Foucault Para Além de Vigiar e Punir

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FOUCAULT, PARA ALÉM DE VIGIAR E PUNIR título Foucault, beyond Discipline and punishment Inês Lacerda Araújo [a] [a] Professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) no Mestrado em Filosofia, Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected] Resumo O que é preciso para governar? Como entender melhor a expressão de Foucault “Somos todos governados”? Responder a tais questões implica em ir além de Vigiar e Punir. Os cursos Segurança, Território, População (1977-1978) e Nascimento da Biopolítica (1978-1979) não só complementam a análise dos dispositivos da vigilância, da punição, da disciplina, como vão além, até os sistemas de segurança da moderna governabilidade, que inicia em meados do século 18 e vem até nossos dias. Há inumeráveis maneiras de governar, de influenciar a conduta, as ações, as reações, de governar crianças, a família, a casa, as almas, as comunidades, diz Foucault, mas sua pergunta é pela maneira de governar os homens através do “exercício da soberania política”, ou melhor, “da racionalização da prática governamental no exercício da soberania política”. Assim ele mostra que houve uma arte de governar (razão de Estado) que se transforma, pela economia política, em governo da população, cujo pano de fundo é o liberalismo e cujo regime de verdade é o mercado. Palavras-chave : Biopolítica. Governamentalidade. Segurança. Regime de verdade. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 39-58, jan./jun. 2009 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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  • FOUCAULT, PARA ALM DEVIGIAR E PUNIR

    ttuloFoucault, beyond Discipline and punishment

    Ins Lacerda Arajo[a]

    [a] Professora da Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUCPR) no Mestrado em Filosofia,Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    O que preciso para governar? Como entender melhor a expresso de FoucaultSomos todos governados? Responder a tais questes implica em ir alm deVigiar e Punir. Os cursos Segurana, Territrio, Populao (1977-1978) eNascimento da Biopoltica (1978-1979) no s complementam a anlise dosdispositivos da vigilncia, da punio, da disciplina, como vo alm, at ossistemas de segurana da moderna governabilidade, que inicia em meados dosculo 18 e vem at nossos dias. H inumerveis maneiras de governar, deinfluenciar a conduta, as aes, as reaes, de governar crianas, a famlia, acasa, as almas, as comunidades, diz Foucault, mas sua pergunta pela maneirade governar os homens atravs do exerccio da soberania poltica, ou melhor,da racionalizao da prtica governamental no exerccio da soberaniapoltica. Assim ele mostra que houve uma arte de governar (razo de Estado)que se transforma, pela economia poltica, em governo da populao, cujopano de fundo o liberalismo e cujo regime de verdade o mercado.

    Palavras-chave: Biopoltica. Governamentalidade. Segurana. Regime de verdade.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 39-58, jan./jun. 2009

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    Abstract

    What is necessary in order to govern? How to understand betterthe expression of Foucault We are all governed? To answerthese questions implies going beyond Survey and Punish. Thecourses Security, Territory, Population and The Birth ofBiopolitics (1977-1978; 1978-1979) not only complement hisanalysis of the surveying, punishment and discipline devices, butalso extend them to the security systems of our moderngovernmentality that initiates in the midst of the 18th century ecomes until our days. There are various ways of governing, ofinfluencing the conduct, the actions, the reactions, of governingchildren, family, home, souls and communities, Foucault explains,but his point is the specific way of governing men through theexercise of politic sovereignty, in other words, of rationalizingthe govern practices in exercising the political sovereignty. Sohe explains that there has been an art of governing (reason ofState) that suffered a transformation through the mechanisms ofthe political economy into the government of population, whoseback stage is liberalism and whose regime of truth is the market.

    Keywords: Biopolitics. Governmentality. Security. Truth regime.

    Por que ler Segurana, Territrio, Populao eNascimento da Biopoltica?

    Os cursos acima mencionados so de crucial importncia paracompreender duas noes fundamentais para Foucault, as de biopoder egovernamentalidade e, sobretudo, mostrar que ele vai alm de uma anlise dasociedade da punio e da vigilncia, para uma anlise do modo como se exercita asoberania poltica atravs de prticas de governo que incidem sobre o comportamentodos homens e guiam, controlam e asseguram sua conduta; so justamente taisprticas que criam condies para aquele exerccio de governo da conduta humana.Ambos os cursos so um a continuidade do outro, e o tema central, como elemesmo diz (FOUCAULT, 2004b, p. 111), o percurso de uma Histria dagovernamentalidade; esse, alis, seria o ttulo mais apropriado para os dois cursos.

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    Neles, Foucault confirma teses e conceitos, como o de epistem,quando retoma a arqueologia e os cortes de poca de As Palavras e as Coisas;ele usa, ao mesmo tempo, as noes de poder/saber prprios genealogia, e asnoes de rede de relaes e feixes de processos, que so prprios daarqueologia. O que sugere fortemente que, ao contrrio do que afirmam FranoisEwald e Alessandro Fontana na introduo aos cursos, o programa de umagenealogia das relaes entre saber e poder no se ope e nem sucede auma arqueologia das formaes discursivas. Segundo os mesmosorganizadores dos cursos, estes no so o esboo dos livros e sim pesquisasque convidam para explorar os livros que sero publicados. Penso que sim, mastambm, no caso dos dois cursos em foco, pode-se dizer que eles indicam comomelhor compreender e mesmo preenchem lacunas de seu projeto terico, incitamo leitor a completar e enriquecer seu pensamento e suas propostas, a no sedeter em noes muito gastas e cujo alcance fica limitado ao panoptismo e aosdispositivos da sociedade disciplinar. que, como se ver, h novasproblematizaes, em especial uma genealogia da governamentalidade conduzidapor cortantes e aprofundadas anlises externas da histria, de prticas e sabereslocais (prticas discursivas), em que ele pesquisa tanto autores pouco divulgados(Abeille, La Perrire) como os clssicos da filosofia poltica, indo de Plato,passando por Aristteles, a literatura dos padres da Igreja, Maquiavel, Rousseau,Kant, vindo at a economia poltica (Adam Smith, Keynes, Friedman) e at acontemporaneidade (anlise do neoliberalismo norte-americano, alemo efrancs). O resultado um retrato de nosso presente, do modo como hoje segoverna. E isso sempre com uma perspectiva crtica das nossas atuais mazelas.

