de uma história das ciências, a análise da episteme” (31). Koucault se reafirma e distancia por respeito — não .-tpenas a um tipo de solução — às questões da prioridade
(28) Vide nosso trabalho “Teoria das leituras”. Texto de autores lunsileiros dedicado à problemática da Ciência. Ed. Vozes.(29) L ’Archéologie du Savoir, capítulo "Science et Savoir" pága /■I8-9.(.10) Ibid i :u ) Ibid.
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teórica da ciência da história, da ciência dos discursos ideológicos, do corte, da teoria da ciência e da teoria da história da ciência reaparece e se consolida.
Pouco importa que êle se defenda, e que êle nos diga que podemos suspeitar que esta episteme “ . .. seja qualquer coisa como uma visão do mundo, um segmento de história comum a todos os conhecimentos, e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pensamento. . . ” (32) etc, etc. .. Pois bem, se episteme não é tudo isso, o que é enfim? E Foucault mesmo responde: “Por episteme, se entende, de fato, o conjunto das relações podendo unir, numa mesma época dada, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados: ( . . . ) é o conjunto das relações que se pode descobrir, para uma época dada, entre as ciências, quando se analisa ao nível das regularidades discursivas” (33).
Ora, se não se trata de uma “alma cultural” spengle- riana, de um espírito, de uma natureza, de uma “estrutura profunda lingüística e inata (Chom sky), se trata ou se poderia tratar destas mesmas coisas à maneira de um enfoque estruturalista-lingüístico. A substância convertida ao claro-escuro das relações lingüísticas, da agilidade e da abstração dos significantes por si mesmos, enfim a episteme, como diz Foucault, como aquilo “ . . . que toma possível a existência de figuras epistemológicas e das ciências.” (34).
Com tudo isso não podemos estar de acôrdo e nos situamos, criticamente, tal como já permitimos entrever, nas teses mesmas que a recente escola francesa de epis- temologia, que tem em Althusser a sua liderança, mostrou-nos e desenvolveu através de livros e ensaios nestes últimos anos. Mas muito mais que êstes epistemólogos, os grandes cientistas da história que são Marx, Freud e Saussure — tanto quanto Bachelard (35) — , e cada
(32) Ibid.(33) Ibid., págs. 250 etc.(34) Ibid.(35) E por que também Bachelard? Na medida em que êste pensador é um pensador da totalidade dos discursos e que seu trabalho — ainda que de forma insuficiente — pressupõe de todos nós um trabalho de articulação de suas determinações e especificações dos discursos com a história.
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um a sua maneira, testemunharam para nós a importância de uma clara visão da especificidade do discurso científico e de sua diferença por respeito aos discursos ideológicos. De outro lado, no entanto, suas análises (36) não se detiveram em precisar e aprofundar uma episte- mologia que, à maneira de uma “exposição” definitiva, fôsse o acabamento teórico das ciências novas que produziram.
As questões do corte, do objeto de conhecimento, da apropriação do real pelo conhecimento, da teoria da ciência e da teoria da história da ciência, e enfim, de uma ciência dos discursos ideológicos continua mais ou menos presente, como uma questão aberta, nos trabalhos dos mais significativos epistemólogos da nossa época.
Parece-nos que estas reflexões sôbre a teoria da ciência e a situação de um dos ramos da ciência da história — aquêle que se detém nos estudos das diferenças entre os discursos ideológicos e os científicos — e de como um projeto somente realizado na teoria da história da ciência — que para nós, em virtude da produção teórica do conceito de “história da ciência” e do conceito mesmo de ciência, constitui a verdadeira teoria da ciência — , parece-nos enfim que estas reflexões permitem- -nos pensar melhor as questões geralmente levantadas pelas posições adotadas por Foucault.
Não distinguindo êle o discurso científico, pelo menos ao nível do corte epistemológico, dos discursos ideológicos e circunscrevendo para êstes discursos em comum estruturas epistêmicas descontínuas, Foucault faz das ciências práticas que desconhecem o fundo sôbre o qual se fazem. Isto é, as reduz às condições dos discursos ideológicos, enquanto discursos que desconhecem-reconhecem e que são contínuos com as formações sociais. Ora, a verdade porém é que uma teoria da ciência não constitui uma reflexão “arqueológica” da ciência, pois a ciência não tem senão a si mesma como estrutura, e esta reflexão perfaz aqui como que uma análise que se dirige a esta ausência de solo ou então a uma estrutura autônoma da ciência comparativamente com a prática ideológica e sua continuidade.
(36) Quanto a Bachelard nós podemos inverter os têrmos desta expressão: Bachelard aprofundou suas teses epistemológicas sem trabalhar a fundo a problemática da articulação dos discursos com uma história científica.
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A reflexão do corte epistemológico, como já dissemos, vai além de uma caracterização da estrutura do discurso científico para ser uma análise cujo sujeito é mais a ciência da história que a filosofia da ciência. O que impede que ela tome a forma de uma “arqueologia” das ciências senão quando esta arqueologia deixe de ser uma especulação sôbre as ciências e se converta com a ciência da história em teoria da ciência. E se converta, enfim, às questões que envolvem efetivamente esta teoria tais como a necessidade, intrínseca a ela, de ser pensada e elaborada numa teoria da história da ciência. E isto porque ela — entre outras coisas — ao procurar pensar a transição de “modos teóricos” numa ciência estabelecida vê-se obrigada à elaboração de uma “teoria da constituição” de tal ou qual discurso científico (sua genealogia), o que significa distingui-la das questões em tôrno do corte epistemológico — que ademais ela pressupõe de maneira fundamental — visto que estas questões pertencem à “teoria da ciência já clássica” , se assim podemos dizer, e portanto sediadas na ciência da história. Isto é, mais precisamente, a problemática do corte encara discursos diferentes (ideológico e científico) e só pode encará-los na ciência da história, enquanto uma teoria da ciência verdadeira (armada na problemática do conceito de história da ciência, ou ainda na teoria da história da ciência) encara um mesmo discurso e as questões que cercam a sua história específica. Daí que as questões da verdadeira história da ciência sejam, tanto quanto a estrutura do seu discurso específico, os problemas da transição, da constituição de um nôvo “modo teórico”, etc. O que significa, no caso, produzir teoricamente os invariantes e as combinações dos discursos (científicos), isto é, conhecer a estrutura de produção dêstes discursos.
Enfim, não se pode falar de “arqueologia” das ciências, e a problemática que envolve e fundamenta a teoria da ciência — no seu sentido mais geral — não tem nada a ver como uma tal “ arqueologia”, pelo contrário, ela reconhece pensando a especificidade e as diferenças do discurso científico sua autonomia relativa, seu estatuto relativamente desenraizado. E até mesmo tudo aquilo que poderia ser uma episteme circunscrita e descontínua (conforme a “arqueologia” ) dos discursos ideológicos, constitui, para nós, na verdade, tôda uma outra coisa. Isto é, os discursos ideológicos numa estrutura social explicam-se nos conceitos já produzidos e se produzindo da
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ciência da história na forma agora de uma ciência dos discursos ideológicos enquanto ciência de uma de suas regiões.
Ê necessário ainda que se previna que se Foucault trabalha com uma grande parte dos conceitos estrutura- listas (37) — significante, descontinuidade, língua, níveis, unidades e regras — êle também faz uso de outras tantas noções, mas que nem as primeiras nem as últimas podem nos levar à ilusão de um parentesco entre os têr- mos da “arqueologia” foucaultiana e os conceitos utilizados pela ciência da história. Aproximação que se tornou costume entre os marxistas “festivos” , preocupados que estão em acoplar a ciência da história com tôda e qualquer filosofia esterilizante.
Estas aproximações não devem ser despreendidas do fato de que tôda e qualquer abordagem dos discursos pareceria levar, como que fatalmente, êste ou aquêle pensador às questões que a ciência da história encara. Não se vai espontaneamente à ciência da história, se vai a ela por um trabalho que subverte os têrmos mesmos da “espontaneidade” filosófica. Seria ademais ingênuo supor que Foucault estivesse a caminho de uma reformulação de suas posições, pois a análise de sua problemática — no UArchéologie du Savoir — prova o contrário. Esta mesma problemática que já tratamos e que é absolutamente incompatível com o corte epistemológico, com as questões da articulação dos discursos com a história (como conceito produzido pela ciência da história), com as distinções dos discursos “normal” e da “loucura” (e com os discursos psicopatológicos) no interior de uma ciência dos discursos ideológicos. Esta última ciência (que unida à psicanálise) se debruçaria sôbre os discursos e produziria a teoria de suas estruturas de produção. Possibilitando-nos compreender as diferenças dos discursos em sua dinâmica própria e suas articulações com as sociedades de classe e com as sociedades sem classe.
Por exemplo, consideremos agora os têrmos da resposta (38) de Foucault a 11* questão apresentada a êle pela equipe da revista UEsprit. A questão é: “Um pen-
(37) Mesmo quando êstes conceitos se revestem de outras roupagens, tais como os de episteme, discursos, positividades, saber, arquivo, etc.(38) JRéponse à une question, M. Foucault: L 'Esprit, maio de 1968.
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sarnento que introduz o constrangimento do sistema e a descontinuidade na história do espírito não retira todo fundamento a uma intervenção política progressista? Não acaba êle no dilema seguinte: — ou na aceitação do sistema, — ou no apêlo ao acontecimento selvagem, à irrupção de uma violência exterior, a única capaz de desarranjar o sistema?”
De início Foucault considera correta a questão e reconhece a verdade das acusações que a êle se dirigem. Isto é, reconhece êle que em seu pensamento está fortemente sublinhada a importância dos “sistemas” e das “descontinuidades”. Mas êle se defende. Desde logo previne que no seu pensamento não se trata de “sistema” no singular ou de “descontinuidade” no singular, mas de “sistema” e de “descontinuidade” no plural, já que êle, Foucault, é “pluralista” (39). Ê pluralista, confessa Foucault, porque seu objeto sempre foi o da individualização dos discursos, para o qual produziu algumas regras de identificação: critérios de formação, critérios de transformação, e critérios de correlação (40). Critérios êstes que, segundo Foucault, “permitem subsistir os têrmos da história totalizante ( . . . ) e permitem descrever, como episteme de uma época, não a soma de seus conhecimentos, ou o estilo geral de suas pesquisas, mas a separação, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seus múltiplos discursos científicos” . Ou melhor, êstes critérios permitem operar distinções relativas entre os discursos que, em última instância, se prescrevem de uma episteme: “ a episteme não é uma espécie de grande teoria subjacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto e sem dúvida indefinidamente descritível de relações” (41), é um objeto real de uma “ lingüística” empírica, agora convertida na filosofia de todos os discursos.
São parecidos os argumentos que Foucault utiliza para justificar seu uso radical das “descontinuidades”, e como que não se dando conta que é falsa (e ideológica) a oposição em si do “contínuo” e do “descontínuo” êle procura alimentar suas razões no fracasso das posições “continuistas” em história. Fazendo desta última uma análise descritiva das descontinuidades em suas trans-
(39) Ibid. pág. 851.(40) Ibid. págs. 852-3.(41) Ibid. pág. 853.
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formações (42). Mas o autor da Réponse a une ques- tion mergulha ainda mais na fragilidade de suas posições ao se defender dos argumentos da equipe do UEsprit (cuja filosofia “humanista” nós conhecemos e deploramos) que procura criticar o aspecto lingüístico- -formal-abstrato das análises de Foucault. Mas para isto as “sentinelas” do nôvo (velho) humanismo do U E s prit se referem ao conteúdo semântico, humano e histórico dos discursos — a intenção dos homeris. Foucault se deixa aprisionar na armadilha — onde ademais sempre estêve — e responde afirmando que êstes senhores “têm razão” : “Vocês têm razão: o que eu analiso nos discursos não é o sistema de sua língua, nem de uma maneira geral as regras formais de sua construção ( . . . ) A questão que eu coloco é aquela, não dos códigos, mas dos acontecimentos. . .” (43). Ora, Foucault é um empi- rista, é um hermeneuta das ocorrências, um esquadrinha- dor dos discursos, na medida em que por aí êle produz uma “arqueologia” de suas razões estruturais subjacentes : “ . . . o que eu faço . . . é uma arqueologia: isto é, como seu nome indica, de uma maneira aliás evidente, a descrição do arquivo” (44).
Êle descreve as regras empíricas de um objeto empírico, “ . .. a massa dos textos que puderam ser recolhidos numa época dada” , e desta esquemática etnografia Foucault salta para a etnologia fantástica das epistemes estanques.
Ê então, somente depois de se empenhar em justificar a validade “teórica” do seu empreendimento, que êle resolve responder, afinal, à questão que lhe foi formulada: isto é, as relações entre seu pensamento e uma certa prática política. Foucault divide a questão em duas respostas, a primeira concerne a validade ou não de suas análises e críticas no campo específico dos seus trabalhos: a história das idéias, das ciências, etc. E a outra resposta procura encarar a relação entre tudo isso e uma política progressista. Não queremos negar — como já dissemos no início dêste trabalho — o papel de Foucault numa certa crítica ao historicismo, mas por outro lado esta “crítica”, de cunho estruturalista, terminou por se dissolver na pobreza mesma dos seus fundamentos. A s episte-
(42) Ibid. pág. 858.(43) Ibid. pág. 858.(44) Ibid. pág. 859.
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mes foucaultianas e o “inconsciente vazio” de Lévi-Strauss se eqüivalem. Ademais nenhuma crítica é válida ou durável se não fôr exercida no lugar — na problemática científica — de onde ela se justifica e se sustenta teoricamente. A única crítica efetiva e cientificamente indiscutível ao historicismo foi e é exercida na ciência da história.
Mas isto ainda não é tudo, e, como devemos concluir nossas críticas, perguntamos como pôde Foucault pensar que poderia falar em política à margem de uma ciência da história? Como pode êle — ao aceitar a questão — partilhar da idéia de uma “política progressista” ? Ê radicalmente impossível conhecer ou partilhar — prática e teoricamente — uma posição política senão pela ciência da história e, nesta ciência, pelo estudo da instância do político que nela constitui uma das regiões irredutíveis.
Pois bem, na ausência de tudo isso Foucault justifica seu “progressismo” político no vigor crítico ao “ con- tinuismo” ao “historicismo” e na importância (verdadeira ou não) de suas reflexões sôbre as descontinuidades epistêmicas. Isto é, num mesmo plano que os “espiritualistas” da revista UEsprit justificam — pela pergunta — uma adesão à “política progressista” dos derradeiros liberais do pensamento francês. Uns e outros — Foucault e Domenach — são “espontaneamente” o ser-de-classe a que pertencem, isto é, nas suas fantasias da origem e da ordem êles não são senão a filosofia de suas classes de origem.
E se assim é, e se assim nos parece ser, de nada valem as justificativas de Foucault a respeito das necessidades de uma “política progressista” do saber das práticas discursivas, de estar a par de tôdas estas informações teóricas que êle, em sua filosofia, produz.
Enfim, a relação da política — já não digo “progressista”, mas de classe — com a ciência, e a ciência da história, é como tal uma questão ausente na problemática foucaultiana, e o é na medida em que êle se nega a pensar esta ciência e o corolário de questões que a cercam.
Se a descontinuidade horizontal nos permite pensar as articulações dos discursos, e suas diferenças, com a história, a descontinuidade vertical em sua profundidade abismai quer engolir e subsumir estas articulações.
Foucault ao não emprestar uma especificidade epis- temológica, marcada, aos discursos científicos, e aos dis
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cursos ideológicos, mergulha numa filosofia dos discursos em geral, que se prende à coleta — arbitrária — de traços ou enunciados estruturalmente confeccionados no sentido de produzirem “configurações epistêmicas”. O “ impensado” funciona como um princípio de seleção, radicalmente arbitrário, e é aqui, mais do que em qualquer outro lugar, que se sente o pêso da ausência de uma ciência da história e de uma ciência de uma de suas regiões: a ciência dos discursos ideológicos.