    Assim, para melhor compreender Vigiar e Punir e Histria daSexualidade I: A Vontade de Saber imprescindvel ler os cursos de 1977-79. Eles mostram o pensamento de Foucault em movimento, por vezes comcorreo de rumos, indicao de rumos, e, principalmente, de uma nova proposta:como se exerce a soberania poltica em termos de governo, ou melhor, de umanova e original concepo de governo e de poltica, para a qual ele cunha umneologismo, gouvernementalit, que traduzi por governamentalidade. E umanova maneira de analisar o Estado, a soberania, o papel do direito e da sociedadecivil, pelo novo conceito de governo.

    Concordo, no entanto, quando os organizadores afirmam que os temasressoam na histria atual, mesmo quando fala de Aristteles ou Nietzsche. E semprecom uma impressionante erudio, sabiamente conduzida e aplicada, comengajamento pessoal e um trabalho sobre o acontecimento ou os acontecimentoshistricos que produzem efeitos e vm at o presente. possvel, inclusive,

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    compreender fenmenos como o da globalizao, da Unio Europeia e a poltica doneoliberalismo. Sempre na perspectiva por ele criada (e nunca copiada) de umametodologia prpria de anlise da histria. Esta pode ser caracterizada como umaarqueogenelogia de prticas e de mudanas nessas prticas, conduzidas poruma histria da verdade, e no por uma anlise do tipo histria das ideias ou dossistemas de pensamento, e nem com pretenso de desvelar ideologias.

    Contra seus crticos, que afirmam que Foucault negligenciou aIdade Mdia e que no aborda a questo do Estado moderno, apenas osmicropoderes, ele os analisa, sim. E de uma forma indita, surpreendente erica. Seu instrumento a histria dos acontecimentos discursivos e das prticasno discursivas, em outras palavras, quais so os tipos de racionalidade usadosnos procedimentos, nos dispositivos e nas tecnologias que a administrao estatalemprega para governar, para dirigir a conduta dos homens. Portanto, no uma anlise das instituies, no uma anlise sociolgica do Estado e de seusaparatos, que v no Estado o ponto final de uma dominao sobre a sociedadecivil e sobre os indivduos. Enfim, o Estado moderno visto como resultado deprticas de governo, o que indica que a filosofia poltica sofre uma profundatransformao com esta concepo revolucionria de Estado, que v o Estadocomo resultado, como produto de prticas de governo. Ainda contra seus crticosque o acusam de ter feito apenas uma ontologia circular do poder, ele respondeque conceber o Estado atravs da histria que uma ontologia; Foucault dizque preciso situar o Estado como domnio poltico fundamental no interior deuma histria mais ampla, que , justamente, a histria da governamentalidade: oEstado foi governamentalizado, resume Foucault. Vejamos como.

    Genealogia da arte de governar ou darazo de Estado e o poder pastoral

    Nos dois cursos analisados, Foucault retoma o tema do biopoder,que surge pela primeira vez no curso Em Defesa da Sociedade, 1975-76, eque um dos conceitos-chave para a compreenso do dispositivo de sexualidade.O biopoder diz respeito aos traos biolgicos da espcie humana que entramem estratgias polticas, um poder sobre a vida. Ele afirma que seu propsitono elaborar uma teoria do poder, pois segundo seu modo de abordagem opoder no visto como um substrato fluido que decorre disto ou daquilo; h issosim, mecanismos e procedimentos que servem para que o poder possa serassegurado por tecnologias, dispositivos com funes especficas. Por isso no

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    h produo, relaes familiares e relaes sexuais s quais ou contra as quaisse sobrepem mecanismos de poder; pelo contrrio, esses mecanismos fazemparte daquelas relaes, eles so efeito e causa delas. Mesmo que seja possvelreconhecer especificidades neles e certas relaes entre eles, importam osefeitos que podem ser percorridos de forma lgica e seu papel especfico emdado perodo ou campo de saber.

    Poderia ser uma analogia aplicvel a uma anlise global de umasociedade, porm Foucault no segue esse caminho, pois ele diz que no faz histria,nem sociologia, nem economia. Ele faz uma filosofia que tem a ver com a polticada verdade, que produz efeitos de saber fruto de tticas de poder; estas decorremde lutas especficas. Nesses campos de foras no h receitas prontas do quefazer. Seu projeto no fazer poltica como os marxistas faziam na Frana nessapoca. Seu engajamento pessoal, fsico e real; os problemas so postos de modoconcreto e definido, no interior de uma dada situao. Cabem lutas especficas quetrazem a tona essas polticas de verdade. nesse sentido que deve ser compreendidasua abordagem do liberalismo e do neoliberalismo, como se ver.

    A fim de compreender como surge e como funciona o biopoder,Foucault recua na histria at o poder pastoral, cuja genealogia remonta sprimeiras civilizaes orientais. E essa anlise o leva at as noes mais atuaisde governamentalidade e de conduta de toda uma populao, na qual surge umnovo tipo de subjetivao, e cujo solo o liberalismo. O liberalismo visto comoo pano de fundo da biopoltica e uma consequncia da arte de governar dossculos 16, 17 que vai at meados do sculo18, quando se transforma pela aode um novo jogo, o da economia poltica, prprio do liberalismo. O interessante que Foucault no cumpre a promessa de analisar o biopoder, pois se detmem uma acurada anlise do poder pastoral, da razo de Estado e doliberalismo, mas no nessa ordem. Neste artigo procuramos ordenar essasmutaes nas polticas de verdade que resultam em diferentes modos degovernar a conduta dos homens.

    Em resumo, atravs de uma anlise externa das instituies que oleva s tecnologias de poder, ele diferencia: a) o Estado de justia feudal, comos fatores do territrio, do poder amplo de um soberano sobre esse territrio euma sociedade que a da lei; at o sculo 15 importa a territorialidade; b) entreos sculos 16 at meados do sculo 18, surge uma nova arte de governar que a do Estado administrado, em que importam as fronteiras, os limites territoriais,o que exige disciplina e regulamentos (arte de governar); c) o fator populao imprescindvel para o tipo de governamentalidade que transforma a razo deEstado, que a modifica por meio da economia poltica; a esse governo corresponde

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    uma sociedade do controle, que exige dispositivos de segurana, que surgeem fins do sculo 18 e vem at nossos dias. Como na arte de governar da razode Estado o territrio no um fator primordial, Foucault observa que o ttulomais apropriado para o curso, deveria excluir o fator territrio. Enfim, agovernamentalidade nasceu de uma noo mais arcaica, a noo crist depastoral; ela o pano de fundo da governamentalizao do Estado. A histriado Estado feita a partir de prticas reais dos homens, do que eles fazem,do que eles pensam, e no como realidade transcendente a partir da quala histria poderia ser feita1.

    O poder pastoral tem origem no Oriente pr-cristo e mais tarde vaipara o Oriente cristo; no uma noo grega e nem romana; a metfora grega dopiloto difere do papel atribudo ao pastor pelos hebreus uma vez que para aqueles obem-estar apenas um dos fatores, os mais importantes so vencer o inimigo econquistar territrios. Para os ltimos o poder pastoral implica cuidado com a sade,zelo e devotamento para que cada um tenha assegurada sua subsistncia, nutrio; um tipo de poder que visa a cada ovelha e a todo o rebanho ao mesmo tempo(omnes et singulatim) e cuja aplicao indefinida, no tem limite, no cessa; aforma ocidental de poder segue o modelo do pastorado, como poder sobre os homens,como matriz de governo dos homens. O poder pastoral foi introduzido no Ocidentepela igreja crist, um poder original, nico na histria e com ele o homem ocidentalaprende a ser uma ovelha em meio a outras, precisa que o pastor se sacrifique porele. Esse tipo de poder se modificou, mas nunca foi abolido.

    O rei grego no era o pastor, ele defende a cidade, ajuda a construirseus muros.2 J o deus hebreu se desloca com seu povo, o condutor sai dasmuralhas em busca de plancies frteis. H toda uma arte de dirigir, guiar, conduzir,manipular individual e coletivamente a vida toda e cada passo, de cada um. Ofeudalismo foi contestado, mas o poder pastoral nunca. Este governo de uns poroutros, do governo cotidiano [...] foi durante 15 sculos a cincia por excelncia,

    1 Esta, diz Foucault, no a nica maneira de fazer a histria do Estado, mas um modo fecundoe mostra que no h ruptura quando se fala de micro e de macropoderes, um no exclui o outro.

    2 A 6 aula dedicada a mostrar que Plato foi exceo, ele concebe deuses pastores, o bommagistrado um pastor; ainda assim, o pastor tem uma s funo, a poltica, e no a de nutrir,de educar, do contrrio o mdico, o padeiro e o educador seriam reis, o que impossvel deacordo com Plato em O Poltico. O cidado grego age em funo da lei, ele persuadido arespeit-la. No pastorado, cada caso um caso, h uma dependncia total com relao aopastor, a vida codificada, a obedincia imediata, h que negar ou renunciar a si; da anecessidade de um saber perptuo sobre a vida, um saber acerca do comportamento. Emcontraste, os gregos pedem um domnio de si, o que Foucault analisar nos cursos dos anos 80.

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    a arte de todas as artes, o saber de todos os saberes (FOUCAULT, 2004a,p. 154). Saber perptuo que ser o saber do comportamento das pessoas, de suascondutas. O pastor exige obedincia, entrega de si, anulao de si. Diferedo controle de si para tornar-se senhor de si dos gregos. Surge do poderpastoral um tipo de poder que usa certas tcnicas de investigao e de exame.Elas produzem uma verdade de si, secreta, a interioridade da alma escondida.

    ento toda a histria dos procedimentos de individualizao humanano ocidente que se mostra pela histria do pastorado. Digamos ainda,que a histria do sujeito. [...] o pastorado esboa o preldio daquilo quechamei governamentalidade, tal como ela ir se desenvolver a partir dosculo 16 (FOUCAULT, 2004a, p. 187).

    Do pastorado no surge um pensamento poltico e organizado dapolis, ele se aplica a pequenas comunidades filosficas, religiosas e tambm direo de conscincia. Como poder sobre os homens, ele a matriz de governodos homens no mundo ocidental, no h outro caso na histria das sociedadesdesse tipo de governo da vida cotidiana cuja finalidade conduzir vida eternae que vale para toda a humanidade. uma nova forma de poder, um novomodo de individualizar por sujeio, sob a extrao da verdade do sujeito,este analisado e sujeitado, uma subjetivao por uma verdade que lhe imposta. Tais anlises permitem uma melhor compreenso de A Vontade deSaber, como a confisso se tornou a matriz preferencial da subjetivao pelaelaborao de uma verdade de si, de seu ntimo, de seu eu.

    O poder pastoral o embrio da arte de governar dos sculos16 ao sculo 18, a porta de entrada do Estado moderno que nasce quandoa governamentalidade se torna prtica poltica calculada e refletida. Opastorado entrou em crise, foi alvo de revolta de condutas e resistncias, oumelhor, de contra condutas. So exemplos os movimentos contra a obrigao dese confessar, o ascetismo, a fundao de pequenas comunidades religiosas, anoo de uma comunicao direta e iluminada com Deus, sem intermediao dopastor. Porm o prprio poder pastoral se encarrega de absorver tais rebeliesque culminariam na reforma. Ele subsiste por fazer parte necessria de tticas eestratgias de poder, assim o poder pastoral acaba por se intensificar e melhorarsua eficcia. No sculo 16, alm do controle da conduta religiosa, ele se distendesob formas privadas da conduta da criana, da famlia com relao aos filhos, seestende para a sade e para a verdade qual se chega por prticas, por regras,pela meditao (o que lembra Descartes). Comea uma distino entre o domniopblico e o privado, o soberano tem novas obrigaes.

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    Lei, disciplina, controle

    Em que medida aquele que exerce o poder soberano pode seencarregar de tarefas especficas para governar, atravs de que clculo, que tipode racionalidade? Nos sculos 14 e 15, no fim na Idade Mdia, governar o povoe ser soberano o mesmo que governar a natureza e ser soberano dela.Deus se manifesta por sinais, prodgios, maravilhas, h um continuum entre mundonatural (o cosmos) e o mundo teolgico, divino. O mundo serve como um livropara ensinar a verdade por semelhanas e analogias, h um finalismo e umantropocentrismo, e isso que desaparece no sculo 16, quando surge um novotipo de racionalidade governamental e uma nova epistem, a ordem clssicado saber, em que o cosmo desgovernamentalizado, e no saber valem nomais os princpios e causas primeiros e finais, mas as classificaes, a cinciageral da ordem e da medida. Foucault reafirma o tipo de anlise que fizeraem As Palavras e as Coisas. O soberano tem uma tarefa que no mais dizrespeito a reinar tal como reina sobre a terra e o pastor sobre suas ovelhas.Assim, atravs da arte de governar a coisa pblica, e de conceber a naturezacomo regida por princpios fundamentais, a razo de Estado surge como novidade.