Como se dirigir (45) das configurações epistêmicas ao conflito de opiniões, ou, mais precisamente, como promover as análises das “formações ideológicas” senão através de uma ciência dos discursos ideológicos aplicada a “conjunturas ideológicas” ? As questões, enfim, do tipo de articulação dos discursos com a história, não é algo que se possa deixar em lugar secundário na análise de suas “propriedades”. Que tipo de articulação se encontra num discurso ideológico ou num discurso científico, e como problematizar as articulações, aliás diferentes, entre os discursos ideológicos do enfoque psicanalí- tico (da “estrutura de instauração” ) e dos discursos ideológicos de classe social, no enfoque propriamente da ciência dos discursos ideológicos (da “ estrutura elaborada” ) ?
Da mesma forma, as questões das “sobrevivências” discursivas (entre as epistemes para Foucault, ou entre as “formações discursivas” para nós) que, em sua complexidade, nos levariam à refletir aqui os temas — só recentemente lembrados — da transição e da revolução nas estruturas discursivas. Temas êstes que nos possibilitariam compreender as estruturas discursivas (ideológicas) circunstancialmente determinadas com uma estrutura complexa de “economia de modo” discursivo com a dominância de um dêles. Mas para isto seria preciso que tivéssemos relido tôda a problemática dos discursos ideológicos na ciência da história.
Enfim, caso não distingamos entre ciência e ideologia — para voltar aqui ao tema dominante dêste nosso trabalho — nós ficaremos como que situados num histo- ricismo radical. Isto é, prisioneiros de discursos absolu-
(45) Conforme as questões colocadas pelo corpo diretor da revista Cahiers pour L ’Analyse a Foucault: in Cahiers pour L ’Analyse, n* 9, 1968.
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tamente figurados numa episteme única e indivisível. O “impensado” se deixa manipular em suas “regras”, se deixa “fa lar” em suas descontinuidades radicais, tem a forma de qualquer coisa que a ciência recusa, e à qual ela é indiferente, mas que a filosofia recebe e habita como se fôsse a sua casa.
Seja como fôr, Foucault parece se aproximar, no fim do seu penúltimo livro (46), e numa de suas últimas reflexões dentro dêste trabalho (se aproximar daquilo que o nega), daquilo que enfim move grande parte de nossas críticas as suas posições. Êle se pergunta pelos limites que estão presentes em sua “arqueologia” ao se interrogar somente pelos discursos “científicos”. Não será imprescindível, pensa Foucault, se perguntar também — até mesmo para se ter clareza a respeito dos discursos científicos — pela totalidade das representações discursivas? Certamente que sim, e ainda que êle não o diga é necessário produzir uma ciência dos discursos ideológicos, e dar a esta ciência a amplitude de uma abordagem que reúne em si os temas da produção em geral no hemisfério discursivo. E Foucault aqui, aparentemente, vai muito mais longe quando se refere à extensão dêsse objeto que uma “ arqueologia” (melhor seria dizer uma “ciência dos discursos ideológicos” ) abrangeria, e à extensão dêsse objeto se refere na verdade a sua incidência com as questões da história e suas manifestações sobredeterminadas nas superestruturas.
Mas a tudo isso Foucault responde (47) na forma de uma incapacidade provisória (expressão sua) para resolver de forma segura tais questões.
Êle recusa ser chamado de “filósofo” ( “Se a filosofia é memória ou retorno da origem, o que eu faço não pode, em nenhum caso, ser considerado como filosofia” (48) ), da mesma forma como êle recusa para a sua “ arqueologia” o estatuto de ciência: “É exato que eu não tenha jamais apresentado a arqueologia como uma ciência, nem mesmo como os primeiros fundamentos de uma ciência futura” (49). Ciência a que êle se recusa e que nós recusamos às suas “especulações”.
(46) L ’Archéologie du Savoir.(47) Ibid. pág. 270.(48) Ibid. pág. 268.(49) Ibid. pág. 269.
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A GRAMÁTICA DO HOMICÍDIOP or Sergio Paulo R ouanet
No fim do século passado, Nietzsche inaugurava o duro evangelho da Idade Nova ao proclamar a morte de Deus. O grito deicida de Zaratustra era o clímax de um processo de dessacralização iniciado com o advento do capitalismo, e o sintoma de uma nova forma de organizar o saber.
A cultura contemporânea está no limiar de um segundo escândalo, tão grave quanto o primeiro: a morte do homem. A burguesia européia tinha enterrado Deus em nome do homem; e o estruturalismo está liquidando o homem em nome do sistema.
A idéia da morte do homem, com efeito, é o tema central da nova cultura. N a lingüística como na etnologia; e na psicanálise como na filosofia política.1
É nessa corrente que deve ser situado o pensamento de Michel Foucault. Mais que qualquer outro escritor, Foucault tem se consagrado à construção de um saber inteiramente despojado de conotações antropocêntricas.
Daí êste ensaio: uma tentativa de estudar um pensa- dor-tipo, que encarna com grande coerência uma das categorias mais significativas do pensamento contemporâneo.
O título do ensaio não traduz nenhuma intenção polêmica, mas uma opção teórica. Os dois elementos dêsse título são estritamente descritivos. Gramática: conjunto de regras de uma arte ou ciência. Homicídio: liquidação física de alguém. A justaposição dêsses dois verbetes de dicionário descreve de forma bastante precisa o
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pensamento de Foucault. A ciência (ou arte?) é uma nova disciplina chamada a “Arqueologia do saber”. E a palavra homicídio deve ser entendida no sentido mais literal: a morte (violenta) do homem. O conceito de homicídio é uma simples categoria operatória, escolhida por seu poder explicativo e não por sua dramaticidade. O ensaio em si não é nem pretende ser neutro; mas o título, pelo menos, é axiològicamente inocente.
Talvez a melhor maneira de entrar em matéria seja partir da pergunta que ocorreria imediatamente a qualquer leitor ingênuo: por que a morte do homem?
Essa pergunta poderia ser respondida escamoteando a análise interna da obra de Foucault. Bastaria recorrer à solução mágica de um certo marxismo, e dizer que a morte do homem corresponde à ideologia da classe tecno- crática que está assumindo o poder nas sociedades industriais. Ê a solução mais confortável; tem a vantagem de desacreditar ab initio a doutrina que está sendo examinada, com um mínimo de esforço intelectual, e ainda por cima o crítico ganha títulos de defensor dos valores humanísticos. A receita para êsse tipo de análise é conhecida. Por exemplo, o tecnocrata acredita no primado da organização, considera os homens como simples cartões perfurados num circuito cibernético, e domestica a história pondo-a a serviço do sistema, isto é, transformando- -a no repertório de memórias embutidas num computador. Por outro lado, o estruturalista afirma a hegemonia das estruturas, anula o homem, e privilegia a sincronia sôbre a diacronia. Basta agora derivar uma série da outra, através de um raciocínio analógico-metafórico, e concluir que o estruturalismo é a ideologia da sociedade tecnocrática. É fácil. Mas não é sério.2 O que êsse tipo de análise deixa de lado é que o estruturalismo não é uma doutrina desarmada, que possa ser “demistificada” sem oferecer resistências. A filosofia da morte do homem tem certas defesas automáticas, que precisam em primeiro lugar ser desmontadas pela crítica. A principal é que ela própria se apresenta como uma doutrina demistifica- dora: seu objetivo central é refutar a abordagem antropológica, e a crítica baseada no conceito de ideologia é uma das armas clássicas do arsenal da antropologia. Ao crítico que diz: “A filosofia da morte do homem é uma ideologia da sociedade tecnocrática”, um partidário de Foucault poderia responder: “Mas o conceito de ideologia não é um instrumento interpretativo válido, porque
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se funda numa confusão, típica da mentalidade antropológica, entre o plano da praxis e o plano do discurso”.3 O que é preciso, antes de mais nada, é fazer um exame interno da obra de Foucault. A dimensão social brotaria como uma exigência espontânea dessa análise, e não como uma violência voluntarista imposta de fora para dentro. Um sociologismo ingênuo exporia o demistificador a ser demistificado, e o debate se perderia num jôgo insolúvel de circularidades.
Dessa forma, a pergunta: “Por que a morte do homem?” só pode ser respondida legitimamente a partir da própria obra de Foucault. Ê possível que a análise comprove a relevância teórica do conceito da morte do homem, e nesse caso não haverá remédio senão absolver os homicidas. A conclusão oposta levaria a uma reavaliação do pensamento de Foucault. Mas essa contestação resultaria da própria análise, e não de um dogma.
1. O itinerário do Homicídio
O percurso intelectual de Foucault é composto de dois momentos. O primeiro momento é o da descrição empírica de determinados segmentos históricos. O segundo é o da reflexão crítica. N a primeira fase, Foucault descreve, sucessivamente, o discurso da loucura, o discurso da medicina, e o discurso das epistemes. N a segunda, os princípios teóricos postos em prática intuitivamente nesses trabalhos empíricos são isolados e codificados. É o momento da Arqueologia. Convém, antes de passar adiante, refazer metodicamente os dois momentos dessa trajetória.A História da Loucura na Idade Clássica é o primeiro grande esforço descritivo de Foucault.4 Como o título indica, não se trata de uma história da psiquiatria, mas, literalmente, de uma história da loucura. Ou melhor, das atitudes em relação à loucura. Mais importante que o discurso psiquiátrico é o gesto que instaura a loucura, e a torna pensável para o conhecimento. O saber da loucura é derivado em relação ao gesto original de partilha, à cesura que cinde o mundo da razão e o mundo da desra- zão. A história da loucura não é portanto a história dêsse saber, mas da sensibilidade à loucura no espaço Ocidental. Nessa perspectiva, a história da loucura percorre as seguintes etapas: a indiferenciação, a segregação e o asilo.
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A primeira fase corresponde à visão renascentista da loucura. N a renascença o louco não é, como na Idade Média, o homem decaído a uma condição bestial pelo vício e pelo desregramento: é o homem essencial, que em sua natureza secreta é furor e desrazão. Os loucos são como os animais do bestiário renascentista, em oposição ao da Idade Média; não são mais as advertências pedagógicas contra a animalização do homem, mas a própria verdade do homem. A loucura mostra ao homem da Renascença a antevisão de um Apocalipse demente, um Jardim das Delícias que está nos Antípodas do Jardim do Paraíso. Bosch não oferece ao seu público a imagem da inocência recuperada, mas o impossível desejo de uma inocência utópica. A ênfase, na literatura, é um pouco distinta. A loucura não é mais verdade do mundo e a essência do homem, e sim o castigo da presunção. A tragédia é substituída pela sátira; a experiência da loucura é confiscada pela consciência moral. É essa segunda visão que vai pouco a pouco triunfar da visão plástica, em que a loucura é risco e ameaça, espelho e derrisão, imagem e aniquilamento do homem. Nos dois casos, entretanto, a loucura é imanente ao mundo. Não é Alteridade radical, que se defronta ao homem como o que é alheio à sua natureza, comò o que o nega e anula. A loucura adere à razão, na pintura ou na sátira, em Brueghel ou Erasmo, na consciência trágica e na consciência moral. Como ameaça ou como ensinamento, a loucura está instalada na vida quotidiana. “A loucura está ali, no coração das coisas e dos homens, signo irônico que dissolve as fronteiras da verdade e da quimera, guardando apenas a memória das grandes ameaças trágicas — vida mais inquieta que inquietante, agitação frívola, mobilidade da razão” 5
Segundo ato: a grande partilha da razão e da desrazão. O período clássico rompe com a hospitalidade universal da Renascença. Começam a surgir, em tôda a Europa, casas de reclusão destinadas a abrigar os anti-sociais de tôda espécie, inclusive os loucos. O classicismo é a época da grande reclusão. A razão clássica se define negativamente, como tudo o que não é desrazão, e esta é segregada nas casas de internamento. O espaço da razão é demarcado pelo mesmo gesto que demarca o que não é razão. É um gesto de partilha, que delimita o claro e o escuro, e degreda para os confins da Ordem tudo aquilo que escapa aos limites da normalidade clássica. Com essa
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partilha, a razão simultâneamente desenha o perfil do Outro e o próprio perfil. A grande reclusão do período clássico teve causas sociais bastante precisas. Pode ser vista como uma resposta dada pelo Estado ao desemprê- go gerado por uma crise econômica de excepcional gravidade. O Hospital Geral abrigava tôdas as vítimas do desemprego, mas também os ociosos em geral, os libertinos, os pródigios, os loucos. Dava trabalho aos que não trabalhavam: era uma instância da Ordem contra os que se colocavam fora da Ordem clássica, definida em termos de utilidade social. A loucura se inscrevia no espaço moral da ociosidade. O louco não era essencialmente um enfêrmo, mas um transgressor da ética mercantilista. A loucura não tinha, portanto, qualquer especificidade e podia ser assimilada às outras formas de comportamento anti-social. A sensibilidade clássica à loucura é assim a antítese da visão renascentista. A loucura não é mais o desvendamento da essência secreta do homem, mas a perversão dessa essência, definida sôbre um fundo de moralidade social. Não é mais um mundo paralelo, co-existin- do com o mundo da razão, mas o anti-Mundo, um mundo radicalmente outro, constituído negativamente por um gesto de exclusão e degrêdo.
Terceiro ato: o aparecimento do asilo. Com o início do capitalismo, e estatuto social do pobre se modifica. Na economia mercantilista, não era nem produtor nem consumidor, e podia ser segregado. Com o advento da revolução industrial, o pobre torna-se socialmente indispensável. É a reserva humana que vai operar a grande indústria. A s prisões se esvaziam. Há uma crítica política aos estabelecimentos de internamento e outras fundações, acusadas de esterilizar capitais que deveriam ser reintegrados no circuito produtivo. Além disso, o liberalismo político vai libertar os presos internados arbitràriamente, pela vontade da família ou por lettres de cachet. Todos os grupos que no período precedente coabitavam com os loucos vão sendo restituídos à liberdade, com exceção dos próprios loucos. A loucura é isolada, e passa a ocupar sozinha o espaço da reclusão. Em outras palavras, o louco se individualiza. O Hospital Geral, reservado aos anti-sociais, é substituído pelo Asilo, destinado exclusivamente aos loucos. O asilo libera a loucura para o conhecimento; a loucura se torna pensável, e adquire o estatuto de objeto para o saber.
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0 Nascimento da clínica é a próxima etapa da trajetória de Foucault. 6 Mais uma vez, não se trata de estudar a evolução da medicina, mas de mergulhar no solo mais arcaico que tornou possível essa evolução. Foucault distingue, como na análise anterior, três fases distintas: a medicina classificatória, a medicina clínica, e a medicina anátomo-patológica.
N a medicina classificatória, o importante é situar a doença num quadro de gêneros e espécies. Identificada a doença por sua inserção no quadro, o papel do médico é o de interferir o mínimo possível com a evolução natural da enfermidade, que corresponde ao ordenamento ideal da nosologia. A doença é mais importante que o doente e o médico: é uma essência pura, que acede à sua verdade visível no momento em que se integra no espaço plano da classificação. O papel da medicina é velar para “que a configuração ideal da doença. . . se converta em forma concreta, livre, totalizada enfim num quadro imóvel, simultâneo, sem espessura nem desvio, em que o reconhecimento se abra por si só sôbre a ordem das essências.”7
N o fim do século XVIII, a clínica começa a desenhar- -se, substituindo o espaço fechado da medicina nosológi- ca. A clínica está ligada a uma nova forma de percepção. N a medicina nosológica, a percepção passava pelo quadro, que servia de mediação entre o olhar do médico e a essência da doença. N a clínica, tôda mediação entre o olhar e a doença se dissolve. Abre-se diante do olhar um espaço livre, que correspondia ao grande projeto libertário da Revolução francesa — a eliminação de entraves ao comércio de bens e à circulação das pessoas. A doença se oferece inteira à soberania do olhar. O clínico tem assim um poder constitutivo, e por assim dizer produz a doença com seu olhar, ao contrário do médico da fa se anterior, mero expectador passivo. O olhar do clínico lê a doença exaustivamente, sem obscuridade nem resíduo. Os sintomas não são signos que remetem à essência da doença, pois esta é patenteada inteira nos sintomas. Além disso, todo o campo da doença é enunciável. A doença pode ser inteiramente vista, e essa visibilidade integral é correlativa de uma enunciabilidade também integral. Não existe uma natureza secreta da doença, invisível ou inefável: a doença se oferece sem opacidade ao olhar constitutivo do médico.