    Nas trs primeiras aulas de Segurana, Territrio, Populao,Foucault faz uma primeira repartio entre tipos de poder: o dos mecanismoslegais, o do controle disciplinar e o dos sistemas de segurana. O primeiro tpico da poca da soberania em que, um roubo, por exemplo, punido pela leipenal que funciona atravs de mecanismo legal ou jurdico, no esquemapermitido/proibido, e cujas penalidades so a forca, o banimento ou uma multa.

    No segundo tipo de punio, j no sculo 18, a lei penal permanece,mas h uma srie de mecanismos de vigilncia, controles, enquadramento,que permitem localizar o possvel ladro e dissuadi-lo. Trata-se das tcnicaspenitencirias, que ele abordou em Vigiar e Punir.

    Quanto ao terceiro tipo, diz respeito aos dispositivos de segurana.Alm de atenderem os dispositivos disciplinares, h aplicao contemporneada lei, quer dizer, os dispositivos de segurana visam preveno e aorganizao do castigo corretivo. O problema como prevenir, uma possibilidade o uso de tcnicas estatsticas para averiguar a camada social em que ocorremos roubos, qual a relao entre a taxa de criminalidade, o momento e a regio,se a fome e as crises aumentam ou diminuem a taxa, qual o custo social doroubo, os danos, os custos da punir, se compensa reeducar; enfim, importaverificar qual o grau ou limiar de aceitabilidade social ou econmica do crimepara que a sociedade funcione num nvel timo.

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    Essas diferenciaes no indicam a inexistncia de sistemas desegurana e correo antes do sculo 17, e nem que a disciplina dispensa ossistemas de segurana. Estes vm at hoje e no anulam os outros dois. Oscdigos e leis se inflam com novas regras para fazer funcionar os sistemas desegurana. Os mecanismos de disciplina tambm se intensificam, h mais vigilncia,classificao, busca pela patologia atrs do comportamento. Lei, disciplina esegurana se compem em sries. As tcnicas disciplinares remontam ao claustromedieval, a estatstica tambm j era aplicada antes do sculo 18. Mas astecnologias de segurana so mais abrangentes, elas incluem elementos jurdicose elementos disciplinares. Hoje a penalidade aplicada visa segurana e issoinflacionou as tcnicas disciplinares. Nesta altura do curso Segurana,Territrio, Populao, o objetivo seria mostrar como as tecnologias desegurana reativam e transformam as tecnologias disciplinares e as jurdico-legais. Mas a anlise de Foucault toma outro rumo. Ele insere essa subdivisonum quadro mais amplo, que o da histria da governamentalidade.

    No entanto, importante passar rapidamente pela tripartio lei/disciplina/segurana. A excluso dos leprosos exemplifica os mecanismos legais;o enquadramento da peste um caso a ser disciplinado, corrigido, vigiado. Anovidade na anlise de Foucault so os mecanismos de segurana, cujo exemplo a varola. Trata-se de uma epidemia, portanto preciso evitar o contgio, e paratal, novos saberes so necessrios, como a estatstica para ver idade, sexo, efeitossobre a populao. As tecnologias de segurana incidem nos mecanismos decontrole social e nos mecanismos que modificam algo no destino biolgico daespcie. Pode-se dizer que em nossas sociedades a economia geral do poderest se tornando uma economia da ordem da segurana? pergunta Foucault(2004a, p. 12). possvel falar de uma sociedade de segurana?

    Sim, e ela precisa levar em conta a nova realidade a da populao.A partir do sculo 18, as cidades no mais so muradas, os

    elementos jurdico, espacial, econmico e administrativo da cidade se tornamum problema. Na poca em que predominava a soberania, o territrio quepermitia a circulao de ideias, de vontades, as ordens do rei. a poca domercantilismo, h uma ligao entre Estado de um lado, e o soberano, oterritrio e o comrcio, de outro lado. Da a necessidade de construir cidadesem forma simtrica e axial, que ele exemplifica com a cidade de Richelieu.Para lidar com dessimetrias preciso disciplinar as multiplicidades no espao,hierarquiz-las e permitir a comunicao das relaes de poder e de seusefeitos funcionais, para o comrcio, por exemplo. At aqui as anlises seassemelham s de Vigiar e Punir.

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    Os problemas mudam em uma sociedade de segurana, comoFoucault ilustra com a cidade de Nantes. Como solucionar questes ligadas circulao de produtos, higiene e areao; como evitar bolses em que seacumula muita gente; como facilitar o comrcio interno e tambm o externo,com alfndega eficiente; como vigiar uma cidade que no tem muralhas, enfim,como promover o crescimento e o desenvolvimento. A partir daqui, muda aproblemtica; a pergunta como governar a populao, esta questo apontada, mas no desenvolvida em A Vontade de Saber.

    No sistema disciplinar, o espao vazio deve ser construdo (umapriso, uma fbrica, uma escola). No sculo 18 a novidade a segurana,portanto, importam a localizao, o escoamento, recolher dados para avaliarefeitos produtivos e impedir os negativos,

    Sejam eles os da produo ou do comrcio; nunca se consegue osucesso absoluto, como ocorre com o enquadramento disciplinar. que ossistemas de segurana contam com probabilidades e devem atender a mltiplasfunes. As ruas devem facilitar a circulao, evitar os miasmas, as lojasprecisam ser bem localizadas, se fazem projees para o futuro. precisoatentar para o nmero dos habitantes, de carroas, de casas, etc. Assim, osoberano precisa do territrio, a disciplina precisa da distribuiohierrquica, e a segurana requer a regulamentao de um quadropolivalente e transformvel; o meio no qual as transformaes se do passaa ter uma funo crucial, pois ele o suporte e o elemento de circulao e decausalidade de uma ao, produz modificaes naturais e artificiais. A questoprincipal atingir uma populao, isto , uma multiplicidade de indivduos queso e que s existem de fato, essencialmente, biologicamente ligados materialidade em cujo interior eles existem (FOUCAULT, 2004a, p. 23). Omeio o ponto de articulao entre a natureza e a natureza humana O governantedeve intervir no meio se ele quiser mudar a espcie humana, isto , a existnciafsica e moral dos sditos. Os mecanismos de segurana representam astcnicas polticas que se dirigem ao meio.

    Quando Foucault aborda a relao entre governo e acontecimento,atravs do exemplo do plantio e comrcio de gros, ele v que eles estorelacionados com o problema da escassez. Esta eleva preos, pode causartumultos; se antes a escassez era considerada m sorte ou castigo, nas sociedadesde segurana ela pode ser prevenida pela interveno nos estoques, nos preos,na exportao, na limitao ou ampliao das culturas de gros. No sculo 17at meados do sculo 18, o mercantilismo usava o mecanismo dos preos vis,salrios vis para impedir estoques, mas este sistema falhou e arruinou os

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    agricultores, pois o resultado era o excesso de produo e preos baixos; semlucro a safra seguinte ser menor e tambm a produo. A situao muda comos fisiocratas que liberam o comrcio e a circulao de gros. No se trataapenas de uma nova teoria econmica, mas de uma mudana radical nastcnicas de governar e um dos elementos da efetivao do que chamarei dedispositivos de segurana [...] que me parece caracterstica, uma dascaractersticas das sociedades modernas, enfatiza Foucault (2004a, p. 36).

    Creio que nesta altura do curso h uma virada em direo aoproblema maior, o do exerccio do governo. A escassez e a carestia, de umponto de vista jurdico/disciplinar, precisam ser evitadas, mas para o fisiocratano, so at mesmo naturais. A oscilao entre abundncia e raridade demandadispositivos de segurana e no mecanismos jurdico/disciplinares. Osdispositivos de segurana favorecem a subida de preo pela exportao oupelo volume dos estoques, de modo que os preos permaneam altos mesmoquando h abundncia, ou seja, na soluo liberal (FOUCAULT, 2004a,p. 39), o mercado o que importa. Os preos altos permitem a expanso dacultura, preo bom para a colheita, o que assegura a prxima colheita e compensaeventuais perdas. Se acontecer de os preos baixarem e assim haver escassez,h uma autorregulao, nunca se viu, dizem os fisiocratas, uma populao morrerde fome. possvel prever se a colheita ser boa ou no, se haver ou no altade preos, da o lema: deixe assim (laissez-faire). O comrcio deve ser livre,quando h escassez, pode-se importar. A alta de preos dos pases exportadorestende a se regular pela perspectiva das importaes; os exportadores podemtambm se aproveitar de escassez em outros pases. possvel programar aproduo e todo o ciclo que vai at o lucro final. A poltica econmica analisa aproduo, o mercado mundial e o comportamento econmico dos produtores edos consumidores. esse comportamento concreto do homo oeconomicusque deve ser levado em conta, resume Foucault (2004a, p. 42).

    O governo deve prevenir a escassez, assim ele previne as revoltas;e isso porque se suprimiram os gargalos jurdicos e disciplinares, se deixa que ascoisas fluam e se autorregulem. E a raridade que leva morte de indivduos,esta, no s no desaparece como no deve desaparecer (FOUCAULT, 2004a,p. 43). O governo interfere econmica e politicamente ao nvel da populao, dassries de indivduos, apenas se for pertinente para a prpria populao. Amultiplicidade dos indivduos no mais pertinente, mas a populao, sim(FOUCAULT, 2004a, p. 44). Aqueles no passam de pontos de apoio. Apopulao objeto novo, no existia para o pensamento jurdico e poltico anteriorao sculo 18. Os mecanismos que a ela se dirigem, visam obter efeitos, conduzem-

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    na. O comportamento dos indivduos conta na medida em que so membros dapopulao. Ela representa um sujeito coletivo diferente do sujeito coletivo jurdico.H novos elementos, como a produo, a psicologia, o comportamento, maneirasde produzir, os consumidores, o mercado mundial, o mercado deixado livre parase desenvolver em crculos cada vez mais abrangentes.

    Enquanto as disciplinas regulamentam tudo e nada escapa, osdispositivos de segurana deixam estar, deixam fluir, levando em conta omomento apropriado para evitar, por exemplo, a fome, mas apenas se isso representarqueda de preo. Tais processos so necessrios, inevitveis e naturais, devem serlevados em conta para obter outros que so pertinentes porque dizem respeito populao. Os elementos da realidade jogam entre si, um anula ou freia ou regula ooutro. Para os fisiocratas a economia e a poltica so fsicas, isto , so realidadesque sofrem interveno da ao poltica. No jogo do liberalismo a realidade deveseguir seu curso, segundo princpios, leis e mecanismos da prpria realidade.

    Esses novos fenmenos da sociedade de segurana so toimportantes, que Foucault passa a analisar por um novo prisma a sociedade moderna,o da liberdade. Ela condio das formas modernas (capitalistas) da economia.

    Em Vigiar e Punir ele mostrara a impossibilidade de conceberliberdade e ideologia quando o que est em jogo so as tcnicas disciplinares.Ele diz que estava errado, o que estava em jogo outra coisa:

    que de fato esta liberdade, ao mesmo tempo ideolgica e tcnica degoverno, essa liberdade deve ser compreendida no interior das mutaes etransformaes das tecnologias de poder. E, de um modo mais preciso eparticular, a liberdade no nada mais do que o correlato da colocao emfuncionamento dos dispositivos de segurana (FOUCAULT, 2004a, p. 50).

    Quer dizer, a liberdade, a partir do sculo 18 no um privilgio oualgo prprio da pessoa, mas possibilidade de movimentar-se, deslocar-se, fazercircular pessoas e coisas. Ela uma das facetas, uma das dimenses dofuncionamento dos sistemas de segurana. Da a ideia de um governo doshomens que leva em conta a natureza das coisas (e no a natureza eventualmentem dos homens), que pensa na liberdade dos homens para haver administraodas coisas, no que eles querem fazer, no que eles pensam fazer. Est tudocorrelacionado. A isso Foucault chama de fsica do poder, ao fsica do poderno elemento da natureza e um poder que regula e opera a partir da liberdade decada um. No primariamente ou principalmente uma ideologia, mas umatecnologia de poder.