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Nos primeiros anos do século XIX, a clínica transita naturalmente para uma nova forma de sensibilidade. Entra em cena a medicina anátomo-patológica. A clínica era bi-dimensional, e se esgotava inteira na superfície do corpo. A nova medicina abre a dimensão da verticalidade. É uma medicina do volume, e não exclusivamente do plano. A nova forma de percepção se instaura com a introdução da autópsia na experiência médica. É a autópsia que deverá revelar a verdade da doença, chegada pela morte ao seu têrmo natural. A morte adquire assim um poder pedagógico de elucidação retrospectiva. A morte diz retroativamente a verdade da vida. O método anátomo-pa- tológico substitui a visibilidade em superfície da clínica por uma experiência mais complexa, em que a verdade somente se manifesta pela transição para o inerte. “Conhecer a vida só é dado a êsse saber derrisório. . . que a deseja ünicamente morta. . . A morte deixa o seu velho céu trágico. Transforma-se no núcleo lírico do homem: sua invisível verdade, seu segrêdo visível.” 8 O olhar vertical do método anátomo-patológico descobre o indivíduo, com a verdade infungível de suas lesões e do seu organismo. O corpo inerte que se desvenda pela autópsia pertence a um indivíduo particular, cuja doença seguiu um itinerário sui generis, e chegou a um fim singular. Pela primeira vez o saber do individual se toma possível, destruindo o grande interdito aristotélico, que limitava ao universal o campo do saber possível. B a medicina que libera para a ciência o indivíduo, sôbre a tela de fundo da finitude e da morte.
Enfim, último segmento do projeto descritivo de Foucault: palavras e. as Coisas, ou a história das episte-mes. 9 A história da loucura e da medicina incidiam sôbre zonas especializadas da percepção Ocidental. Nessa nova etapa, Foucault tenta algo como a descrição de to- talidades culturais. Seu método não é, entretanto, o da história das idéias, mas o da história das condições de possibilidade dessas idéias. A unidade de tal estudo é a episteme, isto é, o solo originário a partir de que o conhecimento se tornou possível, o a priori histórico que permite ou veda determinadas configurações do saber. A cultura européia passou por três epistemes: a renascentista, a clássica e a moderna.
A episteme da Renascença é dominada pelo conceito de similitude. A ciência consiste em procurar semelhanças entre ordens aparentemente distintas do real. A na
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tureza é um livro a decifrar, e o trabalho de decifração se reduz a encontrar semelhanças entre os fenômenos, o que é facilitado pelas assinaturas, isto é, marcas impressas nas coisas que indicam as analogias entre os diversos niveis da natureza.
A episteme clássica é regida pela categoria da Ordem. O projeto de todo saber é a constituição de uma ciência geral da ordem, que seria a matesis universal, para as naturezas simples, e a taxinomia, para as naturezas complexas. Em outras palavras: a matesis abrangeria as ciências de quantidade, e a taxinomia as da qualidade. Todo o real pode assim ser reduzido a um Quadro, que é a esquematizaçao da Ordem. A atividade do espírito não consiste mais em aproximar as coisas entre si, como na Renascença, mas em distinguí-las; não se trata mais de decifrar o Semelhante, mas de pensar a identidade e a diferença, e inseri-las num quadro, com gêneros e espécies, classes e sub-classes, hierarquias e subordinações. A possibilidade de integrar no quadro a totalidade do real é dada pelo conceito de representação, que é o grande instrumento operatório da episteme clássica. Na Renascença, entre o signo e o significado havia um terceiro elemento, que era a similitude; para que um signi- ficante pudesse significar, era necessário que fôsse ligado ao significado por um vínculo de semelhança. Na cultura clássica, o signo torna-se binário; entre o signifi- cante e o significado não existe nada. A relação entre os dois têrmos é arbitrária. Segue-se que os sistemas de signos podem representar tudo; e que tudo pode ser representado pelos signos. Se todo o real é representável, sem qualquer resíduo, sem qualquer faixa de inefabili- dade ou mistério, o projeto da ciência geral da ordem está autenticado, e o quadro geral do saber pode abrigar a totalidade do ser. A idéia da representabilidade universal do réal está contida na gramática geral, na história natural e na análise das riquezas. A gramática geral estuda a linguagem, um sistema de signos sui generis que tem a propriedade de exprimir tôdas as representações. A história natural reduz todo o campo do visível a um sistema de gêneros e espécies, isto é, constitui como descri- tível e ordenável numa taxinomia todo o domínio da em- piricidade. Enfim, a análise das riquezas estuda o fenômeno da troca, e a moeda como instrumento da troca. A moeda, com efeito, importa menos por seu valor intrínseco que por sua capacidade de servir de meio de troca,
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isto ê de representar riqueza. A moeda recebe assim séil valor de pura função de signo. A gramática geral, a história natural e a análise das riquezas manifestam assim à capacidade do real de ser exaustivamente representado. Tôda linguagem é nomeável, todo ser é classificável e tôda riqueza é monetizável: três manifestações convergentes da visão clássica, baseada na certeza de que todo o real pode ser representado, e de que tôda representação, expressa pelo Discurso, pode ser inscrita num quadro, instância suprema da Ordem.
N a episteme moderna, enfim, desaparece o espaço da representação. O fundamento do saber se encontra num domínio nôvo de objetividade, além da representação e fora do quadro. Uma nova disposição epistemoló- gica se instaura: a Ordem é substituída pela História. É a história que transforma a ciência das riquezas em economia política, e a história natural em biologia, e a gramática geral em filologia.
N a análise das riquezas a tônica era sôbre a circulação, fundada nas necessidades humanas, que eram atendidas pela troca, cujo instrumento privilegiado era a moeda. Através da moeda, os objetos adquiriam a propriedade de se representarem uns aos outros: as riquezas circulavam no espaço tabular do quadro, num circuito indefinido de representações recíprocas. A economia política fratura o quadro, expulsa os bens do espaço da representação. A ênfase se desloca da circulação para a produção, e esta é fundada no trabalho. O trabalho é externo ao mundo da representação: é uma realidade irredutível, que funda e condiciona a economia. O trabalho introduz uma historicidade radical no sistema econômico. N a análise das riquezas, não havia propriamente tempo, mas no máximo uma temporalidade circular, baseada num jôgo de interações entre a massa monetária e a quantidade de bens disponível num momento dado. Quando a quantidade de moeda aumentava, o preço dos bens se elevava, e sua produção crescia; mas o incremento da produção levava à redução dos preços, à diminuição da quantidade de moeda, e ao decréscimo da produção. Com a economia política, surge a temporalidade linear e irreversível. O trabalho acumulado se converte em capital; êste, investido, absorve mão-de-obra adicional, a qual por sua vez, acumulada, se transforma em nôvo capital. Ao tempo circular da teoria quantitativa da moe
da substitui-se o tempo cumulativo da economia política clássica. Mas a historicidade da economia leva ao fim da história. A fim de atender ao aumento da população, novas terras têm que ser postas em cultivo, e como estas se tornam cada vez mais estéreis, o preço dos víveres cresce cada vez mais, beneficiando os proprietários de terras de boa qualidade, que podem vender a preços elevados os gêneros produzidos a baixos custos. Cresce assim a renda agrícola, dos proprietários de terras; crescem também os salários nominais dos operários, a fim de permitir sua subsistência, em face da elevação dos preços dos víveres. Em conseqüência, há uma tendência à redução progressiva da renda industrial, ou lucro dos empresários, forçados a pagar um preço cada vez mais alto pela terra e pelo trabalho. Finalmente, no têrmo do processo, vem a estagnação econômica. Pressionados por uma taxa de lucros sempre decrescente, os empresários não podem mais empregar mão-de-obra adicional; a população cessa de se reproduzir; o cultivo de novas terras se torna desnecessário; e a renda agrícola se estabiliza, interrompendo sua marcha ascendente. A história leva à inércia e à petrificação da história. Nessa perspectiva, Ricardo e Marx representam apenas duas opções diferentes no interior do mesmo processo. Para Ricardo, a história aparece com seu rosto positivo: graças à dinâmica da história, a condição humana original de carência, gerada pela avareza da terra, pode ser parcialmente vencida, pois no fim do processo, suprimido o excesso de população pela contração das oportunidades de emprêgo, a economia, destemporalizada, poderá atender às necessidades humanas. Em Marx, a história se apresenta como negatividade, anuladora do homem e responsável pela alienação do proletariado. Graças à própria história, em condições determinadas historicamente, a classe operária conseguirá reapropriar sua essência alienada na história e pela história, inaugurando uma ordem além do tempo. Ê por isso que Marx não nega a economia política clássica, pois tanto o marxismo como a política representam manifestações de superfície do mesmo fenômeno arqueológico. “Suas gesticulações limitam-se a suscitar algumas ondas e desenhar rugas na superfície: são tempestades unicamente na piscina das crianças.” 10
Assim como o trabalho constituiu a economia política áo introduzir a história na análise das riquezas, o aparecimento do conceito de vida introduziu na ciência
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dos sêres vivos as condições de possibilidade de uma história, constituindo a biologia. No período clássico, não existia a vida, mas apenas o ser vivo. Os sêres vivos se concatenavam entre si e com os outros sêres numa cadeia ininterrupta de continuidades, no interior de um quadro. A episteme moderna dissolve o quadro, liberta os sêres vivos, e os emancipa do mundo inorgânico. A s identidades e oposições dêsses sêres vivos, finalmente autônomos, não se manifestam mais por Relações de vizinhança ou subordinação* no espaço do quadro, mas se ordenam em função de um foco unitário — a vida — exterior às representações. É da vida e suas exigências que derivam as funções, como a respiração, digestão, reprodução, que existem em quase todos os sêres vivos como condições necessárias à manutenção da vida; e para que às funções sejam atendidas, existem os órgãos, por sua vez divididos em superficiais e profundos. Assim o ser vivo é definido por um princípio interno de organização, por uma rêde de articulações específicas, cujo fundamento último é a vida, e não por sua posição na superfície lisa de uma cadeia de relações espaciais. Além disso, desde o início do século X IX se esboça uma análise das relações entre o ser vivo e suas condições exteriores de existência. Ê assim que Cuvier já notava que a dentição e o aparelho digestivo de certos mamíferos guardavam uma relação definida com o tipo de alimentação de cada animal. Ao definir o ser vivo por sua estrutura interna, e não por sua localização numa taxinomia, e ao postular uma interação entre a estrutura anátomo-fisiológica do animal e suas condições externas de existência, a episteme moderna permite a introdução da historicidade na vida. O evolucionismo só se tornou arqueològicamente possível com a ruptura da taxinomia clássica, que permitiu ao ser vivo, em sua estrutura interna e em suas relações com o ambiente, ser pensado como sujeito de uma história.
N a linguagem, finalmente, ocorre a mesma erosão da Ordem clássica. N a epistemia clássica, a linguagem tinha o poder de representar tôdas as representações. No período moderno, a linguagem continua a representar, mas a representação passou a ser secundária. A palavra não é significativa na medida em que exprime uma representação, mas na medida em que faz parte de uma organização gramatical que assegura de forma autônoma a coerência da linguagem. Esta adquire uma espes
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sura própria, que independe de sua capacidade de exprimir representações. A linguagem se transforma em objeto para o saber; é liberta do continuum do quadro, e essa libertação desvenda a sua estrutura. Estrutura fundamentalmente diacrônica: só se torna transparente quando confrontada com seus estados anteriores, e com o conjunto de suas transformações virtuais. A linguagem é tôda inteira atravessada pela história. Mas essa historicidade só se revela depois que a linguagem consegue evadir-se do espaço quadriculado do saber clássico: depois que deixa de ser a matéria neutra pela qual a representação se representa a si mesma e se transforma em objeto dotado de densidade específica. A filologia é êsse salto mortal da linguagem fora do mundo da representação.
Tanto no caso da economia política como no da biologia e no da filologia o fenômeno é portanto o mesmo: o saber abandonando o espaço da representação. N a episteme clássica, as coisas e as representações eram indissociáveis — tôdas as coisas eram representáveis, e tôdas as representações, articuladas pelo Discurso, correspondiam a coisas. A modernidade rompeu essa antiga aliança. De um lado estão às coisas, em seus nexos, suas nervuras, sua organização própria; do outro lado, as representações, sempre mais ou menos imprecisas, de uma realidade mais ou menos secreta. Atrás da economia política existe o trabalho, atrás da biologia existe a vida, atrás da linguagem existe a história. As coisas só se dão através de uma subjetividade, de uma consciência individual. Através do homem — figura nova, que serve de eixo para as representações, e de filtro pelo qual o ser acede ao saber, quando as coisas se descolam das representações. Personagem essencial, mas precário, gerado pela história, e sujeito a tôdas as vicissitudes da historicidade, inclusive ao envelhecimento e à morte.
Nos três segmentos da etapa descritiva existe uma unidade fácil de identificar. Assim, a história da loucura, da clínica e das epistemes seguem tôdas o mesmo plano formal. A sucessão é delimitada em fases, segundo um esquema ternário. A historia da loucura abrange a fase da indiferenciação, da segregação e do asilo; a história da clínica passa pela medicina nosológica, clínica e anátomo-patológica; a história das epistemes inclui a episteme renascentista, a clássica e a moderna. Além disso, um confronto dos três discursos permite estabele
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cer uma correspondência geral entre as diversas fases. Êsse confronto não foi feito pelo próprio Foucault, mas a superposição das etapas é incontestável. Assim, a episteme moderna introduz nas coisas uma dimensão de inferioridade, e o homem aparece sôbre o fundo de sua própria finitude; a medicina anátomo-patológica substitui o espaço bi-dimensional da nosologia pelo espaço profundo, vertical, do volume, e o indivíduo surge sôbre a tela de fundo da morte; e a fase asilar permite o aparecimento do louco, definido em têrmos de sua própria patologia, e não em têrmos de utilidade social, como no tempo da grande reclusão.
Esgotado o momento descritivo, trata-se agora para Foucault de dar estatuto teórico aos princípios postos em prática na composição dos livros anteriores. Êsse trabalho de sistematização e codificação é o objetivo da A rqueologia do Saber. 11
Em sua definição mais geral, a arqueologia é a ciência das formações discursivas. A s formações discursivas são conjuntos de enunciados, isto é, segmentos de discursos, definidos não em sua materialidade de átomos mas por sua forma de existência — uma forma de existência que exclui qualquer referência a realidades trans- -discursivas. A tarefa da arqueologia é descrever essas formações discursivas. Tal descrição fôra feita antes no nível empírico e quase intuitivo — assim foi descrita a formação psicopatológica, a formação médica, as várias epistemes, definidas como uma rêde de coerências, numa época,dada, entre as distintas formações discursivas. A arqueologia é uma reflexão crítica e normativa sôbre tais descrições.
As formações discursivas são constituídas por práticas discursivas que determinam: (a ) os objetos, (b ) as modalidades de enunciação dos sujeitos, (c ) os conceitos, e (d ) as escolhas temáticas.