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    Por detrs da lei h uma normatividade, que diferente dosprocedimentos de normalizao disciplinar que serve para esquadrinhar,hierarquizar, adestrar, repartir entre comportamentos aptos e inaptos, normais eanormais. Foucault os renomeia como tcnicas de normao. Nos dispositivosde segurana as tcnicas so de normalizao, e exemplifica com a varola,que requer prticas mdicas preventivas, aplicadas a toda a populao. Essapolcia mdica apoia prticas reais de gesto de populao e de governo daEuropa ocidental. So noes novas, com outro campo de aplicao, diversasdas tcnicas disciplinares. [...] a partir deste estudo das normalidades que anorma se fixa e desempenha seu papel operatrio. Portanto, eu diria que aquino se trata mais de uma normao, mas antes, em um sentido estrito, enfim,de uma normalizao, explica Foucault (2004a, p. 65).

    Os novos campos de racionalidade surgem do clculo deprobabilidade, do uso de instrumentos da estatstica, que tornam eficientes osmecanismos de segurana. Uma pequena inoculao, por exemplo, deveriaevitar a prpria varola. preciso calcular para saber o que vale a pena, morrerpela inoculao ou pela prpria doena; surge a noo de caso distribudo numapopulao, que sofre o risco de contaminao; o contgio pode diminuir ouaumentar, e isso pode ser controlado por um mecanismo natural ou artificial.

    A razo de Estado e a epistem clssica

    No sculo 16 comea o Estado moderno e com ele a questo dogoverno, das condutas, das direes. Os problemas se intensificam em umponto de cruzamento entre a conduta de si, da famlia, das crianas, sua sade.Para o soberano/governante exercer a soberania sobre a cidade, h uma sriede transformaes, que no demandam mais conquistar territrio. A questocentral : Em que medida aquele que exerce o poder soberano deve agora seencarregar de novas e especficas tarefas que so as do governo dos homens?(FOUCAULT, 2004a, p. 237). Portanto, algo diferente do que props Maquiavel,que era a necessidade de assegurar o territrio e a soberania, marcando,avanando, protegendo. Sua questo era a segurana do prncipe, o que nosignifica incio da modernidade e sim o fim de uma poca, o pice dela, assegurara segurana do territrio e do prncipe. Para Maquiavel, tudo gira em torno dapreservao da relao do Prncipe com seu principado, que externa; precisolocalizar os perigos e ter habilidade para se conservar no poder. As frmulas de

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    Maquiavel so retomadas no sculo 19, mas o objetivo estratgico reconstituira obra O Prncipe para melhor combat-lo; essa literatura anti-Maquiavelparte de outros conceitos e necessidades, governar tem vrias formas e elasso internas ao Estado e sociedade, dizem respeito s relaes que vo decima at embaixo e debaixo para cima no eixo que compreende a poltica nogoverno do Estado, a economia no governo da famlia e a moral no governo desi. O problema no mais o das estruturas feudais e sim como administrar oterritrio, as colnias, como manter a soberania de um soberano sobre o Estado.

    A arte de governar necessita de clculos, uma nova racionalidade,diversa da anterior (sculos 14 e 15), quando a Igreja detinha o poder soberano,reinar e governar eram uma s e mesma coisa; tal como Deus governa a natureza,o rei dispe de um poder para organizar as foras vivas que ordenam todos osseres para o fim ltimo da felicidade eterna. A nova racionalidade, ao contrrio,requer o uso da estatstica, visa o equilbrio europeu com um exrcito forte euma diplomacia eficiente e ainda, cria a polcia cujas funes eram assegurar obom emprego das foras do Estado, disciplinar as fbricas, as escolas, o exrcito.Significa o fim da era da semelhana e o incio da era da representao, ou daepistem clssica. O cosmo desgovernamentalizado pela classificao epelo ordenamento das coisas. A arte de governar demanda no o domnio sobreum imprio, mas sim o exerccio da polcia. O bom governo deve ocupar-se dasade dos sditos aqui na terra. Por isso o comrcio e a produo, para omercantilismo, devem produzir mais riqueza e o aumento da populao umaconsequncia desse tipo de produo que incentiva a concorrncia.

    A pea-chave o governo da famlia, responsvel por gerir osbens; o Estado deve controlar por uma espcie de arte de governar ou deexercer o poder sob a forma da economia entendida como um campo derealidade, um campo de interveno do governo atravs de processos complexos,muito diferentes daqueles de Maquiavel. No se trata de exercer um domniosobre habitantes de um territrio e sim, como concebe La Perrire, um governodas coisas, de um complexo formado por homens e coisas e suas relaes(clima, fronteiras, fecundidade, fome, epidemias). Da o alvo ser a famlia, comseus membros, prosperidade, nascimentos, mortalidade, que so coisas a seremcorretamente dispostas a um fim que o bem comum, atravs de certas tticase no pela exclusiva autoridade absoluta do soberano.

    Enfim, a arte de governar requer a polcia, o exrcito e adiplomacia, de um lado, e a teoria do direito natural, que contratual, dooutro lado. Ela se forma a partir de trs novos fatores: o Estado tem a funode dominar os povos e tambm os conhecimentos e meios para ou conservar

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    ou aumentar seu domnio; quem pensa e analisa o governo so os polticos, opoder real depende de uma poltica conduzida pela razo de Estado; e os aparelhosdo Estado mudam de funo, exrcito, justia, impostos, tudo passa pela anlise,pela prtica refletida, so programados e desenvolvidos, o Estado objeto deconhecimento, de desejo, de cobia. Ele d inteligibilidade a instituies que jexistiam. A poltica estava para a arte de governar, como a mathesis estavapara o modo de fazer cincia, na poca clssica (ver As Palavras e as Coisas).

    Portanto, para Foucault, o Estado deve ser analisado como parteintegrante de algo mais amplo, mais geral, a governamentalidade, ou melhor,as prticas de poder. Assim, o Estado, longe de ser um monstro frio, constitudopor vrias prticas de governar, uma peripcia da governamentalidade. Governar seguir princpios que um Estado requer para seu funcionamento. A razo deEstado uma arte prtica e terica, ela mantm o Estado em estado, visa suapermanncia e integridade, a paz e o equilbrio entre Estados, a permanentevigilncia contra golpes. Da a necessidade de conhecer a realidade, da aestatstica que permite obter dados sobre a populao, natalidade, nvel de riqueza,balana comercial, efeitos dos impostos, como agir sobre o comportamento, aopinio da populao, como obter obedincia do povo, e como assegurar afelicidade e prosperidade atravs de prticas de governo.