Cada formação discursiva comporta um certo número de objetos, que variam historicamente. Assim os objetos da psiquiatria do século X IX (agitações motrizes, aberrações sexuais, lesões do sistema nervoso central) são distintos dos objetos sôbre os quais falava a psico- -patologia do século X V III (monomania, imbecilidade). Tôda formação discursiva é um caleidoscópio de objetos que surgem e de objetos que desaparecem. Não é possível, numa formação discursiva, falar de qualquer coisa, mas apenas do que é permitido pelas regras de formação
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dos objetos. Segundo Foucault, os objetos se formam pela ação recíproca de superfícies de emergência, de instâncias de delimitações e de critérios de especificação. Superfícies de emergência: as esferas em que afloram os objetos. Tais superfícies variam segundo a formação discursiva e a época. No caso da psicopatologia do século XIX, eram a família, a comunidade religiosa, o meio profissional, cada um com sua normatividade própria, com seus valores, com sua margem de tolerância em relação aos desvios. Instâncias de delimitação: as instituições que definem o objeto e o separam de objetos afins. Essas instâncias foram, para retomar o mesmo exemplo, a medicina, como corpo institucionalizado, que separava a loucura da sanidade segundo critérios considerados científicos; a justiça, que separava o delito praticado por um criminoso penalmente irresponsável de um delito praticado por uma pessoa mentalmente sadia; a autoridade religiosa, que separava o comportamento místico-extáti- co do comportamento simplesmente patológico; a crítica literária, que separava a literatura não-convencional mas dotada de valor artístico de uma literatura não convencional sem valor artístico. Enfim, critérios de especificação: os sistemas de categorias, pelos quais as definições podem ser formuladas — o corpo, a alma, o jôgo das in- terrelações neuro-psicológicas. A unidade de uma formação discursiva é dada portanto não pelos objetos, que se transformam continuamente, mas por um conjunto de relações que permitem ou excluem certos objetos. E como essas relações são externas ao discurso, mas aderem a êste, como sua condição de possibilidade, podemos dizer que os objetos do discurso são constituídos pelo próprio discurso.
Em seguida é preciso determinar as modalidades de env/ncWção dos sujeitos no interior de uma formação discursiva. Ê necessário conhecer o estatuto do sujeito: saber, numa formação discursiva, quem fala, com que títulos, sob que condições, com que autoridade, segundo que sistema de legitimação institucional. Assim, o sujeito do discurso médico é o médico, cujo estatuto numa sociedade dada tem que ser especificado exaustivamente. Além disso, é preciso determinar o espaço institucional de onde o discurso é proferido: o hospital, o laboratório, a universidade, a prática privada, no caso do discurso médico. Finalmente, é importante definir a postura per- ceptiva do sujeito: ôlho desarmado, como na medicina clí
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nica, ou munido de microscópio, como o histologista; inserido na cadeia informativa como receptor ou transmissor; autor de artigos, professor na universidade, ou orientador de médicos principiantes, na pedagogia hospitalar.
Os conceitos utilizados em cada formação discursiva também não surgem arbitràriamente. São constituídos segundo regras precisas, dadas pelas formas de sucessão, pelas formas de coexistência e pelas formas de intervenção. Formas de sucessão: a organização hierárquica do campo enunciativo, segundo uma seriação determinada. Cada época e cada formação discursiva têm modalidades próprias de viver essas seriações, tais como a série lei geral/aplicação particular; premissas/inferências; hipótese/verificação; fato observado/ teoria explicativa. A história das idéias, por exemplo, verifica que a história natural do século X V III deu conteúdos diversos a conceitos antigos, como o de gênero e espécie, e criou novos conceitos, como o da estrutura. A arqueologia vai mais além, e verifica que essa renovação conceituai não teria sido possível sem uma metamorfose mais profunda, que incida sôbre a forma de ordenar as séries enunci ativas. O que mudou, fundamentalmente, foi a maneira de ordenar os enunciados: a maneira de relacionar a descrição com a classificação, as observações particulares com os princípios gerais, o que é certo com o que é provável. É a maneira de viver e aplicar essas relações de subordinação e dependência que autoriza ou exclui determinados conceitos. Além disso, os conceitos estão ligados às formas de coexistência entre enunciados, ou os da mesma disciplina ou de disciplinas afins. Assim a história natural do século X V III recolhe, reformula, autentica experimentalmente ou refuta os enunciados já formulados nesse campo ; e estabelece determinadas relações com a cosmologia, a geologia, a filosofia, a teologia, a exegese bíblica, a matemática. Êsse campo de coexistência entre enunciados varia segundo a formação discursiva e segundo a época. Finalmente, as formas de intervenção são os procedimentos pelos quais cada formação discursiva trabalha os seus enunciados: a utilização de uma linguagem natural ou formalizada, as formas de sistematização de proposições pré-existentes, as técnicas de conversão de enunciados qualitativos em enunciados quantitativos, etc. O sistema de formação dos conceitos é constituído pelo feixe de relações que se estabelecem entre as formas de sucessão, de coexistência e de intervenção: os únicos con
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ceitos possíveis numa formação discursiva são os autorizados pelo rigoroso determinismo dessas interações.
Todo êsse jôgo de relações entre as regras de formação de objetos, de modalidades de enunciação e de conceitos leva à cristalização de determinados temas ou teorias. Assim, o tema da filiação entre as línguas indo-eu- ropéias, na filologia do século X IX ; ou o tema fisiocráti- co da circulação de riquezas a partir da produção agrícola. A combinatória das regras de formação de objetos, conceitos e modalidades enunciativas autorizaria, em princípio, um número extremamente elevado de temas: mas apenas algumas dessas possibilidades são efetivamente realizadas. Os temas efetivos são apenas uma fra ção dos temas virtuais. Qual o princípio dessa escolha? Por que alguns dos temas possíveis se realizam e outros permanecem simples virtualidades ? A resposta é que a escolha dos temas obedece a um duplo determinismo: o da constelação discursiva em que se insere o discurso, e o das práticas não-discursivas que definem sua função. Tôda formação discusiva está enquadrada, com efeito, num campo discursivo mais extenso ou de tipo superior. Assim, a gramática geral é um modêlo particular da teoria geral dos signos e da representação; e está ligada, por relações de analogia, oposição e complementariedade a outras formações discursivas, como a análise das riquezas e a história natural. As escolhas estratégicas estão limitadas por essa constelação discursiva; os temas efetivamente realizados na gramática geral são apenas os que são autorizados por suas relações com o discurso de tipo superior — a teoria geral dos signos — e com os discursos adjacentes — a análise das riquezas e a história natural. São excluídos os temas teoricamente possíveis à luz de suas regras de formação de objetos e conceitos e enunciação, mas que não são autorizados pela constelação discursiva. O outro fator limitativo é dado pela função do discurso em relação a práticas não-discursivas. Assim, por exemplo, a função do discurso econômico na prática do capitalismo nascente, ou da gramática geral na prática pedagógica, ou do discurso literário ou artístico como instrumento de gratificação psicológica. Essas necessidades nãò-discursivas podem ter manipulado as regras de formação de objetos, de formação de conceitos e de formação de modalidades de enunciação de modo a gerar certos temas e a excluir outros, que em teoria seriam possíveis.
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Eis a formação discursiva — algo mais que um sistema de objetos, conceitos e temas: um feixe dinâmico de interações, acionadas por uma prática discursiva. E eis a arqueologia: a ciência das formações discursivas.
Qual o objetivo dêsse aparelho tão complexo? O rigor científico. Substituir a imprecisão da história das idéias por um exigente positivismo do discurso, que exclua qualquer referência a configurações extradiscursi- vas, já que tais configurações pertencem à esfera da do- xologia, e não à esfera da ciência.
Êsse longo exame da obra de Foucault permite voltar, com conhecimento de causa, à pergunta inicial: “Por que a morte do homem”
Foucault responde a essa pergunta em dois planos. Em primeiro lugar, no plano metodológico: “A morte do homem é uma exigência científica.” Em segundo lugar, no plano ontológico: “A morte do homem é uma probabilidade objetiva, que já se desenha no espaço do saber contemporâneo.” A morte do homem como forma de organizar o pensamento; e a morte do homem como fim de um percurso. O homicídio como técnica; e o homicídio como um acidente na biografia do Discurso.
2. O Homicídio Metodológico
A metodologia da morte do homem está presente em tôda a obra de Foucault. Mas não está presente da mesma forma, nem funciona sempre no mesmo nível. Segundo a maior ou menor penetração das práticas extra- -discursivas, e o tipo de funcionamento do homicídio metodológico, podemos distinguir em Foucault três fases distintas: ( 1 ) a fase transitiva, (b ) a fase intransitiva, e (c ) a fase da arqueologia.
A fase transitiva é a da Histoire de la Folie e da Naissance de la Clinique. A opção anti-antropológica se manifesta apenas na recusa em admitir uma faseologia evolutiva, como a de Comte ou Marx, Sua faseologia é não-vetorial. A história não se desenvolve linearmente, em direção a um telos próximo ou remoto; não é o progresso de uma consciência, a busca de uma perfeição, o enriquecimento cumulativo de um saber. A fase posterior não é mais completa que a anterior. A medicina empírica e experimental da fase anátoma-patológica não é mais próxima da verdade que a Medicina nosológica; o discurso psiquiátrico de Pinei, da fase asilar, não é mais
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veraz que o de Willy, da fase da segregação; a biologia de Cuvier não é melhor nem pior que a filosofia natural de Paracelso. A s fases são radicalmente descontínuas. Cada fase é uma nova partida, um recomeço absoluto a partir de zero. O que êsse tipo de história exclui é a existência de uma escatologia, ou de uma teleologia: a existência de um nomos_, imanente ou transcendente, ordenando a história segundo uma consciência e em função de um fim. Mas não exclui as práticas não-discursivas. Donde a transitividade dessas análises, isto é, sua poro- sidade às configurações sociais. Quase tôdas as descrições do discurso da loucura e da medicina estão explicitamente enraizadas na vida social. Já vimos alguns exemplos. Assim, na Histoire de la Folie, a segregação surgiu como uma resposta dada pelo mercantilismo a uma grave crise econômica. Todos os que não eram nem produtores nem consumidores eram socialmente inúteis: daí a reclusão de todos os anti-sociais, entre os quais os loucos, com o objetivo de integrá-los no circuito produtivo. Os loucos e todos os outros anti-sociais eram vistos sôbre um fundo de reprovação ética: eram transgressores do Código mercantilista, e portanto tinham se colocado na posição de réprobos da Razão clássica. Com o início do capitalismo liberal, surge a necessidade de mão-de-obra para a indústria, e todos os anti-sociais, com exceção doB loucos, vão sendo libertados. Simultaneamente com as necessidades econômicas, a prática política vai exercer uma grande influência; o liberalismo político vai esvaziar as prisões de todos os que tinham sido presos arbi- tràriamente, sem julgamento regular e sem plena salvaguarda dos direitos individuais. Restam os loucos. A loucura é isolada, e pela primeira vez é vista em sua singularidade. A loucura se torna pensável: o discurso psiquiátrico pode se instaurar. N a história da medicina, a mesma influência dos fatores sociais e políticos. A medicina classificatória era fechada em si mesma. O caso particular se tomava inteligível quando inserido em gêneros e espécies, no espaço do quadro, e êste se atualizav» no caso concreto. A circularidade era completa. Ehhb, forma de percepção médica muda no fim do século XVIII. Surge a idéia de uma medicalização generalizada, com o objetivo de extinguir inteiramente a doença. Para «tingir êsse objetivo, é preciso que os médicos se multipliquem, no campo como nas cidades, que haja uma vigilância contra a doença, que cada cidadão tenha uma conn»
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ciência médica, como deve ter uma consciência cívica. O olhar médico deixa de estar circunscrito por um quadro fechado, e abre-se num campo livre e socialmente difuso. “À estrutura plana da medicina classificatória sucede esta grande figura esférica. Nela, o espaço médico pode coincidir com o espaço social, ou antes, atravessá-lo e penetrá-lo inteiramente. 12 A medicina clínica, com suas estruturas perceptivas inéditas, surge nesse espaço livre aberto pela Revolução francesa. “Êsse campo médico, restituído à sua verdade de origem, e percorrido inteiramente pelo olhar, sem obstáculo, sem alteração, é estranhamente semelhante, em sua geometria implícita, ao espaço social com que sonhava a Revolução, pelo menos em suas primeiras formulações.. . Um espaço de livre circulação em que a relação das partes ao todo fôsse sempre transponível e reversível. Existe pois uma convergência espontânea, e profundamente arraigada, entre as exigências da ideologia política e as da tecnologia médica.” 13
Les Mots et les Choses é o momento da intransitivi- dade. Foucault deixa de lado o problema da imbricação das práticas não-discursivas nas práticas discursivas, e examina as regularidades discursivas em si mesmas: as regras segundo as quais, num determinado espaço cultural, certos objetos, temas e conceitos podem aflorar, à exclusão de outros, vedados pela configuração vigente. O discurso só se relaciona com o próprio discurso. A s formações discursivas surgem, aparentemente, por geração espontânea. A s grandes constelações epistemológi- cas nascem e se transformam sob a ação de leis que não chegam a ser explicitadas. Como surge a episteme clássica? E a moderna? Por que no século X V IU a linguagem tinha o privilégio de representar tôdas as representações, e as coisas o de ser exaustivamente representadas pela linguagem? Por que no século X IX as coisas e as representações se descolam? Mistério. A mudança das epistemes é vista como uma resposta a novos acontecimentos ocorridos no plano do próprio discurso. As posi- tividades e ciências são deduzidas por um encadeamento puramente interno, segundo a lógica imanente do discurso. O discurso é dotado de uma mobilidade própria, que é de fato uma sucessão de imobilidades. É por isso que a Arqueologia foi descrita por seus detratores como uma Keologia. Não se trataria de história, e sim de análise c.stratigráfica. A sucessão é dividida em segmentos fe
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chados, em “flashes” de eternidade. 0 cinema ê substituído pela lanterna mágica. A diacronia aparece como uma sucessão de sincronias superpostas. Ê — aparentemente — a expulsão definitiva do homem. O triunfo do homicídio metodológico em sua versão mais radical. A história humana — a história do homem, enquanto sujeito de seu discurso, e agente de sua gênese, de sua transfomação, de sua dissolução — é substituída por uma história do discurso — em que a gênese, a transformação e a dissolução aparecem como acidentes enigmàticamente ocorridos na superfície do próprio discurso. Uma análise mais cerrada mostra que essas críticas não são totalmente justificadas. Em nenhum momento, Foucault nega a influência decisiva das práticas não-discursivas na formação do discurso e em suas vicissitudes. Apenas, o exame da interação entre as estruturas discursivas e as não- -discursivas não entra no quadro de suas análises. Em Les Mots et les Choses. Foucault está interessado em outra coisa: no exame das regularidades discursivas que presidem, num período histórico definido, à formação e à transformação de positividades como a gramática, a economia, e história natural, e determinam, para cada uma, o repertório de objetos, conceitos e temas possíveis. Foucault acreditava que essas regras poderiam ser descritas no plano exclusivo do discurso — pelo menos provisoriamente. Ora, é certo que o que pode ser enunciado e a forma de enunciar dependem fundamentalmente da constelação discursiva vigente, e das relações que se estabelecem entre estruturas discursivas; mas é igualmente certo que são as práticas não-discursivas que vão impor seus limites e sua forma a essas relações. É por isso que as análises extraordinàriamente finas de Les Mots et les Choses permanecem abstratas e, em definitivo, inconclusivas — ficamos sem saber como surgem as epistemes, qual a lei de sua transformação, e de que forma a episteme como um todo ou cada uma das positividades que a integram se articulam com o não-discursivo. É um livro que exigia um segundo volume; ou outro livro.
E aqui entra em cena o terceiro momento — o da Arqueologia. Ã primeira vista, a “Archéologie” nada mais é que uma longa polêmica contra o sujeito. O homicídio metodológico atinge aqui dimensões quase maníacas. Convém, portanto, delimitar com algum rigor o
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projeto anti-antropológico da Arqueologia, antes de passar adiante em nossa análise.
Ésse projeto comporta dois elementos principais: a instauração de uma história descontínua, e a dissolução das unidades que tradicionalmente funcionam como objeto da descrição histórica.
A especificidade de Foucault em relação aos outros teóricos da morte do homem está em sua escolha da dimensão diacrônica para articular sua obra. Desafia o adversário em seu próprio terreno: nega o homem no eixo da história, até êsse momento considerado o refúgio da consciência antropológica. O estruturalismo “vulgar” podia dar-se ao luxo de expulsar o homem porque opera na linha da sincronia; é fácil, então, privilegiar o sistema, pois na ordem das simultaneidades o sujeito não precisa desempenhar um papel muito dinâmico. A audácia de Foucault consiste em aceitar a provocação da diacro- nia, e instalar a morte do homem no cerne da história. Mas Foucault não corre nenhum risco. Sua história é muito diferente da história humanista tradicional. E isto porque, como vimos no discurso da loucura, da medicina e das epistemes, para Foucault a história é essencialmente descontínua. Ê uma história cataclísmica, feita de rupturas e descontinuidades. Não é o desenrolar previsível do Mesmo, e sim uma série de mutações inaugurais. É fácil entender as implicações dessa visão da história. A história contínua é o abrigo privilegiado da consciência. “Fazer da análise histórica o discurso do contínuo é fazer da consciência humana o sujeito original de todo fiori e de tôda prática: são faces do mesmo sistema de pensamento.” 14 Uma história descontínua, por outro lado, exclui qualquer antropocentrismo. A sucessão das fases obedece a uma legalidade puramente discursiva, sem qualquer referência a uma teleologia ou a uma subjetividade fundadora. A história descontínua nega todo projeto, divino ou humano: não pode ser nem a manifestação da Providência, nem o desdobramento do Espírito, nem o campo da ação da praxis, individual ou coletiva. O tempo da descontinuidade é, no sentido mais literal, o tempo do desaparecimento do sujeito.
O segundo elemento é a dissolução das unidades significativas da descrição histórica. Tradicionalmente, a história das idéias descrevia teorias, ideologias, dscipli- nas, sistemas filosóficos. A Arqueologia “despresentifi- ca” essas unidades. Em sua existência imediata, tais uni
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dades, como se oferecem ao olhar do historiador, estão corrompidas até a medula pelo veneno antropológico. Daí sua substituição pelas formações discursivas, entidades depuradas que funcionam exclusivamente no nível do discurso. Movem-se num ar rarefeito, mortal ao homem, mas hospitaleiro às estruturas. Mas a Arqueologia não é uma proposição anti-antropológica apenas em seus princípios gerais: todo o complexo arsenal de novas categorias introduzidas por Foucault parece ter como função principal evitar a contaminação do antropologismo. Vale à pena, nessa perspectiva, lançar um segundo olhar às regras da formação de objetos, conceitos, modalidades enunciativas e estratégias temáticas.
Qualquer descrição ortodoxa dos objetos de uma disciplina tem que postular um vínculo entre as coisas e um sujeito. Um objeto, enquanto entidade material, é objeto para uma consciência. É o que se trata de evitar. Para a arqueologia, o objeto não está ligado nem às coisas nem ao sujeito: é um feixe de relações, e não uma entidade material que possa ser referida a uma subjetividade. O objeto é inteiramente constituído por relações discursivas. O sujeito, na época clássica, não podia falar de qualquer coisa nem constituir qualquer objeto ligado ao saber da loucura, más apenas das coisas e objetos autorizados pela interação das superfícies de emergência, das instâncias de delimitação e dos critérios de especificação. A substituição dos objetos materiais por objetos relacionais tem a vantagem de dissolver o real: de despresenti- ficar às coisas. Ê preciso “conjurar sua rica, pesada e imediata plenitude, que habitualmente era considerada a lei primitiva de um discurso que dela se afastaria unicamente por êrro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e tradições, ou ainda pelo desejo, talvez inconsciente, de não ver e não dizer. Substituir o tesouro enigmático das coisas anteriores ao discurso pela formação regular de objetos que somente se desenham nêle. Definir êsses objetos sem referência ao fundo das coisas, e em função do conjunto de regras que permitem formá- -los como objetos de um discurso e constituem as condições de seu aparecimento histórico. Fazer uma história dos objetos discursivos que não os mergulharia nos subterrâneos comuns de um solo originário, e que se limitaria a desdobrar o nexo das regularidades que regem a sua dispersão.” 15 Dissolver as coisas não significa apenas nem principalmente eliminar um referente externo ao dis
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curso: significa eliminar o sujeito como fonte geradora de significações. O discurso não é um conjunto de signos produzidos por alguns homens e significando determinadas coisas: é um discurso autoproduzido e auto-referen- te. As coisas não se dão a uma consciência através de um discurso; é o discurso que constitui seus próprios referentes, sem necessidade de uma consciência ligada ao real por uma relação perceptiva.
A análise das modalidades de enunciação, ao contrário, parece supor inevitavelmente a intervenção do sujeito. É a questão fundamental entre tôdas, contida na pergunta: “Quem fala?” Mas ainda aqui Foucault formula a sua resposta em têrmos não-antropológicos. Não se trata, na análise arqueológica, de identificar sujeitos reais, com uma existência histórica definida, mas de determinar a série das posições possíveis do sujeito que fala. A medicina clínica não se define, por exemplo, a partir da introdução do conceito de tecido por Bichat, e sim como o relacionamento, no discurso médico, de um certo número de elementos distintos, como a localização institucional de onde os médicos falavam, seu estatuto jurídico e social e sua posição como sujeitos que percebem, observam, descrevem, ensinam, etc. Tais relações são instauradas pelo próprio discurso clínico, e não pela consciência dos médicos. O olhar clínico tem um papel constitutivo no exame e caracterização da doença: mas é por sua vez constituído por um conjunto de interações que independem do sujeito que olha, fala e escuta. O discurso clínico não é assim formado pela unidade do sujeito, e sim por sua dispersão; o médico tem que operar no quadro de relações impostas, pré-existentes ao olhar clínico. “N a análise proposta, as diversas modalidades de cnunciação, em vez de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão. Aos diversos estatutos, às diversas localizações, às diversas posições que êsse sujeito pode ocupar ou receber quando profere um discurso. E se êsses planos são ligados por um sistema de relações, tal sistema não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si mesma, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. . . O discurso, assim concebido, não é a manifestação, solenemente desdobrada, de um sujeito que pensa, conhece e diz: é, pelo contrário, um conjunto em que se determinam a dispersão do sujeito e sua discontinuidade com êle próprio.. .
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Não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regime das enunciações próprias a uma formação discursiva. 18
As regras de formação dos conceitos se fundam, igualmente, na exclusão de todo sujeito. Os conceitos são dados sobre um fundo pré-conceitual, constituído não por consciências mas por interações imanentes ao próprio discurso. Os sujeitos não são livres de constituir quaiquer conceito: só podem ser formados os conceitos autorizados pelo sistema das relações que se articulam entre as formas de sucessão, de coexistência e de intervenção: é o determinismo do discurso que permite ou veda a produção dos conceitos, independentemente da vontade dos indivíduos. “N a análise proposta, as regras de formação se enraízam não na mentalidade ou consciência dos indivíduos, mas no próprio discurso; impõe-se, portanto, segundo uma espécie de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que se propõem a falar nesse campo discursiv o . . . A s regras de formação dos conceitos não são o resultado, depositado na história e sedimentado na espessura dos hábitos coletivos, de operações efetuadas por indivíduos; não constituem o esquema descarnado de todo um trabalho obscuro, no curso do qual os conceitos teriam emergido, através das ilusões, preconceitos, erros, tradições. O campo pré-conceitual deixa aparecer as re- gularidades e coações discursivas que tomaram possível a multiplicidade heterogênea dos conceitos.” 17
Enfim o campo das escolhas temáticas: aqui é quase inelutável a introdução do sujeito. Afinal, alguém precisa constituir certos objetos, atualizar certos conceitos, efetuar certas opções temáticas, excluir opções alternativas, também possíveis dentro do sistema. No magno interstício de liberdade que se abre entre duas estratégias possíveis, deveria em princípio haver lugar para a soberania de um sujeito. Engano: segundo Foucault, a apropriação do discurso por práticas não-discursivas (confisco do discurso econômico pela burguesia, por exemplo) não é extrínseca ao discurso, mas resulta das leis do próprio discurso. A s opções não se exercem no vazio, e sim no campo das necessidades discursivas. Sc duas escolhas são possíveis, essas duas possibilidades são dadas no próprio discurso. “Convém notar que as estratégias não se enraízam, aquém do discurso, na profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamen
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tal. . . Nem a análise das riquezas nem a história natural, se interrogadas ao nível de sua existência, de sua unidade, de sua permanência e de suas transformações, podem ser consideradas como a soma dessas opções diversas. Estas, pelo contrário, é que devem ser consideradas como formas sistemàticamente distintas de tratar objetos do discurso. . . de dispor formas de enuncia- ção. . . de manipular conceitos. . . Essas opções não são germes de discurso. . . e sim formas ordenadas e descri- tíveis como tais de atualizar as possibilidades do discurso. 18 Em suma, é o discurso que é livre, e o homem que é determinado: a suposta liberdade temática do sujeito é uma liberdade segunda e fantasmagórica, outorgada pelo próprio discurso. Ao atualizar determinadas estratégias, o homem é agente do sistema — funcionário do discurso.
Eis — aparentemente — a Arqueologia. Uma tentativa polêmica de ordenar e codificar a metodologia da morte do homem. Ora, êsse julgamento seria superficial. Entre Les Mots et les Choses e a Archéologie existe uma verdadeira diferença de nível. Não somente no sentido de que no primeiro Foucault f a z um trabalho descritivo e no segundo uma análise metodológica. Mas no sentido, mais radical, de que a Archéologie representa um esforço de síntese entre os dois momentos de sua prática descritiva — o da transitividade e o da intransitividade. Como na fase transitiva — da história da loucura e da clínica— Foucault trabalha de nôvo com as práticas extradis- cursivas. A s classes, as técnicas, os complexos institucionais reaparecem. Mas — e aí intervém a metodologia da intransitividade — não reaparecem da mesma forma. Na Archéologie, as práticas sociais são “despresentifiçadas”, reduzidas ao pré-discursivo, e portanto, num certo sentido, ainda ao discursivo. Assim, nas regras de formação de objetos, as coisas são dissolvidas, e o discurso passa a ser referente de si mesmo; nas regras de enun- ciação dos sujeitos, o sujeito material é abolido, e substituído pelo somatório das posições possíveis do sujeito que fala; nas regras de formação dos conceitos, as possibilidades de conceptualização são imanentes ao próprio campo discursivo, num momento dado; e nas regras para a formação de temas, a apropriação do discurso por práticas não-discursivas resulta da legalidade do próprio discurso. A conclusão dessa análise parece ser a de que
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quem fala no discurso e aquilo sôbre o que se fala é o próprio discurso.
A Archéólogie tem assim elementos para descontentar a todos, imparcialmente. Aos humanistas nostálgicos, por sua implacável guerra contra o sujeito; aos admiradores do virtuosismo intransitivo de Les Mots et les Choses, por sua preocupação com o nível extradiscursi- vo; e aos marxistas dogmáticos, pela sem-cerimônia com que “desmaterializa” as práticas sociais. E no entanto não podemos evitar a sensação de que com a Archéologie Foucault entra num terreno nôvo, em que tem, até certo ponto, razão contra os três grupos de críticos.
A guerra contra o sujeito, em primeiro lugar. A indignação com que foi recebida essa tese básica de Foucault é em certos casos explicável, e em outros resulta de um mal-entendido. É claro que os historiadores da consciência e os cronistas do gênio individual teriam que se rebelar contra uma historiografia em que justamente a biografia da consciência não é pertinente. Ê uma posição inaceitável, em geral, para todos os que direta ou indiretamente advogam o idealismo transcendental do sujeito. Mas é menos claro por que os partidários de uma historiografia “científica” se escandalizariam com a exclusão do sujeito, em seu nível metodológico, que é o que nos interessa neste capítulo. Num certo sentido, com efeito, não pode haver ciência sem uma expulsão corre- lativa do sujeito. Tôda a marcha da Razão ocidental se caracteriza sempre por uma série de descentramentos sucessivos do sujeito. O primeiro, como lembra Freud, ocorreu quando Copérnico descobriu que a terra não ocupava o centro do universo; o segundo, quando Darwin descobriu que o homem não ocupava um lugar privilegiado no mundo animal; o terceiro, quando a psicanálise descobriu que a vida consciente do homem constituía apenas uma fração de sua vida psíquica total. 19 O progresso da ciência, nesses exemplos, está em razão direta da colocação entre parênteses do homem. Nas ciências exatas, o critério da cientificidade de um enunciado é sua capacidade de ser controlado em bases inter-subjetivas, o que é uma forma de eliminar tôdàs as interferências do sujeito: a proposição é válida quando o sujeito (o observador) pode ser neutralizado. N a lingüística e em alguns domínios das ciências humanas, a utilização do conceito de estrutura, correlativo de uma visão na qual o sujeito individual é regido por um sistema cuja lei não
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está presente à consciência, tem funcionado como um elemento cientificamente renovador. A filosofia contemporânea que quis fundar de forma mais radical a cientifici- dade do saber, a fim de chegar a enunciados apodíticos— a fenomenologia — procedia por uma série de epoches, uma das quais foi a epoche do sujeito psicológico. Mas— diria o marxista — trata-se de uma ciência positivista, e no caso da fenomenologia, de uma filosofia abertamente idealista. Ora, é precisamente no marxismo que o sujeito desaparece da forma mais radical. Para o marxismo, os sêres humanos só existem encarnados em estruturas, cujo sistema permanece inacessível à consciência individual, até o seu desvendamento pela ciência da história. A história não é o palco em que gesticulam grandes homens — reis, generais, benfeitores da humanidade, mas a sucessão de etapas marcadas pela formação e dissolução de estruturas. Nesse nível, portanto, a polêmica foucaultiana contra o sujeito se inscreve numa tradição científica que já deveria estar consolidada. Atacar o sujeito tem assim algo não de escandaloso mas de ingênuo: parece uma agressão inútil contra um inimigo um pouco ridículo. O vigor da reação contra Foucault, entretanto, mostra que essa polêmica era oportuna, e que os partidários da soberania do sujeito não depuseram as armas.
Em segundo lugar: com a Archéologie, dizem outros críticos, Foucault teria desertado a pureza da descrição discursiva, onde justamente residia a sua riqueza e sua originalidade. Sua abertura às práticas sociais representa um retrocesso para posições antropologistas, apesar de tôda a veemência de suas investidas anti-antropológicas. Essa crítica é, na verdade, uma homenagem implícita a Foucault. É evidente que o brilhante exercício descritivo de Les Mots et les Choses tinha culminado num impasse. Impossível, sem multiplicar as aporias, continuar trabalhando num universo em que o discurso é seccionado de suas articulações com a vida. Les Mots et les Choses marca um limite que não pode ser transposto. Continuar no nível discursivo puro, depois dêsse esforço extremo de abstração, seria condenar-se a não poder pensar em sua verdade o próprio discurso. Para poder pensar o discurso, é necessário, num certo sentido, sair dêle. Donde o esforço de clarificação metodológica da Archéologie.
Terceiro: a Archéologie, segundo outros, procuraria mascarar a importância das práticas extradiscursivas na formação e transformação do discurso. A críLica não é
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válida, mas é compreensível. A s invectivas contra o sujeito são tão violentas e freqüentes que o leitor menos atento pode pensar que o foco principal do livro é a destruição do sujeito, e como a problemática do homicídio é o grande tema de Les Mots et les Choses somos levados, insensivelmente, a pensar a Archéologie em sua continuidade com Les Mots et les Choses, esquecendo a novidade radical do primeiro em relação ao segundo. Essa novidade consiste na tentativa sistemática de descrever as práticas discursivas em sua articulação com as não- -discursivas. Se depurarmos a Arqueologia de sua apolo- gética anti-antropológica, veremos que atrás dêsse ascetismo do discurso existe uma constante preocupação com a “embreagem” do discursivo no não-discursivo.
Veja-se, por exemplo, o que Foucault diz sôbre o “acontecimento” na dinâmica do discurso. A Arqueologia, segundo êle, analisa a forma e o grau de permeabilidade do discurso, define o princípio de sua articulação sôbre uma cadeia de acontecimentos sucessivos, e identifica os operadores pelos quais os acontecimentos se inscrevem nos enunciados. Assim, as crises monetárias nos séculos X V II e X V III influenciaram conceitos e objetos do discurso econômico, e a epidemia de cólera em 1832 permitiu, no discurso médico, o desaparecimento de velhos objetos e conceitos, e o aparecimento de novos. A Arqueologia admite explicitamente a possibilidade de novos enunciados em correlação com acontecimentos exteriores. Além disso, para explicar o desaparecimento e o advento de formações discursivas tem que especificar um sistema de transformações em vários níveis, que incluem não somente as transformações entre relações propriamente discursivas, como transformações de fatores normalmente classificados como externos ao discurso, tais como o nível de desemprego, as decisões políticas sôbre as corporações e a Universidade e as novas possibilidades de assistência no fim do século XVIII, fatores ligados ao aparecimento da medicina clínica.