    A polcia disciplina e organiza as relaes entre a populao, a produoe o mercado. Estamos no mundo do regulamento, estamos no mundo da disciplina,resume Foucault (2004a, p. 348). As disciplinas locais e regionais que se v

    desde fins do sculo 16 at o sculo 18 nas fbricas, nas escolas, noexrcito, essa proliferao se destaca sobre o fundo de uma tentativa dedisciplinarizao geral, de regulamentao geral dos indivduos e doterritrio do reino, na forma de uma polcia que teria um modeloessencialmente urbano (g. m.) (FOUCAULT, 2004a, p. 348).

    A utopia disciplinar da polcia seria fazer da cidade quase umconvento e do reino, quase uma cidade.

    Liberalismo e governamentalidade

    A ruptura com relao ao sistema de polcia, que era urbano, sedeve ao novo tipo de produo de gros, que diz respeito aos economistas, nomais centrada no mercado, no comrcio e na circulao, mas na produo. Osistema de polcia no mais d conta do comrcio de gros, a populao passa

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    a ter valor relativo, e ser beneficiada pelo jogo livre entre particulares (salrio,trabalho, preo, aumento ou diminuio da riqueza), cujos interesses soregulados pelo Estado. justamente essa racionalidade baseada na economiaque muda o papel do Estado e que pe como problema, at hoje, o quanto ecomo interferir na sociedade. A razo de Estado sofreu transformaes, aprincipal delas foi o surgimento de um novo regime de verdade: governar noslimites do muito ou do pouco que a natureza das coisas fixa, quer dizer, asnecessidades intrnsecas s operaes do governo (FOUCAULT, 2004b, p.21). O mesmo tipo de anlise que fez da loucura, da delinquncia, da sexualidade,da doena, Foucault aplica s prticas de governo, ou seja,

    mostrar por quais interferncias toda uma srie de prticas a partirdo momento em que so coordenadas por regimes de verdade [...]puderam fazer com que aquilo que no existe (loucura, doena,delinqncia, sexualidade, etc.) se torne ento algo, algo que,entretanto, continua a no existir.

    Que no existem, mas que formam um domnio de prticas reais.O dispositivo de saber/poder formado atravs de um regime de verdade quemarca no real o que no existe, como a poltica e a economia; no existem,porm no porque sejam erro ou iluso. O objetivo dos dois cursos o estudoda racionalizao da prtica governamental no exerccio da soberania poltica(FOUCAULT, 2004b, p. 4).

    E o mtodo dispensa a busca de universais e no implica que hum objeto pronto numa suposta realidade, e que ser descoberto. Exatamentecomo j propusera em A Arqueologia do Saber. O mtodo diz respeitoigualmente a uma anlise peculiar, a da histria das polticas ou das prticas deverdade. No caso do liberalismo, o lugar de verdade o mercado e no acabea dos economistas. Sendo instncia de veridico, o mercado funcionacom uma inteligibilidade prpria, e mostr-la significa mostrar como o real possvel. O cruzamento entre mercado juridicional e mercado veridicional talvez um dos fenmenos mais importantes da histria do Ocidente moderno,segundo Foucault. As prticas juridicionais perguntam: o que voc fez? Prticasperguntam veridiccionais: o que voc ?

    A genealogia de regimes veridiccionais, isto , a anlise da constituiode certo direito da verdade a partir de uma situao de direito, a relaoentre direito e verdade tendo encontrado sua manifestao privilegiadano discurso, discurso no qual se formula o direito e no qual se formula o

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    que pode ser verdadeiro ou falso; o regime de veridico sendo [...] oconjunto das regras que permitem, a propsito de certo discurso, fixarquais so os enunciados que podero ser caracterizados comoverdadeiros ou falsos (FOUCAULT, 2004b, p. 37).

    Assim, Foucault faz uma anlise crtica do saber, uma crtica polticado saber. Por isso sua abordagem do liberalismo difere das anlises sociolgicase filosficas; ele no o v enquanto teoria, nem ideologia e nem como modo dea sociedade se representar, mas como uma forma de reflexo crtica sobre aprtica governamental (FOUCAULT, 2004b, p. 327). Formulaes que provmde certas regras e produzem efeitos reais, podem ser ditas verdadeiras ou falsas,e isso tem alcance poltico uma vez que se determinou o regime de veridico,no caso do liberalismo, o regime de verdade que se acopla prticagovernamental, o mercado. Ou seja, como

    prtica, isto , como um modo de fazer orientado por objetivos e seregulando por uma reflexo contnua. O liberalismo ser analisado comoprincpio e mtodo de racionalizao do exerccio do governo racionalizao que obedece, e a est sua especificidade, a regra internada mxima economia (FOUCAULT, 2004b, p. 323).

    Com esses instrumentos metodolgicos que Foucault aborda anova governamentalidade que surge nos sculos 18 e 19 vem at hoje. Elaconserva dois fatores da razo de Estado, o exrcito e a diplomacia. Atransformao importante a que leva a uma limitao interna da racionalidadegovernamental, atravs da economia poltica; o governo pode ser inapto oubem sucedido, ele depende de clculos que incidem sobre processos naturais;trata-se da poltica liberal, do deixe estar.

    No se deve governar muito e sim ocupar-se da sociedade, paraela e por ela que preciso governar. Deixe assim e use clculos para saber emque medida o governo deve intervir na natureza das coisas, isso uma dascaractersticas do liberalismo. O n central a populao e assim que umabiopoltica poder se formar, com novas regies de saber/poder como a higienepblica, a demografia, a ateno a todos os processos que dizem respeito populao enquanto conjunto de fenmenos naturais. O liberalismo o quadrogeral da biopoltica. Essa nova arte de governar no uma superao darazo de Estado, mas um novo tipo de clculo interno entre o mnimo e o mximo,que refina e aperfeioa a razo de Estado. Este tem a importante funo degerir e assegurar que os processos econmicos se reproduzam e, para tal, usa

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    mecanismos de segurana. Esse o principal objeto da nova governamentalidade,essa a genealogia do Estado moderno e de seus aparelhos, a economia, agesto da populao, o direito e o aparelho judicirio, o respeito s liberdades,os aparelhos policial, militar e diplomtico.