Ou consideremos o que diz Foucault sôbre as relações entre o discurso e a vida: “Atrás do discurso acabado, o que descobre a análise das formações não é, fer- vilhaiite, a própria vida, a vida ainda não capturada; é uma espessura imensa de sistematicidade, um conjunto cerrado de relações múltiplas. . . ” 20 Bem analisado, não há nada de chocante num texto dêsse tipo. Afinal, sabemos todos que atrás do discurso da economia política não
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existe apenas a consciência de Smith ou Ricardo, ou as aspirações da classe industrial nascente, mas uma rêde de sistematicidades de caráter institucional, cultural, lingüístico, em que essas aspirações se refratam, e que exigem que certos objetos, conceitos, estratégias temáticas, sejam atualizadas, de preferência a outras. Reformulado nesses têrmos, o texto é não sòmente aceitável como enriquecedor.
O mesmo se pode dizer de tôdas as categorias da Arqueologia. A s regras para a formação de objetos, por exemplo, pressupõem a ação de superfícies de emergência, como a família e a comunidade religiosa, ou de instâncias de delimitação, que são as instituições que definem o objeto e o separam de objetos afins. As regraa que definem a posição do sujeito emanam diretamente de contextos institucionais que autorizam determinado tido de discurso. As regras para a formação de temas, enfim, resultam, em grande parte, da função das práticas não-discursivas, que se apropriam de determinados discursos: por exemplo a prática do capitalismo nascente articulando-se no discurso econômico e a prática pedagógica articulando-se na gramática geral.
Em todos os casos, atrás dos infatigáveis ataques contra o sujeito e o antropologismo, o mesmo escrúpulo em encadear o discursivo no não-discursivo. Através de análises, ao fim e ao cabo, fundamentalmente materialistas. Pois é da essência do marxismo afirmar que a liberdade dos grupos sociais concretos de formar suas visões do mundo não se exerce no vazio, e tem que mergulhar em tôda a rêde de determinações sócio-culturais que o sujeito encontra diante de si quando tenta agir e pensar. Ou afirmar ( “o homem só se propõe as tarefas que pode realizar” ) que as relações sociais constituem um solo, um a priori histórico, no qual podem ou não aflorar determinadas ciências ou teorias, com seus objetos, conceitos, modalidades enunciativas e escolhas temáticas. Apenas um exemplo: segundo Marx, como se sabe, Aristóteles não pôde analisar até as últimas conseqüências o conceito de valor porque tal análise era socialmente impossível na cultura grega. A essência do conceito de valor é o trabalho humano: uma casa pode ser trocada por um navio na medida em que existe a mesma massa de trabalho incorporada em ambos, ou seja, na medida em que têm o mesmo valor. Essa idéia não era pensável na sociedade grega, baseada na escravidão e portanto na
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desigualdade dos vários tipos de trabalho humano: impossível imaginar como unidade de valor um trabalho humano homogêneo, e que só poderia ser concebido com o advento do trabalho assalariado. N a linguagem de Foucault, o solo epistêmico da sociedade grega vedava, e o da sociedade capitalista autorizava, a formação do conceito de valor. 21
Nesse caso, cabe a pergunta: em que consiste a contribuição de Foucault à problemática da “embreagem”, se todos êsses conceitos são susceptíveis de uma leitura marxista?
A resposta é que Foucault tenta pensar o problema em têrmos distintos do marxismo mecanicista que vê no discurso a emanação pura e simples da infra-estrutura econômica. Foucault se insurge com razão contra o dogma que se obstina em ver nas formações discursivas o reflexo das formações sociais em que emergiram. Sem dúvida, foram as condições econômicas, como o desem- prêgo, que levaram a um certo tipo de hospitalização, e portanto de observação médica e de prática hospitalar, que permitiram a emergência do conceito de tecido; mas êsse conceito não “exprime” as condições econômicas da França no século XVIII. O vínculo entre as formações discursivas e as não-discursivas não é portanto de tipo “expressionista”. Mas êsse vínculo existe, e deve ser procurado na superfície do “ saber”. O saber é o domínio dos objetos que adquirirão ou não estatuto científico, o espaço no qual os sujeitos assumem determinadas posições para falar dêsses objetos, o campo enunciativo em que os conceitos aparecem e desaparecem, e o conjunto das possibilidades de apropriação temática que permitem a atualização de determinadas estratégias. É, em suma, um conjunto de regras definindo os objetos possíveis, a posição dos sujeitos em relação aos objetos, os conceitos e os temas que podem se constituir. E essas regras emanam diretamente do não-discursivo, ou do pré-discursivo. Assim, o não-discursivo engendra o campo do saber, no qual a formação discursiva recortará os seus objetos e constituirá seus conceitos e temas. O que é determinado pelas práticas sociais, assim, não é o conteúdo do discurso, mas as regularidades discursivas que permitem a emergência de determinados objetos e conceitos. Através da mediação do “saber” entre as formações sociais e as formações discursivas. Foucault tenta evitar o sociolo-
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gismo, que vê no conteúdo do discurso a presença das condições que o produziram.
Foucault não leva mais além a sua teorização sôbre a problemática da “embreagem”. Mas essas indicações fragmentárias são extraordinàriamente sugestivas, e per- mitem-nos antecipar, com interêsse, tanto um trabalho teórico destinado a pensar sistemàticamente a articulação do discursivo e do não-discursivo, quanto novos trabalhos descritivos, como o livro, já anunciado, sôbre a criminologia, em que as categorias da Archéologie sejam postas em prática. 22
Resumindo: o homicídio metodológico é uma espécie de denominador comum a tôdas as obras de Foucault. Mas funciona de uma forma distinta em cada caso, e com objetivos diferentes. N a fase transitiva, sua função é permitir uma história não-teleológica, e sem referência a consciências individuais; na fase intransitiva, destina-se a pôr de lado, provisoriamente (poderíamos falar em epoche arqueológica) todos os elementos que possam interferir com uma descrição discursiva pura; e na Arqueologia, funciona como instrumento polêmico contra a historiografia do sujeito, e contra um marxismo mecanicis- ta que vê nas formações discursivas um simples reflexo dag condições econômicas.
3. 0 Homicídio Ontológico
Mas a morte do homem como exigência metodológica é apenas um dos componentes da gramática do homicídio. O outro componente é antológico: a morte do homem já está inscrita no horizonte do saber atual. Como? Examinemos com mais vagar a resposta de Foucault.
No quadro “Las Meninas”, de Velasquez, estão representados vários personagens: a pequena infanta Margarida; ao seu lado, duenas solícitas; um anão de côrte; um espectador misterioso, que aparece no fundo do quadro, atrás de uma porta; e o próprio pintor, empunhando a palheta. Todos os olhares convergem para um ponto fixo, que não aparece no quadro. Que ponto é êste? A resposta está indicada no quadro. No meio da sala, há um espelho, e refletidas no espelho, duas silhuetas. São os modelos do pintor: o rei e a rainha. O quadro existe em função de um foco: mas êste foco é exterior ao quadro. O rei de Velasquez é espetáculo mais que expecta- dor; soberano, mas invisível; presente, mas apenas como
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reflexo num espelho, isto é, como representação entre outras representações.
N a episteme clássica, o homem era tão ausente como o rei de Velasquez. Num espaço em que as coisas se oferecem inteiramente através das representações, e estas exprimem exaustivamente as coisas, o homem é supérfluo. Se a verdade do ser é dada, sem resíduo, por uma série de representações ordenadas num quadro, não há lugar para uma entidade encarregada de conjurar, do fundo secreto do ser, a intimidade das coisas.
Ao fraturar o espaço do quadro, a episteme moderna libera as coisas das representações. A verdade do mundo econômico e do mundo lingüístico não é mais dada através das representações, e aloja-se numa esfera mais profunda, irredutível às representações. A representação não esgota mais a totalidade do real: êste é muito mais rico que qualquer representação, e a representação passa a ser um simples epifenômeno de um domínio que se dá à consciência apenas sob a forma — imprecisa e sempre parcial — de um reflexo. Nesse momento, o rei sai da sombra, e passa a ocupar o centro da composição. A nova configuração exige um olhar carnal, capaz de devassar o mundo secreto das coisas.
O homem surge na brecha ontológica formada quando as coisas se retiram para sua própria inferioridade, segundo as leis da vida, do trabalho e da linguagem. Mas essa nova figura exerce uma soberania ambígua. Ê indispensável como instrumento pelo qual as coisas se dão ao olhar, uma vez rompida a cumplicidade com a representação. Mas ao mesmo tempo, o homem é escravo das coisas, muito mais arcaicas que sua consciência, e que o esmagam com o pêso de sua irredutível anterioridade. É através do homem que a vida, o trabalho e a linguagem acedem ao saber; mas sua existência concreta é condicionada por essas entidades, já que é somente através das palavras que profere, dos objetos que fabrica e do seu organismo que pode ter acesso à sua essência e pen- sar-se como objeto de conhecimento. Assim, desde seu nascimento o homem está marcado pelo estigma da fini- tude. Essa finitude se desvenda por um duplo movimento, que vai das coisas ao homem e do homem às coisas. Pelo primeiro movimento, o saber da vida, do trabalho e da linguagem remetem inexoravelmente a uma finitude fundadora. A ciência da vida mostra que o homem está exposto à erosão da vida, através do envelhecimento e
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da morte; a ciência do trabalho mostra que o homem está sujeito às leis de ferro da produção e da carência original; a ciência da linguagem mostra que o homem está mergulhado no determinismo de um sistema lingüístico incomensuràvelmente anterior à sua consciência. Mas a experiência da finitude pode ser vivida a partir do próprio homem. Brotando dessa vivência primitiva, o saber poderia ser constituído, num movimento inverso ao primeiro. Assim, o homem toma consciência do seu corpo- -fragmento de espaço que se articula com o espaço das coisas e com o tecido dos sêres vivos; apreende-se como sede de desejos, os mesmos desejos que fundam o valor de uso dos objetos da economia; e sabe-se dotado de linguagem, a partir da qual é possível fundar o discurso humano. Através de uma experiência original, o homem sente-se finito no tríplice eixo de sua mortalidade biológica, de sua alienação no sistema produtivo e na sua inserção num universo lingüístico pré-existente. N a raiz das três positividades empíricas — a biologia, a economia política e a filologia — encontra-se a finitude do homem. Existe assim uma identidade de estrutura entre um saber empírico, que remete ao homem como ser finito, e as diversas manifestações da finitude humana, que se abrem para as positividades empíricas. A morte genérica, que rói as entranhas de todo ser vivo, é a minha própria morte; o desejo, que liga e separa os homens no interior do processo econômico, é o mesmo a partir do qual as coisas são desejáveis para mim; o tempo da linguagem humana é o mesmo tempo no qual se desenrola o meu próprio discurso. A positividade do saber tem como seu negativo a finitude do homem, que funda essa positividade; e a positividade do homem tem como seu negativo o caráter finito do saber empírico, através do qual o homem se descobre e se instaura.
O homem é por conseguinte ao mesmo tempo empírico e transcendental; objeto de conhecimento e fundamento de todo saber. Como ser empírico, o homem é dado através da análise da vida, do trabalho, da língua; como ser transcendental, é a fonte fundadora da biologia, da economia, da filologia. O fracasso das várias tentativas feitas, no interior da episteme moderna, para fundar o saber do homem a partir do homem está ligado à ambivalência dessa situação. O positivismo, o marxismo e a fenomenologia constituem três soluções dadas à questão do fundamento do saber. Para o positivismo, o saber
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se funda na verdade do próprio objeto; para o marxismo, a objetividade está fundada numa verdade em formação, que se configurará, escatològicamente, num tempo futuro; para a fenomenologia, a dicotomia reflexão empírica- -reflexão transcendental se dissolve na análise do vivido, definido como o espaço em que todos os conteúdos empíricos são dados à experiência e como a forma originária que torna possíveis êsses conteúdos. N a realidade, essas três tentativas são arqueològicamente equivalentes. Correspondem tôdas ao mesmo projeto impossível: o de fundar o saber empírico através dos próprios conteúdos empíricos; basear a reflexão transcendental — fundadora— na análise descritiva dos conteúdo3 que se trata de fundar. Ora, a episteme moderna não pode proceder de outro modo, pois seu quadro de referência é o homem, e êste é precisamente o ponto de cruzamento do empírico e do transcendental. O projeto fundador poderia ser bem sucedido unicamente em outra configuração epistemoló- gica: na perspectiva da morte do homem.
Se a positividade do homem se define sôbre um fundo de finitude, e se as coisas só se dão parcialmente à sua consciência, já que a uma essência humana finita só pode corresponder um saber também finito, segue-se que existe sempre um resíduo de realidade que não acede à consciência. A faixa de realidade que pode ser pensada tem sempre como correlativo uma faixa impensada. O Cogito cartesiano se baseava numa identidade de natureza entre o ser e a representação: o “penso” podia transitar com facilidade para o “ existo”, porque o primeiro têrmo (a representação) e o segundo (o ser) eram homogêneos e coextensos. O ser se dava inteiramente no espaço da representação. N a episteme moderna, dominada pelo pêso das coisas sôbre o homem, a esfera do Cogito está longe de ser coextensa com a esfera da realidade. Como posso ser esta vida que ine transborda? Como posso ser êste trabalho, cujas leis se impõem a mim com tôda a inércia de uma necessidade natural? Como posso ser esta linguagem, cujo sistema me escapa e cujas regras não sou livre de transformar? A reflexão sôbre o homem tem como tela de fundo uma dialética do pensado e do impensado, o que penso é apenas uma fra ção do que não penso ainda, ou do que não posso pensar nunca. O saber meridiano está sempre rodeado de uma zona de sombra. O homem é uma coexistência estrutural do pensado e do impensado. O impensado no homem
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se dá sob a forma de Outro. Êsse Outro nasceu ao mesmo tempo que o homem: seu duplo, sua penumbra, sua verdade recôndita ou sua maldição. N a fenomenologia he- geliana, foi o An sich em face do Fur sich; para Scho- penhauer, foi o Unbewusste; o homem alienado, para Marx; o implícito e não-atualizado, para Husserl. A existência do impensado impõe ao homem uma tarefa: a de absorver, na medida do possível, essa zona de sombra. Todo pensamento moderno é atravessado por um imperativo -— o de pensar o impensado. Ê o fundamento da ética moderna. A normatividade do Cogito que quer apreender o impensado substituiu as antigas normatividades religiosas. É a palavra que quer fazer falar o silêncio, o movimento que quer ativar a inércia. A ética moderna busca refletir na forma do Para-Si os conteúdos do Em- -Si: á luta pela desalienação do homem deve ser entendida sôbre o fundo da tensão entre Cogito e o impensado. “O conhecimento do homem, à diferença das ciências da natureza, está sempre ligado, em sua forma superficial, a éticas e políticas; mais fundamentalmente, o pensamento moderno avança na direção em que o Outro do homem deve converter-se no Mesmo que êle.” 23
Se ó homem é um ser constituído integralmente pela historicidade das coisas, sua reflexão sôbre sua própria origem e sôbre sua própria historicidade tem que se fundar na historicidade da vida, do trabalho e da linguagem. O homem se desvenda no coração de uma historicidade já constituída. Como ser vivo, está ligado a uma vida que começou muito antes dêle; como ser que trabalha, está prêso a um sistema de relações de produção muito mais antigo que o seu próprio nascimento; como sujeito de um discurso, está inserido num sistema lingüístico anterior à sua existência. Sua meditação sôbre a origem se processa sempre sôbre o pano de fundo de uma realidade já em curso. Cada objeto que manipula, cada necessidade que manifesta, cada palavra que profere o confrontam com um tempo infinitamente arcaico, através de uma cadeia de mediações cujo primeiro elo se perde no fundo de uma inacessível cronologia. No momento em que o homem se pensa em suas relações com as coisas, articula-se com tôdas essas histo- ricidades externas, e percebe que sua própria origem não pode ser conhecida. Sua vida, seu trabalho, súa linguagem, se cristalizam no já vivido, já produzido, e já dito. Mas essa impossibilidade de aceder à sua própria origem
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não é apenas uma limitação. Ê também um privilégio: ser sem origem, é através dêle que as coisas encontram sua origem. O homem é a abertura a partir da qual o tempo pode se constituir: a condição para que as coisas façam sua entrada no domínio do saber, com sua historicidade própria, e no momento devido. O homem é o ser sem origem a partir do qual a reflexão sôbre a origem se torna possível — fruto do tempo, e condição de tôda temporalidade. Daí a tentativa positivista de inserir a cronologia do homem no interior da cronologia das coisas, transformando esta última num capítulo da duração mais geral dos sêres; e à tentativa oposta, mas arqueo- lògicamente equivalente, de subordinar o tempo das coisas ao tempo humano: o desvendamento da verdade das coisas no momento em que acedem ao saber através do conhecimento. Uma e outra repousam, como fundamento de sua possibilidade, no atributo soberano do homem de refletir sôbre o tempo, de constituí-lo, e de ordená-lo. Daí também a eterna tentação da filosofia Ocidental de procurar a verdade do homem no reencontro com a origem. De Hegel a Marx e Spengler o pensamento moderno privilegiou o tema de uma consciência que por sua própria dialética interna chega à sua consumação, e no extremo da curva, inflete sôbre si mesma, e recaptura a origem, em todo o seu frescor matinal, mas com todo o pêso das sedimentações históricas. A origem aparece assim como o já vivido, mas também como o não-vivido do homem; mergulha no passado, mas aparece também como uma promessa, como um objetivo e como uma tarefa. A origem é o que precisa ser pensado pelo homem, para que a sua verdade se atualize: e a atualização, sempre adiada, dessa verdade, é o reencontro impossível com a origem. Simples ruga na duração das coisas, mas fonte de tôda historicidade, o homem está condenado à repetição do já vivido, na perspectiva de uma história ainda por vir.
Tôda a reflexão sôbre o homem se funda nesse "quadrilátero antropológico”, cujos elementos são uma analítica da finitude, um projeto de constituição transcendental d'o saber através dos conteúdos empíricos, uma dialética do Cogito e do impensado e uma meditação sôbre a origem. É sôbre essa base e dentro dêsses limites que se instaura a antropologia contemporânea.
A reflexão antropológica, característica da episteme moderna, não corresponde a nenhuma preocupação radi
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cai com a constituição de um reino humano — é o simples subproduto de uma configuração epistemológica que descola as coisas das representações, e que exige o advento de uma nova figura, capaz de pensar as coisas fora do espaço da representação. Essa filosofia esbarra numa dificuldade insolúvel, que é a de fundar o transcendental no empírico, e de legitimar o saber empírico através dos próprios conteúdos empíricos. Êsse paradoxo representa o fim da filosofia — ou o seu sono. Não se trata mais, como no tempo de Kant, de despertar a ciência do seu sono dogmático, mas de livrar a filosofia do seu sono antropológico. Somente assim o pensamento poderá libertar-se dos seus paralogismos, e reconquistar o direito à reflexão livre. É preciso destruir até os seus fundamentos a idéia do homem, e o quadrilátero antropológico composto da finitude, do empírico-transcendental, do impensado e da origem. Hoje em dia o pensamento só é possível no vazio do homem assassinado. “A todos os que querem falar ainda do homem, do seu reino ou de sua libertação, a todos os que se interrogam sôbre a essência do homem, a todos os que querem partir dêle para aceder à verdade. . . a única resposta possível é um riso filosófico — isto é, parcialmente silencioso.” 24
As ciências humanas surgiram simultâneamente com o homem: quando deixando o espaço da representação, os sêres vivos se alojaram na vida, as riquezas no trabalho e as palavras na historicidade lingüística. Se o homem se define por suas relações com a vida, o trabalho e a linguagem, é claro que as ciências do homem têm que girar em tôrno da biologia, da economia política e da filologia. Nenhuma delas, entretanto, pode ser considerada como ciência humana. E isto porque o objeto das ciências humanas não é o homem, tal como é dado nas positividades empíricas, mas a representação que o homem se forma do mundo que habita. Para as ciências humanas, o homem não é o ser vivo com certas características anátomo-fisiológicas, mas o ser que do fundo da vida constitui representações graças às quais pode exprimir sua vida; não é o ser que trabalha e fabrica objetos, mas o ente que forma representações sôbre a vida em sociedade, sôbre os outros protagonistas do sistema econômico, sôbre as relações de produção, vividas em sua verdade ou de forma mistificada; não é o ser que fala, mas o que do interior da linguagem, é capaz de representar o sentido das palavras que enuncia e o próprio
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sistema lingüístico. As ciências humanas não são portanto a análise do que é o homem em sua natureza, mas do homem enquanto fonte das representações. Mas se nem a biologia, nem a economia política nem a filologia são ciências humanas, constituem em compensação a base que autoriza a formação das ciências humanas. Em têrmos muito genéricos, poderíamos dizer que a psicologia é a ciência humana que se articula com a biologia; a sociologia, a que se articula com a economia política, e a análise das literaturas e dos mitos, a que se articula com à filologia.
As ciências humanas são organizadas de acôrdo com certas categorias analíticas. Na superfície da biologia, surgiram as categorias da função (capacidade de receber estímulos externos e de responder a êsses estímulos) e de norma (que permite ao homem exercer suas funções); na superfície da economia, as categorias de conflito (re sultante do desejo, da necessidade e do interêsse) e da regra (maneira de ordenar o conflito de forma socialmente aceitável); e na superfície da linguagem, a categoria da significação (qualquer conduta humana está sempre ligada a um sentido, isto é, sempre procura exprimir alguma coisa) e de sistema (conjunto coerente de significações). Cada um dêsses pares funciona de forma privilegiada no domínio a que estão ligados, isto é, na psicologia, na sociologia, na análise dos fenômenos culturais, mas podem ser extrapolados para qualquer dos domínios adjacentes. A s três dicotomias: função/norma, conflito/regra e significação/sistema — atravessam todo o campo das ciências humanas. No início do século XIX, a ênfase era posta no primeiro têrmo de cada par: função, conflito e significação. Mais tarde, houve um deslocamento no interior de cada par, e o acento foi pôs- to no segundo têrmo: norma, regra, sistema. Com êsse deslocamento, a dimensão do inconsciente foi integrada nas ciências humanas. Tanto a norma, como a regra e o sistema são dados à representação, mas não necessariamente à consciência. A consciência ingênua pode perfeitamente exercer funções vitais sem se dar conta da existência da norma; entrar em conflitos sociais sem perceber explicitamente a regra que permite resolvê-los; gerar significações sem perceber o sistema que as rege. Com a vitória do ponto de vista da norma, da regra e do sistema sôbre o ponto de vista da função, do conflito e da significação, a episteme moderna se aproxima de uma
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nova configuração, que se desenha de forma ainda indecisa no horizonte do saber. Mais uma vez: o próprio das ciências humanas não é o homem. Não foi o homem que as criou, mas a episteme moderna, que as institui, e lhes dá a possibilidade de tomar o homem como objeto. A ciência humana existe não onde existe o homem, mas onde se analisam, na dimensão própria do inconsciente, as normas, regras e conjuntos significativos que regem o mundo da vida, do trabalho e da linguagem.
As ciências humanas não são meros fenômenos de opinião; não podem ser reduzidas a simples manifestações de superfície ou a formações ideológicas. Mas também não seria possível considerá-las, na exata expressão do têrmo, como ciências. Existem apenas como configurações secundárias, alojadas nos interstícios da economia, da filologia e da biologia: essa vida parasitária as impede de aceder ao estatuto científico. Não são, portanto, falsas ciências, como querem os partidários da redução ideológica — simplesmente não são ciências. O mesmo espaço epistemológico que as constitui impediu as disciplinas do homem de aspirar à cientificidade. A lgo mais que a opinião, algo menos que a ciência, a reflexão sôbre o homem faz parte do domínio positivo do saber, mas não constitui um corpo de enunciados científicos.
A História é uma disciplina de excepcional importância para as ciências humanas, porque foi através da historicidade das coisas que o homem se constituiu em sua finitude. Se o homem histórico é o homem que vive, trabalha e fala, todo enunciado da História está ligado quer à psicologia, quer à sociologia, quer às ciências da linguagem. Nesse sentido, a análise arqueológica revela a dispersão e não a unidade da História, cuja especificidade é assim discutível. Mas ao mesmo tempo, os conteúdos da psicologia, da sociologia e das ciências da linguagem são atravessados de ponta a ponta pela historicidade. A História constitui para as ciências do homem uma moldura ao mesmo tempo acolhedora e arriscada. Para cada uma dessas ciências, a História proporciona um conjunto de coordenadas temporais, que lhes oferecem um solo e por assim dizer uma pátria; mas ao mesmo tempo destrói sua pretensão de funcionar no elemento da universalidade, porque sua existência é vista como historicamente condicionada, e surgida num certo momento do tempo.
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Contrapondo-se às ciências humanas, e impregnando-as por inteiro, a psicanálise e a etnologia operam diretamente no campo do inconsciente. As ciências humanas também avançam para o inconsciente — a descoberta da norma, da regra e dos sistemas, que não são dados à consciência ingênua, mas apenas ao pensamento reflexivo — mas de forma indireta, e num movimento regressivo. A psicanálise ataca diretamente o inconsciente, e ao contrário das ciências humanas, que permanecem sempre no campo do representável, procura atravessar a representação, e fazer brotar, não as normas, as regras e os sistemas, mas as condições de possibilidade das normas, das regras e dos sistemas. Nessa região, se desenham as três figuras básicas do freudismo: a MorLe, condição de possibilidade da vida, com suas funções e suas normas; o Desejo, condição de possibilidade do trabalho, com seus conflitos e suas regras; e a Lei, condição de possibilidade da linguagem, com suas significações e seus sistemas. Essas figuras são as próprias formas da finitude humana, fundamento de todo saber sôbre o homem. Ê porque a psicanálise funciona na região, situada nos confins da representação, em que todo saber encontra seu fundamento, que não pode ser considerada uma ciência humana: é antes uma contra-ciência, porque ao mesmo tempo funda e demistifica as demais, A etnologia é também uma contra-ciência. Surge na dimensão da história, como um subproduto da ratio Ocidental, que permitiu às sociedades européias entrar em contato com as outras culturas. Como o psicanalista, o etnólogo não interroga o homem, mas a área que torna possível um saber para o homem. Assim como o psicanalista usa a relação de transferência para aceder ao Desejo, à Morte e à Lei, o etnólogo se instala na relação especial que a cultura européia estabelece com as outras culturas para descobrir, atrás das representações conscientes dos homens, as normas, as regras e os sistemas que regem, de forma inacessível à consciência pré-reflexiva, as funções, conflitos e significações que proliferem, em tôda a sua diversidade, no mundo empírico. Ao desvendar como numa cultura primitiva se processam a normalização das funções biológicas, a regulamentação dos conflitos e a sistematização das significações, o etnólogo está reconstituindo o movimento que permitiu à episteme moderna criar o saber do homem a partir de sua finitude. “O que transparece no discurso do etnólogo e do psicanalista é o a priori histó
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rico de tôdas as ciências do homem — as grandes cesu- ras, 03 sulcos, as partilhas que, na episteme Ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para o saber possível.” 25 Revelando em tôda a sua clareza os mecanismos de formação do saber do homem, a psicanálise e a etnologia preparam ao mesmo tempo a sua contestação mais radical: uma e outra prescindem do homem, e mesmo o cancelam, porque o objeto dessas disciplinas não é o homem, e sim os seus limites exteriores.
No horizonte do pensamento contemporâneo, surge uma figura nova, mas tão antiga quanto o mundo: a linguagem. Na Renascença a linguagem fazia parte da prosa do mundo, e precisava ser decifrada como condição para a compreensão das coisas criadas. No classicismo, o discurso era o elemento neutro que tinha o poder de significar representação segunda, que exprimia tôdas as outras representações. N a episteme moderna, a linguagem transformou-se em objeto para o saber: de instrumento todo-poderoso que servia de mediação entre a representação e as coisas, a linguagem converteu-se em simples segmento da realidade, dotado de espessura e historicidade própria, mas sem nenhum privilégio de disciplina retora do conhecimento, como no século XVIII. O que se verifica hoje em dia é o reaparecimento da linguagem. Sob. a forma da lingüística, em primeiro lugar. A lingüística está assumindo uma importância cada vez maior nas ciências humanas, e tem mesmo a pretensão de unificá-las. Não se trata, como no século XIX, do imperialismo de uma ciência particular que quer traduzir para o seu vocabulário conhecimentos já adquiridos em outros ramos do saber, como a tentativa de interpretar as ciências humanas em têrmos de conceitos biológicos ou econômicos. A lingüística vai além, e pretende estruturar os próprios conteúdos; não se limita a dar uma leitura lingüística dos fatos humanos, mas busca constituir êsses fatos, pois na perspectiva de um deciframento lingüístico as coisas só acedem à existência na medida em que podem formar os elementos de um sistema signifi- cante. Graças à lingüística, o projeto de formalização e matematização das ciências humanas pode ser pensado de forma mais coerente. Não se trata mais de quantificar resultados, ou de inserir os comportamentos humanos em probabilidades mensuráveis: trata-se de desprender as estruturas próprias a cada domínio empírico, e dar tratamento matemático a essas estruturas, o que repre
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sentaria o princípio da unificação das ciências do homem, numa linguagem formal que exclui o sujeito empírico. Mas a importância da linguagem cresce no outro extremo da nossa cultura: a literatura. O objeto da literatura moderna, de Artaud a Roussel e aos surrealistas, é a própria linguagem: a exploração até o ponto máximo de tensão das possibilidades intrínsecas da linguagem, como se esta constituísse um mundo próprio, sem referentes externos. Com a ressurreição da linguagem, sentimos que existe algo de nôvo em processo de gestação. Tôda a episteme moderna surgiu com o desaparecimento do Discurso, que separou as coisas das representações, e exigiu o aparecimento do homem como elemento mediador. Se agora a linguagem ressurge, não seria o sintoma de uma nova configuração epistemológica, em que o homem se torne desnecessário? Não é preciso, então, aceitar que com a presença do Discurso o homem vai regredir à inexistência a que o condenava a episteme clássica? O homem compôs seu rosto com os fragmentos de uma linguagem estilhaçada. Agora que essa linguagem se recompõe, não podemos supor que êsse rosto tenderá a desaparecer ?
Com o homicídio ontológico, Foucault conclui sua gramática. O homicídio não é apenas uma técnica de pensar; é parte de uma configuração objetiva. A morte do homem é o ponto terminal de uma Odisséia do Discurso. Tudo se passa como se, num momento dado, o Discurso tivesse secretado o homem, para seus próprios fins, e depois tivesse decidido suprimi-lo. A obsessão positivista de eliminar qualquer teleologia parece levar, afinal, a sua teleologia do Discurso. Les Mots et les Choses é o Bildungsroman de um herói trágico, composto para ilustrar a pedagogia do homicídio: terminada a jornada, o protagonista encontra ao mesmo tempo a sabedoria e a morte. Ou ainda (para mudar de metáfora) uma Fenomenologia do Espírito com desfecho pessimista — no fim do processo, não há a auto-reconciliação do Espírito, mas a dissolução física do sujeito. Qual a verossimilhança dessa viagem?