    Assim como o poder pastoral foi alvo de contra condutas, tambma nova governamentalidade do liberalismo alvo de sedies, revoltas dapopulao, a afirmao de que a sociedade civil suplantaria o Estado, os partidosque se elevam como clamor da nao (nazismo).

    A economia poltica o regime de verdade do liberalismo,entendida no como teoria econmica, mas como clculo acerca do mnimo deinterveno que possibilite o mximo de funcionamento de um governo. Omercado e no a cabea dos economistas o lugar de verdade no sentido depraticar o preo natural, relativo ao mercado; este a medida para distinguirquais prticas governamentais prestam. Ao mostrar como se d esse processo,qual sua inteligibilidade intrnseca, mostra-se tambm como o real possvel.

    Se h um limite de fato, que o respeito do mercado verdade, odireito pblico, para ser formulado em termos de leis, desloca seu eixo: a pergunta como limitar juridicamente o exerccio do poder pblico. Desse modo, Foucaultcorrige um rumo que tomara em Segurana, Territrio, Populao, em queafirmara que o direito desaparecera quando surge a economia poltica, agora elemostra que so duas faces da mesma moeda. O liberalismo se caracteriza porambos, os direitos imprescritveis, a questo da legitimidade no cessa, ela vemdesde o sculo 16, mas analisada dentro dos prprios limites dagovernamentalidade, de seus objetivos, do que til para mant-la, quando, comoe no que intervir. Quer dizer, a vontade vista como lei, como vontade coletiva(concepo de Rousseau de liberdade jurdica), convive com a necessidade deregrar as transaes entre a esfera de interveno do poder (puissance) pblicoe a esfera de independncia dos indivduos. Essas duas concepes que tmorigem histrica diferente caracterizam o liberalismo europeu dos sculos 19 e20. So procedimentos diferentes, mas no incompatveis, e devem ser focadosno por uma lgica dialtica a qual prev uma sntese, e sim por uma lgicaestratgica que conecta termos disparatados, uma conexo do heterogneo: aaxiomtica fundamental dos direitos do homem e o clculo utilitrio daindependncia dos governados, (FOUCAULT, 2004b, p. 44).

    A categoria a do interesse que limita os interesses individuais ecoletivos com relao utilidade social e lucro econmico, o mercado comrelao ao poder poltico e os direitos fundamentais, com relao independnciados governados. Para o liberalismo a pergunta : qual o valor de utilidade do

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    governo e de todas as aes governamentais em uma sociedade na qual a troca que determina o verdadeiro valor das coisas? (FOUCAULT, 2004b, p. 48).A liberdade de mercado, de que fala Adam Smith caracteriza a nova razogovernamental, levar ao enriquecimento recproco e ilimitado do comrcio, paraque o enriquecimento europeu seja uma soma no nula. Foucault usa o exemplode Kant, que, toma como garantias para a paz perptua condies naturaispara a vida juntamente com uma organizao social para trocar seus produtos.

    A liberdade no liberalismo aquela fabricada, a que convm, eque obedece segurana como princpio de clculo, ela no pode se tornar umperigo nem para a produo e nem para os trabalhadores, cuja sade e seguranaprecisam ser preservadas.

    Para alm de Vigiar e Punir

    A nova razo governamental procura manter um equilbrio em queambos saem ganhando, a segurana e a liberdade. Para tal h trsprocedimentos. Pelo primeiro, os perigos da vida cotidiana so combatidos porcampanhas contra doenas e epidemias pela higiene pblica, contra adegenerescncia do indivduo, da raa, da espcie. Essa cultura do perigo ocorrelato, a condio psiquitrica e cultural da liberdade.

    No segundo tipo, esto os procedimentos de controle que usamtcnicas disciplinares, como os do Panoptico de Bentham, que visam aumentara produtividade nas escolas, prises, hospitais, fbricas. Quanto maior e maiseficiente for a vigilncia, maior a produtividade. Isso caracteriza um tipo degoverno que vigia e s interfere quando algo no funciona bem noscomportamentos esperados, nas trocas lucrativas, na vida econmica. H umaconjuno entre liberalismo e disciplina. O panoptismo uma frmula polticageral, no se limita a instituies, para Bentham, e Foucault concorda.

    O terceiro modo de proceder induz mais liberdade atravs decontroles e intervenes, em que o controle no s disciplina, mas o princpiomotor (FOUCAULT, 2004b, p. 69).

    A crise do liberalismo nos anos 25-30 est ligada s crises da economiacapitalista, mas no como seu resultado direto e sim como crise do dispositivogeral de governamentalidade (FOUCAULT, 2004b, p. 71). O Estado o efeito danecessidade que a governamentalidade do liberalismo, e mais recentemente, doneoliberalismo tem para governar, quer dizer, ele uma funo das prticas degovernamentalidade (do que, alis, o socialismo est desprovido, segundo Foucault).

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    O neoliberalismo se caracteriza pelo crescimento econmico deempresas legitimado juridicamente pelo consenso. Neste artigo no abordo otema do neoliberalismo (fica para outro trabalho); neste o foco mostrar que oEstado um efeito de prticas de governo, cuja histria tem uma genealogiaque remonta a prticas do poder pastoral. Somos governados, como Foucaultafirma em seus livros. Estes dois cursos mostram que o sentido em que somosgovernados tem um pano de fundo que a histria de poderes polticos, desaberes com uso poltico, e que a soberania um efeito da necessidade degovernar a conduta, o comportamento, o modo com se produz, como se troca,como se vive. Que o liberalismo o pano de fundo da governamentalidaderequerida pelo biopoder. Que os direitos legtimos esto de mos dadas com aliberdade implicada na poltica econmica do mercado. Enfim, somos aindamais governados do que sonha a utopia dos governantes, a de governar umasociedade disciplinada, somos instados a ser livres...

    REFERNCIAS

    FOUCAULT, M. Scurit, territoire, population. Paris: Gallimard, 2004a.

    _______. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004b.

    Recebido: 15/01/2009Received: 01/15/2009

    Aprovado: 05/02/2009Approved: 02/05/2009

    Revisado: 02/10/2009Reviewed: 10/02/2009

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