Poderíamos, para esboçar uma resposta, prosseguir na analogia com Hegel. Como Hegel, diríamos, Foucault não falsifica a realidade, mas a mistifica. Sua descrição do nascimento e morte do homem não é falsa. Num certo sentido é até verdadeira, como um negativo fotográfico é verdadeiro. Trata-se de recuperar a imagem, que o ne
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gativo ao mesmo tempo dissimula e desvenda. Foucault descreveu realidades reflexas e derivadas. Caberia então ao crítico (mantendo ainda o paralelo com Hegel) identificar as realidades primárias. Extrair da Arqueologia o seu “núcleo racional” : não refutar a análise, mas invertê-la. Deixando de lado, entretanto, essas analogias suspeitas, poderíamos dizer a mesma coisa de outra forma: é preciso aplicar ao mesmo texto um código diferente. Usar uma chave extradiscursiva para decifrar o texto que Foucault leu em têrmos discursivos.
Essa nova leitura precisa abranger os dois momentos da descrição de Foucault: o momento do aparecimento do homem e do quadrilátero antropológico, e o momento da dissolução do homem e do quadrilátero antropológico.
A análise do primeiro momento 28 poderia começar com o principal acontecimento extradiscursivo ocorrido no início do século XIX, que foi o advento do capitalismo industrial. A nova forma de produção desarticulou tôdas as antigas relações sociais, e produziu nos homens, colhidos por uma engrenagem que parecia ter sua própria dinâmica, uma sensação de impotência e incompreensão. Fonte real dos bens que circulam na economia, das instituições que regem a vida social, dos sistemas teóricos destinados a pensar a realidade, o homem sente-se, paradoxalmente, prisioneiro dêsses bens, instituições e sistemas. Seu trabalho pesa sôbre sua vida, sob a forma incompreensível do capital; as instituições têm um pêso próprio, e parecem ter existido desde sempre, com sua misteriosa capacidade coercitiva e repressora; as criações culturais o confrontam com uma linguagem reificada, cujo princípio de objetividade lhe escapa. Em vez de se darem ao homem em sua transparência, os sêres se apresentam como entidades hostis, opacas e alheias à atividade produtiva do sujeito. As coisas são indecifráveis e estáticas: o homem não pode nem pensá-las, porque só se dão parcialmente à consciência, nem modificá-las, porque são intemporais, ou sujeitas a uma historicidade própria, inacessível à ação humana. O processo econômico o esmaga, e sua verdade íntima se esquiva à sua consciência; sua vida está prêsa a determinações alheias à sua vontade e impenetráveis a seu conhecimento; o sistema lingüístico o obriga a pensar de acôrdo com modelos, valores e estereótipos cuja legalidade interna não pode nem ser compreendida nem modi
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ficada. As representações que o homem utiliza para pensar a realidade são sempre inadequadas: as coisas e as representações se separam. O ser é mais rico que qualquer representação, porque o sistema de sua inteligibilidade se situa numa região inacessível à representação. O discurso perde a propriedade de significar exaustivamente o real. Começa a desenhar-se o quadrilátero antropológico. Surge a figura da finitude: pulverizado por um sistema econômico que aliena sua fôrça de trabalho, por uma organização social que faz depender sua própria existência biológica das leis de ferro do mercado, e por um corpo de significações lingüísticas que se impõem imperiosamente à sua consciência, o homem é, na verdade, um ser radicalmente finito. Nasce o jôgo paradoxal do empírico e do transcendental: a tentativa de fundar um saber rigoroso no homem empírico leva, de fato, como diz Foucault, a contradições insolúveis, mas não necessariamente devido aos defeitos da metodologia antropológica, e sim porque quase tôdas as tentativas fundadoras partiram do homem que se oferece em sua forma imediata à consciência positivista, isto é, do homem trabalhado por tôdas as alienações da economia, da vida e da linguagem. Ao elevar à categoria de homem em si um homem que é meramente fruto de uma certa configuração histórica, o positivismo em tôdas as suas formas construiu um saber ideológico, baseado numa noção estática da natureza humana, e repousando sôbre um fundamento frágil. Forma-se a dialética do pensado e do impensado: o homem alienado quer lutar contra sua alienação. Quer reduzir a faixa do inumano, quer absorver a zona de sombra e de mistério. Daí as éticas da autenticidade e da desalienação, daí as políticas reformistas ou revolucionárias. Algumas dessas éticas e políticas surgem no próprio contexto da reificação e da falsa consciência, e representam no máximo uma abertura parcial à verdade do sistema que aliena o homem. Em outros casos o sistema é visto, lücidamente, como totalidade e como história. Enfim, impõe-se uma reflexão sôbre a origem: o homem alienado tem nostalgia de uma idade de ouro pré-capitalista, onde o homem não era separado de seu trabalho, da sociedade e da natureza; e aspira a um reencontro com a origem, a uma utopia futura, habitada por um homem finalmente reconciliado com o mundo e com seus semelhantes. Essas utopias vão desde o pro- fetismo de algumas filosofias da história até a visão da
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história futura como uma possibilidade objetiva, de valor tendencial e não absoluto. Armado o quadrilátero antropológico, criam-se as condições para o advento das ciências humanas. Alienado pela necessidade biológica, pelo determinismo da economia e pela inércia do sistema cultural, o homem cria uma biologia que ao mesmo tempo confirma a sua fragilidade e a anula, inserindo-a numa necessidade mais vasta; cria uma ciência econômica que confirma a sua submissão às leis do mercado e a anula, transformando essas leis em fôrças naturais; e cria uma filologia que mostra o homem sob o jugo de uma legalidade lingüística inacessível à sua vontade, mas que anula êsse jugo, no exato momento em que desvenda as leis da historicidade lingüística. Em todos os casos, a ciência surge como uma tentativa de explicar a alienação humana, inserindo-a num sistema necessário, e simultâ- neamente de superar, abstratamente, a alienação, pela tomada de consciência (ilusória) dessa necessidade. As ciências humanas (psicologia, sociologia, análise da literatura e dos mitos) que se articulam sôbre essas positividades estão marcadas pela mesma configuração episte- mológica e sociológica, e respondem a motivações idênticas. Nessa fase, o pathos existencial da alienação continua agudo, e a condição humana ainda é sentida em sua precariedade. Ê lógico, portanto, que o saber do homem enfatiza o lado problemático da existência bio-so- cial: a função, o conflito e a significação são privilegiados em relação à norma, à regra e ao sistema.
Assim como o primeiro momento (o da gênese do homem e do quadrilátero antropológico) pôde ser explicado pela categoria da alienação, o segundo momento (o do desaparecimento do homem e do quadrilátero antropológico) pode ser explicado pelo conceito de sociedade unidimensional, o que não é surpreendente, pois a unidimensionalidade é a alienação radicalizada. 27
A principal característica do século X IX era a dimensão da transcendência. Em face da realidade existente, há a imagem de uma realidade possível. O homem é consciente de sua finitude; sabe que existe uma zona de sombra que precisa ser absorvida; tem nostalgia de sua origem. Sua vida é dada sôbre o pano de fundo do pensado e do imaginário; é preciso dar a palavra ao silêncio, ativar o que está inerte, atualizar o que é meramente virtual, transformar o mundo na linha de uma racionalidade crescente. Com o desenvolvimento progres
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sivo da economia, a dimensão da transcendência vai sendo absorvida. A razão se implanta na cidade. A ordem existente se identifica com a ordem ideal. A real e o racional convergem. Desaparece a tensão entre a existência e a essência, entre o empírico e o racional, entre a verdade e a aparência. A sociedade se torna unidimen- sional. A alienação muda de sentido: o homem não somente não se sabe alienado, como nem sequer se sente alienado. As coisas não são mais exteriores ao homem, nem o ameaçam com uma objetividade que o cancela: o homem se reconhece em sua TV e em seu automóvel. O mundo se torna cordial e inteligível. A s coisas podem abandonar sua interioridade, e reintegrar-se no espaço da representação: o discurso, significante universal, pode representar todo o real, e êste pode ser inteiramente expresso nas representações. O quadrilátero antropológico vai sendo obliterado. A primeira vítima da sociedade unidimensional é a noção de finitude: o homem não é mais limitado pelas coisas, nem ameaçado por transcen- dências incompreensíveis. Desaparece a contradição entre o empírico e o transcendental: o empírico é fundamento de si mesmo; o próprio projeto de fundar o saber torna-se inútil; a razão positivista triunfa completamente. A dialética do pensado e do impensado é dissolvida. A razão unidimensional não admite a existência de uma zona de sombra, já que a sociedade é a Utopia realizada, em que a dimensão do não-dito ou do indizível é banida. Enfim, desaparece a obsessão da Origem: o sociedade unidimensional é a atualização da Origem, o reencontro do homem com sua Idade de Ouro, que não mais precisa desenhar-se no horizonte da história futura como uma promessa inatingível. Numa sociedade sem origem, sem impensado, autofundadora e liberta das limitações da carência e da necessidade, a ação humana não é necessária. O homem pode recolher-se ao seu split levei e perder-se na contemplação de sua geladeira. Torna-se supérfluo. O homicídio está consumado. No campo do saber, essa nova configuração se traduz no projeto de repensar as ciências humanas. Nascidas como uma resposta teórica ao desafio da alienação, as ciências humanas se tornam contestáveis quando desaparece a consciência da alienação. O ponto de vista da norma, da regra e do sistema passa a prevalecer sôbre o ponto de vista da função, do conflito e da significação, pois numa sociedade unidimensional a função só é inteligível na
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perspectiva da norma que permita exercê-lá, o conflito não existe enquanto problema teórico, e a significação só recebe o seu sentido se integrada num sistema que desvende as significações parciais. Paralelamente com o declínio das ciências humanas, ascendem as disciplinas que pretendem descobrir sistemas e estruturas inteligíveis atrás das representações conscientes do sujeito: a psicanálise, a etnologia, a lingüística. A linguagem volta a funcionar como disciplina retora, em tôrno da qual poderá se unificar o saber do homem: como na episteme clássica, o discurso representa exaustivamente as coisas, e contém sua própria verdade, que é sempre coextensa com a verdade do Ser. Num mundo sem mistério, não existe mais resíduo, ou opacidade do real à representação: a sociedade unidimensional está contida inteira no discurso que a exprime. A linguagem, através dos mass media, é o grande instrumento de unificação da cultura unidimensional. Nada mais natural que a lingüística se converta no modêlo para a unificação das ciências humanas.
Em suma, para Foucault o homem tinha sido gerado por um acontecimento discursivo — o divórcio entre as coisas e as representações. A inversão da chave mostraria que foi o homem, pelo contrário, que gerou êsse acidente discursivo. Da mesma forma, Foucault afirma que um nôvo acontecimento discursivo, que exclui o homem, está iminente; com igual facilidade, a leitura antropológica poderia demonstrar que essa nova configuração discursiva foi produzida pela praxis social. Num caso, o homem gera a configuração que permite pensá-lo; no outro, a configuração que permite excluí-lo. Assim, é falso (admitindo-se a validade dessa ótica) que a morte do homem seja uma tendência objetiva no campo do discurso. Mas é certo que se estaria formando uma configuração extradiscursiva (prática) que autoriza uma reflexão sôbre a morte do homem.
4. A Verdade e a Mentira do Homicídio
A distinção entre o homicídio metodológico e o homicídio ontológico permite precisar os limites e a validade do conceito da morte do homem.
Metodològicamente, a exclusão do sujeito é não somente legítima como sob certos aspectos inevitável. Descontando o que existe de abusivo e unilateral em Les
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Mots et les Choses, e os exageros polêmicos da Archêo- logie, podemos dizer que a metodologia da morte do homem mostra amplamente a sua fecundidade na prática descritiva do próprio Foucault.
O homicídio ontológico suscita o problema da validade de uma análise que pretende demonstrar a gênese e a dissolução do homem e das ciências humanas a partir de uma descrição que se esgota no plano do discurso. Seria necessário completar a análise com a introdução do nível extradiscursivo. Como vimos, o próprio Foucault esboça a teoria dessa análise em dois níveis. O “ saber” no qual aflorou o tema do homem, e as formações discursivas que têm o homem por objeto, com seus conceitos, objetos, modalidades enunciativas e estratégias temáticas, deveria, no futuro, ser correlacionado com as práticas (pré) não-discursivas, que determinaram essas regu- laridades. Uma leitura em dois níveis preservaria, em grande parte, as interações e sistematicidades discursivas isoladas por Foucault, evitando o terrorismo das to- talizações prematuras, e a preguiça reducionista que se limita a derivar, em bloco, um sistema teórico de uma organização da praxis, sem mediações e sem respeitar a especificidade dêsse sistema e de cada um dos seus componentes. Êsse trabalho está por fazer; é evidente que a interpretação extradiscursiva esboçada no capítulo anterior tem um simples valor ilustrativo, e se destina a propor um entre muitos outros caminhos possíveis.
Resta saber se essa dupla leitura poderia legitimar o discurso que a funda, isto é, se teria a capacidade de definir o estatuto epistemológico do discurso que anuncia a morte do homem. Ciência ou ideologia? No fim dêste ensaio, a questão fica em aberto. Válido enquanto método, útil como instrumento polêmico, o homicídio permanece duvidoso no plano ontológico. A mortalidade do homem não é certa; mas o discurso que proclama a sua extinção, se ideológico, é seguramente mortal. Nesse caso, esgotada a sua utilidade, o homicida, e não o homem, será varrido “como na orla do mar um rosto de areia.” 28
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REFERÊNCIAS
1 — Vide, por exemplo, na lingüística, além de F. de Suuhhuii',Cours de Linguistique Générale (Paris: Payot, 1988), N Chomsky, Synctatic Structures (La Haye: Mouton, 1867) n E. Benveniste (Paris: Gallimard, 1966); na etnologia, Clamle Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale (Paris: Plon, 195H), na filosofia, L , Althusser, Pour Marx (Paris: Maspero, 196(1); na psicanálise, J. Lacan, Ecrits (Paris: Ed. du Seuil, 190(1)
2 — Cf. J. P. Sartre: "11 s’agit de constituer une idéologie nouvelle, le dernier barrage que la bouigeoisie puisse encum dresser contre Marx", em L ’A rc, n» 30, p. 88; H. Lefebvro, Claude Lévi-Strauss ou le N ouvel Eleatisme, em ‘‘L’Honmii' et la Société", n* 1 e 2; O. R. d’Allones, Les M ots contre Um Choses, em "Raison Présente", n» 2; e R. Garaudy, La M ort de VHom me, em "La Pensée”, n“ 135.
3 — Tese defendida brilhantemente por Lucien Sebag, em M a r -xisme et Structuralisme, (Paris: Payot, 1964).
4 — Michel Foucault, Histoire de la Folie d VA ge Classique (Paris: Plon, 1961).5 — Ibidem, p. 27.6 — M. Foucault, Naissance de la Clinique (Paris: P .U .F ., 1963).7 — Ibidem, p. 7.8 — Ibidem, p. 173-4.9 — M. Foucault Les M ots et les Choses (Paris: Gallimard,1966).
10 — Ibidem, p. 274.11 — M. Foucault, L ’Archéologie du Savoir (Paris: Gallimard,1969)12 — M. Foucault, La Naissance de la Clinique, p. 30.13 — Ibidem, p. 37.14 — Foucault, L ’Archéologie, p. 22.15 — Ibidem, p. 65.16 — Ibidem, p. 65.17 — Ibidem, p. 83-84.18 — Ibidem, p. 92-93.19 — Sigmund Freud, Introduction â la Psychanalise (Paris: Pay.it,1965) trad. francesa de S. Jankelevitch, p. 266.20 — L ’Archéologie, p. 101.21 — K. Marx, Capital (New York: The Modern Library) trad.inglesa por S. Moore e E, Avelling, p. 68-69.22 — Cf. entrevista de M. Foucault (não corrigida), noste livro.23 —. Les M ots et les Choses, p. 339.24 — Ibidem, p. 354.25 — Ibidem, p. 390.26 — Cf. G. Lukacs, Histoire et Conscience de Classe (Paris: LesEditions de Minuit, 1960) trad. francesa de Kostas Axelos.27 — Cf. Herbert Marcuse, One-Dimensional M an (Boston: Boa-con Press, 1968); vide também artigo do autor, D e Eros "
Sísifo, em "Tempo Brasileiro”, n° 17-18.28 — M. Foucault, Les M ots et les Choses, p. 398.
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